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Os médicos estrangeiros: a questão da língua

EDITORIAL

Os médicos estrangeiros: a questão da língua

Não sou contra a vinda de médicos estrangeiros para o Brasil. Nem poderia. Minha escolha pela Medicina deve-se ao sucesso de uma empreitada desse tipo. Em 9 de outubro de 1953 meu pai foi aprovado e obteve a revalidação de seu diploma na Faculdade Fluminense de Medicina, no Rio de Janeiro. Nascido na Itália, formou-se na Faculdade de Medicina de Florença, em 1952. A viagem ao Brasil, no mesmo ano, mudou seu destino e o fez, com ajuda da namorada brasileira, estudar português, geografia, história do Brasil e as disciplinas do quarto, quinto e sexto anos da Faculdade Brasileira para depois prestar e ser aprovado nos exames. É assim que está registrado no seu diploma guardado comigo, e foi assim que nos contou sobre as dificuldades da língua portuguesa, diferente e estranha.

Ainda hoje é dessa maneira. Os médicos formados no exterior que desejam trabalhar aqui têm de revalidar o diploma e devem passar por um processo semelhante, igualmente difícil e algo constrangedor. As mesmas sensações tiveram os inúmeros médicos brasileiros que foram trabalhar nos EUA e que tiveram de se submeter aos exames de proficiência na língua inglesa organizados e geridos pelo Educational Comission for Foreign Medical Graduates (ECFMG -http://www.ecfmg.org). Os testes incluem habilidades relacionadas às capacidades clínicas de entrevistar e entender o que diz um paciente: "spoken English proficiency componente of the USMLE Step 2 Clinical Skills examination". Em 2011, 66,4% dos inscritos no exame não declararam o inglês como língua nativa. Apesar disso, a taxa de reprovação foi de 23%, bem menor do que no exame equivalente brasileiro destinado a médicos estrangeiros, o REVALIDA, que apresentou 90% de reprovações no mesmo ano. Há que se investigar se o teste do ECFMG é mais fácil do que o do REVALIDA ou se haveria uma diferença importante no nível de conhecimento dos candidatos que vão para lá.

Antes de esclarecer tais diferenças, o Ministério da Saúde lançou o Programa Mais Médicos para o Brasil (http://maismedicos.saude.gov.br/) - claramente, um "atalho" para o exercício da Medicina no país. Visando a levar mais médicos a locais distantes, com menores taxas de médicos por habitantes, o programa dará preferência a profissionais brasileiros, mas afirma que destinará "vagas não preenchidas" a médicos estrangeiros, a quem chamou de médicos intercambistas. No que diz respeito à língua, o site do programa informa que "o cumprimento da proficiência na língua será exigido em duas etapas: mediante declaração apresentada pelo médico interessado no ato de inscrição no Mais Médicos, de que possui conhecimento mínimo da língua portuguesa; e após aprovação no curso de acolhimento".

A primeira etapa é uma declaração pessoal, sem necessidade de comprovação, de que o médico lê e/ou fala o Português. A segunda etapa ou curso de acolhimento ocorrerá em algumas capitais brasileiras e terá a duração de três semanas e carga de 120 horas, divididas pelo programa com conteúdo, segundo o site, relacionado à legislação do Sistema de Saúde brasileiro, funcionamento e atribuições do SUS, especialmente da atenção básica em saúde, e Língua Portuguesa. Serão suficientes? Há alguma experiência prévia, documentação que justifique a escolha de um período tão curto, de três semanas?

Atrevo-me a confrontar essa proposta à experiência vivida por meu pai, vindo de um país também latino e de uma das melhores Faculdades de Medicina da Itália. Foram necessários muitos meses de preparo e estudo.

O programa Mais Médicos para o Brasil dá a entender, em seu site, que para "garantir" o sucesso desse verdadeiro bypass na aprovação de médicos para trabalhar no país, criou a categoria de médicos supervisores e tutores acadêmicos, selecionados pelas instituições brasileiras de educação em saúde para supervisionar profissionalmente, de maneira contínua e permanente, o médico participante. Tal supervisão, necessária e trabalhosa, exigirá tempo e deslocamentos. Quem fará o papel dos supervisorese tutores nas instituições a que estão vinculados? Os alunos, pesquisadores e os pacientes dos Hospitais universitários poderão prescindir do papel deles, já sobrecarregados pelas diversas funções que exercem em suas instituições?

Mas qual a importância da questão da língua no atendimento médico? Alguém precisou revelar profundo conhecimento sobre a literatura do médico Guimarães Rosa para pedir um exame de sangue ou para interpretar uma radiografia de tórax? É claro que não! Mas o médico formado na mais longínqua faculdade de Medicina do mundo faz seu atendimento seguindo os mesmos passos. Tudo começa com uma história composta pela "Queixa principal e sua duração". Depois a "história da moléstia atual", cheia de interpretações pessoais, acompanhada por sensações, emoções, exageros e moderações injustificadas dos sintomas, tudo temperado pelo estado emocional do paciente e por sua bagagem cultural. E, além disso, a consulta é influenciada pelo estado emocional e pela provavelmente diversa bagagem cultural do ouvinte, o médico.

Há estudos científicos indicando que a barreira da língua está associada ao recebimento de 50% a menos de analgésico após fraturas em ossos longos [JAMA 1993;269(12):1537-9], à menor aderência ao tratamento (fazer o que médico orientou), ao triplo de faltas às consultas de seguimento nos casos de pacientes com asma [MedCare 1988;26(12):1119-28], menor satisfação por parte dos pacientes e menor taxa de explicação com relação a eventuais efeitos colaterais de medicamentos [Mt Sinai J Med 1998;65(5-6):393-7].

Lembro-me de um jovem médico mineiro, fã incondicional de Guimarães Rosa, que colecionava as diversas expressões brasileiras para referir os sintomas da dor no peito que acompanham o infarto do miocárdio. Algumas eram totalmente incompreensíveis e poderiam confundir o mais atento médico. Em suma, por mais recursos tecnológicos e exames que a moderna Medicina tenha a seu dispor, tudo começa com uma queixa e uma história. Bem relatadas e compreendidas. Ainda é assim, e provavelmente o será por muito tempo.

Mais um ponto em que o Programa Mais Médicos para o Brasil escolheu a ferramenta errada para consertar o sério problema do atendimento à saúde da população brasileira: o tratamento médico é baseado em experiências e evidências cientificas. Nada justifica aplicar um tratamento sem a comprovação científica de sua eficácia. A autorização para o exercício da Medicina de médicos sem treinamento adequado e sem razoável ambientação cultural e linguística não está baseada nem em experiências empíricas nem em evidências científicas. É um palpite. E palpites não tratam pessoas.

Bruno Caramelli

Disciplina de Cardiologia, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

E-mail: bcaramel@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Out 2013
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