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Índice de desenvolvimento em saúde: conceituação e reflexões sobre sua necessidade

Resumos

Este artigo teve como objetivo revisar o conceito de índices sociais, enfocando sua utilidade prática e necessidade no contexto da saúde. Nesse sentido, considerou-se inicialmente como tais índices são definidos, as possibilidades de seu uso e a importância que eles têm como modo de retratar a realidade. Logo, adotou-se um conceito amplo de saúde, coerente com a visão vigente. Posteriormente, descreveu-se a saúde nos contextos internacional e nacional, enfatizando indicadores que podem ser empregados para quantificar problemas de saúde da população. Finalmente, em razão de não ter sido encontrado um índice social específico que descrevesse a saúde no contexto brasileiro, indicou-se a necessidade de contar com o Índice de Desenvolvimento em Saúde. Esse servirá como instrumento para gestores, agentes de fiscalização e população em geral acompanharem os desenvolvimentos alcançados e as deficiências que precisarão ser supridas com o fim de assegurar melhor saúde para a maior parte das pessoas.

Índice; desenvolvimento social; saúde


This article aimed to review the concept of social indices by focusing on their practical use and need in the health setting. For this purpose, the initial consideration was how these indices are defined, their possible use, and the importance they have as a means of depicting the real world. Thus, a wide concept of health, consistent with the current view, was adopted. Health was further described within international and national settings, emphasizing indicators that can be employed to estimate health problems in the population were highlighted. Finally, as no specific social index describing health in a Brazilian setting has been developed, the need to rely on the Health Development Index was indicated. This index will serve as a tool for managers, inspection agents, and the general population to follow-up the developments reached and the shortcomings that should be addressed to ensure a better health status for the majority of the population.

Index; social development; health


ARTIGO ORIGINAL

Índice de desenvolvimento em saúde: conceituação e reflexões sobre sua necessidade

Edson de Oliveira AndradeI; Valdiney V. GouveiaII; Roberto Luiz D'ÁvilaIII; Mauro Brandão CarneiroIV; Munir MassudV; José Hiran GalloVI

IDoutorado em Bioética, Universidade do Porto - Conselho Federal de Medicina (UPorto-CFM), Brasília; Universidade Federal do Amazonas (UFAM), AM, Brasil

IIDoutorado em Bioética, UPorto-CFM, Brasília; Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, PB, Brasil

IIIDoutorado em Bioética, UPorto-CFM, Brasília; Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil

IVDoutorado em Bioética, UPorto-CFM, Brasília; Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (IPEC /FIOCRUZ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

VDoutorado em Bioética, UPorto-CFM, Brasília; Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil

VIDoutorado em Bioética, UPorto-CFM, Brasília, Conselho Federal de Medicina, Brasil

Correspondência para Correspondência para: Edson de Oliveira Andrade Universidade Federal do Amazonas Av. General Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000 Campus Universitário Coroado I Manaus - AM, Brasil CEP: 69077-000 dredsonandrade@gmail.com

RESUMO

Este artigo teve como objetivo revisar o conceito de índices sociais, enfocando sua utilidade prática e necessidade no contexto da saúde. Nesse sentido, considerou-se inicialmente como tais índices são definidos, as possibilidades de seu uso e a importância que eles têm como modo de retratar a realidade. Logo, adotou-se um conceito amplo de saúde, coerente com a visão vigente. Posteriormente, descreveu-se a saúde nos contextos internacional e nacional, enfatizando indicadores que podem ser empregados para quantificar problemas de saúde da população. Finalmente, em razão de não ter sido encontrado um índice social específico que descrevesse a saúde no contexto brasileiro, indicou-se a necessidade de contar com o Índice de Desenvolvimento em Saúde. Esse servirá como instrumento para gestores, agentes de fiscalização e população em geral acompanharem os desenvolvimentos alcançados e as deficiências que precisarão ser supridas com o fim de assegurar melhor saúde para a maior parte das pessoas.

Unitermos: Índice; desenvolvimento social; saúde.

INTRODUÇÃO

A partir de meados do século passado, ainda se recuperando de prejuízos decorrentes da Segunda Guerra Mundial, diversos países perceberam a necessidade de demarcar condições de excelência para o convívio harmonioso, respeitando os direitos e definindo as pautas de uma sociedade socialmente mais justa. Fortaleceram, nesse contexto, instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Fruto das atividades da primeira instituição, ganharam força nos anos 1990 os intentos de definir parâmetros para comparar e acompanhar o desenvolvimento das nações. Foi, então, quando se propôs o índice de desenvolvimento humano (IDH), fundamentado em três dimensões básicas: vida longa e saudável, educação e padrão de vida digno1.

Essas experiências não tardaram em definir um campo novo de interesse de estatísticos, cientistas políticos, economistas, sociólogos e psicólogos sociais, interessados em quantificar e/ou promover melhores condições de vida da população. Entretanto, essa inquietação não se restringiu ao âmbito acadêmico; diversos gestores de instituições públicas e privadas, governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais perceberam a utilidade de contar com ferramentas para mapear as necessidades da população e auxiliar no gerenciamento e na promoção de melhores condições de vida para um maior número de pessoas2,3. Kayano e Caldas4 listam ao menos três razões principais para a tendência mundial em empregar índices sociais: (1) a exigência de organismos internacionais que financiam programas e projetos em políticas públicas, precisando contar com alguma medida de sua implementação; (2) a necessidade de legitimar, com dados empíricos, tanto as políticas governamentais como as denúncias apresentadas pela sociedade civil acerca de suas irregularidades ou distorções; e (3) a demanda por democratizar as informações sobre as realidades sociais com o fim de ampliar o diálogo entre o governo e a sociedade civil, estimulando a criação de agendas que incluam a participação dessa na formulação, no monitoramento e na avaliação das ações levadas a cabo.

Na área da saúde, um índice dessa natureza poderia fomentar políticas baseadas em evidências e demandar maior responsabilidade dos gestores, cuja eficácia de suas ações seria permanentemente monitorada5. Nesse caso, tanto a população geral que procura os serviços de saúde como os profissionais envolvidos na sua promoção disporiam de um referencial para avaliar o sistema de saúde da sua cidade e/ou região. Porém, não se trataria unicamente de avaliar ações políticas, mas também de orientar os administradores para oferecer um sistema de saúde mais adequado. Em razão dessas considerações, justifica-se o objetivo deste artigo, que pretende reunir os fundamentos para a elaboração de um índice de desenvolvimento em saúde. Nesse caso, partindo de experiências levadas a cabo nessa área, principalmente, pela ONU6.

ÍNDICES DE DESENVOLVIMENTO: CONCEITUAÇÃO

Apesar de índice parecer um conceito autoevidente, sobretudo pela frequência com que se apresenta atualmente nos diversos meios de comunicação2,4, parece útil abordá-lo mais pormenorizadamente. Conceitualmente, os índices compreendem números que tratam de descrever algum aspecto da realidade ou a relação entre os vários aspectos que permitem melhor caracterizá-la. Esses são um referencial quantitativo, uma tentativa de expressar a realidade por meio de números, o que se constitui tarefa árdua, principalmente no âmbito da esfera social, onde praticamente inexiste uma unidade de medida comum. Nesse contexto, as variáveis que caracterizam a população não podem ser simplesmente somadas3.

Os índices evitam tratar ou avaliar a realidade por meio de fatores ou impressões pessoais, dadas à imprecisão e ao subjetivismo2,4. A realidade pode ser adequadamente operacionalizada em indicadores, que são variáveis específicas (marcadores observáveis) que representam uma dimensão (construto latente) que vai compor um índice determinado. Cada indicador pode ser transformado em um subíndice, expresso como um valor que vai de 0 a 1, aplicando-se a fórmula Subíndice = (Pontuação Real - Valor Mínimo) /(Valor Máximo - Valor Mínimo). Os valores mínimo e máximo podem ser estimados estatisticamente, definidos com base em peritos da área /objeto de avaliação ou mesmo definidos empiricamente a partir de dados disponíveis para cada indicador. Quando esses valores não apresentam tetos /limites absolutos para indicar carência ou plenitude de satisfação de uma necessidade, consideram-se valores fixados geralmente por conveniência, calculando-se, por exemplo, seu logaritmo (log). Esse procedimento é adotado quando se consideram os rendimentos mensais das pessoas, pois alcançar um nível digno de desenvolvimento humano não demanda um rendimento ilimitado.

Computados os subíndices, é recomendável ponderálos, isto é, assumir que esses têm importâncias diferenciadas ("pesos") para definição do resultado final4. Tais pesos são geralmente definidos em função do que se conhece acerca da importância de cada um. Uma vez feita a ponderação dos subíndices, processa-se o cômputo do índice propriamente dito, também denominado de índice composto. Esse corresponde, frequentemente, à média aritmética das pontuações obtidas para os subíndices, tendo como função sintetizar em um único número determinado conjunto de aspectos da realidade.

Embora aparentemente simples de se calcularem, alguns índices podem ser mais complexos, implicando a necessidade de ter em conta múltiplas facetas da realidade, inclusive de naturezas diferentes (por exemplo, social, econômica e política)5. A dificuldade muitas vezes causa confusões mesmo entre aqueles que representam interesses das mesmas instituições. Por exemplo, tratando o Relatório Mundial da Saúde publicado em 2000, Ugá et al.7 apresentaram críticas e ofereceram sugestões para os cálculos dos subíndices da saúde que, apesar de terem um valor heurístico, foram minorados por representantes da OMS que não hesitaram em sugerir sua inadequação8. Todavia, esses são problemas secundários a serem superados quando se pretende definir índices que gozem de consenso entre pesquisadores, administradores e instituições que representam. A própria escolha dos indicadores suscita questionamentos, pois pode depender de opções políticas e visões da realidade9. O pesquisador precisa conviver com o dilema de alcançar maior proximidade dos fenômenos reais, procurando incluir o menor número possível de variáveis, evitando inviabilizar o índice2.

Depreende-se que o processo de construção de um índice adequado e amplamente aceito precisa reunir algumas características e/ou qualidades. Essencialmente, precisa ser operacionalizado por meio de indicadores que satisfaçam critérios importantes, seis dos quais parecem gozar de consenso3,4,9-12.

- Universalidade: devem servir para representar a maioria das potenciais unidades geopolíticas de interesse;

- Simplicidade: possibilitem compreensão fácil por parte de pessoas leigas;

- Disponibilidade: são de baixo custo e fácil obtenção, sendo factível conhecê-los periodicamente;

- Representatividade: espelhem adequadamente uma realidade determinada, cobrindo seus principais aspectos;

- Confiabilidade: os dados devem ter qualidade, sendo coletados sistematicamente e de forma padronizada e/ou obtidos de fontes fidedignas;

- Aceitabilidade: necessitam ser aceitos por organizações nacionais e internacionais de gestão e desenvolvimento de políticas públicas.

Além desses critérios, Kayano e Caldas4 acentuam que devem ser selecionados indicadores que permitam comparabilidade. Esse aspecto, entretanto, sugere pensar em um elemento crítico da escolha dos indicadores: generalização versus individualização. Quanto mais generalizado o indicador, maiores são as possibilidades de comparação com outras realidades; contrariamente, a maior individualização assegura a possibilidade de conhecer determinadas especificidades locais, úteis para tomar decisões e intervir. Contudo, limita as comparações com outros contextos. Estes autores acrescentam ainda que os indicadores devem constituir séries históricas, permitindo comparar as unidades geopolíticas entre si e cada uma em relação ao seu desempenho nas medidas realizadas ao longo dos anos.

Esses critérios não devem prender o pesquisador no momento de selecionar os melhores indicadores para definir certo índice. Antes, porém, precisam nortear tal atividade. É possível pensar em outros critérios igualmente úteis, mas esses parecem representar satisfatoriamente a prática que tem guiado a criação dos índices de desenvolvimento humano e qualidade de vida. A propósito da prática, Kayano e Caldas4 oferecem recomendações valiosas, estabelecendo um fluxograma a ser seguido:

(1) Delimitação do quadro de referência. É necessário ter em conta os objetivos das políticas e programas, fragmentando a realidade em aspectos que possam ser mais relevantes para a dimensão a ser avaliada; (2) Delimitação do objeto e objetivo da avaliação. Espera-se que seja circunscrito o objeto quanto ao espaço (unidade de observação), tempo (unidade ou intervalo), medidas (se são unidimensionais, multidimensionais ou se mantêm relações entre as dimensões) e o processamento e a análise dessas medidas; (3) Escolha das variáveis que vão compor os indicadores. A realidade compreende um conjunto de eventos mais ou menos desordenados, geralmente relacionados uns aos outros. Demanda-se focar as variáveis mais pertinentes para representar as dimensões a serem medidas; (4) Definição da composição dos indicadores. Estabelecer que indicadores compõem cada subíndice, como se relacionam entre si, que peso têm e como se concatenam na definição do índice; e (5) Acesso ou criação do sistema de informações. Caso as variáveis tenham sido previamente medidas e estejam disponíveis, o pesquisador deverá reuni-las para compor seu banco de dados; se essa possibilidade não existe ou é inadequada, precisará criar as informações de que necessita.

Finalmente, é necessário assinalar que um índice, qualquer que seja, procura traçar um diagnóstico da situação de desenvolvimento de determinada unidade geopolítica. Com esse propósito, é indispensável contar com uma norma ou classificação de desempenho de todos os potenciais participantes do universo que se está avaliando. O Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo1 sugere classificar os países em três grupos de desenvolvimento humano: baixo (IDH < 0,500), médio (0,500 < IDH < 0,800) e alto (IDH > 0,800). Apesar de heurística, essa classificação é enviesada por não diferenciar desempenhos abaixo da pontuação média (0,500) e não apresentar as categorias separadas em intervalos iguais, sendo possível estabelecer outros intervalos13. Nesse sentido, poder-se-ia estudar a pertinência de estandardizar essas pontuações em termos da curva z, diferenciando seis grupos de acordo com o afastamento (s, sigma) do seu ponto mediano (0, zero).

ÍNDICES DE DESENVOLVIMENTO: APLICAÇÕES

Os índices de desenvolvimento têm sido comuns não apenas no âmbito internacional. Diversas tentativas vêm sendo implementadas no país para contar com sinopses de múltiplas facetas da realidade. Por exemplo, Negrão e Garcia13 apresentaram um índice de desenvolvimento habitacional, que leva em conta a inadequação física do domicílio, o nível de adensamento familiar e a disponibilidade dos serviços de infraestrutura urbana. Na América Latina, apenas três países apresentaram um nível de desenvolvimento satisfatório (acima de 0,70): Uruguai, Argentina e Chile; o Brasil apareceu em quarto lugar em um total de 17 países, com índice de 0,68. Entre os estados brasileiros, os melhores desempenhos em 1998 foram observados para São Paulo (0,87), Rio de Janeiro (0,86) e Distrito Federal (0,84). Não é difícil perceber o valor desse índice; por exemplo, ele pode ser empregado para decidir onde investir na construção, definir os preços dos aluguéis ou sugerir os estados que requerem mais esforços por parte do governo em programas habitacionais.

O índice de desenvolvimento turístico (IDT), apresentado por Castro e Nascimento11, é outro exemplo da pertinência de se contar com índices objetivos. Seus autores propuseram demonstrar aos órgãos responsáveis o rumo e as dificuldades que atravessa a atividade turística em local e período de tempo determinado. Além de servir como orientação para a escolha do destino turístico por parte da sociedade civil, esse índice procura quantificar as desigualdades do desenvolvimento turístico dentro do país, favorecendo a identificação de localidades que necessitam de investimentos e planejamentos. Esse se pauta em três subíndices principais: desenvolvimento econômico, infraestrutura básica da localidade e meio ambiente.

No âmbito da saúde têm tido lugar algumas iniciativas. Coerente com as estratégias da ONU, Sliwiany3 avaliou a qualidade de vida e os programas sociais em cidades do Paraná. Por outro lado, Silva Filho e Gomes2 se dedicaram a conhecer o bem-estar social de pessoas que habitam municípios da Bacia Hidrográfica do Rio Guaribas, no Piauí. Em ambos os estudos figura um subíndice denominado saúde, que contemplou indicadores diversos, como esperança de vida ao nascer, taxa de domicílios com acesso à rede geral de abastecimento de água, taxa de domicílio com banheiro ou sanitário, mortalidade materna, mortalidade por doenças transmissíveis e cobertura da população de crianças suscetíveis vacinadas; o único indicador em comum foi a taxa de mortalidade infantil. Borja e Moraes10 também procuraram avaliar a saúde, propondo um índice específico; porém, esse se referiu mais diretamente à saúde ambiental, identificando uma listagem de 39 indicadores para representá-la (por exemplo, relação entre volume de resíduos sólidos domésticos coletados e tratados; percentual de amostras com cloro residual abaixo do permitido; prevalência de cólera, dengue, leptospirose, esquistossomose, tracoma e febre amarela).

Tanaka, Campagnoni, Vallim e Osiano14 se interessaram em desenvolver um índice para quantificar a saúde da mulher no estado de São Paulo. Segundo esses autores, como indicadores isolados (por exemplo, mortalidade materna) não sensibilizaram autoridades, gestores da saúde, trabalhadores da saúde e população geral, seria necessário contar com um índice composto que revelasse mais adequadamente as condições de desigualdade e iniquidade da atenção às mulheres no ciclo gravídico puerperal. Para tanto, reuniram cinco indicadores: razão de mortalidade materna, coeficiente de mortalidade neonatal precoce, percentagem de cesáreas, percentagem de baixo peso ao nascer e coeficiente de incidência de sífilis.

Finalmente, em 2000, a OMS6 divulgou seu primeiro intento de criar um índice da saúde. Em realidade, pretendeu obter um índice do desempenho dos sistemas de saúde de seus países membros, possibilitando compará-los entre si e em relação aos aspectos específicos que evoluíram ou retrocederam em cada um. Nesse sentido, consideraramse cinco indicadores principais dos sistemas de saúde: logro quanto ao nível de saúde, distribuição da saúde, nível da capacidade de resposta, distribuição da capacidade de resposta e equidade da contribuição econômica.

Em resumo, parece que todos se deram conta das vantagens de se passar de avaliações pessoais, casuísticas e subjetivas para representar a realidade por meio de índices numéricos. Esses, entretanto, não encerram a realidade analisada; sua leitura e interpretação precisam ser acompanhadas de uma análise mais minuciosa do fenômeno estudado4. Os pesquisadores brasileiros têm proposto novos índices, porém pouco tem sido efetivamente construído na área da saúde. Esse aspecto reforça a necessidade de elaborar um índice de desenvolvimento em saúde neste país.

DESENVOLVIMENTO E SAÚDE NO MUNDO

A Constituição da OMS, elaborada em 1946, traz entre seus princípios fundamentais a definição de saúde como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade", comprometendo a Organização, em seu artigo 1º, com o objetivo de "alcançar para todos os povos o nível mais elevado possível de saúde". Sua aprovação, em 7 de abril de 1948, teve o Brasil como um dos signatários. No artigo 2º, entre as funções da OMS está a de "promover, em cooperação com outras agências especializadas quando necessário, a melhoria das condições de nutrição, moradia, saneamento, recreação, econômicas ou de trabalho, e outros aspectos de higiene ambiental"15.

Um trabalho apresentado pelo Secretariado da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS, em março de 200516, indica que as metas definidas para a Organização desde a sua fundação foram ofuscadas nas décadas seguintes pelo predomínio de programas verticais adotados na saúde pública com base nos avanços tecnológicos, notadamente as novas descobertas de antibióticos e o consequente fortalecimento da nascente indústria farmacêutica. A erradicação da varíola foi a marca de sucesso desse modelo, enquanto um dos sinais de seu fracasso ficou por conta da campanha de erradicação da malária, centrada na pulverização em massa de DDT. A necessidade de abordar fatores sociais como a pobreza na determinação de agravos à saúde das populações ressurgiu com força no programa "Saúde para Todos no ano 2000", proposto por Halfdan Mahler na Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde, de 1976, e aprovado na Conferência de Alma-Ata, em 1978. O modelo de atenção adotado para viabilizar o Programa teve como base os Cuidados Primários de Saúde.

Para a frustração dos seguidores de Mahler, os anos 1980 foram marcados por profundas mudanças na economia mundial com o surgimento do neoliberalismo, cujo foco estava na privatização, na redução do tamanho do Estado e na liberalização dos mercados. Sob a égide do ideário neoliberal, as ações direcionadas a melhorar as condições de saúde implementadas pelo Estado pareceram ser, em muitos contextos, irrealizáveis. A atenção primária passou a ser "seletiva", priorizando algumas intervenções com alta relação custo/benefício e atribuindo menor importância à dimensão social. De fato, a orientação política e econômica neoliberal caracterizou-se pela abertura da economia das nações, permitindo a livre circulação de capitais internacionais - carro-chefe da globalização, garantindo a supremacia desses sobre os estados nacionais; e, obviamente, pela participação mínima do Estado nos rumos da economia do país, através da redução de seu tamanho, da pouca intervenção dos governos no mercado de trabalho, de generoso programa de privatização de empresas estatais, contra o controle de preços dos produtos e serviços pelo Estado e a favor de sua desburocratização. A globalização da economia sob a égide neoliberal aprofundou o desemprego, rebaixou os salários, fez crescer a dependência ao capital internacional e provocou extraordinário aumento das desigualdades sociais.

Essa situação dramática foi reconhecida pela própria ONU em seu informe "Números da Crise", sobre os esforços para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio17. Sob o sugestivo subtítulo "A Face da Pobreza", a ONU reconheceu que: (a) mais de um bilhão de pessoas no mundo vivem com menos de um dólar por dia; outros 2,7 bilhões lutam para sobreviver com menos de dois dólares por dia; (b) todos os anos morrem onze milhões de crianças, a maioria com menos de cinco anos; e mais de seis milhões morrem em razão de doenças totalmente evitáveis como a malária, a diarreia e a pneumonia; (c) em alguns países extremamente pobres, menos de metade das crianças frequentam o ensino primário e uma percentagem inferior a 20% passa para o ensino médio. A seguir, alguns dados que revelam as causas e expressões da pobreza que afeta mais de um terço da população mundial:

Saúde: (i) todos os anos, seis milhões de crianças morrem de má nutrição antes de fazerem cinco anos; (ii) mais de 50% dos africanos sofrem de doenças relacionadas à qualidade da água, como cólera e diarreia infantil; (iii) todos os dias, o HIV mata 6.000 pessoas e infecta outras 8.200; (iv) a cada 30 segundos, uma criança africana morre devido à malária - o que significa mais de um milhão de crianças mortas por ano; (v) a cada ano, aproximadamente 300 a 500 milhões de pessoas são infectadas pela malária, das quais cerca de três milhões morrem por causa dessa doença; (vi) a tuberculose (TB) é a principal causa de morte relacionada à AIDS e, emalgumas partes da África, 75% dos portadores do vírus HIV também têm TB.

Fome: (i) mais de 800 milhões de pessoas vão se deitar todas as noites com fome; dentre elas, 300 milhões são crianças; dessas, 8% são vítimas de fome ou de outras condições de emergência. Mais de 90% sofrem de má nutrição prolongada e de um déficit de micronutrientes; e (ii) a cada 3,6 segundos mais uma pessoa morre de fome, em sua grande maioria, são crianças com menos de 5 anos.

Água: (i) mais de 2,6 bilhões de pessoas - mais de 40% da população mundial - carecem de saneamento básico e mais de um bilhão continuam a usar fontes de água impróprias para o consumo; (ii) quatro em cada dez pessoas no mundo carecem de acesso a uma simples latrina; e (iii) cinco milhões de pessoas, na sua maioria crianças, morrem todos os anos de doenças relacionadas à qualidade da água.

Como se depreende dos dados apresentados acima, o impacto dos modelos econômicos neoliberais nos determinantes sociais da saúde foi devastador. Isso resulta em grande medida da aplicação de "pacotes" de ajuste estrutural dos gastos com o setor social em diversos países, caracterizados principalmente por cortes drásticos nos orçamentos destinados à educação, programas de nutrição, fornecimento de água, sistema sanitário, transporte, habitação e outras formas de proteção social, além do gasto direto com o setor de saúde. De fato, constata-se que nos 37 países mais pobres do mundo os gastos públicos com educação foram reduzidos em 25% durante os anos 1980, enquanto aqueles destinados à saúde caíram 50%16.

Ao contrário do que pressupunham os gestores da nova ordem neoliberal, o crescimento econômico esperado, que viria a custo de muito sofrimento humano, não aconteceu. Na tentativa de reverter esse quadro e promover o desenvolvimento dos povos, a ONU reuniu a Cúpula do Milênio, em 2000, durante a qual 192 estados membros assumiram o compromisso formal de realizar oito objetivos, em busca da paz, do desenvolvimento, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A Declaração do Milênio sintetizou a reunião, e com suas oito metas relacionadas constitui um verdadeiro libelo contra as ordens econômica e política neoliberal. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram: (1) erradicar a extrema pobreza e a fome; (2) atingir o ensino básico universal; (3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; (4) reduzir a mortalidade infantil; (5) melhorar a saúde materna; (6) combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; (7) garantir a sustentabilidade ambiental; e (8) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento18.

Ninguém, em sã consciência, opõe-se a esses objetivos. Porém, talvez por descrédito na capacidade das autoridades de honrarem "compromissos", muitos duvidem de sua realização. Provavelmente por essa razão Kofi Annan, então Secretário Geral das Nações Unidas, apresentou seu Informe para a Assembleia Geral da ONU em 2005, esforçando-se para explicar por que os objetivos eram tão importantes. Segundo esse Secretário, em primeiro lugar, porque estão centrados no ser humano, devem ser alcançados dentro de prazos definidos e podem ser medidos; segundo, estão baseados em uma aliança mundial sustentada na responsabilidade dos países em desenvolvimento de colocar ordem em seus próprios assuntos, assim como na dos países desenvolvidos de apoiar esses esforços; terceiro, contam com apoio político sem precedentes, manifestado nos níveis mais altos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, da sociedade civil e das principais instituições de desenvolvimento; e quarto, são objetivos alcançáveis19.

Finalmente, destaca-se que dos oito objetivos três dizem respeito diretamente à saúde. No entanto, óbvio está que os demais influenciam decisivamente as condições sanitárias da população. Desde a erradicação da fome e da pobreza às políticas de preservação do meio ambiente, o impacto sobre a saúde é inegável.

DESENVOLVIMENTO E SAÚDE NO BRASIL

A Constituição do Brasil, promulgada em 1988, é considerada uma das maiores conquistas sociais dos últimos tempos. Com efeito, resultante que foi de um amplo processo de mobilização popular que pôs fim a mais de vinte anos de ditadura militar, garantiu direitos individuais e acesso inédito da população a políticas públicas e sociais. No âmbito da saúde as conquistas foram significativas. O artigo 196, inaugurando a Seção da Saúde no Capítulo da Seguridade Social, determina de forma clara a responsabilidade do Estado em garantir, por meio de políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário aos serviços e ações que visem à promoção, proteção e recuperação da saúde dos brasileiros. Na sequência, cria o Sistema Único de Saúde, estabelece suas diretrizes e determina que os recursos para sua viabilização venham do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes20.

A regulamentação subsequente acontece em 1990, por meio da Lei nº 8080, denominada Lei Orgânica da Saúde. Garantindo a fiel interpretação do texto constitucional, a Lei define, em seu artigo 3º, os fatores determinantes e condicionantes da saúde, elencando, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Conclui vaticinando que os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país21. Essa definição incorpora o conceito dos determinantes sociais da saúde, assumido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Qualquer cidadão, conhecedor desses textos, é capaz de perceber a distância entre a teoria e a prática. Quase vinte anos depois de promulgada, a Carta Magna ainda é um sonho distante para milhões de brasileiros. Muito longe se está daquilo que Hanna Arendt22 definiria como vida digna de ser vivida, ou seja, aquela simples e acirrada contenda para satisfazer as necessidades biológicas de existência, do mero viver. Acontece que o Brasil, assim como os demais países em desenvolvimento, amarga as agruras do neoliberalismo. Se, por um lado, o fim da ditadura militar e a conquista das liberdades democráticas na segunda metade dos anos 1980 trouxeram a esperança registrada na nova Constituição, por outro as eleições diretas de 1990 (com a ascensão de Fernando Collor ao poder) marcaram a implantação da "nova ordem" liberal no país.

Buss e Pellegrini Filho23, citando Margareth Whitehead, referem-se às iniquidades em saúde entre grupos e indivíduos, ou seja, "aquelas desigualdades de saúde que, além de sistemáticas e relevantes, são também evitáveis, injustas e desnecessárias", assinalando que "elas são um dos traços mais marcantes da situação de saúde do Brasil". Neste país o ideal de universalidade do Sistema Único de Saúde não funciona como deveria e, mesmo que se admitam avanços qualitativos e quantitativos ao longo do tempo, eles são desproporcionais aos avanços da Medicina e das ciências em geral, ao processo civilizatório, ao desenvolvimento econômico, à abertura democrática, às riquezas nacionais e ao potencial de trabalho do brasileiro.

Os indicadores de escolaridade mostram a face cruel dessa desigualdade. Quase um terço da população de Alagoas com 15 anos ou mais de idade é analfabeto; um quarto (um pouco mais ou menos) das populações nessa faixa etária dos outros estados do Nordeste também carecem de alfabetização. Distantes estão os estados do Sul, onde esses índices são os menores do Brasil. A propósito, documento da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, afirma que "a média de anos de estudo das pessoas de 25 anos ou mais de idade apresenta uma disparidade de 4,3 anos de estudo entre a unidade federativa que possui a maior e a menor média de anos de estudo, respectivamente o Distrito Federal e o Piauí. Isso reflete a imensa desigualdade existente entre as regiões brasileiras"24.

Diversos indicadores dizem respeito a determinantes e condicionantes do processo saúde/doença. O saneamento básico, por exemplo, acentua as desigualdades regionais, com as regiões Norte e Nordeste liderando o rol das deficiências. É inimaginável que, enquanto se desvendam os códigos do DNA, 35% da população nordestina e 53% dos nortistas não têm acesso à rede geral de abastecimento de água; que metade desse mesmo povo desconhece o que seja coleta pública de lixo. Em 2000, somente 36% dos nordestinos e número quase igual de nortistas tinham acesso à rede geral de instalação sanitária e fossa séptica24.

O coeficiente de mortalidade infantil é uma medida muito utilizada em Saúde Pública, visto que indica a incidência de doenças infecciosas e desnutrição, além da qualificação da assistência ao período pré-natal, parto e neonatal. Em 2001, a mortalidade infantil no Brasil foi de 27,4 por mil nascidos vivos. O declínio desse coeficiente em relação a 1990 foi significativo, porém ainda é alto. No Chile ele foi 12, na Colômbia, 23, na Costa Rica, 11, em Cuba, 9, no Uruguai, 15, no Paraguai, 30, Peru, 39, Venezuela, 22, Panamá, 25 etc. Comparados aos países desenvolvidos, a diferença é notória: Estados Unidos, 8, Austrália, 6, Canadá, 7, França, 6. Naquele ano de 2001, a taxa de mortalidade infantil na região Norte foi de 28,1; no Nordeste, 43; no Sudeste, 18,2; no Sul, 16,4 e no Centro-Oeste, 20,9. Ao que parece, a redução da mortalidade infantil é conseguida inicialmente pela redução da incidência de doenças infecciosas e da desnutrição, enquanto para mortalidade neonatal a redução é obtida com melhor assistência pré-natal e ao parto. Atualmente, são as afecções perinatais as principais causas de mortalidade infantil no Brasil (53,62)24.

De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, baseado na Estimativa de Incidência de Câncer no Brasil para 2006, "o câncer de colo do útero é a terceira neoplasia maligna mais comum entre as mulheres, sendo superado pelo câncer de pele (não melanoma) e pelo câncer de mama. É a quarta causa de morte por câncer em mulheres. Para o ano de 2006, deverão ocorrer 19.260 novos casos de câncer do colo do útero"25. A estratégia mais relevante para prevenir a mortalidade por essa condição é a detecção precoce do câncer, por meio do exame preventivo de natureza oncológica mais conhecido do mundo (exame citopatológico, Papanicolau ou Pap test). O carcinoma epidermoide é facilmente detectável na forma intraepitelial, muito favorecendo a sua prevenção. O exame pode ser realizado em postos de saúde e, portanto, não exige técnicas sofisticadas. Assim, quando a taxa de mortalidade por essa neoplasia é alta, é indicativo de falha grave do sistema de saúde pública, qualquer que seja a causa. Essa taxa no Brasil é inadmissivelmente alta, só perdendo para o câncer de mama. Nos países desenvolvidos a incidência de câncer do colo uterino declina e a do corpo uterino aumenta. Na América do Norte a taxa de incidência dessa neoplasia é de 9,1 por 100.000, enquanto na América do Sul é de 30,1 por 100.00026.

A Estimativa de Incidência de Câncer no Brasil para 2006, apresentada pelo INCA/MS27, revela que o câncer de próstata, segunda causa de mortes em homens, deverá acometer 47.280 novos pacientes naquele ano. A dosagem do PSA associada ao toque retal pode detectar precocemente o câncer de próstata inicial em homens assintomáticos. No entanto, existem controvérsias a esse respeito. Em primeiro lugar, parece existir um número considerável de biópsias negativas, o que eleva custos para o SUS e sofrimento para os pacientes (ansiedade e morbidades)28. Além disso, é possível que muitos cânceres detectados e extirpados cirurgicamente pudessem vir a ter um desenvolvimento muito lento sem danos à saúde. Corrobora essa hipótese o fato de que a incidência de câncer de próstata detectada ao longo da vida por rastreamento excede muito a probabilidade de morte por essa neoplasia, segundo afirmam Martins, Monti e Rodrigues28.

O câncer de mama representa a principal causa de morte por câncer em mulheres. A estimativa do INCA para 2006 é a de que ocorram 48.930 casos novos dessa neoplasia no Brasil. A sobrevida dos pacientes com esse tipo de câncer logra redução significativa com a sua detecção precoce29, cujas formas mais eficazes são o exame clínico da mama e a mamografia. O fator de risco mais importante para o câncer de mama é a idade, sendo raro antes dos 35 anos30. O outro fator mais importante é a predisposição genética, sendo os demais relacionados à ação de hormônios sobre a glândula mamária.

O Instituto Nacional do Câncer, em seus "Parâmetros Técnicos" para ações de detecção precoce do câncer de mama30, ressalta que, em mulheres assintomáticas, o exame clínico das mamas está indicado anualmente a partir dos 40 anos de idade. A mamografia estaria indicada para mulheres na faixa etária de 50 a 69 anos de idade, a cada dois anos, no mínimo. O exame clínico e a mamografia realizados anualmente estariam indicados para mulheres a partir de 35 anos de idade que comportassem risco elevado de desenvolver câncer de mama. Esse é definido como precoce quando diagnosticado nos estágios I e II da Union for International Cancer Control (UICC), situações nas quais é tratado com cirurgia conservadora da mama e obtém resultados elevados de cura, quando não existem linfonodos axilares com metástases. A oferta adequada desses exames e o número de exames realizados em mulheres nas faixas etárias assinaladas anteriormente são indicadores da qualidade da assistência à saúde da mulher mais fidedignos do que a mortalidade. O número de cânceres de mama detectados nos estágios I e II seria também indicativo da efetividade de um sistema de prevenção.

A incidência de muitas doenças pode ser reduzida quando se dispõe de mecanismos eficientes para fazê-lo, como as vacinas que conferem elevados níveis de proteção. A difteria vem declinando progressivamente em razão da utilização da vacina tríplice bacteriana (DTP), que fez também declinar a incidência de coqueluche de 40 mil casos/ano em 1980 para menos de 2 mil em 199624. Em 2002 foram notificados menos de 600 casos de tétano no Brasil. Há muito a Medicina colocou nas mãos da sociedade os elementos do conhecimento necessários e suficientes para o combate a diversas doenças transmissíveis, embora ainda não para todas. Não se pode esperar que todas as doenças transmissíveis sejam erradicadas, mas a varíola está erradicada desde 1978, a poliomielite foi considerada erradicada em 1994, e o sarampo foi praticamente eliminado.

Embora o advento da AIDS tenha contribuído muito para o aumento dos casos de tuberculose, essa doença sempre foi um problema grave de saúde pública. Os pacientes infectados pelo HIV podem contrair a doença a partir de reinfecção endógena e exógena. Esses pacientes (e outros submetidos a terapias imunossupressoras) contribuem para o aumento do número de casos de tuberculose. No entanto, o grande contingente de tuberculosos no Brasil não é de infectados pelo HIV ou de imunodeprimidos por outras causas. A tuberculose tem origem na ampliação da miséria com suas terríveis consequências (analfabetismo, desinformação, desnutrição, trabalho excessivo e grandes aglomerados humanos em condições precárias de vida), além do descaso, da falta de investimento e da desorganização dos serviços de controle. Inquestionavelmente são os países pobres que pagam os maiores e piores tributos à "peste branca". São notificados cerca de 85 mil casos novos de tuberculose por ano (64 por 100 mil habitantes/ano), e a mortalidade é de 6.000 casos/ano, aproximadamente24. Como a incidência tem sido maior na região Sudeste e menor nas regiões Norte e Nordeste, desconfia-se que esteja havendo subnotificação nessas regiões, nitidamente mais pobres e tendentes, portanto, a apresentar números mais expressivos de casos.

Certas medidas de morbidade, quando associadas a indicadores sociais e econômicos fundamentais, podem formar um conjunto de parâmetros adequados não apenas à mensuração da frequência de doenças, cujo descontrole é inadmissível, mas útil também à avaliação do estado de desenvolvimento dos lugares. Se adequadamente escolhido, esse conjunto de parâmetros pode refletir, em determinado contexto econômico, o grau de empenho dos governos e a efetividade de suas políticas de saúde. É o que se pretende com a proposta de um índice de desenvolvimento em saúde (IDS).

CONCLUSÃO

De acordo com o anteriormente descrito, existem métodos para conhecimento, prevenção e controle de muitas doenças. Alguns desses métodos são exemplarmente empregados no Brasil, enquanto outros têm sido negligenciados. Possivelmente, são diferenças em condições sociais, ampla desigualdade na distribuição de renda e outros determinantes sociais inatacados que contribuem para as iniquidades no quadro sanitário brasileiro. Portanto, não há vitória nacional a comemorar nesse contexto. Existe, por exemplo, dispositivo diagnóstico que utiliza uma antipartícula do elétron, cuja carga elétrica é igual à do elétron, porém com o sinal oposto, e com a massa e o spin também iguais aos do elétron. Esse dispositivo está sendo utilizado em grandes centros médicos, por exemplo, para decidir com maior probabilidade de acerto se um nódulo pulmonar solitário é maligno ou benigno. Enquanto isso, na maioria dos municípios brasileiros, gestores de saúde negociam o menor preço para radiografias convencionais de tórax, algumas de péssima qualidade técnica.

Há, em proporção direta com a realidade econômica e social, um conjunto mínimo de atitudes por parte dos governos abaixo do qual é possível admitir que exista negligência, omissão ou grave impossibilidade. Nesse marco, parece evidente a necessidade de contar com um índice de desenvolvimento em saúde, que venha a definir níveis de adequação da saúde no Brasil, possibilitando acompanhar melhorias e denunciar precariedades merecedoras de atenção por parte dos gestores. Esse índice, formado por indicadores capazes de interpretar a realidade sanitária brasileira, terá a função de oferecer à sociedade um instrumento para exercer o seu controle e exigir dos governantes os direitos que lhes são sonegados.

Finalmente, o presente artigo conceitua o que se entende por índices, mostrando como esses vêm sendo acolhidos em diversos setores, evidenciando sua utilidade prática em questões tão diversas como habitação, turismo e saúde. Precisamente, a saúde é compreendida como um conceito amplo, consonante com a OMS, retratando a diversidade dos problemas correlatos nos contextos internacional e nacional. Desta feita, indicaram-se diversos problemas de saúde que têm sido isoladamente registrados (por exemplo, taxa de analfabetismo, taxa de mortalidade neonatal, incidência de câncer, vacinação). Porém, aponta-se não ter sido encontrado qualquer índice específico sobre desenvolvimento em saúde da população, o que reforçou a sugestão de sua criação. Esse, não obstante, é um empreendimento empírico, reunindo indicadores concretos de saúde, demandando ações direcionadas para a sua proposição.

Artigo recebido: 09/02/2012

Aceito para publicação: 29/03/2012

Conflito de interesse: Não há.

Trabalho realizado no Centro de Pesquisa e Documentação - CPDOC/CFM e no Programa de Doutoramento em Bioética da UPorto-CFM, Brasília, Brasil

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  • Correspondência para:

    Edson de Oliveira Andrade
    Universidade Federal do Amazonas
    Av. General Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000 Campus Universitário Coroado I
    Manaus - AM, Brasil CEP: 69077-000
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      09 Fev 2012
    • Aceito
      29 Mar 2012
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