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Democracia e mobilização social: participação autônoma e instituições políticas na transição brasileira

Democratie et mobilisation sociale: participation autonome et instituitions politique au cours de la transition brésilienne

Democracy and social mobilization: autonomous participation and political institutions in the brazilian transition

Resumos

O artigo propõe uma leitura das mobilizações e desmobilizações políticas da sociedade como a contrapartida dos processos de ampliação e estreitamento dos canais institucionais que regulam a interação dos atores, isto é, como movimentos de "socialização" ou "privatização" do conflito sócio-político. Tomando o caso empírico brasileiro, discute a transição e a "consolidação" democráticas do ponto de vista da permeabilidade do sistema político à participação autônoma da sociedade mobilizada.

mobilização; democracia; transição; conflito político


Cet article interprète les mobilisations et les démobilisations politiques de la société en vue des processus d'accroissement et de rétrécissement des voies institutionelles qui conduisent l'interaction des acteurs sociaux. Considérant le cas du Brésil, on discute la transition politique et la consolidation du régime démocratique dans l'optique de la perméabilité du système politique à la participation autonome de la société.

mobilisation; démocratie; transition; conflit politique


This article offers an understanding of society's political mobilizations and demobilizations as a counterpart of the processes of enlargement and narrowing down of institutional channels that regulate the actors' interaction, such as "socialization" or "privatization" movements of sociopolitical conflicts. Focusing on the Brazilian case, the article discusses the democratic transition and "consolidation" from the perspective of permeability of the political system in relation to the autonomous participation of the mobilized society.

mobilization; democracy; transition; political conflict


ARTIGOS

Democracia e mobilização social: participação autônoma e instituições políticas na transição brasileira

Democracy and social mobilization: autonomous participation and political institutions in the brazilian transition

Democratie et mobilisation sociale: participation autonome et instituitions politique au cours de la transition brésilienne

Alberto Tosi Rodrigues

Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO

O artigo propõe uma leitura das mobilizações e desmobilizações políticas da sociedade como a contrapartida dos processos de ampliação e estreitamento dos canais institucionais que regulam a interação dos atores, isto é, como movimentos de "socialização" ou "privatização" do conflito sócio-político. Tomando o caso empírico brasileiro, discute a transição e a "consolidação" democráticas do ponto de vista da permeabilidade do sistema político à participação autônoma da sociedade mobilizada.

Palavras-chave: mobilização; democracia; transição; conflito político.

ABSTRACT

This article offers an understanding of society's political mobilizations and demobilizations as a counterpart of the processes of enlargement and narrowing down of institutional channels that regulate the actors' interaction, such as "socialization" or "privatization" movements of sociopolitical conflicts. Focusing on the Brazilian case, the article discusses the democratic transition and "consolidation" from the perspective of permeability of the political system in relation to the autonomous participation of the mobilized society.

Key words: mobilization; democracy; transition; political conflict.

RÉSUMÉ

Cet article interprète les mobilisations et les démobilisations politiques de la société en vue des processus d'accroissement et de rétrécissement des voies institutionelles qui conduisent l'interaction des acteurs sociaux. Considérant le cas du Brésil, on discute la transition politique et la consolidation du régime démocratique dans l'optique de la perméabilité du système politique à la participation autonome de la société.

Mots-cles: mobilisation; démocratie; transition; conflit politique.

I. INTRODUÇÃO

No âmbito da sociologia política, o pensamento conservador sempre indicou uma correlação direta entre a mobilização social e a eclosão de disfuncionalidades políticas sistêmicas de caráter desorganizador e desagregador.

Para citar um autor que teve influência importante no debate brasileiro desde os anos sessenta, Samuel Huntington traçou um modelo - compartilhado no essencial com diversos outros pesquisadores - segundo o qual os processos de modernização socioeconômica gerariam a disseminação rápida de certas aspirações (de consumo, bem-estar etc), por parte das camadas subalternas da sociedade, que remeteriam ao sistema político uma carga de demandas que, nos países "em desenvolvimento", dificilmente poderia ser processada e atendida, gerando uma mobilização política vista sempre como anômica. "A relação entre mobilização social e instabilidade política parece ser razoavelmente direta. A urbanização e os aumentos nos índices de alfabetização, educação e exposição aos meios de massa provocam um incremento das aspirações e expectativas, as quais, se não satisfeitas, galvanizam os indivíduos e os grupos para a política. Na ausência de instituições políticas fortes e adaptáveis, tais acréscimos de participação redundam em instabilidade e violência. [...] Quanto mais rápida a instrução da população, mais freqüente é a derrubada do governo" (HUNTINGTON, 1975, p. 60).

Nos anos setenta, sob os impactos da crise estagflacionista do capitalismo central, esse mesmo conservadorismo, por meio da célebre Trilateral Comission, passou a associar as disfuncionalidades do sistema político provocadas pelos processos de mobilização social à incapacidade dos governos de lançar mão de mecanismos adequados de gestão econômica (basicamente, relacionados à crise fiscal do Estado) e de implementação de políticas públicas em geral. Assim foi introduzido o debate sobre a "governabilidade" dos regimes democráticos: a mobilização "excessiva" da sociedade foi diretamente vinculada à sobrecarga de demandas sobre o sistema político e, por fim, à paralisia decisória e à incapacidade dos governos dos países capitalistas centrais de viabilizar políticas capazes de debelar a crise (cf. CROZIER; HUNTINGTON; WATANUCKI, 1975). As dificuldades do enfrentamento da crise econômica foram atribuídas, assim, ao próprio processo político democrático e, mais especificamente, localizadas, pelos conservadores, "nos dispositivos institucionais da democracia de massa do Estado social" (OFFE, 1984).

Deste ponto de vista, quanto maior a diferenciação social e, com ela, quanto mais as condições para a organização e a mobilização da sociedade se fizessem presentes, numa palavra, quanto maior a participação, maiores seriam os riscos para a governabilidade. Nos países "em desenvolvimento" (América Latina em especial), por extensão, a eclosão dos regimes autoritários nos sessenta e setenta foi compreendida e até mesmo justificada como uma restauração legítima dos meios governativos por parte de Estados nacionais ameaçados pelo achaque de massas mobilizadas pela ação do populismo irresponsável.

No Brasil, durante três décadas, entre os anos trinta e sessenta deste século, processou-se a incorporação clientelista das massas urbanas ao processo político.

Tal incorporação se fez, fundamentalmente, por via do corporativismo de Estado e da prática populista, que têm, por sua vez, raízes culturais e organizacionais mais profundas no patrimonialismo, no patriarcalismo e no coronelismo tradicionais. Não discutirei aqui tais matrizes políticas, mas é importante apontar ao menos que se, por um lado, o patriarcalismo (cf. DUARTE, 1939; HOLANDA, 1992), o patrimonialismo (cf. FAORO, 1979; SCHWARTZMAN, 1988) e o coronelismo (cf. LEAL, 1975) dizem respeito aos processos históricos de privatização do público em contextos de ausência de competição ou de competição política controlada, por outro lado o populismo (cf. WEFFORT, 1980) e o corporativismo populista (cf. DINIZ e BOSCHI, 1991) são respostas institucionais ao advento da competição política imposta por uma ampla diferenciação social (cf. SANTOS, 1993).

Como se sabe, o movimento de 1964 pôs fim ao ciclo populista. Após uma década de regime burocrático-militar, mais especificamente após o momento de maior repressão social e fechamento político (1968-1974), os nós tradicionais da política brasileira foram, em parte, desatados. Do final dos anos setenta em diante desencadeou-se uma mudança nos mecanismos pelos quais as lideranças políticas usualmente convocam as massas, urbanas e rurais, a tomar parte nos conflitos políticos. Nesta mudança, quebrou-se a exclusividade dos padrões populistas de articulação liderança/massa e de mobilização política da sociedade. Embora o antigo formato persista ainda de modo considerável - em processos eleitorais de nível e abrangência variados, e especialmente como prática incorporada à cultura política - e embora lideranças à direita e à esquerda valhamse dele ainda agora para orientar a própria conduta, sua vigência passou a ser contrastada pela emergência de um setor organizado da sociedade civil que logrou articular, além de uma nova disposição para o "combate" político em moldes mais autônomos, também um novo tipo de ética pública.

As bases sociais do conflito político brasileiro cindiram-se, no período, entre um setor organizado, cuja participação autônoma expandiu-se - das reivindicações localizadas para a participação no espaço público de abrangência nacional -, e um desorganizado, que permaneceu como objeto da manipulação populista ou de usos de "novo" tipo. Durante a transição à democracia, esses novos contornos assumidos pelas práticas políticas da sociedade interagiram de modo importante com o processo de reinvenção da ordem institucional. Mais uma vez, colocou-se o contraponto entre as reivindicações expressas pelas mobilizações políticas da sociedade organizada, por um lado, e as "necessidades objetivas" postas pela tecnocracia do Estado em termos de governança do aparelho estatal com vistas ao combate à crise econômica associada à inflação crescente e ao endividamento externo.

O objetivo deste artigo é, contra o pano de fundo deste painel rapidamente pincelado, levantar elementos analíticos que permitam uma leitura das mobilizações sociais diversa da posta pelo conservadorismo sociológico. Uma leitura que encara as mobilizações e desmobilizações da sociedade organizada como a contrapartida dos processos de ampliação e estreitamento do sistema político ou, em outros termos, como movimentos de "socialização" ou de "privatização" do conflito sóciopolítico. Tomando, também, o processo brasileiro de "transição" e "consolidação" democráticas, pretendo levantar alguns elementos relacionados à tensão que se estabelece entre os processos de mobilização social e a construção das novas instituições políticas da democracia.

II. O PROCEDIMENTO DEMOCRÁTICO

Bobbio (1985 e 1988) ensina que a democracia é, basicamente, um método. Com o advento da modernidade, a antiga democracia encontrouse com o liberalismo para uma associação reciprocamente proveitosa: este último proveria à primeira as garantias civis indispensáveis à liberdade dos atores e a primeira daria ao último um método, um procedimento para a tomada das decisões coletivas.

Num texto que se tornou referência para grande número de análises dos processos de democratização, Robert Dahl (1971) propôs uma definição mínima para o procedimento democrático. Seria uma poliarquia o regime que desenvolvesse suficientemente a institucionalização dos procedimentos e a ampliação da participação da cidadania.

Qualquer processo de tomada de decisões inclui, segundo Dahl, dois estágios analiticamente distinguíveis: a composição da agenda política (isto é, a decisão sobre que temas serão objeto de deliberação) e a decisão propriamente dita ("estágio decisivo"), isto é, os resultados (cf. DAHL, 1989, p. 107). Para que uma dada ordem política seja considerada democrática, pressupõe-se que as decisões só podem ser legitimamente tomadas pelos próprios membros da associação, isto é, por aqueles aos quais as decisões se aplicam e que estão, ao cabo, obrigados a cumpri-las. E que esta tomada de decisão se faça em condições de igualdade. Supõe-se que cada membro adulto da associação "é o melhor juiz de si mesmo", ou seja, é um cidadão.

Sob uma ordem política democrática, teremos um processo político plenamente democrático se for observado um conjunto de critérios ideal-típicos, a saber:

(1) No processo de tomada de decisões, os cidadãos devem ter condições adequadas e iguais entre si para introduzir questões na agenda política e para expressar as razões pelas quais preferem um determinado resultado a outro.

(2) No estágio decisivo do processo de tomada de decisões, deve ser assegurada a cada cidadão igual oportunidade de expressar sua escolha; e essa escolha deve ser computada com peso igual ao das escolhas dos demais cidadãos. (Esse critério não implica em proibição de representação proporcional ou delegação de poderes para certas decisões).

Atendendo a estes dois primeiros critérios, sustenta Dahl, já se pode falar em governo de acordo com o processo democrático.

(3) O terceiro critério procura responder à objeção pela qual se questiona a capacidade intelectual dos componentes da demos para tomar determinados tipos de decisão. Dahl lembra que a democracia está histórica e teoricamente associada ao problema do esclarecimento, uma vez que trata-se da tomada de decisão acerca do que as pessoas querem ou do que pensam ser o melhor, o que requer algum grau de informação. Daí o acréscimo de um terceiro critério, pelo qual "cada cidadão deve ter oportunidades adequadas e iguais para descobrir e validar (dentro do tempo permitido pela necessidade de uma decisão) a escolha sobre a matéria a ser decidida que melhor serviria aos interesses dos cidadãos" (DAHL, 1989, p. 112).

(4) Mas há ainda o risco de que a agenda de temas a serem decididos seja excessivamente limitada. O controle sobre a agenda pode ser expropriado ao conjunto da cidadania por indivíduos ou oligarquias, como no caso de detentores de cargos executivos que pretendam esvaziar as atribuições do parlamento, por exemplo. Daí o acréscimo do critério pelo qual "a demos deve ter a oportunidade exclusiva de decidir que matérias serão colocadas na agenda de matérias a serem decididas por meio do processo democrático" (DAHL, 1989, p. 113). Sem prejuízo da possibilidade de delegação, por parte da demos, da decisão sobre algum tema da agenda.

(5) Há, finalmente, o risco de que a demos seja excessivamente restrita. Ou seja: qual o tamanho da cidadania para que um sistema seja democrático? Essa questão envolve tanto o problema da inclusão (quais pessoas devem ser legitimamente incluídas na demos) quanto o problema do escopo da autoridade (em que medida o poder decisório da demos pode ser legitimamente alienado). Daí o quinto critério geral, pelo qual "a demos deve incluir todos os membros adultos da associação, exceto visitantes e pessoas que se comprove serem mentalmente incapazes" (DAHL, 1989, p. 129).

Em suma, do ponto de vista da teoria democrática, os dois critérios básicos, na acepção de Dahl, garantem já a vigência de uma democracia, ou melhor, de um processo democrático em sentido amplo, ou ainda, numa tradução algo forçada, de uma democracia "procedural' ou "procedimental". "Em contraste [acrescenta] um sistema que também atenda ao critério do entendimento esclarecido pode ser considerado plenamente democrático com respeito à agenda e com relação à demos. Num limiar ainda superior, um processo que em adição propicie o controle final da agenda por sua demos é plenamente democrático com relação a sua demos. Mas apenas se a demos for inclusiva o suficiente para atender ao quinto critério poderemos descrever o processo de tomada de decisão como plenamente democrático" (DAHL, 1989, p. 130, sem grifo no original).

E sustenta que, embora trate-se de critérios ideal-típicos, não se pode simplesmente acusálos de irreais ou descolados da realidade. Argumenta que a pressuposição de igualdade política não cai por terra frente às desigualdades de recursos dos diferentes atores, que obviamente existem na realidade. Pelo contrário, afirma que o fundamental é que as desigualdades de recursos (econômicos, ideológicos, de status etc) não redundem em desigualdades formais dos cidadãos individuais frente ao processo político. "Quando diferenças nos recursos políticos tornam os cidadãos politicamente desiguais, então essa desigualdade necessariamente revela-se como uma violação dos critérios" (DAHL, 1989, p. 131; ver também BEETHAN, 1994 e SAWARD, 1994).

III. BRASIL AUTORITÁRIO: DESMOBILIZAÇÃO, CONTROLE E RENASCIMENTO

A história da passagem da autocracia estabelecida pelos militares em 1964 para um regime que pudesse ser submetido à prova dos critérios de Dahl, como sabemos, foi complexa, longa e truncada. E, ainda assim, os resultados da prova são controversos.

Sob o regime burocrático-militar, o Estado não só havia aprofundado o capitalismo brasileiro como, do ponto de vista de suas relações com a sociedade, também ampliara a significação política do corporativismo tradicional, ao mesmo tempo em que banira - ao menos como prática vigente, no período - o padrão populista de competição, responsável pela mobilização das massas urbanas até então. Houve enfim um reestreitamento da arena política, possibilitado pela reação militar à radicalização da instabilidade política e econômica do final do período populista e que foi garantido pelo aprofundamento da tutela corporativista (O'DONNELL, 1976).

Ao mesmo tempo em que o Brasil se urbanizava radicalmente (com o predomínio numérico, pela primeira vez na história, da população urbana sobre a rural), se re-industrializava sobre novas bases (essencialmente, com base no capital externo), promovia uma reestruturação ocupacional de grandes proporções (com predomínio do setor secundário, em detrimento do primário, e com amplo crescimento relativo do terciário), sem falar na melhoria sensível de alguns indicadores sociais, como escolaridade (SANTOS, 1985), o corporativismo era retomado pelo regime como a tecnologia institucional mais adequada ao controle dos atores sociais tradicionais, notadamente as classes trabalhadoras.

Deve-se considerar que as metas econômicas e políticas do regime militar, em resposta ao "pretorianismo" (HUNTINGTON, 1975, p. 204-273) vigente na crise do populismo, eram "limpar o mercado de produtores 'ineficientes", herança das primeira etapas de industrialização e, não casualmente, em sua grande maioria capitalistas locais; por termo às demandas 'excessivas' ou 'prematuras' de participação política e econômica do setor popular; eliminar eleições e partidos políticos, que haviam sido canais de transmissão dessas demandas [...]; 'disciplinar' a força de trabalho em suas relações diretas com os empresários; e subordinar as organizações de classe - sobretudo os sindicatos - que podiam sustentar o ressurgimento das lideranças e demandas que se buscava eliminar. A obtenção dessas metas aparecia como a estabilização das relações sociais a partir da qual, por sua vez, começavam a ser possíveis as inversões internas e externas [...]' (O'DONNELL, 1976, p. 16).

A retomada do corporativismo estatal é o instrumento fundamental para a consecução desses objetivos. Em contraste com o corporativismo populista, essa nova intervenção autoritária do Estado caracteriza-se pela concomitante "estatização" das organizações da sociedade e "privatização" de certas áreas do Estado, de modo segmentário, isto é, diferenciado segundo o recorte de classe. Grosso modo: houve uma retomada aprofundada da tutela corporativista sobre os sindicatos de trabalhadores, visando não mais apenas antecipar-se à sua organização autônoma, mas deliberadamente reprimir a ativação populista de que haviam sido objeto e, concomitantemente, estabeleceram-se franquias ao acesso de certos setores empresariais ao Estado, na forma de financiamentos, isenções e incentivos. Consolidamse nesse momento os "anéis burocráticos", típicos do "modelo político brasileiro". Estabeleceuse, enfim, - há um certo consenso entre os analistas sobre isso - um novo pacto de dominação ou uma nova aliança de classes, setores ou grupos sociais, estruturada num tripé apoiado sobre o Estado, o capital estrangeiro e, subordinadamente, o capital nacional (cf. CAR-DOSO, 1975).

Sob tais condições de fechamento político extremado, não se pode, de modo abrangente, falar em participação política da sociedade nos dez primeiros anos de regime militar. A partir do governo Geisel e especialmente sob o governo Figueiredo, porém, ganham visibilidade três dinâmicas (evidentemente interligadas) nesse sentido: a chamada abertura política, especialmente no que diz respeito à legislação restritiva das liberdades mínimas, à dinâmica parlamentar e à retomada da importância do processo eleitoral (cf. VELASCO E CRUZ e MARTINS, 1983; DINIZ, 1985); o desenvolvimento do associativismo e a erupção dos movimentos sociais urbanos (cf. BOSCHI, 1987; SADER, 1988; DOIMO, 1995); e o surgimento do novo sindicalismo combativo, cuja fachada mais visível aparecia no ABC paulista nos últimos anos da década de setenta (cf. KECK, 1988). No plano partidário, a reforma de 1979 deu à luz tanto a continuidade dos partidos vigentes no bipartidarismo (PMDB e PDS, como sucedâneos de MDB e Arena), quanto a retomada das tendências populistas - desta vez como farsa - à direita (PTB) e à esquerda (PDT), sendo surpreendida, no entanto, pelo surgimento do PT, cujas bases sociais fundamentais se constituíram a partir da modernização econômica apontada. No início da década de oitenta, por sua vez, surgem a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como as expressões mais importantes da organização autônoma das classes trabalhadoras urbanas e rurais e significando, nesse particular, um corte nítido com respeito ao populismo e ao coronelismo, respectivamente.

Eclodem também, e não por coincidência, as grandes mobilizações de massa com a Campanha das "Diretas Já" de 1984 (cf. RODRIGUES, 1993 e 1995), à qual se segue o estabelecimento do governo civil da Aliança Democrática, as tentativas fracassadas de conter o processo inflacionário que se agudizava crescentemente desde 1983, a tentativa de reformulação do marco legal do novo regime com o processo Constituinte de 1987-88 e, finalmente, a primeira eleição presidencial desde 1960, em 1989.

O que importa destacar aqui é que a ampla modernização econômica operada pelo regime militar entre 1964 e 1984, do mesmo modo que vinculou-se à repressão extremada da participação social pretoriana-populista no momento inicial - da qual o "novo" corporativismo que destaquei acima foi um aspecto importante -, também viabilizou a diferenciação social com base na qual se deu, na última década do regime, a explosão associativa e o surgimento dos movimentos sociais urbanos, do novo sindicalismo e do PT.

IV. CONJUNTURA, PROCESSO, MOBILIZAÇÃO

Para acionar aqui os elementos analíticos necessários ao estudo de situações relacionadas à ampliação da participação da sociedade organizada no conflito político, é preciso estabelecer alguns pontos básicos sobre conjunturas conflitivas e processos de mobilização social, importantes para a seqüência do raciocínio.

Conflitos políticos são situações em que se verifica a oposição entre atores portadores de objetivos, recursos e estratégias diferenciadas. Seu resultado não pode ser estabelecido a priori, apenas pela avaliação de capabilities intrínsecas ou estoques de recursos disponíveis aos atores políticos. Ele deve antes estar relacionado à análise do próprio desenrolar do processo conflitivo, que inclui tanto constrangimentos de ordem institucional quanto a oposição de outros atores e, inclusive, a intervenção de eventos absolutamente aleatórios ou imprevisíveis.

"É extremamente difícil prever o resultado de uma disputa observando o princípio, porque nem sequer sabemos quem mais vai entrar nela. A conseqüência lógica de se insistir demasiadamente no determinismo das origens privadas do conflito é atribuir um valor de zero ao processo político" (SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 50, sem grifos no original; ver também HINDESS, 1982, p. 500).

Um conflito, por sua vez, estabelece-se entre agentes numa arena específica (ou ao mesmo tempo em diferentes arenas) e em torno de uma determinada agenda. De acordo com a linguagem geralmente utilizada, arena refere-se às condições dadas de um conflito ou conjunto de conflitos, bem como a seus modos de ação específicos (voto, greves, demissões etc) e às limitações acerca dos possíveis resultados. Por exemplo: se falamos de um conflito na arena parlamentar, os resultados possíveis serão provavelmente leis, regulamentações, fiscalizações etc. Do mesmo modo, agenda pode ser definida como a pauta de temas e/ou questões em torno da qual os conflitos são armados, cujo conteúdo é também ele objeto do conflito, bem como a disposição temporal desses temas. Por exemplo: pode haver um conflito tanto em torno de um programa de privatizações quanto um conflito para que o tema das privatizações possa entrar na agenda.

Em suma, a conjuntura é um momento de um processo político mais longo, balizado por certos parâmetros políticos (e econômicos, sociais, culturais, ideológicos etc) estruturados, no qual determinados atores, portadores de recursos e estratégias, confrontam-se conflitivamente em torno de arenas e agendas específicas, com vistas à obtenção de certos resultados. No decorrer do processo conflitivo conjuntural, as estruturas que servem de balizamento aos atores, as arenas e agendas em torno das quais os atores conflitam, os recursos de que dispõem, os objetivos que inicialmente buscavam, e inclusive os próprios atores enquanto entidades unitárias, estão sujeitos a transformações diversas, desejadas ou não, esperadas ou não. E conflito político é toda situação em que os obstáculos à consecução dos objetivos de determinados atores incluem a oposição de outros atores (cf. HINDESS, 1982, p. 498). Em decorrência, o resultado final do conflito é função direta de sua abrangência.

Valho-me aqui de três proposições de Schattschneider, pelas quais estabelece-se uma relação direta entre, de um lado, a abrangência do conflito e o perfil dos atores (se individuais ou coletivos, se muitos ou poucos, se de direita ou de esquerda), e, de outro, a composição e a resolução da agenda política.

(a) em primeiro lugar, a de que o resultado de qualquer conflito político é função de seu alcance, de sua possibilidade de envolver um número maior ou menor de atores;

(b) em decorrência disso, a proposição de que a estratégia política mais importante é aquela pela qual os atores se ocupam de expandir ou controlar o alcance dos conflitos; e

(c) a de que, implícita às anteriores, reside a idéia de que a restrição do conflito aos limites de seus contendores iniciais tende a perpetuar a correlação de forças dada a princípio, enquanto que a expansão do alcance do conflito tende a desequilibrá-lo em favor dos contendores interessados em (e que se mostrem efetivamente capazes de) ampliá-lo.

Conforme a propensão dos atores e a situação dada, as estratégias tenderão, pois, à "privatização" ou à "socialização' do conflito. Conforme a imagem sugerida por Schattschneider, "o conflito político não é como uma partida de futebol, que se efetua num campo medido, por um número pré-determinado de jogadores, e na presença de um público rigorosamente excluído do campo de jogo. A política é muito mais semelhante ao jogo original e primitivo do futebol, no qual todo mundo era livre para participar, uma partida em que toda a população de um povoado podia jogar contra toda a população de outro povoado, correndo livremente para um ou outro lugar pelo campo aberto. Muitos conflitos são estreitamente confinados por meio de uma variedade de estratégias, mas a qualidade distintiva dos conflitos políticos é que a relação entre os 'jogadores' e o público não foi definida precisamente, e em geral não há nada que evite que os espectadores participem do jogo' (SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 24).

Mas é claro que o alcance de um conflito será função também da escala de organização, motivação e potencial de mobilização dos atores e, ao mesmo tempo, do grau de competitividade do sistema, isto é, da natureza das instituições políticas. É preciso atentar, em especial, para aqueles conflitos capazes de hegemonizar a grande arena política nacional.

A discussão do quesito participação requer, na nova situação de articulação e organização que se abriu na sociedade brasileira a partir da década de setenta, a abordagem de algumas perspectivas analíticas que podem ajudar a esclarecer o fenômeno da mobilização política da sociedade, tanto sob as condições da transição de um regime autoritário à democracia quanto sob a vigência formal desta.

A primeira questão é: como conceituar a mobilização política da sociedade num contexto de ampliação da arena política - tanto do ponto de vista dos novos espaços institucionais franqueados paulatinamente pela transição à democracia, quanto do ponto de vista do ingresso no jogo de novos atores políticos? Como passa a se dar a relação entre o conflito político, as novas regras do jogo e os novos jogadores (postos ao lado dos antigos)? Como analisar o impacto desta ampliação sobre os desdobramentos do jogo? Como compreender as mobilizações sociais, não como meras irrupções esporádicas ou como comportamentos anômicos de massa, mas como lances políticos que são parte do próprio conflito democrático?

A literatura sobre mobilizações dispõe de respostas diversas sobre estas questões. Este não é o local para uma resenha exaustiva - que pode ser encontrada em Mann (1991) e Tarrow (1988, 421-428) - mas posso indicar aqui algumas respostas pertinentes à questão geral da relação entre, de um lado, a mobilização social de massa, por vezes chamada de "protesto político', e de outro o sistema político institucionalizado, em especial a institucionalidade política democrática.

Nem toda literatura trata das mobilizações como participação de massa em grandes questões de política nacional, que é nosso interesse mais imediato aqui. Inicialmente ligada à psicologia social da virada do século (cf. LE BON, 1954; CANETTI, 1983) ou à sociologia do desenvolvimento dos anos cinqüenta e sessenta (cf. SMELSER, 1963; além do já citado HUNTINGTON, 1975), a pesquisa sobre mobilizações ganhou grande impulso do final da década de sessenta até a década de oitenta, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, motivada pelas ondas de protesto político que irrompiam. Enquanto os estudiosos europeus enfatizavam as causas estruturais dos movimentos, as identidades coletivas que eles expressavam e suas relações com o capitalismo avançado (cf. TILLY, 1978; TOURAINE, 1981; entre outros), os americanos preferiam um enfoque "atitudinal', destacando a participação (ou constrangimentos à participação) dos grupos organizados no protesto de massa e suas formas de ação coletiva (cf. GAMSON, 1968; LIPSKY, 1970; OBERSCHALL, 1973; OLSON, 1978; entre outros). Nos trabalhos anteriores à década de oitenta, salvo algumas exceções, a ênfase na novidade dos movimentos (então chamados "novos movimentos sociais") fez com que a institucionalidade política aparecesse na análise como categoria residual, simplesmente como fonte de satisfação das demandas ou de repressão ao protesto. Mas a partir da década passada, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, surgiram estudos mais específicos que procuraram trazer o processo político ao centro da abordagem das mobilizações sociais (cf. TILLY, 1978 e 1985; OFFE, 1985; DOBRY, 1986; TARROW, 1989; GAMSON, 1990; entre outros).

Desta literatura mais recente, interessa aqui destacar duas possibilidades analíticas abertas na interface das mobilizações com o sistema político institucional: uma que parte da conjuntura, outra que parte do processo. A primeira é o modelo de análise de conjunturas fluidas, isto é, conjunturas de crise política conjugadas, no correr do curto prazo, a amplos processos de mobilização de massa, desenvolvido por Michel Dobry (1983 e 1986). A segunda é a perspectiva de análise de ciclos de protesto e reforma, isto é, uma agregação de episódios de mobilização e a aferição das respostas dadas pelo sistema político, no correr de um prazo mais longo, desenvolvida por Sidney Tarrow (1988 e 1989).

Na perspectiva de Dobry, a especificidade das conjunturas de crise política está justamente nas complexas relações que se estabelecem entre as mobilizações e as mudanças no estado dos sistemas políticos. "Em oposição a todas as formas de reificação das instituições [escreve ele] tratase, desde logo, de abordar as 'estruturas', 'organizações' ou 'aparelhos' levando em conta sua sensibilidade às mobilizações, aos lances desferidos, à atividade tática dos protagonistas das crises. Mas trata-se também de decifrar simultaneamente as lógicas de situação que, em tais contextos, tendem a se impor aos atores e tendem a estruturar suas percepções, seus cálculos e seus comportamentos" (DOBRY, 1986, p. 39-40, sem grifo no original).

Tal enfoque equivale a avaliar as conjunturas críticas como momentos em que grandes questões políticas nacionais mobilizam um conjunto "novo" de atores, ampliando de modo importante, para estas conjunturas, o conjunto de atores normalmente presentes nas situações políticas rotineiras. O pressuposto é que se vive numa sociedade dinâmica e pluralista o suficiente para conter setores sociais organizados e conjunturalmente mobilizáveis. Tal ampliação em torno de grandes questões faz com que todos os protagonistas deixem de basear seus cálculos políticos nos referenciais rotineiros, ou seja, na lógica dos campos sociais específicos aos quais normalmente sua atividade política está confinada. Em tais conjunturas, passam a referenciar sua atividade tática em uma lógica de situação de cuja elaboração participam e por cujos contornos são influenciados, lógica que perpassa o confinamento dos diferentes espaços sociais e das diferentes arenas políticas rotineiras que convivem numa sociedade complexa e cria uma base temática comum sobre a qual o conflito conjuntural passa a ocorrer.

Por exemplo, no Brasil de 1984 (na campanha das "Diretas Já") ou de 1992 (na campanha pelo impeachment de Collor), sindicalistas e operários, capitalistas e líderes de entidades empresariais, deixaram de operar politicamente a partir da lógica normalmente empregada nas relações entre empresários e trabalhadores; os estudantes deixaram de agir a partir da lógica própria às questões universitárias; e mesmo os congressistas deixaram de agir exclusivamente a partir da lógica e da rotina próprias aos jogos de força parlamentares; e assim fizeram todos estes atores citados, para passarem a agir em torno da grande questão política nacional colocada na agenda (eleições diretas ou impeachment). Abandonaram com isso, por um momento, suas arenas políticas setoriais, ou seja, os espaços socialmente circunscritos nos quais rotineiramente atuavam, para jogarem o grande jogo (ampliado) da política nacional, durante a vigência da conjuntura crítica. Ou, dito de outro modo, estas arenas restritas momentaneamente se fundiram numa grande arena política nacional.

Como conseqüência imediata disso que acabamos de dizer, os recursos políticos de que os atores se valem em situações rotineiras mudam de valor (podem ampliar-se ou reduzir-se), modificando o peso relativo dos contendores. Dada a rapidez com que isso ocorre nas conjunturas de crise, toda a rotina estratégica que geralmente empregam se desestrutura. Ocorre uma situação de incerteza generalizada entre os diferentes atores, aumentando a dificuldade de cada um para calcular as próprias ações e as dos adversários, bem como antecipar os possíveis resultados delas. Como as situações são novas e as interações pouco ou nada comuns, aumenta muito o grau de imprevisibilidade do jogo, assim como também podem tornar-se instáveis tanto os objetivos pontuais e certas preferências dos atores quanto até mesmo certas regras do jogo político. Como resultado, os atores ficam mais dependentes ainda dos lances desferidos pelos demais jogadores para decidirem quais serão seus próprios lances seguintes. Isto é, a perturbação da capacidade de cálculo dos atores, em vista da rapidez, incerteza e imprevisibilidade do jogo conjuntural, aumenta a interdependência tática entre esses atores.

A estes momentos de instabilidade, de imprevisibilidade, de rompimento com procedimentos políticos rotineiros e de mudança nas arenas de jogo, Dobry chama de conjunturas políticas fluidas. No centro da crise, está a ampliação do jogo, isto é, a mobilização política (conjuntural) da sociedade. Nessas conjunturas, o espaço social se simplifica, pois tudo passa a girar em torno de algumas poucas ou mesmo de uma única "grande" questão política jogada na arena nacional e, ao mesmo tempo, o jogo político torna-se infinitamente mais complexo, pela precariedade e pela velocidade das relações. Até que, ao final, o esgotamento da questão central leve à desmontagem da lógica de situação e o jogo político tenda a reestruturar-se em torno de novas e antigas arenas setoriais e de relações institucionalizadas (em parte, as mesmas de antes, em parte, novas relações). Em suma, o jogo volta ao "normal', mas as cartas podem estar significativamente reembaralhadas (cf. RODRIGUES, 1993, cap. 1).

A partir desta discussão, é possível fazer pelo menos duas inferências, a saber. Em primeiro lugar, se tomarmos um lapso de tempo maior, pode ser possível detectar mais de uma (talvez várias) conjunturas de mobilização como a descrita acima, em torno de questões nacionais, ao lado de outras, de abrangência mais restrita, em torno de questões setoriais. Tal observação, em perspectiva temporal mais alongada, poderia permitir detectar conexões e inter-relações entre estes diferentes episódios, aparentemente isolados, bem como seus respectivos impactos sobre o jogo político institucional "rotineiro". Em segundo lugar, nesse lapso mais longo talvez fosse possível considerar também os eventuais vínculos existentes entre as respostas institucionais dadas pelo sistema político e os episódios de mobilização conjuntural. Isto é, seria possível verificar se o sistema político, de algum modo, reformulou-se em resposta ao advento das mobilizações que originaram conjunturas críticas ou não. E se reformulou-se, verificar se o fez no sentido de atender a demandas ou de dotar-se de instrumentos capazes de oferecer desestímulos a novas pressões sociais (isto é, desenvolver "tecnologias de contenção").

Parecem ser estas as questões colocadas por Sidney Tarrow. Como vimos acima, na literatura mais recente sobre mobilizações a principal novidade talvez seja o fato de haver-se rompido as barreiras analíticas entre política "institucional" e "não-institucional". Com isso, emergiram algumas formulações importantes acerca das interações entre mobilização e instituições.

Em primeiro lugar, considere-se o conceito de estrutura de oportunidades políticas e, ligado a ele, também a preocupação que se passou a ter com a relação entre a emergência, a estratégia e a dinâmica dos movimentos de protesto e contestação, de um lado, e o quadro cultural e as tradições da política nacional, de outro. Ou seja, se não há solução de continuidade entre a política feita nas instituições e a feita nas ruas (como também o demonstra o modelo analítico de Dobry), ambas devem estar sujeitas a conjuntos de constrangimentos ou de oportunidades que dificultam ou facilitam a ação de alguns sujeitos políticos em detrimento de outros, conforme a situação (o que se costuma chamar de "seletividade estrutural').

Mais especificamente, deve-se considerar - na avaliação do impacto político das mobilizações - o grau de abertura ou fechamento do sistema político, isto é, o perfil do regime; a estabilidade ou instabilidade dos alinhamentos políticos pactuados ao nível da política institucional; a presença ou ausência de aliados e grupos de apoio com lastro organizacional e engajamento institucional consolidado; presença ou ausência de divisões dentro das elites políticas e seu grau de tolerância ao protesto; a capacidade ou incapacidade do governo na formulação de políticas, bem como seu grau de agilidade na elaboração de respostas a demandas. É claro que esta chamada "estrutura de oportunidades" deve ser considerada em sua variação ao longo do tempo, o que nos obriga a pensar a relação entre as mobilizações e a institucionalidade política a partir de um registro temporal mais alongado, que extrapola as lides específicas da análise de conjuntura (cf. TARROW, 1988, p. 429; 1989, p. 32-40, p. 82-90).

Em segundo lugar, considere-se a importância do espaço social constituído pelos movimentos sociais, no interior do qual arregimentam adesões, travam a batalha do convencimento, competem com outros potenciais movimentos e desenvolvem identidades políticas. Conforme o enfoque de cada autor, esse espaço social pode ser chamado de "setor dos movimentos sociais", "sub-cultura dos movimentos sociais" ou "rede de movimentos sociais". Este setor, sub-cultura ou rede de movimentos, tal como o entende Tarrow, abrange todos os indivíduos e grupos que estejam engajados em alguma forma de ação direta visando fins coletivos ou bens públicos. Isso inclui as organizações formais que dão suporte a movimentos sociais (ONGs, por exemplo), mas também se estende ao conjunto de participantes esporádicos ou àqueles que emprestam apoio informal aos movimentos (no Brasil, por exemplo, OAB, ABI, Igreja Católica etc). E pode também incluir eventualmente os grupos de interesse comuns (inclusive sindicatos e centrais sindicais). Não me parece de outra natureza a noção de "campo ético-político" desenvolvida por Doimo (1995) na análise dos movimentos sociais brasileiros da década de 1970, e que também tem relações com as "matrizes discursivas" de que fala Sader (1988), a propósito dos mesmos movimentos. Na visão de Tarrow, "pessoas e grupos podem mover-se para dentro ou para fora do setor de movimento social, e mesmo organizações fundadas para atividades não-movimentalistas podem cooperar com ele por breves períodos [...]. O tamanho, o caráter e a composição do setor de movimento social mudam ao longo do tempo, assim como os grupos se mobilizam e desmobilizam, os temas entram e saem da agenda política e as elites respondem com diferentes combinações de facilitação, repressão, indiferença e reforma" (TARROW, 1988, p. 432).

Trata-se em suma de um espaço de protesto potencial, no interior do qual circulam temáticas e experiências mobilizatórias entre os movimentos e, ao mesmo tempo, indivíduos e grupos competem por espaço e hegemonia, isto é, desenvolvem "relações políticas" do mesmo modo que os grupos organizados em torno da institucionalidade o fazem.

Em terceiro lugar, considere-se o tema dos ciclos de protesto e o das relações estabelecidas, dentro destes ciclos, entre protesto e reforma política. Baseado nos trabalhos de Tilly sobre os movimentos do século XIX e no de Pizzorno sobre conflito industrial, Sidney Tarrow observou que a magnitude do conflito, seus canais de difusão, as formas de ação empregadas, além dos próprios atores e dos tipos de organização, variam enormemente ao longo do tempo. Ao tomar em consideração o ciclo, abandona a idéia de "estabilidade estrutural" dos sistemas políticos para trabalhar com a idéia de "estabilidade dinâmica", o que implica compreender as mobilizações como sucessivas realizações, embora em diferentes formatos, de um mesmo princípio de interação entre os atores sociais mobilizados e a institucionalidade. Tal abordagem permite identificar, ao longo do período, diferentes fases de consenso e mobilização, de mudança ideológica ou organizacional, e de transformações institucionais, todos fatores que impactam a emergência de uma dada questão na agenda política. Assim, lançam-se novas luzes sobre conjunturas de forte mobilização de massa, pois se de um lado elas se explicam pelo sucesso das bandeiras ou da organização dos movimentos, e pela estrutura de oportunidades encontrada no momento, "por outro podem ser explicadas por externalidades nos ciclos de protesto, no qual grupos que emergem na crista da onda do protesto podem aproveitarse da atmosfera geral de descontentamento criada pelos esforços de outros durante as fases iniciais do ciclo" (TARROW, 1988, p. 434-435).

Ciclos de protesto podem ser definidos, em suma, como agregações de episódios de mobilização parcialmente autônomos e independentes. Em seu curso, novas formas de ação emergem e evoluem, o setor (rede ou sub-cultura) dos movimentos cresce e muda sua composição, e as oportunidades políticas surgem ou cessam, em parte em conseqüência dos temas postos na agenda, das práticas mobilizatórias e das conquistas obtidas pelos próprios movimentos que brotam no correr do ciclo.

Tarrow pensa os ciclos de protesto como algo análogo ao ciclo econômico, isto é, como uma série de decisões individuais e coletivas tomadas num contexto marcado pela ação de fatores sistêmicos que não são uniformemente experimentados, mas antes difusamente percebidos. Os fatores que desencadeiam o ciclo são "estruturais", por certo, mas uma vez o ciclo desencadeado há uma retroalimentação em que resultados de protestos passados catapultam as expectativas frente a novos confrontos. Tal enfoque, portanto, privilegia a percepção do processo em andamento, sem esquecer as especificidades dos lances conjunturais. "Um ciclo de protesto é fundamentalmente um processo político" (TARROW, 1988, p. 435, sem grifo no original).

Nesse sentido, o ciclo pode ser analisado em três fases. Uma fase ascendente, que dá origem ao ciclo a partir de uma situação estrutural de acúmulo de "injustiças" ou de repressão sobre certos setores sociais (como na primeira década do regime militar brasileiro), e/ou pelo aparecimento de novas oportunidades de ação política (como em sua segunda década). Dada essa situação, o surgimento de movimentos disruptivos se difunde como que "por imitação". Nessa fase, o protesto se espalha de um grupo a outro e tende a pressionar a estrutura de oportunidades políticas visando a abertura de novas oportunidades (como o processo brasileiro de "descompressão" e "abertura" política). Estas mobilizações desenrolam-se num sentido crescente até o pico do ciclo. Nesse momento, descrito na literatura como "momento de loucura" (moment de folie, moment of madness), chegamos a uma situação que pode ser satisfatoriamente analisada como uma "conjuntura fluida", vista acima (como na campanha pelas "Diretas Já"). A ela segue-se uma fase descendente, de desmobilização, resultado do desgaste do tema central que monopolizava a agenda, e marcada pela reciclagem dos movimentos e organizações, bem como de suas temáticas (cf. TARROW, 1989, p. 50-56). Acrescente-se que o momento descendente poderia ser visto, também, como a porta de entrada para uma nova fase ascendente.

A partir desta concepção de ciclo, Tarrow fala em "reforma" no plano político institucional como indicativo de "sucesso" de um ciclo de protestos (o processo Constituinte de 1987-1988 pode ser visto por este ângulo). Conforme a situação, poderia seguir-se um ciclo de reformas como resposta a um ciclo de protestos. Não se trata de seqüência temporal linear: pode haver uma interpenetração de processos. E associa-se, deste modo, a efetividade da mobilização dos agentes sociais aos processos de mudança institucional.

Cabe agora olhar mais de perto, e por outro ângulo, o que temos até aqui chamado de "estrutura de oportunidades políticas". Pois o que aparece, do ponto de vista dos movimentos, como mudanças nas oportunidades de ação, do ponto de vista institucional pode ser percebido como mudanças no regime político.

V. MOBILIZAÇÃO, TRANSIÇÃO, "CONSOLIDAÇÃO"

Já nos perguntamos qual o efeito do engajamento de um grande número de novos atores num conflito político dado. Mas a mesma pergunta poderia ser feita de outro ângulo: sob que condições institucionais seria facultada e/ou facilitada ou, por outro lado, restringida e/ou dificultada, a entrada num dado conflito de um amplo espectro de novos atores individuais ou coletivos? Ou, por outra: qual o impacto sobre uma institucionalidade, digamos, "pouco tolerante à participação", da entrada de um grande número de novos atores na disputa em torno dos conflitos políticos principais da agenda?

É claro que o desejo contido nestas indagações é o de relacionar a compreensão das mobilizações conjunturais e dos ciclos de protesto à configuração do regime político. Mais especificamente, o interesse aqui é relacionar estes elementos aos processos de democratização, ou do que se convencionou chamar de "transição" de regime autoritário e "consolidação" da democracia.

Como seria impossível aqui, mais uma vez, uma resenha exaustiva da enorme literatura disponível, tomarei como exemplo representativo do que se pode chamar de "primeira geração" de estudos sobre a transição, os trabalhos de O'Donnell e Schmitter sobre o sul da Europa e a América Latina, em especial suas generalizações conceituais. Quase década e meia depois de publicada, esta análise da transição de regime autoritário e "consolidação" democrática parece ter se tornado uma espécie de senso comum acadêmico. No entanto, o papel nela atribuído à mobilização política da sociedade organizada, creio, não corresponde ao que se verificou empiricamente durante a alongada transição brasileira.

Desde logo estes autores frisam a indeterminação e incerteza características da transição de regime. Trata-se de situação, afirmam, em que várias alternativas estão postas (ingresso na democracia, volta ao autoritarismo, vazio de poder), mas nenhuma está firmada; situação em que a virtù dos agentes prevaleceria sobre a fortuna das determinações estruturais; intervalo de regime situado entre a desestruturação do autoritarismo e o estabelecimento de alguma forma de democracia; em que as regras do jogo são, antes de tudo, objeto do conflito; regras que "definirão, em larga escala, os recursos a serem despendidos e os atores com permissão de entrada na arena política" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 23).

Debalde tanta indeterminação, parece haver porém um caminho "normal" pelo qual passaria o processo. O princípio de tudo é a "liberalização", momento da reconquista de direitos formais elementares pelos cidadãos, da aquisição de liberdades cuja conseqüência é baixar o custo da expressão de interesses individuais e coletivos. Uma vez reduzido este custo, a tendência é a erupção de focos de descontentamento e contestação ao regime, que terão um "efeito multiplicador". O próximo passo é a "democratização", entendida como o conjunto de "processos mediante os quais as regras e procedimentos da cidadania são aplicados a instituições políticas previamente dirigidas por outros princípios [...], ou são expandidos, para incluir pessoas que antes não gozavam desses direitos nem estavam submetidas a essas obrigações [...] ou, ainda, estendidos de forma a dar conta de temas e instituições que previamente não se encontravam sujeitas à participação dos cidadãos [...]" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 25-26).

Assim, embora distintas, liberalização e democratização estão associadas, uma vez que quanto mais avança a primeira, mais difícil se torna manter as restrições ao efetivo advento da segunda.

A liberalização principia, nessa perspectiva, com o surgimento de tensões entre grupos "duros" e "brandos" no interior das forças autoritárias, pois "não há transição cujo início não seja conseqüência - direta ou indireta - de importantes divisões no próprio regime autoritário" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 41-42). O lance seguinte é a formação de alianças democratizantes entre os brandos do regime e os moderados da oposição consentida. A grande ameaça, onipresente nos cálculos deste ainda reduzidíssimo grupo de atores, é a de um golpe que reverta a abertura e recrudesça o autoritarismo. Mas a efetividade das alianças e oposições esboçadas só se manifesta quando ocorre, a partir da chamada "ressurreição da sociedade civil", a mobilização política de um amplo leque de forças sociais.

De modo muito semelhante às fases do ciclo de protesto de que fala Tarrow, O'Donnell e Schmitter vêem três fases no processo de mobilização social durante a transição de regime. Na primeira - quando novos atores começam a perceber seu espaço potencial, mas antes de uma "explosão' mobilizatória oposicionista - os brandos/moderados parecem representar a melhor alternativa; na segunda, quando os protestos alcançam o pico, a situação de "desordem" parece favorecer os duros, que acenam com o golpe, acuando os brandos/moderados; na terceira, quando se dá uma desmobilização relativa, "a capacidade de tolerância dos vários atores aumentará. Os elementos brandos e indecisos no regime já liquidado, assim como as classes e setores sociais que lhe deram apoio, terão aprendido a lidar com novos conflitos e demandas, com modificações nas regras do jogo e arranjos institucionais, assim como com níveis e padrões de demandas e de organização populares que jamais teriam aceito no início da transição" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 53-54).

Ou seja, no curso da transição de regime autoritário - que se afigura, na descrição de O'Donnell e Schmitter, como leito de um "ciclo de protesto" típico - a liberalização, sua primeira fase, desprende energias estancadas e possibilita a descoberta de espaços públicos desativados e identidades coletivas esquecidas ou até então não configuradas: "ela pode envolver o ressurgimento dos partidos políticos anteriormente existentes ou a formação de novos partidos para exercer pressão a favor da democratização ou mesmo de uma revolução; o aparecimento repentino de livros e revistas dedicados a assuntos há muito suprimidos pela censura; a conversão de antigas instituições - sindicatos, associações de classe e universidade - de agentes de controle governamental em instrumentos para expressão de interesses, ideais e de raiva contra o regime; a emergência de organizações de base que articulam exigências há muito reprimidas ou ignoradas pelo regime autoritário; a expressão de preocupações éticas por parte de grupos religiosos e espirituais previamente conhecidos pela sua prudente acomodação às autoridades; e assim por diante" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 85).

Tornam-se apoiadores da transição mesmo os grupos privilegiados que inicialmente apoiaram o regime autoritário e que agora não vêem mais necessidade em sua permanência, seguidos por profissionais liberais e setores assalariados de classe média, que trazem à cena pública a intervenção de suas entidades de classe, que ganham o status de "entidades representativas da sociedade civil" e, também, pela re-articulação dos trabalhadores e do movimento sindical operário. E isso sem contar "a literal explosão dos movimentos de base", especialmente ligados a igrejas.

Configura-se o que Tarrow chama de setor (sub-cultura ou rede) de movimentos sociais, que forma o caldo a partir do qual conjunturas de ação coletiva disruptiva emergem em meio ao cenário das transições de regime ("conjunturas fluidas", na linguagem de Dobry; "revolta popular", para O'Donnell e Schmitter). "Em alguns casos e em momentos particulares da transição [descrevem eles] muitas dessas diversas camadas da sociedade reúnem-se para formar o que denominamos 'revolta popular'. Sindicatos, movimentos de base, grupos religiosos, intelectuais, artistas, clérigos, defensores dos direitos humanos e associações profissionais apóiam-se mutuamente em seus esforços pela democratização e formam um todo maior que se identifica a si mesmo como 'o povo', el pueblo, il popolo, le peuple, ho laos. Esta frente emergente exerce forte pressão para expandir os limites da mera liberalização e da democratização parcial. A fantástica convergência que essa revolta envolve é ameaçadora, tanto para os brandos do regime, que patrocinaram a transição na esperança de controlar suas conseqüências, quanto para alguns dos seus quase-aliados, os oponentes moderados do regime, que esperavam dominar, sem essa ruidosa interferência, a competição subseqüente pelas mais altas posições do governo" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 91-92).

A fase final deste ciclo é a desmobilização. "Em qualquer caso, independentemente da intensidade e do pano de fundo de que emerge, a revolta popular é sempre efêmera. A repressão seletiva, a manipulação e a cooptação realizadas pelos incumbentes do regime transicional; a fadiga produzida por freqüentes demonstrações nas ruas; os conflitos internos que estão fadados a ocorrer no tocante às escolhas de procedimentos e políticas substantivas; um sentimento de desilusão ética com relação aos compromissos 'realistas' impostos por pactos e/ou pela emergência de padrões autoritários de liderança no interior de alguns dos grupos que a compõem - todos estes são fatores que levam à dissolução da revolta. A ascensão e declínio desta revolta deixa muitas esperanças frustradas e muitos atores desiludidos" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 94-95).

Abrem-se, ao longo destes diferentes momentos do ciclo transicional, espaços para a celebração de pactos (ou para um ciclo de reformas, como diria Tarrow), dados entre grupos restritos de atores, visando redefinir as regras sob as quais atuam, por meio do estabelecimento de garantias mútuas. Trata-se, na acepção de O'Donnell e Schmitter, de uma forma de entrada na democracia "por meios não-democráticos", já que os pactuantes (via de regra "oligarquias") "tendem a reduzir a competição e o conflito; buscam limitar a responsabilidade junto ao público mais amplo; intentam controlar a agenda de prioridades políticas; e distorcem deliberadamente o princípio da igualdade entre os cidadãos. Não obstante, estes pactos podem alterar relações de poder; promover novos processos políticos e conduzir a resultados não antecipados" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 68).

Ou seja, este tipo de mudança política pactuada, apesar de ser capaz de abrir novas possibilidades para a democracia, implica na constituição de repertórios de contenção institucionais, formulados na medida em que diferentes pactos são celebrados.

Segundo nossos autores - embora ressaltem sempre que nos casos reais as fases não são tão linearmente dispostas - poderíamos distinguir três momentos aos quais corresponderiam três tipos de pactos: o momento militar, equacionado pelo pacto entre duros e brandos em torno da liberalização política e da disposição de volta dos militares aos quartéis; o momento político, sacudido já pelas mobilizações, no qual a necessidade de restabelecimento dos mecanismos básicos da competição política poderia equacionar-se por um pacto destinado a "limitar a agenda de alternativas políticas, compartilhar proporcionalmente da distribuição de benefícios, [e] restringir a participação dos não pactuantes na tomada de decisões. Em troca, os pactuantes concordam em renunciar ao apelo à intervenção militar e ao empenho pela mobilização das massas" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 73); e finalmente o momento econômico da transição, em que se faria mister enfrentar o legado de crise econômica e de aumento de desigualdades sociais geralmente herdados do autoritarismo e que poderia ser equacionado, por sua vez, nos casos em que fosse possível, por um pacto entre organizações corporativas do capital e do trabalho nacionalmente centralizadas.

O desfecho "normal" da transição, neste modelo, seria marcado por pactos políticos apoiados sobre tecnologias de contenção, como se mobilizações sociais fossem, ao mesmo tempo, um recurso necessário para ajudar a "distender" o autoritarismo, e uma inconveniência a ser dispensada tão logo os recursos acumulados pela oposição "democrática" fossem suficientes para a celebração de acordos intra-elite. Nesse desfecho, dá-se a convocação de eleições razoavelmente competitivas para os cargos fundamentais do governo, cujas regras, pactuadas entre os principais atores do processo, quando estabelecidas com sucesso representam as bases de um "consenso contingente", em torno do qual a nova democracia se estabelece. O impacto destas eleições fundadoras, para O'Donnell e Schmitter, será diferenciado conforme os resultados obtidos pelas forças mais à direita ou mais à esquerda. Segundo os autores, haverá maiores chances de estabilização se os resultados do centro-direita forem satisfatórios.

Em suma, a "transição se encerra quando a 'anormalidade' já não constitui a característica principal da vida política; acontece quando os atores estabelecem - e respeitam - um conjunto de normas mais ou menos explícitas que definem os canais a serem utilizados para acesso a cargos de governo, os meios que podem empregar legitimamente em seus conflitos, os procedimentos a se aplicar na tomada de decisões estatais, e os critérios usados para excluir do jogo. Em outras palavras, a normalidade torna-se uma característica principal da vida política quando aqueles que estão ativos na política nutrem a expectativa de que todos ajam de acordo com as regras - e ao conjunto dessas regras de jogo denominado regime" (O'DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 107, sem grifos no original).

Uma vez que os procedimentos principiam seu processo de rotinização, estes autores tendem a considerar que adentramos o momento de "consolidação" da democracia. O que se espera desta fase é que nela seja possível estruturar e legitimar as coletividades, identidades políticas, arranjos específicos e recursos que tenham surgido durante a transição. Trata-se da institucionalização da incerteza própria à democracia, a partir de um quadro de referências "estabilizado". Não se trata de um simples prolongamento da transição. A consolidação tem, na perspectiva destes autores, uma dinâmica própria. Os dias tormentosos, conflitivos e incertos em que os regimes autoritários são derrubados vão, paulatinamente, sendo substituídos por momentos de "normalização", de "rotinização" - agora em padrões democráticos - da vida política. "Enquanto que durante a transição uma forma pura de causalidade política tende a predominar, numa situação de mudança rápida, alto risco e escolha estratégica indeterminada, durante a consolidação os atores têm [...] que organizar suas estruturas internas mais previsivelmente, consultar seus 'constituintes' mais regularmente, mobilizar seus recursos com mais confiança, considerar as conseqüências de longo prazo de suas ações mais seriamente, e geralmente experimentar os constrangimentos impostos por deficiências materiais e resistências normativas profundamente arraigadas de modo muito mais perceptível" (SCHMITTER, 1985, p. 6).

A partir do funcionamento regular de um legislativo eleito livre e competitivamente, tido sempre como instituição central da nova democracia, seriam definidas algumas questões cruciais: a natureza e o caráter da representação territorial; a relação entre os partidos (no plano eleitoral e no parlamento); a autonomia das agências estatais e para-estatais; as estratégias das associações de interesses; as formas de relacionamento com as pressões sociais etc. É, enfim, o processo de estabilização da representação se estruturando, via dois canais genéricos de acesso: o territorial, controlado por partidos; e o funcional, manipulado por associações de interesse.

Qual seria o sentido, pois, da eventual presença de protestos políticos ou mobilizações de massa, se as demandas sociais passam a ser expressas pelos canais rotineiros, pelo voto ou pelo pertencimento organizacional estruturado?

Para Schmitter e O'Donnell, após a entrada em operação dos processos acima e a rotinização da alternância (ou de um maior realinhamento) dos partidos no poder, estaria completada a regulação interna das principais instituições democráticas: competição partidária, atuação das associações de interesses, parlamento funcionando, poder executivo responsável. Padrões contingentes se tornariam então estruturas firmadas, práticas e normas seriam convertidos em leis ou regulamentos embasados na autoridade do Estado e na letra da Constituição. No que tange aos atores e arenas do conflito que se impõem na passagem dos regimes autoritários aos democráticos, observa Schmitter que "[...] assim como O'Donnell e eu propusemos que os movimentos foram o espaço crucial para a determinação dos resultados da derrocada do regime autoritário e que os partidos foram centrais na transição para a democracia, agora proporei que o parlamento e [...] as associações de interesse são os espaços onde a consolidação será decidida" (SCHMITTER, 1985, p. 22, sem grifos no original).

Em suma, o que se passaria da transição à consolidação da democracia seria uma transformação das contingências engendradas no período conflitivo de derrocada do autoritarismo em um padrão institucional estruturado, rotinizado, normalizado. Um processo no qual atores políticos de vocação disruptiva, de um lado, ou repressiva, de outro, simplesmente sairiam de cena, ou então transformar-se-iam em grupos institucionalizados (internamente falando) com interesses estruturados, ocupando posições diferenciais com relação à institucionalidade políticojurídica. Um processo no qual as próprias regras constitutivas do regime deixariam de ser objeto do contencioso e passariam a balizar expectativas mutuamente normalizadas. Um processo ao cabo do qual estariam recolocadas em seus devidos lugares - com ou sem rearranjos - inclusive aquelas relações de assimetria social que enraízam a dominação política numa dominação econômica.

Pelo modelo O'Donnell/Schmitter, as mobilizações, que estavam no centro da arena no momento de se forçar as portas da "liberalização", e os partidos, que foram os canais privilegiados no encaminhamento da "democratização", dão lugar, com o advento da "consolidação democrática", à prevalência, no centro da cena pública, do parlamento, como arena por excelência do conflito regrado, e dos grupos de interesse corporativo organizados como atores políticos privilegiados de um jogo cujas regras tendem a ser universalmente conhecidas e rotineiramente aceitas, porque anteriormente pactuadas.

Esse modelo parece-me empiricamente insuficiente. Ao contrário de Huntington, que vê a mobilização social como erupção disfuncional e produz uma análise que é antes uma explicação conservadora da emergência do autoritarismo enquanto resposta institucional à mobilização, O'Donnell e Schmitter vêem a mobilização social do ponto de vista de sua funcionalidade no que respeita ao processo de erosão da institucionalidade autoritária. Porém, assim como no primeiro, nos segundos também não há instrumentos analíticos para dar conta da erupção de conjunturas de forte mobilização social em contextos institucionais democráticos. Mobilizações em contextos democráticos, se levarmos tal modelo ao pé da letra, constituiriam anomalias. O enfoque funcional e a insistência na disjuntiva transição/mobilização versus consolidação/desmobilização, inerentes ao modelo O'Donnell/Schmitter, limitam seu poder compreensivo e, além do mais, não permitem que se leve em consideração a contribuição da mobilização da sociedade organizada para a construção positiva de uma institucionalidade democrática.

Pretendo, a título de um comentário final, destacar que no processo brasileiro de transição e consolidação democráticas as novas instituições não rotinizaram uma competição política de molde poliárquico porque os pactos da transição, por terem sido firmados entre atores de perfil oligárquico, deram sobrevida ao padrão autoritário anterior de relação entre a sociedade e o Estado; e também porque, em função disso, as reformas institucionais oferecidas pelo sistema político como resposta às mobilizações da transição tiveram por objetivo limitar o alcance da socialização da política em vez de institucionalizar a competição ampliada; e, finalmente, porque a exclusão social, subproduto da modernização conservadora, compôs um campo social cindido entre a sociedade organizada e mobilizada, de um lado, e uma massa inorgânica e desmobilizada, de outro, inviabilizando com isso o engajamento de amplas faixas da população no processo de participação política. Desenvolverei esse raciocínio mais abaixo.

Por hora, lembro que O'Donnell, em artigo mais recente (1996), insinua que, para formações sociais como as latino-americanas, o cotejo dos processos efetivos de construção democrática com o modelo da poliarquia de Dahl tende a destacar apenas as lacunas e insuficiências dos sistemas políticos reais. Suas positividades, assim, deveriam ser buscadas em uma tradição política própria. Penso, diferentemente, que o construto de Dahl, justamente por seu caráter ideal-típico, é o instrumento mais adequado para desvelar o peso negativo da tradição política clientelista e autoritária de países como o Brasil sobre as possibilidades presentes de institucionalização da democracia. É justamente do advento da "democracia por meios não-democráticos" que estes limites emergem. Se reconstruirmos, porém, o processo de mobilização crescente da sociedade organizada durante a transição, veremos que sempre houve uma alternativa histórica a esta contradição "em termos".

VI. DEMOCRATIZAÇÃO SEM DEMOCRACIA

É certo que, conforme esperado pelo modelo O'Donnell/Schmitter, a arena parlamentar ganha peso significativo durante e após a redação e promulgação da Constituição brasileira de 1988. Não, porém, na condição de locus institucional em que se processam as demandas societais.

A imagem que se incorporou ao senso comum acadêmico de um contraponto linear entre uma transição conflitiva e uma competição política democrática estável centrada na arena parlamentar e na representação societal via grupos de interesse, no caso do Brasil, não corresponde aos fatos, entre outras, pelas seguintes razões.

Em primeiro lugar, porque os pactos políticos firmados, embora tenham garantido a superação do regime, não tiveram por objeto mover o sistema político em direção à institucionalização de uma nova ordem de relações entre Estado e sociedade. O modo pelo qual os pactos da transição se deram contribuiu antes para gerar, ao longo da Nova República, um "clima" de ampla insatisfação da sociedade com os resultados desses pactos, seja com respeito ao fracasso dos experimentos de estabilização monetária, seja com respeito à disseminação de práticas tradicionais "fisiológicas" incompatíveis com o momento de reconstrução institucional. A crise do Estado, enquanto crise do pacto de dominação vigente sob o autoritarismo (cf. SALLUM JR., 1995), que não pode ser discutida nos estreitos limites deste trabalho, amalgamou-se às outras dificuldades encontradas pela rotinização democrática da competição política, confrontando, no conflito transicional, a tendência à socialização do jogo político própria à lógica da sociedade organizada e mobilizada à tendência à privatização do jogo, própria à lógica tecnocrática dos administradores econômicos sob uma situação de crise fiscal e endividamento externo (cf. LOUREIRO, 1997).

A heterogeneidade da coalizão que possibilitou a transição inviabilizou, nesse sentido, a efetivação das expectativas por ela própria suscitadas - basicamente a idéia de que deveriam ser institucionalizadas novas articulações entre as associações de interesse emergentes e o poder público, este último a ser remodelado. Nem o Estado nem sua forma de intervenção nos processos econômico e político foram substancialmente alterados, o que representou uma longa sobrevida do padrão corporativista e autoritário de relação com a sociedade organizada. O efeito da eclosão da participação organizada e autônoma dos novos e antigos atores sóciopolíticos foi tornar letra morta boa parte deste tipo de regulamentação, o que, no entanto, não resolve o problema institucional. Mas é certo também que, pelo lado da sociedade, a setorização dos atores tradicionais (as organizações sindicais e empresariais) impossibilitou a formulação de projetos global ou parcialmente consistentes ao nível das associações de interesse e deslocou para o Executivo e o Congresso - em especial no momento Constituinte - o gerenciamento da institucionalização, fazendo chegar à instância legislativa demandas dispersas e/ou de cunho exclusivamente corporativo (DINIZ, 1992).

Em segundo lugar, a tendência recente à constituição de uma sociedade "moderna, dinâmica e pluralista" (DAHL, 1989), que servisse de base a uma competição política em moldes horizontais (à imagem do sistema político americano) não chegou a ser capaz - em especial por conta da resistência ferrenha das velhas estruturas clientelistas e da direita que delas se vale - de dotar o novo regime, que se desenhava, de uma institucionalidade formal tipicamente poliárquica, apesar de atuar de fato nesse sentido. A complexificação social que se observou ao longo das décadas de sessenta, setenta e oitenta teve impacto não imediato e pouco evidente sobre as mudanças na institucionalidade política formal, embora tenham impactado diretamente o processo de emergência de novos atores e a mobilização política da sociedade. O sistema político, preso ao padrão clientelista, respondeu com um "ciclo de reformas" parcial e limitado (e sobretudo incapaz de instituir um padrão efetivamente poliárquico) ao "ciclo de protestos" deflagrado na transição.

Assim, se por um lado, "houve mudanças substanciais nos padrões associativos e nas formas de mobilização", isto é, "intensificou-se o processo de urbanização, aprofundou-se a diferenciação social, ampliou-se e fortaleceu-se a capacidade de organização", e, em função disso, "[a]mpliaram-se substancialmente as pressões e demandas sobre o sistema institucional e o sistema político", por outro lado, no entanto, "os efeitos políticos dessas mudanças foram superestimados", tanto pelos próprios atores políticos envolvidos quanto pelas formulações teóricas dos analistas. As limitações de ordem política ao alcance dessas mudanças sócio-econômicas podem ser atribuídas, por seu turno, a duas causas, a saber. Por um lado, como notaram Camargo e Diniz, "o processo de mudança obedeceu antes a uma lógica incrementalista do que a uma dinâmica de ruptura com padrões já estabelecidos, tanto no que se refere a segmentos da elite quanto às organizações populares" (1989, p. 11). Dito de outro modo: os pactos que coroaram o desfecho da transição limitaram o alcance da retomada do processo de mobilização política crescente da sociedade, desencadeado pela complexificação social produzida pela modernização econômica. Como apontei em outro trabalho, no episódio decisivo da campanha pelo restabelecimento de eleições diretas para a Presidência da República, em 1984, a "lógica da negociação" prevaleceu sobre a "lógica da ruptura", isto é, o refluxo da ampliação havida na arena política em direção a uma situação, novamente, de disputas intra-elite - embora estas não sejam comparáveis, em termos de excludência social, às que dominaram o período anterior a 1964 - prevaleceu sobre a lógica da "socialização" do conflito (cf. RODRIGUES, 1993). Por outro lado, os "aperfeiçoamentos da capacidade de organização não se traduzem automaticamente em absorção satisfatória pelo sistema político institucional", isto é, o conflito do qual emergiu a institucionalidade formal pós-autoritária resultou na prevalência das posições daqueles atores que tinham interesse em construir mecanismos que antes limitassem a absorção de modo autônomo e dar trânsito à intervenção social organizada sobre o processo político. "Cristalizou-se, portanto, o hiato entre a sociedade e o Estado, gerando um foco de crises crônico e permanente" (CAMARGO e DINIZ, 1989, p. 11).

Em terceiro lugar, dado o perfil socialmente excludente da modernização por que passou o país, a faceta organizada da sociedade tem composto o terreno societal ao lado de imensas massas econômica e politicamente marginalizadas, comprometendo o volume e a eficácia das demandas substantivas. Se os setores sociais organizados carecem da contrapartida do Estado em termos de uma institucionalização formal eficaz dos canais de acesso ao processo político, as massas inorgânicas crescentes continuam sob o domínio da institucionalidade informal clientelista (notadamente o coronelismo e o populismo, entendidos aqui não como um fenômeno histórico datado, mas antes como uma matriz comportamental). Como observou Francisco Weffort, "a ordem política inaugurada no Brasil em 1988-89 reflete um processo de transição no qual essas duas dimensões da democratização (liberalização e participação) tiveram um crescimento extremamente desigual. O aumento da liberalização (do direito à informação e à expressão) foi muito maior do que o da participação - isto é, da capacidade do povo de influenciar o governo e suas políticas, seja por eleições, seja por outros meios democráticos" (WEFFORT, 1992, p. 21-22).

E isso apesar das possibilidades de participação formalmente facultadas pela Constituição de 1988 (cf. BENEVIDES, 1991). Segundo a perspectiva de Weffort, o Brasil vive presentemente um sistema dual, que opõe marginalizados e integrados, estes últimos os únicos a acessar os mecanismos de participação. Assim, embora a institucionalidade democrática formal faculte a possibilidade de influência, a marginalização de caráter sócio-econômico, que diminui a capacidade de organização dos grupos sociais - ao lado da influência da institucionalidade clientelista ainda existente sobre os comportamentos desses setores desorganizados - tem vedado seu exercício de fato.

Diante destas e de outras questões que não é possível abordar aqui, seria no mínimo enigmático falar em "democracia consolidada" no Brasil.

A crise política vivida na transição brasileira configurou-se numa crise eminentemente institucional. Mais especificamente, foi uma crise de incompatibilidade entre instituições formais aspirantes à poliarquia (mas marcadas pelo "casuísmo" e por uma concepção autoritária de relação com a demos) e processos políticos efetivos em que a sociedade organizada, intervindo com mobilizações que tenderam a ampliar o espaço público, confrontou-se com tecnologias institucionais de contenção viabilizadas por práticas de inspiração tradicional, tendencialmente restritivas do espaço público, e portanto tendencialmente antidemocráticas. "Os deslocamentos sociais das últimas décadas [nota Wanderley Guilherme] produziram a emergência de realidades sociais inéditas, e redefiniram o significado político de situações mais antigas. O resultado agregado mais significativo dessas modificações consiste no intenso confronto entre o processo político instaurado por essas novas realidades e o velho processo político característico do corporativismo subdesenvolvido associado ao populismo irresponsável. [...] Em poucas palavras, a essência da crise institucional contemporânea define-se pelo fato de que o processo político real deixou para trás, e muito longe, as instituições criadas há cinqüenta anos. O corporativismo subdesenvolvido está em crise porque não consegue conter mais encapsulado o processo normal de competição entre os diversos segmentos sociais. Ao mesmo tempo, ainda não se desenharam com clareza os marcos institucionais que irão balizar a evolução histórica futura" (SANTOS, 1993, p.37-38, sem grifos no original).

E o problema não se limita ao sistema de intermediação de interesses corporativos. A "grande política" (parlamento, partidos, eleições) também continua refém de uma institucionalidade informal herdeira da tradição clientelista e autoritária que concorre com o "pacote institucional" poliárquico e obstaculiza sua implantação efetiva.

O importante a destacar aqui é que em diferentes oportunidades, ao longo do processo de democratização - seja no momento seminal da campanha das diretas, seja no processo Constituinte, seja na eleição presidencial de 1989 - houve oportunidades históricas para escolhas políticas que privilegiassem a institucionalização da poliarquia em detrimento da manutenção de traços institucionais autocráticos e tradicionais.

Nesse sentido, apenas indicarei uma questão - a ser desenvolvida em outra oportunidade - que pode iluminar a análise da construção desta institucionalidade híbrida e do estreitamento relativo dos espaços de mobilização sob a democracia recente. Trata-se da constituição, nas décadas de 1980 e 1990, de dois pólos político-ideológicos distintos na política brasileira. Cada qual gestando e procurando implementar modos diversos de enfrentamento das questões fundamentais do processo de democratização, ou seja: o problema do Estado - a crise fiscal/financeira e a crise do poder público (poder de Justiça e de polícia, manutenção da ordem etc) -, o problema da estruturação do regime - no que respeita ao mencionado conflito entre a institucionalização do "full package" poliárquico em meio às reminiscências oligárquicas - e o problema da participação - relativa tanto às tecnologias institucionais de contenção da participação da sociedade organizada e mobilizada, inseridas ou mantidas mesmo em contexto democrático, quanto às barreiras sócio-econômicas limitativas da participação de amplos setores inorgânicos da sociedade brasileira.

Por um lado, o campo ético-político gestado a partir dos movimentos populares urbanos e do novo sindicalismo da década de setenta espraiouse para o espaço público de abrangência nacional, especialmente com a formação do PT e sua ascensão eleitoral durante os anos oitenta e noventa. Esses atores, basicamente polarizados em torno da esquerda partidária e do sindicalismo de tradição combativa, buscaram tratar o problema do Estado a partir da idéia de desprivatização, isto é, da remoção dos enclaves empresariais de suas posições privilegiadas frente ao aparelho de Estado e do aumento de transparência na relação deste corpo estatal com a sociedade, e isso como uma fórmula para a superação da crise financeira e de autoridade pública de que padece o Estado brasileiro; assim como buscaram tratar o problema do regime no sentido da equalização regrada da competição política (sem "casuísmos" e particularismos) e, portanto, no sentido da poliarquia; e, finalmente, buscaram tratar do problema da participação enquanto mobilização da sociedade organizada em moldes autônomos (e não mais populistas), justamente porque esta via lhes possibilitou o acúmulo de recursos políticos necessários para fazer frente aos adversários controladores do aparelho de Estado.

Por outro lado, a recepção da ideologia neoliberal no Brasil operou-se com o intento, entre outros, de contrapor-se à ética pública por assim dizer "tocquevilleana" surgida nos anos setenta. A esta ética associativista e solidária a ideologia neoliberal contrapôs uma ética de mercado, privatista e pré-liberal-democrática, como uma de suas contribuições para a formação das atitudes e para o balizamento do comportamento dos atores. Uma ética de mercado que associouse intimamente, por sua vez, à tradição clientelista e autocrática cultivada tradicionalmente pela direita. No Brasil, mesmo sem a presença da relação entre os interesses organizados e o Welfare State, que tornara-se o alvo mais imediato das críticas neoliberais nos países industrializados, tal ideologia não deixou de voltar-se contra a recentíssima organização política dos trabalhadores e dos segmentos populares. Os atores que compuseram este pólo buscaram enfrentar a crise financeira do Estado a partir das noções de Estado mínimo e das reformas orientadas para o mercado (que assentam-se sobre a idéia de desregulamentação dos direitos sociais) e, nesse processo, mais valeram-se das reminiscências institucionais oligárquicas do que buscaram estabilizar uma ordem institucional de perfil poliárquico. Do mesmo modo, no intuito de obter a margem de manobra adequada ao enfoque tecnocrático e centralizador de gestão econômica e de implementação das políticas de estabilização monetária por eles adotado - em nome, mais uma vez, da governabilidade -, apostaram na contenção da mobilização da sociedade organizada e na cooptação (desta vez por via dos media e do marketing político) das amplas parcelas desorganizadas da população, seja no âmbito do conflito distributivo, seja no âmbito do processo eleitoral.

O segundo pólo, como se sabe, vem se tornando crescentemente hegemônico, mas as recorrentes crises econômicas internacionais e os avanços eleitorais da esquerda doméstica apontam para um acirramento do conflito e, com ele, novos picos de mobilização.

Recebido para publicação em janeiro de 1998.

Alberto Tosi Rodrigues (tosi@politica.pro.br) (http://www.politica.pro.br) é Mestre em Ciência Política, Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor de Ciência Política e Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 1999

Histórico

  • Recebido
    Jan 1998
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