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RESENHAS

ESTUDOS RURAIS

O rural como categoria sociológica

Angela Duarte Damasceno Ferreira

Universidade Federal do Paraná

ENTRENA DURÁN, Francisco. Cambios en la construcción social de lo rural; de la autarquía a la globalización. Madrid : Editorial Tecnos, 1998.

Ruralidade: relacionada ao campo e ao trabalho camponês, rusticidade, qualidade do que é sem cultura, natural, pouco artificializado. Uma seleção de definições de dicionários inicia a discussão que Entrena Durán faz, neste livro, sobre as construções sociais do "rural", demonstrando as imprecisões do termo - que alude ora a um espaço, ora a características relacionadas a uma certa qualidade de vida, a pautas socioeconômicas ou a valores específicos. Mostra, de partida, suas conotações freqüentemente pejorativas, derivadas de concepções evolucionistas que implicaram no estabelecimento de uma gradação hierárquica entre o rural e a sociedade urbano-industrial que, se supunha, iria substituí-lo.

Assim como a visão evolucionista, outras concepções mais ou menos inseridas na mesma idéia de mudança social, desde os clássicos da Sociologia e da própria Sociologia Rural, têm pressuposto uma tendência de fim do rural pelo prosseguimento da industrialização e da urbanização, enquanto formas de ocupação do espaço e de organização da economia e do modo de vida. Visões mais contemporâneas acrescentam a globalização como processo a mais na dissolução da singularidade do rural, o que teria encontrado, na segunda metade do século XX, forte corroboração nos índices demográficos declinantes da população rural e da população ativa agrícola ocupada.

Frente a estas percepções, cada vez mais significativas são as iniciativas oficiais ou de movimentos socioculturais de revalorização do rural, que, se podem ser identificadas com um fundamentalismo neorruralista em algumas de suas manifestações, representam atitudes de reação à crise ambiental e existencial da civilização atual, identificada com sua feição urbano-industrial. Vislumbra-se, nele, o palco possível para uma nova qualidade de vida e sua revitalização é pensada como estratégia para redirecionar o desenvolvimento. Investigações recentes, tanto na Espanha como em outros países desenvolvidos, mostram que se está produzindo uma recuperação do rural em algumas regiões, inclusive em termos demográficos, o que é apontado como indício de sua capacidade de adaptação às presentes circunstâncias.

Tais posições contraditórias não são destituídas, nenhuma delas, de fundamento, afirma Entrena Durán. Na verdade, o que as faz divergir são distintas concepções sobre o rural, mais ou menos adequadas a um recorte espacial-temporal específico: "o rural se constrói socialmente e, como construção social, está sujeito à mudança. Assim, experimentou sucessivos processos de construção, desconstrução ou reconstrução/ reinvenção" (p. 14). De um lado, refere-se a uma ordem social singularizada, autárquica e especializada na produção agrícola que tem pouco a ver com o rural que emerge dos anos 50 ou 60, com o início de um processo intenso de mudança tecnológica, incrementos de produtividade e determinação crescente por decisões e influências exógenas. Neste sentido, pode-se falar em declínio do rural, em desaparecimento de um tipo de apropriação do espaço e de padrões culturais específicos. De outro lado, há o rural do pós-produtivismo, com possibilidades de configurações novas ainda em construção: sua revitalização sócio-demográfica, sua revalorização simbólico-cultural, sua diversificação produtiva e ocupacional, suas trocas intensas com âmbitos produtivos, comerciais e sócio-culturais nacionais e internacionais.

Trata-se de um conceito polissêmico, origem e objeto de polêmicas sociais e intelectuais. A forma adequada de analisá-lo é, portanto, a que adota perspectivas histórico-processuais, capazes de recuperar, em cada situação espacial-temporal, características e trajetórias de mudança próprias. Este procedimento não implica, para o autor, em renunciar a um enfoque analítico globalizador, com validade geral, para sua apreensão. Partindo da discussão conceitual de dois processos de mudança social - os processos de modernização e globalização - e de uma concepção do espaço territorial como âmbito da construção social e transformação do rural, estabelecem-se os fundamentos para discussão das manifestações e trajetos particulares de cada caso concreto e os elementos viabilizadores de uma análise de alcance mais geral.

Explicitada esta perspectiva metodológica, sua análise recupera as transformações mais gerais da estrutura sócio-econômica rural na Espanha, recorrendo a informações de outros países, especialmente dos países desenvolvidos, para singularizar ou generalizar os processos espanhóis. Da mesma forma, analisa as diferentes políticas estatais em relação à agricultura, aos atores sociais do meio rural e às suas organizações. Mostra, então, como o projeto modernizador produtivista se vê questionado pelas novas regulações e exigências supra-nacionais e tende a ser reformado na direção de políticas informadas por perspectivas de desenvolvimento sustentável.

O rural como construto social foi objeto, nesta história de transformações, de diferentes valorações culturais. No contexto europeu, Entrena Durán fala de viagens de ida e volta ao rural, onde tendências de ruralização e desrularização formam as bases para a desvalorização ou revalorização do rural. A tendência dominante, inspirada nos clássicos da Sociologia, foi a de rejeição da sociedade tradicional fundamentalmente rural em nome da modernização, vista, na maior parte das análises (o autor recupera aqui Spencer, Durkheim, Marx), como portadora de níveis superiores de civilização - resguardadas as diferenças contundentes entre as distintas teorias. Mostra as nuanças menos otimistas de Tönnies e de Weber e relativiza esta mesma visão em Durkheim para chegar ao pensamento conservador e populista que trazem, ao contrário, concepções críticas à modernidade e idealizadoras do mundo rural tradicional. No âmbito da Sociologia Rural, estas concepções deram base para as teorias da modernização, para as várias versões da teoria do continuum ruralurbano e para perspectivas críticas destas visões que, no entanto, não deixaram de reproduzir a conotação pejorativa do rural - explicando-o pelas suas carências e características contrastantes com o urbano-industrial.

A construção social do rural na atualidade tem refletido a fluidez dos seus limites com o urbano e o fato fundamental de que os processos econômicos, sociais, culturais e simbólicos que os envolvem - a ambos - e dão sua feição de heteronomia, perda de protagonismo e desarticulação socioeconômica, têm a ver com sua crescente inserção no mundo globalizado. Os efeitos de desterritorialização das relações sociais e das identidades coletiva e individual são evidentes: "a ação produtiva, organizativa, relacional e cultural que determina a construção do rural tem lugar, cada vez mais freqüentemente, em um cenário de alcance global, ou, ao menos, está altamente condicionada pelo que acontece neste dito cenário" (p. 173). Desterritorialização que se traduz por diminuição dos contatos interpessoais, vinculação com freqüência mais importante com o estranho e o de longe, em detrimento daquele ou daquilo que é próximo, gerando, conseqüentemente, um alto grau de separação entre relações sociais, a construção de identidades coletivas e individuais e o território; dentro deste âmbito, ressalta o fato de que "as ações coletivas dependem menos da vontade dos atores sociais endógenos do seu território e mais de interesses socioeconômicos exógenos e de decisões com efeitos a nível global, adotadas, no geral, a bastante distância" (p. 173); traduz-se, também, por uma ruptura entre agricultura/alimentação e o território, em função do caráter transnacional do agroalimentar e do peso cada vez maior da industrialização, da agregação de serviços, da comercialização e da informação na configuração deste sistema.

Entrena Durán demonstra, no entanto, que, paralelamente à desterritorialização provocada pelo processo de globalização, que não se restringe aos seus efeitos sobre o rural e o agroalimentar, está se registrando, em vários países, uma redescoberta do local - nos seus entornos rural e urbano -, impulsionada por habitantes urbanos em busca de outro modo de vida, por políticas públicas ou iniciativas mais ou menos espontâneas de desenvolvimento, no sentido da promoção de descentralizações industriais e de serviços e do aproveitamento de potencialidades produtivas ociosas e de outras possibilidades de mobilização de recursos locais inaproveitados. Pretendem configurar, na localidade, espaços de trabalho, de vida e de integração socioeconômica que possibilitem a emergência de outras identidades individuais e coletivas. Tentativas de reterritorialização, ligadas a propostas de desenvolvimento local sustentável, que podem funcionar como um novo mito idealizador do rural e no ocultamento de suas assimetrias, crises e dominações/subordinações.

Na esteia da atual tendência das Ciências Sociais voltadas para a reflexão sobre o rural e a agricultura, o livro de Entrena Durán constitui uma interessante e aprofundada reflexão sobre os processos recentes que redefinem o espaço e o modo de configuração da ruralidade na dinâmica atual da globalização. Também é de extrema valia o retrospecto que faz das construções sociais do rural em diferentes momentos/espaços de seu desenvolvimento, inclusive sua síntese das concepções teóricas articuladas a estas construções. Para o leitor brasileiro, as análises do caso espanhol trazem luz sobre a singularidade espanhola no âmbito da Europa, em função exatamente do peso dos grandes proprietários de terra na formulação de políticas de Estado, importância que se estendeu além de meados deste século.

Talvez sua mais interessante reflexão não tenha sido ressaltada pelo próprio autor: trata-se do fenômeno do renascimento rural e da localidade (cf. KAISER, 1990, CNRS, 1986; WANDERLEY, 1997) e da recuperação da importância do território justamente em tempos de globalização (cf. HERVIEU, 1998, LAMARCHE, 1993 e 1998; ABRAMOVAY, 1998; FERREIRA e BRANDENBURG, 1998).

Sem deixar de mencionar estes fenômenos, Entrena Durán centra-se e dá preferência à hipótese da desterritorialização e seus efeitos, muitos questionáveis diante do fato de que o seu ponto de partida, se não é equivocado, está superestimado no texto. Autarquia e singularidade absoluta não são feições do rural há muito tempo, e em alguns aspectos nunca o foram. O desenvolvimento do capitalismo na agricultura e a conseqüente dominação da indústria sobre o agrícola datam de séculos e foram crescentemente acentuando a desterritorialização de parte da dinâmica do agro-alimentar, à medida em que se desenvolvida a internacionalização do capital. A globalização acentua este processo, mas justamente a produção agrícola ainda é um setor que depende grandemente de sua inserção em um território - suas atividades básicas e sua teia de relações se funda em espaços locais, por mais mundializadas que sejam as influências e determinações que configurem o agro-alimentar como um todo. Para além do rural, também está amplamente discutida na literatura a importância do local - e do nacional - como espaços de sociabilidades, constituição de identidades e enfrentamentos entre grupos e classes sociais, como espaços, portanto, de ação coletiva, a despeito dos deslocamentos de fóruns maiores de decisão para instâncias supranacionais.

Obviamente o autor não desconhece isto, mas sua análise acaba não ressaltando a importância desta outra face das dinâmicas do mundo globalizado, o que transmite por vezes a impressão, a despeito de sua contundente crítica às várias concepções inspiradas no evolucionismo, de estar imbuído de um certo pressuposto de inevitabilidade e linearidade das mudanças geradas pela globalização, vista como fenômeno social total, determinante e homogeinizador de todas as esferas da vida social.

Inclusive na manutenção do rural-agrícola, a globalização pode abrir oportunidades para sua revitalização, ao fazer chegar aos territórios locais novas demandas de qualidade e de produtos que podem ser compatíveis com o perfil de segmentos da agricultura familiar. Em países como o Brasil e outros da América Latina, a luta pela terra e pela volta às atividades de agricultura, protagonizada por milhares de agricultores sem-terra e trabalhadores urbanos desempregados, constitui um manifestação de reconstrução do rural como espaço e modo de ocupação, de vida e de formação de novas identidades. Ao rural-agrícola se acrescentam as novas atividades não agrícolas que podem reconstruir o território, numa crescente integração do rural com o urbano e com o não local.

Diante destes fenômenos, impõe-se um continuado esforço de compreensão da construção social do rural na atualidade. Um outro rural, portador de singularidades que permitem continuar denominando-o como tal, mas, ao mesmo tempo, expressão de todos os processos de integração, fluidez e crise que marcam o mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, R. 1998. Agricultura familiar e desenvolvimento territorial. São Paulo. Mimeo.

CNRS. 1986. Programme Observation du Changement Social. L´esprit des lieux; localités et changement social em France. Paris : Éditons du CNRS.

FERREIRA, A. D. D. e BRANDENBURG, A. (orgs.). 1998. Para pensar uma outra agricultura. Curitiba : Editora da UFPR.

HERVIEU, B. 1998. Agricultura e desenvolvimento rural : a necessária convergência. Mimeo.

KAYSER, B. 1990. La renaissance rurale; sociologie des campagnes du monde occidental. Paris : Armand Colin Éditeur.

LAMARCHE, H. (org.). 1993. Agricultura familiar : uma realidade multiforme. Campinas : Editora da UNICAMP.

______. 1998. Agricultura familiar : do mito e a realidade. Campinas : Editora da UNICAMP.

WANDERLEY, M. de N. B. 1997. Agricultura e meio rural : que 'ruralidade' para o Brasil moderno. Campinas. Mimeo.

Recebido para publicação em março de 1999.

Angela Duarte Damasceno Ferreira (angela@humanas.ufpr.br) é Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris III/IHEAL e Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná.

Ruralismo e hegemonia na primeira república

Renato Monseff Perissinotto

Universidade Federal do Paraná

MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo : HUCITEC, 1997.

O livro de Sonia Regina de Mendonça é uma versão modificada, significativamente reduzida, de sua tese de doutoramento Ruralismo: agricultura, poder e Estado na Primeira República, defendida em 1990 no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Embora o "ruralismo" seja definido como uma reação ao avanço da industrialização e da urbanização no período em pauta e uma reafirmação da vocação agrária do País, a autora não pretende abordá-lo à maneira tradicional, isto é, como uma mera ideologia reacionária, mas sim como um conjunto de práticas e representações dos setores dominantes não-hegemônicos, práticas e representações estas que produziram efeitos políticos bem concretos sobre a estrutura institucional do Estado republicano. A tese geral é que o ruralismo é um momento da construção da hegemonia paulista, mais especificamente, o momento da incorporação pela fração hegemônica dos interesses das "frações dominadas da classe dominante brasileira", cuja produção orientava-se para o mercado interno. Para comprovar a sua tese, a autora apresenta uma pesquisa empírica exaustiva, cujos resultados estão sintetizados numa seqüência de quadros e tabelas reproduzidos no anexo do livro.

O primeiro capítulo do livro - "A reação ruralista" - cumpre o objetivo de apresentar uma definição sistematizada do seu objeto de estudo: o movimento ruralista. Dessa forma, nascido no final do século XIX, num momento de expansão da urbanização, o ruralismo é definido pela autora como "um movimento/ideologia políticos, produzido por agentes sociais concretos, econômica e socialmente situados numa dada estrutura de classes" (p. 26) ou como "um movimento de institucionalização, em nível da sociedade civil e da sociedade política, da diferenciação dos interesses agrários no Brasil, ocorrido entre o fim da escravidão e as duas primeira décadas do século atual, unificado pelo fim último de restaurar a vocação agrícola do país, mediante a diversificação da agricultura nacional" (p. 27, grifos no original). Portanto, trata-se de um movimento, e não apenas de uma ideologia, que representava os interesses dos setores dominantes (agrários) da sociedade brasileira, porém não-hegemônicos (isto é, não-vinculados à exportação do café). Daí a essência do mo-vimento residir na reação à industrialização, o que se daria através da reafirmação de nossa vocação agrária, e na recusa do exclusivismo do café, o que se expressaria na defesa da diversificação agrícola. O movimento, ainda que perpassado por divergências internas, seria unificado em torno desses dois objetivos máximos.

O segundo capítulo - "Conservar, ampliando e aumentando" - consiste no estudo da associação de classe que constituiu-se no representante por excelência do movimento ruralista: a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA). A escolha dessa entidade justifica-se, segundo a autora, pela sua abrangência efetivamente nacional (em oposição às associações paulistas que, apesar de se definirem como nacionais, representavam essencialmente os interesses dos exportadores de café, como é o caso da Sociedade Rural Brasileira); pelo pioneirismo da sua iniciativa no período em estudo e pela eficácia de sua ação, mostrando-se capaz de interferir efetivamente na dinâmica de funcionamento e construção do Estado republicano (p. 39). O capítulo apresenta um histórico do surgimento e do desenvolvimento da SNA, procurando mostrar como a base social dessa entidade residia em setores agrários vinculados ao mercado interno, sendo representativa sobretudo das regiões Norte, Nordeste e Sul do Brasil (p. 47). Essa base social refletia-se tanto na composição social das diretorias da SNA, quanto nas bandeiras defendidas pela associação (p. 50).

O capítulo terceiro - "O mundo rural: diagnóstico de um estado" - tem o propósito de analisar a matriz discursiva do ruralismo e identificar o diagnóstico feito pelos seus agentes dos problemas da agricultura brasileira. Será a partir dele que se poderá compreender as propostas do movimento para a solução do problema agrário. Para cumprir o seu objetivo, Mendonça analisa um elenco surpreendente de estudos e monografias agrícolas, produzidas na sua esmagadora maioria por membros da SNA (as fontes utilizadas estão reproduzidas na nota 2 do capítulo em questão). A autora identifica, assim, os temas predominantes nesses trabalhos (crédito agrícola, diversificação produtiva e educação rural) e a origem ocupacional dos seus autores, em grande parte burocratas ligados ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) (p. 66 e 67), que, segundo a autora, era a sede estatal do ruralismo. Segundo esses trabalhos, o grande mal do Brasil era o atraso de sua agricultura (em oposição à modernização constante do mundo urbano), atraso este que condenava o campo a uma permanente situação de crise. A solução estaria no abandono das práticas produtivas arcaicas e rotineiras e na sua substituição por uma agricultura científica, baseada na técnica e na experimentação; estaria também no processo de educação do trabalhador nacional, submerso na ignorância desde tempos imemoriais; passaria ainda pela proteção à produção agrária nacional, verdadeira vocação, abandonando o tratamento especial até então dado à indústria, e, por fim, como era de se esperar, a superação do atraso passava necessariamente pelo fim da monocultura e pela diversificação da agricultura brasileira. O agente por excelência desse processo seria o agrônomo.

Feito o diagnóstico, era preciso propor as estratégias para a superação dos nossos males agrícolas. O quarto capítulo - "A vocação eminentemente agrícola do Brasil: a ordem a serviço do progresso" - dedicase exatamente a esse ponto. Quais deveriam ser as medidas adotadas para que a diversificação agrícola, a proteção, a modernização da agricultura e o fortalecimento de nossa vocação agrária se efetivasse? As medidas seriam quatro: o povoamento/colonização, a educação, a modernização/racionalização produtiva e o crédito/cooperativismo. Este capítulo faz uma análise detalhada de como os agentes do ruralismo pensavam essas soluções para o problema agrário brasileiro.

O quinto capítulo - "Ceres e a política" - procura mostrar como o movimento ruralista teve ressonâncias no mundo do governo ou, mais especificamente, como o movimento ruralista se inscreveu no âmbito da "Sociedade Política". Aqui, o objeto de estudo central é a história de constituição do MAIC, pois, para a autora, este ramo do aparelho estatal brasileiro constituiu-se no locus dos interesses das frações agrárias dominantes não-hegemônicas, isto é, aquelas frações desvinculadas do complexo cafeeiro paulista. Este capítulo analisa, assim, um momento importante no processo de constituição da hegemonia durante a Primeira República na medida em que a criação e consolidação do MAIC contribuiu para a "cimentação ideológica do bloco no poder" (p. 134). Através de um estudo da gênese histórica do MAIC e da composição de seus quadros, Mendonça procura mostrar que os interesses por detrás desse processo são aqueles mesmos representados pela SNA, ligados ao eixo Rio-Sul-Nordeste (p. 132).

No sexto e último capítulo - "A política de Ceres" - são analisados a ação do MAIC e os temas preferencialmente tratados pelo Ministério: a questão da arregimentação de mão-de-obra rural, o problema do ensino agrícola e o tema da diversificação/modernização produtiva (p. 137). Como vimos acima, esses são os temas por excelência do movimento ruralista. Dessa forma, a autora procura mostrar a eficácia política desse movimento, que mais do que produzir um discurso, mais do que promover a associação dos seus componentes através da SNA, conseguiu inscrever os seus interesses na própria materialidade do Estado republicano. Por essa razão é que o ruralismo não pode ser considerado apenas como uma "ideologia reflexa diante dos processos de urbanização e industrialização" (p. 177).

O livro de Sonia Regina de Mendonça merece, porém, algo mais do que um breve resumo de suas principais posições por ser um trabalho inovador, pleno de descobertas e sugestões para um entendimento mais exato do período que estuda. De saída, o trabalho reforça a opinião corrente entre os historiadores de que um dado período histórico jamais poderá ser definitivamente estudado. Não que o seu trabalho seja o primeiro a tratar de setores não vinculados ao complexo cafeeiro. Muitos já o fizeram. Contudo, parece-me ser o primeiro a abordar esta outra dimensão da Primeira República a partir de uma perspectiva mais ampla, isto é, como parte integrante do processo de constituição da hegemonia paulista. A autora não se limita a um estudo monográfico da economia regional do algodão, do cacau, do charque etc., mas procura mostrar como esses interesses se articulavam com aquele processo. Dessa forma, seguindo a tradição gramsciana, Mendonça diz que a hegemonia paulista não se resumia à busca de políticas públicas que beneficiassem os interesses ligados ao complexo cafeeiro, mas implicava, ao mesmo tempo, na incorporação dos interesses "secundários" do bloco no poder1 1 O conceito de bloco no poder foi elaborado por Nicos Poulantzas e se refere à unidade das classes e frações politicamente dominantes de uma dada formação social, unidade esta promovida pelo Estado, sob a égide da fração hegemônica. Este conceito está espalhado por toda a obra de Poulantzas. Ver especialmente Nicos Poulantzas, 1986, pp. 133-137, em que o autor discute a relação entre o conceito de hegemonia e o de bloco no poder. com vistas a consolidar a sua dominação. Na medida em que qualquer hegemonia é também um processo de integração/cooptação dos interesses não-hegemônicos, torna-se fundamental estudar essa outra dimensão para se compreender mais exatamente o período em questão. Assim, no trabalho de Mendonça, o estudo do ruralismo, da SNA, das monografias técnicas e do MAIC não se perde como uma preocupação em si mesma, empiricista e meramente descritiva, reduzida à coleta de dados sobre o seu objeto de estudo, mas está inserido numa perspectiva teórico-interpretativa que confere sentido às informações (abundantes, diga-se de passagem) contidas no livro. Este é, ao meu ver, o maior mérito do seu trabalho, pois cumpre nele um duplo papel: de um lado, confere o tom de grande originalidade à análise; de outro, mostra que o ofício de historiador é mais interessante do que pressupõe o senso comum.

Mas há ainda outros elementos originais no trabalho de Mendonça. Ao estudar o movimento ruralista, a autora mostra que a política republicana, no período de 1889-1930, não se reduzia ao jogo partidário. A sua análise da SNA e de como esta entidade promoveu a criação do MAIC e, através dele, a institucionalização dos "interesses ruralistas" no âmbito do aparelho estatal, revela claramente, como nota várias vezes a própria autora (ver pp. 38, 43-44 e 61), que uma plena compreensão da política republicana deve ir além de uma análise do jogo político entre os partidos dominantes regionais. O partido não é, portanto, como normalmente se pensa no caso em questão, o único meio de ligação entre interesses societais, no caso interesses de classe, e o Estado. O fato é que, se centrarmos a nossa atenção exclusivamente sobre a política partidária jamais entenderemos a criação do MAIC e, portanto, jamais entenderemos plenamente o processo histórico de consolidação da hegemonia do complexo cafeeiro. Vale ressaltar mais uma vez que é a perspectiva original do seu trabalho - o estudo dos setores não-hegemônicos como uma faceta fundamental da própria hegemonia - que coloca no centro de sua análise objetos de estudo antes ignorados ou relegados a uma posição apenas secundária pela historiografia.

O trabalho de Sonia Regina de Mendonça é também uma contribuição original ao estudo das formas de representação de interesse no período em questão. Ao estudar a SNA como a entidade de classe que articula os interesses do setor não-hegemônico das classes e frações dominantes no período em questão e como essa associação inscreve tais interesses no MAIC, Mendonça mostra que o "ruralismo" muito contribuiu para a instauração de práticas institucionais que viriam a predominar no período posterior à Revolução de 1930, especialmente depois de 1937. A autora está se referindo ao corporativismo como um projeto claramente presente em alguns setores do ruralismo (p. 111). Assim, o parlamento e a Presidência não são, na Primeira República, os únicos espaços institucionais em que interesses sociais são representados. O MAIC, mais do que simplesmente responder aos estímulos vindos do movimento ruralista, realiza uma verdadeira institucionalização dos interesses das chamadas "oligarquias bagageiras" no interior do aparelho estatal. Esse processo veio acompanhado de uma mudança na visão desses setores acerca do papel do Estado. Assim, o liberalismo foi cada vez mais cedendo espaço para uma concepção que aceitava mais e mais a intervenção do Estado no redesenhamento da Nação. Esta passaria a ser entendida não como uma coletividade de indivíduos, mas como um indivíduo coletivo, representado pelo Estado (p. 179). Ao fazê-lo, nota Mendonça, o próprio aparelho estatal se fortaleceu como ator político, e mais especificamente como ator político autoritário, que buscava, no caso em questão, desenhar, de cima para baixo, o espaço agrário brasileiro. Como de praxe, os trabalhadores rurais estariam ausentes desse processo (ver caps. V e VI). Assim, reside aqui uma outra originalidade: a Primeira República não é mais vista como o interregno liberal, caracterizado por um "Estado fraco", espremido entre dois períodos tipicamente "estatistas" da história brasileira, o Império e o pós-19302 2 Neste ponto, Sônia Regina de Mendonça está acompanhada por autores como REIS (1979), TOPIK (1987), FRITSCH (1988), dentre outros. .

O livro de Sonia Regina de Mendonça tem, contudo, alguns problemas que merecem comentários. No que se refere à exposição formal do texto, creio que faltou uma apresentação inicial que deixasse claro os princípios teóricos da autora. Como disse acima, o trabalho em questão não pretende ser uma descrição empiricista do seu objeto de estudo, tendo Mendonça uma evidente preocupação em interpretar o período a partir de uma dada teoria. Tal elucidação tornar-se-ia ainda mais importante tendo em vista o fato de que o livro é um subproduto de sua tese de doutorado, evidentemente reduzida para atingir um público maior. Àqueles que estão familiarizados com as discussões teóricas que subjazem ao texto em questão, fica fácil perceber as intenções da autora. Porém, ao meu ver, tais discussões passarão desapercebidas para os leitores leigos e para aqueles que estão se iniciando na atividade de pesquisa. Aqueles que conhecem os debates mais recentes sobre a teoria do Estado e que têm, ao mesmo tempo, uma preocupação com a interpretação histórica, certamente se interessarão pelo livro de Mendonça. Contudo, penso eu, sentir-se-ão frustrados por não encontrarem nele uma discussão teórica mais detida, nem na forma de uma apresentação explícita das posições da autora, nem na forma de conclusões ou considerações no final do livro. Quanto a este ponto, penso que duas proposições teóricas da autora deveriam ser discutidas: o uso do conceito de "sociedade política" e a idéia de que os diversos ramos do aparelho estatal são, na verdade, sedes de poder de classe.

O primeiro conceito, de clara inspiração gramsciana, não é, em nenhum momento, apresentado de forma explícita. Toma-se o termo "sociedade política" simplesmente como sinônimo de "Estado", sendo que também aqui não encontramos, em nenhum momento, uma clara definição. Isso, evidentemente, causará estranheza ao leitor, pois trata-se de um livro em que o Estado é parte integrante do argumento do livro. Como notou Perry Anderson, as considerações de Gramsci sobre a relação entre Sociedade Civil e Estado, embora sejam extremamente sugestivas, são bastante contraditórias. Ora "Estado" e "Sociedade Civil" são termos opostos, sinônimos de coerção e consenso respectivamente; ora o consenso parece ser exercido tanto no âmbito da Sociedade Civil como no do Estado; por fim, em outros momentos, Estado e Sociedade Civil são esferas que se fundem, perdendo ambas as suas especificidades (v. Anderson, 1986, pp. 21-34). Mendonça parece situar-se na segunda posição ao enfatizar o papel fundamental do Estado no processo de cimentação ideológica da hegemonia paulista dentro do bloco no poder, mas em nenhum momento explicita essa questão e discute as pontos dúbios de sua opção teórica3 3 Entre eles está, como notou Anderson, a incapacidade, por parte de Gramsci, de fornecer uma "demarcação precisa dos setores respectivos da Sociedade Civil e do Estado" e, portanto, de captar a especificidade deste último. Cf. ANDERSON, 1986, p. 33. .

O segundo conceito trata o Estado como uma arena em que "cada ramo ou agência do Estado constituíase em sede do poder e, nessa condição, representante privilegiado desta ou daquela fração, ou ainda uma aliança conflitante de algumas delas contra as outras" (p. 122)4 4 A autora usa como referência nesta passagem o livro de Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo. Para uma formulação explícita dessa tese, ver também POULANTZAS, 1978, p. 81. . Esta tese por si só já sugere várias questões. Antes de mais nada, se cada ramo do aparelho estatal é a sede do poder de uma dada fração de classe, então o que assegura a inegável unidade do aparelho estatal? Ou, dito de outra maneira, por que o Estado não se esfacela numa multiplicidade de aparelhos autônomos e incoerentes? Mendonça fornece pistas para essa resposta, seguindo, ao meu ver, as considerações do próprio Poulantzas a respeito do assunto. Parece-me que, para a autora, a unidade do aparelho estatal é dada pela predominância, dentro do Estado, dos ramos que se constituem em sede do poder da fração hegemônica (ligada ao complexo exportador cafeeiro), notadamente o Ministério da Fazenda (pp. 121-122). Na medida em que este ramo se constitui em sede do poder da fração hegemônica (e, portanto, sede do poder de Estado), ele instaura no interior do aparelho estatal uma hierarquia que submete ao seu comando todos os outros ramos, sedes do poder dos setores não-hegemônicos. Portanto, é o ramo responsável pelo exercício do poder de Estado, isto é, pelo atendimento dos interesses a largo prazo da fração hegemônica, que subordina todos os outros ramos estatais e, assim, garante a unidade do aparelho de Estado5 5 Para Poulantzas, "o Estado não constitui no entanto um simples conjunto de peças descartáveis: ele apresenta uma unidade de aparelho, isso que se designa comumente pelo termo de centralização ou centralismo, ligada por sua vez à unidade [...] do poder de Estado. Isso se traduz por sua política global e maciça em favor da classe ou fração hegemônica [...]". Cf. POULANTZAS, 1985, p. 157. . Não se trata aqui de mero preciosismo teórico ou pedantismo. Ao meu ver, a perspectiva teórica escolhida pela autora torna importante a discussão acima, pois, e é preciso que se diga mais uma vez, o Estado entra como variável central na construção do seu argumento.

A perspectiva da autora, contudo, não coloca apenas questões que emanam do interior da própria teoria, exigindo, por assim dizer, alguns desenvolvimentos internos do argumento. Além disso, a perspectiva em pauta vem sendo questionada há algum tempo pelo seu viés essencialmente funcionalista e societalista. Interessa-nos aqui abordar sobretudo esse segundo aspecto, pois, ao nosso ver, ele está ligado ao problema da ausência de uma discussão mais explícita do conceito de "Estado" no trabalho de Mendonça6 6 Os dilemas metodológicos do estrutural-funcionalismo da análise poulantziana já foram analisados por vários autores que, basicamente, apontam para o problema de se postular aprioristicamente que o Estado, ou um dos seus ramos, deverá sempre atender aos interesses a largo prazo da fração hegemônica numa dada formação social. Cf., por exemplo, PREZWVOSRKY, 1995 e BARROW, 1993. . Como vimos acima, o "Estado", no livro em questão, é visto apenas como uma arena onde interesses sociais ou, mais especificamente, interesses de classe se digladiam a fim de ver seus objetivos contemplados pelas políticas estatais. Como se percebe, se essa perspectiva, por um lado, apresenta o Estado como um locus importante do conflito social, para o qual devemos olhar se quisermos analisar o desenvolvimento político de tais conflitos, por outro lado anula o próprio Estado como variável autônoma, cujas especificidades podem também contribuir para modelar a cena política de uma dada formação social. A partir dessa perspectiva, o fundamental é centrar a atenção no processo de "formação da classe", isto é, na sua organização, nas suas representações e no seu movimento em direção ao Estado para, no interior deste, construir a sua fortaleza. Portanto, se o Estado é função do embate social não há porque se preocupar em apresentar de forma explícita um conceito de Estado, seus limites e vantagens, pelo simples fato de o Estado não existir como variável autônoma7 7 Considerar o Estado como variável autônoma não implica, como tem mostrado o debate recente, em adotar uma concepção formalista-juridicista de Estado. Cf., por exemplo, BLOCK, 1980. Para o caso brasileiro no período em questão, consultar o interessante trabalho de FRITSCH, 1988. .

A interpretação histórica oferecida por Mendonça também enseja algumas questões. Como vimos, a autora tem consciência de que o seu objeto de estudo (notadamente o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio) ocupou no período uma posição política secundária. Esse fato, revelado pelas idas e vindas no momento de sua criação e pelos seus parcos orçamentos, não autoriza, contudo, um menosprezo pelo objeto, como tem feito a historiografia até então, e isso porque, apesar de suas limitações, aquele ramo do aparelho estatal foi importante na consolidação da hegemonia na medida em que contribuiu para a cimentação ideológica do bloco no poder (p. 134). Ao meu ver, este último ponto é pouco discutido no trabalho de Mendonça. A autora mostra de maneira convincente que os interesses representados pela SNA estiveram presentes na criação e condução do MAIC, mas analisa pouco os efeitos disso para a "cimentação ideológica" do bloco no poder. Ou seja, ao meu ver, a autora não conduz sua análise até ao ponto de mostrar o grau de eficácia da agência estatal em questão no processo de consolidação da hegemonia paulista. Trata-se de saber até que ponto o MAIC representou de fato um processo de cooptação dos interesses não-hegemônicos e, portanto, de construção do consenso no interior do bloco no poder. Talvez uma maneira de avançar nessa questão fosse olhar um pouco mais detidamente para a Revolução de 1930. Sabemos que, apesar da participação dos tenentes, o movimento de 1930 foi essencialmente o fruto de uma cisão oligárquica, em grande parte justificada pela exclusão política sistemática dos setores não-hegemônicos. Sabemos também que logo após a Revolução, pulularam vários institutos protecionistas (do Mate, do Açúcar e do Álcool, do Algodão etc.), revelando que os interesses econômicos ligados ao mercado interno tinham recebido pouca atenção no período anterior. Podemos especular, assim, que o caráter altamente excludente do "regime político oligárquico", força e fraqueza da hegemonia paulista, teria inviabilizado a cooptação efetiva dos setores não-hegemônicos, fazendo com que suas reivindicações, por mais "superficiais" que fossem, não pudessem ser contempladas pela via institucional, mas apenas pela via da "revolução". Se assim foi, então a importância do MAIC para a "cimentação ideológica do bloco no poder" teria sido menor do que a sugerida pela autora.

Por fim, é preciso dizer que se o trabalho de Sonia Regina de Mendonça sugere as questões acima, isso se deve ao seu caráter altamente instigante, ao fato de fazer colocações que levam o leitor a pensar o período em questão a partir de novos ângulos e, sobretudo, por não se limitar a uma mera descrição do seu objeto de estudo. O ruralismo brasileiro (1888-1931) deverá, ao meu ver, tornar-se leitura obrigatória para os pesquisadores da Primeira República, sobretudo aqueles interessados em pensar de forma mais complexa as relações de subordinação entre as frações dominantes da formação social brasileira naquele período.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, P. 1986. As antinomias de Antonio Gramsci. Crítica Marxista 1, Joruês, pp. 07-74.

BARROW, C. W. 1993. Critical Theories of the State: Marxist, Neo-Marxist, Post-Marxist. Madison : The University of Wisconsin Press.

BLOCK, F. Beyond Relative Autonomy: State Managers as Historical Subjects. Socialist Register, London : Merlin Press.

FRITSCH, W. 1988. External Constraints on Economic Policy in Brazil: 1889-1930. London : MacMillan Press.

POULANTZAS, N. 1978. A crise das ditaduras: Portugal, Grécia, Espanha. Rio de Janeiro : Paz e Terra.

POULANTZAS, N. 1985. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro : Graal.

POULANTZAS, N. 1986. Poder político e classes sociais. São Paulo : Martins Fontes.

PRZEWORSKY, A. 1995. Estado e economia no capitalismo. Rio de Janeiro : Relume-Dumará.

REIS, E. P. 1979. The Agrarian Roots of the Authoritarian Modernization in Brazil: 1880-1930. Ph.D. Dissertation, Massachusets Institute of Technology, Massachusets.

TOPIK, S. 1987. A presença do Estado na economia política do Brasil: 1889-1930. Rio de Janeiro : Record.

Recebido para publicação em abril de 1999.

Renato Monseff Perissinotto (renatomp@coruja.humanas.ufpr.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

As disputas políticas pelo controle do sindicalismo rural paulista

Andréia Galvão

Universidade Estadual de Campinas

COLETTI, Claudinei. A estrutura sindical no campo: a propósito da organização dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto. Campinas : Ed. da Unicamp/Centro de Memória, 1998.

São muitas as razões pelas quais a leitura deste livro é imprescindível não só para o estudioso do movimento sindical brasileiro como também para os interessados em conhecer melhor as lutas sociais travadas pelo "homem do campo", a realidade em que ele vive e trabalha.

Em primeiro lugar, porque trata do sindicalismo rural, que não tem recebido tanta atenção por parte das Ciências Sociais quanto o sindicalismo urbano. Em segundo lugar, porque analisa de forma precisa, rigorosa, meticulosa, a implantação e a expansão da estrutura sindical no campo e seus efeitos sobre o movimento sindical dos assalariados rurais na região de Ribeirão Preto (SP). Em terceiro lugar, porque procura explicar, de modo original, a divisão do sindicalismo oficial rural paulista, ocorrida a partir do final dos anos 80. Por fim, pode-se destacar a importância de se discutir os principais aspectos da estrutura oficial e suas implicações para a atividade sindical justamente num momento em que essa estrutura é novamente colocada em questão1 1 Fundada sobre o monopólio da representação, o arbítrio da Justiça do Trabalho e a arrecadação compulsória de recursos financeiros, a estrutura sindical corporativa tem sido alvo freqüente de críticas por parte de representantes dos trabalhadores, do patronato e do governo. As mais recentes manifestações contrárias à sua manutenção partiram do próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso e de membros de seu governo (como o ex-Ministro do Trabalho, Edward Amadeo). Para um questionamento acerca da efetividade do discurso governamental, consultar o prefácio do livro de Coletti, de autoria de Armando Boito Jr. .

Ao longo do texto, redigido numa linguagem clara e objetiva, a partir de uma pesquisa empírica exaustiva e de uma discussão bibliográfica abrangente, o autor não se limita a reproduzir o que afirma a bibliografia especializada, mas busca contrapor as diferentes versões que cercam cada questão, procurando refletir a partir delas. O resultado desse processo é um trabalho minucioso de argumentação, em que Coletti não se furta a enfrentar as inúmeras polêmicas que surgem ao longo do caminho que se propõe a percorrer, terminando por concluir de forma independente e inovadora. Assim, critica e rebate teses amplamente aceitas, como a de que o sindicalismo rural seria isento ao fenômeno do peleguismo.

O peleguismo, segundo o autor, é um fenômeno inerente à estrutura sindical corporativa, na medida em que a existência e a sobrevivência das entidades sindicais depende fundamentalmente da ação estatal. Nesse sentido, manifesta-se tanto no meio rural quanto no urbano. O que define o peleguismo não é, portanto, a adesão aos interesses patronais, como difunde-se geralmente, embora um sindicalista pelego possa facilmente ser "dependente e subordinado às direções das empresas" (BOITO JR., 1991, p. 131-132, apud COLETTI, 1998, p. 80), uma vez que sua liderança não resulta necessariamente do reconhecimento de sua base.

A dificuldade dessa concepção é justamente definir os limites entre uma liderança pelega e uma liderança não pelega. Considerando-se as características da estrutura sindical brasileira, todos os sindicatos possuem, no limite, algum grau de dependência frente ao Estado. Será que, então, todos os dirigentes sindicais são igualmente pelegos? Qual a utilidade desse conceito para distinguir as diferentes formas de atuação das lideranças sindicais e os diferentes graus de dependência dos sindicatos perante o Estado?2 2 Pois não se pode negar que alguns sindicatos são mais dependentes do que outros. Alguns sindicatos filiados à CUT, por exemplo, adotaram a prática de devolver o imposto sindical, não dependendo, portanto, desse recurso assegurado pelo Estado para sua sobrevivência financeira, e puderam fazer isso porque desenvolveram, ao longo dos anos, um trabalho de organização e mobilização de suas bases, procurando representar efetivamente os interesses dos trabalhadores a eles filiados.

A dependência frente ao Estado leva ao desenvolvimento de um outro aspecto que caracteriza o sindicalismo rural, assim como o urbano: o legalismo. Este expressa-se não apenas no "apego à lei" encontrado na base da prática da Contag, que busca freqüentemente na Justiça o respeito aos direitos trabalhistas e mantém a obediência estrita à lei de greve, mas também na própria dificuldade do sindicalismo cutista em escapar dos limites impostos pelo enquadramento sindical, o que poderia ser feito, por exemplo, pela criação de sindicatos paralelos3 3 Apesar de, no plano do discurso, as lideranças cutistas apresentarem críticas à estrutura sindical, buscam "se manter nas diretorias dos sindicatos oficiais [...] ou conquistá-las quando estão na oposição" (RODRIGUES, 1990: 93). . Ou seja, mais uma vez pode-se traçar uma correspondência entre os efeitos da estrutura sindical no campo e na cidade, ainda que aqui o legalismo seja menos visível, em virtude da prática desenvolvida pelo "novo sindicalismo". Mas apesar de não obedecer à lei de greve, de criar uma central sindical quando isso não era permitido, de evitar recorrer ao dissídio coletivo para dirimir os conflitos entre patrões e empregados, o legalismo afeta também o sindicalismo progressista, que busca uma solução legal para a reforma ou ruptura da estrutura sindical.

Uma diferença a ser apontada entre sindicalismo rural e urbano é que enquanto no primeiro caso a combinação entre peleguismo e legalismo levou ao predomínio de uma prática de subserviência ao Estado, imobilismo e a uma ação sindical reduzida ao assistencialismo, no segundo caso o surgimento de uma corrente combativa tornou possível minimizar o impacto daqueles elementos negativos.

Desse modo, pode-se concluir que embora a estrutura sindical favoreça a manifestação dos fenômenos acima mencionados, ela não os determina inexoravelmente. Isto é, se por um lado as características da estrutura sindical são propícias ao surgimento do peleguismo, do legalismo e do assistencialismo, posto que estabelece mecanismos que asseguram a dependência das organizações sindicais em relação ao Estado, por outro lado é possível usar as vantagens proporcionadas pela estrutura, como o monopólio da representação e a contribuição sindical compulsória, para uma atuação mais comprometida com os interesses dos trabalhadores. Foi isso, aliás, o que o "novo sindicalismo" fez, buscando organizar e mobilizar os trabalhadores, questionando alguns aspectos da estrutura sindical (apesar de, no geral, ter se adaptado a ela) e assumindo uma postura crítica em relação à política econômica e salarial de todos os governos, desde as greves de 1978.

Voltando à questão anteriormente colocada, a prática desenvolvida pelo "novo sindicalismo" afastou seus líderes do peleguismo (e do legalismo), mas não os tornou imunes a esses fenômenos. Além de procurar uma nova formatação sindical pelas vias legais, os herdeiros desse movimento, reunidos ao redor da CUT, têm dificuldades em passar do discurso (sustentado há vinte anos) à prática, permanecendo presos a alguns aspectos da estrutura sindical, não obstante as propostas apresentadas para eliminá-la4 4 Uma delas foi difundida nacionalmente em 1993, durante o Fórum Nacional de Debate sobre Contrato Coletivo e Relações de Trabalho, coordenado pelo Ministério do Trabalho, quando a CUT defendeu a adoção do contrato coletivo de trabalho como alternativa global à estrutura sindical corporativa (SIQUEIRA NETO E OLIVEIRA, 1996: 308-9). . Uma evidência desse apego é que a CUT, diante da recente ofensiva neoliberal - que busca promover a desregulamentação das relações de trabalho e a adoção da livre negociação coletiva sem a garantia de direitos trabalhistas - parece ter recuado em suas críticas em relação à estrutura corporativa. Qual a razão desse retrocesso? Os sindicalistas cutistas parecem ter se convencido de que a estrutura ao menos assegura a preservação de direitos mínimos, o que não ocorreria numa situação de desregulamentação total. Como, então, conceber um sindicalismo autônomo e independente (e, portanto, completamente livre do peleguismo) se ele mantém vínculos, por menores que sejam, com o Estado?

A influência do "novo sindicalismo" sobre o sindicalismo rural traz à tona os limites impostos pela estrutura sindical à ação reivindicativa dos trabalhadores, bem como as possibilidades de contorná-los. Ao analisar a greve de Guariba, no interior de São Paulo, em 1984, Coletti enfatiza o caráter espontâneo do movimento, ocorrido fora da data-base e completamente à margem da lei de greve de 1964, o que seria impensável se conduzido pelo legalismo do sindicalismo oficial. Isso só foi possível porque a greve "surgiu completamente por fora da estrutura oficial, ou seja, foi resultado da própria iniciativa dos cortadores de cana, independentemente dos STR [sindicatos de trabalhadores rurais] e de seus dirigentes" (p. 179, grifos do autor). A partir do ano seguinte, no entanto, as mobilizações foram canalizadas para o interior do sindicalismo oficial, sob o controle da Fetaesp (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo), perdendo a eficiência antes demonstrada.

A greve de Guariba, ao mesmo tempo em que revelou "a incapacidade organizativa e a predominância do assistencialismo e do peleguismo no interior do sindicalismo oficial rural do Estado de São Paulo" (p. 178), exprimiu a dificuldade do sindicalismo em incorporar os interesses dos assalariados temporários. Nesse aspecto, o sindicalismo rural paulista reproduz as características gerais do sindicalismo rural brasileiro, que ignora a diversidade das relações sociais no campo, falando em nome de "um trabalhador rural abstrato" (p. 171).

A diversidade de relações sociais no campo levou muitos estudiosos do sindicalismo rural - assim como a maior parte das lideranças envolvidas - a explicar a criação dos sindicatos dos empregados rurais - coexistindo ou substituindo os antigos sindicatos dos trabalhadores rurais - como resultado do conflito de classes entre os pequenos produtores (que exerceriam o papel de liderança na maioria das entidades sindicais no campo) e os trabalhadores assalariados (que aqueles deveriam representar).

A criação de sindicatos de empregados rurais foi impulsionada pelas brechas abertas pela Constituição de 1988, que eliminou a necessidade de se obter a "carta de reconhecimento" emitida pelo Ministério do Trabalho para se fundar um sindicato. Isso facilitou o desmembramento e a formação de sindicatos distintos, dividindo trabalhadores que antes pertenciam a uma mesma categoria profissional ou base territorial. Valendo-se desse precedente, um grupo de sindicalistas combativos da região de Ribeirão Preto adotou a tática de alterar os estatutos dos sindicatos de trabalhadores rurais, transformando-os em sindicatos de empregados rurais nos municípios em que o contingente de assalariados rurais era elevado, ou criando sindicatos de empregados rurais ao lado dos sindicatos de trabalhadores rurais já existentes.

Ao contrário da tese predominante, Coletti demonstra em seu trabalho que a constituição dos sindicatos dos empregados rurais (e da Federação dos Empregados Rurais Assalariados no Estado de São Paulo - Feraesp) deve-se à "disputa política entre, de um lado, um conjunto de lideranças progressistas e comprometidas com a organização e luta dos trabalhadores assalariados rurais, de outro, o peleguismo estatalpatronal representado pela Fetaesp, que impunha uma camisa-de-força ao avanço do sindicalismo combativo no campo paulista" (p. 250, grifos do autor). Em outras palavras, a tese defendida pelo autor considera que a criação de sindicatos de empregados rurais foi mais para acomodar as lideranças próximas à CUT, que não conseguiam vencer os "pelegos" via eleições, no interior da estrutura oficial, do que resultado do conflito entre pequenos produtores e assalariados rurais5 5 Coletti opõe aqui o sindicalismo rural tradicional (pelego), representado pela Contag, ao sindicalismo combativo, representado pela CUT, a partir de uma distinção estabelecida na prática de ambas as correntes sindicais, isentando o sindicalismo cutista de peleguismo. No entanto, a Contag acabou filiando-se à CUT em 1995, "hipótese praticamente impensável dez anos antes" (p. 245-6). Teria a Contag abandonado seu modelo de ação sindical ou a CUT passado a aceitar uma prática que anteriormente condenava? Esta é uma questão que, embora não seja fundamental para a tese do autor, poderia ser explorada pelo texto. .

Dois fatores são cruciais para a comprovação da tese defendida pelo autor: primeiro, o registro de que muitos sindicatos de trabalhadores rurais não tinham mais pequenos produtores em seu quadro social; segundo, a constatação de que os conflitos entre assalariados e pequenos produtores não eram suficientes para justificar a constituição de um outro sindicato, dada a dupla condição de classe desses últimos, já que muitos trabalhavam como assalariados no período de safra6 6 O autor reconstrói, com muita propriedade, o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo e seu papel para a deterioração da condição do pequeno produtor e para a expansão do assalariamento temporário. .

Duas teses secundárias são desdobradas a partir desta tese principal: a de que a constituição dos sindicatos de empregados rurais é uma forma precária da liderança combativa driblar a unicidade sindical e de que, justamente por isso, o discurso do conflito de interesses cumpre uma função político-ideológica. Ao se atribuir o imobilismo, a apatia e o peleguismo dos dirigentes sindicais a sua situação de classe, acaba-se ocultando o papel desempenhado pela estrutura sindical na disseminação desses elementos7 7 Retomando mais uma vez a questão aqui já mencionada, poderíamos acrescentar que a constituição de um movimento sindical combativo, preocupado com a organização e a mobilização dos trabalhadores, representativo de sua base e, conseqüentemente, menos pelego (no sentido definido pelo autor), também ajuda a obscurecer o caráter perverso da estrutura sindical, pois como atribuir à estrutura a responsabilidade pelas mazelas do sindicalismo se essa mesma estrutura possibilitou o desenvolvimento de duas correntes sindicais tão diferentes? . No caso específico do sindicalismo rural na região de Ribeirão Preto, o autor demonstra que não é a situação de classe da liderança o fator responsável pela desmobilização ou moderação das lutas sindicais, mas que essa é uma possibilidade decorrente das próprias características da estrutura sindical. Ocorre que o sindicalismo combativo, em sua luta contra o peleguismo, não podia atribui-lo à estrutura oficial, em virtude de seu próprio comprometimento em relação a ela, visto que a perspectiva adotada por essa nova liderança era a de ocupar espaços no interior dessa mesma estrutura sindical e não romper com ela. Daí a utilização do conflito de interesses como um argumento ideológico para alterar o enquadramento sindical. Nesse sentido, a criação dos sindicatos de empregados rurais e da Feraesp representou uma manobra no interior da estrutura sindical, na medida em que combateu a unicidade sem que para isso fosse necessário instaurar o pluralismo.

Entre as inúmeras virtudes e contribuições do livro em questão, esta é certamente uma das mais relevantes: o autor não se contenta com uma explicação simplista para a criação dos sindicatos de empregados rurais. Pelo contrário, procura ir além das aparências de seu objeto de estudo, mostrando não só porque a tese do conflito de interesses não funciona, mas também qual a sua utilidade para os que dela fazem uso. Essa utilidade, nunca é demais repetir, é encobrir "o caráter perverso da estrutura sindical oficial, que possibilita o imobilismo, a apatia e o peleguismo dos dirigentes sindicais" (p. 251). Atacando o foco do problema, o excelente trabalho de Coletti contribui para desmistificar o papel da estrutura sindical e desfazer as ilusões daqueles que ainda defendem sua manutenção como um "mal menor" para os trabalhadores e suas entidades de representação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOITO JR., A. 1991. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. Campinas/ São Paulo : Editora da Unicamp/HUCITEC.

RODRIGUES, L. M. 1990. CUT: os militantes e a ideologia. Rio de Janeiro : Paz e Terra.

SIQUEIRA NETO, J. F. e OLIVEIRA, M. A. de. 1996. Contrato coletivo de trabalho: possibilidades e obstáculos à democratização das relações de trabalho no Brasil. In: Oliveira, M. A. de e Mattoso, J. (orgs.). Crise e trabalho no Brasil. São Paulo : Scritta.

Recebido para publicação em abril de 1999.

Andréia Galvão (agalvao@obelix.unicamp.br) Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutoranda em Ciências Sociais pela mesma universidade.

Agricultura familiar: diversidade e adaptabilidade

Osvaldo Heller da Silva

Universidade Federal do Paraná

LAMARCHE, Hugues (coord.). A agricultura familiar: comparação internacional. Vol. I: uma realidade multiforme. Campinas : Editora da Unicamp, 1993.

LAMARCHE, Hugues (coord.). A agricultura familiar: comparação internacional. Vol. II: do mito à realidade. Campinas : Editora da Unicamp, 1998.

A pesquisa empreendida por uma gabaritada equipe internacional, contando com a participação de quatro pesquisadores brasileiros, editada em dois volumes pela Unicamp, oferece ao público um abrangente mas também profundo estudo acerca da agricultura familiar no mundo contemporâneo. A primeira parte constituise em um exaustivo levantamento empírico, enquanto a segunda revela-se uma fina abordagem teóricoconceitual sobre as múltiplas facetas da produção agrícola familiar.

Partindo da constatação que de modo geral a produção agrícola é, em maior ou menor grau, assegurada por unidades de produção familiar - estabelecimentos onde a família desempenha papel ativo na produção - os autores rejeitam toda a visão evolucionista, que considera a agricultura familiar como forma social residual, transitória ou em vias de desaparecimento. Através de uma ampla investigação, demonstra-se factualmente o espaço próprio ocupado por esta forma social de agricultura nas sociedades modernas, sejam elas capitalistas ou socialistas, avançadas, em desenvolvimento ou periféricas. Este consistente esforço de pesquisa coloca uma pesada pá de cal no mito do suposto fim do rural e do agricultor familiar1 1 Tanto os apologistas do capitalismo quanto os teóricos marxistas defenderam o fim apocalíptico da agricultura familiar na modernidade, tida como sinônimo de atraso. Ver KAUTSKY, 1968; LÊNIN, 1982; e MARX, 1980. .

Para além deste debate teórico-ideológico, evidencia-se a rica heterogeneidade e a enorme capacidade de adaptação da agricultura de tipo familiar. A diversidade de situações reflete antes as diferentes faces de um mesmo objeto e não objetos distintos. Mas isto não quer dizer que a produção familiar represente um grupo social homogêneo, muito menos uma classe social no sentido marxista do termo. A realidade multiforme desta forma de produção é resultante da sua capacidade de adaptação aos diferentes ambientes históricos e conjunturais2 2 Os autores pensam a diversidade em termos de estratégia de adaptação. Cabe indagar se em todos os casos é sempre à agricultura familiar que compete se adaptar à situação? Ou será que em alguns casos, ocupando um lugar menos dominado, esta agricultura possa pretender que, ao contrário, seja a situação que deva se adaptar a ela? .

Neste final de século, a discussão a respeito de um outro modelo de agricultura reveste-se de uma urgência dramática, face à crise do modelo produtivista convencional dos países capitalistas e o estrangulamento dos sistemas agrários coletivistas, não menos convencionais. O que se constata é que os agricultores mais envolvidos e dependentes do mercado são justamente os mais fragilizados pelas crises de oferta e demanda. Neste quadro, práticas como o autoconsumo, a reutilização de produtos, a redução do endividamento e a ajuda mútua aparecem não como signos do atraso de uma agropecuária arcaica, mas como estratégias de adequação a condições adversas. A atualidade do debate está na razão direta do caráter familiar desta outra agricultura que, como diz Maria Nazareth Wanderley, poderá vir a ter um enorme potencial de desenvolvimento, apesar destas forças produtivas freqüentemente serem desperdiçadas. Estando dados os limites da agricultura convencional, resta a nós, nações em desenvolvimento, encontrarmos nossa própria solução em vez de continuar a seguir seja o modelo capitalista-produtivista, seja o modelo socialista-coletivista.

Para a consecução da pesquisa, foi elaborado um questionário comum, aplicado em treze áreas rurais de cinco países, totalizando um universo empírico de mais de 600 agricultores consultados3 3 O trabalho de campo foi realizado nas seguintes regiões: Quebec e Saskatchewan (Canadá); Bretanha, Marais Poitevin e Causse Noir (França); Cariri na Paraíba, Leme em São Paulo e Ijuí no Rio Grande do Sul (Brasil); Zaghouan e Ras El Djebel (Tunísia); e Drobin, Steszew e Zator (Polônia). . Num enfoque qualitativo sem pretensões de representatividade estatística, mais do que países foram investigados casos exemplares de sociedades, buscando cobrir a diversidade de situações. Canadá e França exemplificaram sistemas capitalistas avançados; Brasil, um sistema capitalista dependente; Tunísia, um sistema capitalista em vias de desenvolvimento; e Polônia um sistema coletivista4 4 A pesquisa de campo foi executada antes do final do regime socialista na Polônia. .

No primeiro volume - "Uma realidade multiforme" - o objetivo foi menos uma análise global e mais o cotejo das experiências e das reflexões dos diferentes pesquisadores. Como disseram, procurava-se o "olhar do outro" para com isso enriquecer o próprio olhar.

Em que pese alguns equívocos de tradução5 5 O primeiro volume apresenta problemas de tradução do francês para o português, como usar o termo "exploradores" no lugar de "produtores"; "exploração" ao invés de "unidades de produção" ou "estabelecimento"; "terrenos" no lugar de "regiões" ou "áreas"; "paróquias" ao invés de "comunidades"; "país" no sentido de "região"; "categorias de superfície" no lugar de "estratos de área"; e expressões ininteligíveis como "fazenda familiar", "proprietários parceiros", "geada ou pousio da terra" e "relação no geral". , nesta primeira etapa do trabalho, cada autor procurou elucidar os mecanismos de funcionamento, as lógicas de produção, as estratégias de reprodução social e o universo das representações construídas por distintas comunidades de agricultores familiares. Em cada área de pesquisa, metodologicamente, a produção familiar foi analisada em seu conjunto, levando em conta as diferentes lógicas e escolhas dos agricultores. Para isto foram investigados diversos sistemas: de produção, fundiário, familiar, de valores e de representação.

Tendo como eixo o grau de integração ao mercado, elaborou-se uma grade de leitura, permitindo assim uma modelização dos diferentes tipos de agricultura familiar. Isento de determinismos, observou-se a preponderância de algumas tendências: da autarquia para a economia de mercado, da tradição para a modernidade. Não obstante, ficou patente que não há processo único de evolução histórica, nem um mesmo destino inexorável para os agricultores familiares. Há situações de bloqueio, como aquela vivenciada pelos agricultores familiares poloneses sob o regime socialista, onde o poder central podia impedir a concentração fundiária individual. Há situações de ruptura, como a experimentada pela agricultura camponesa nas sociedades industrializadas.

Em primeiro lugar é preciso demarcar uma distinção: não se pode confundir produção camponesa com produção familiar. Se é verdade que a produção camponesa é familiar, nem toda produção familiar é camponesa6 6 Abramovay já alertava para esta distinção. Cf. ABRAMOVAY, 1992. . O sistema produtivo camponês tem um funcionamento bastante particularizado, equilibrando numa delicada relação produção e consumo, onde não há lugar para categorias econômicas tradicionais como lucro ou salário, pois o objetivo perseguido é o valor de uso e não o valor de troca7 7 A este respeito, consultar CHAYANOV, 1981. .

Na França, a agricultura familiar provém de um modelo camponês e guarda até hoje seus traços socioculturais. Na Tunísia observa-se um modelo colonial de produção mercantil, utilizando mão-de-obra externa à unidade de produção. No sul do Brasil, no Quebec ou em Saskatchewan desnuda-se um modelo camponês.

Para trabalhar com esta diversidade, Lamarche concebeu a idéia de dois modelos extremos. Um original (originariamente vivido) e um ideal (idealizado pelos agricultores). A hipótese formulada então foi de que a agricultura familiar nas economias de mercado, quanto mais próxima estiver dos modelos extremos, mais dificuldades de reprodução encontrará.

O segundo volume da pesquisa - "Do mito à realidade" - constitui-se numa análise temática transversal, onde é feita uma reflexão teórica comparativa sobre esta forma social de produção. Nesta parte do trabalho os autores pretendem contribuir para a construção de uma teoria da agricultura familiar.

O atual debate francês e canadense recoloca em cena a produção familiar, em detrimento do modelo empresarial de agricultura. Na França, desde o final da década de 50, a modernização das unidades familiares transformou-as em eficientes e competitivas no mercado internacional. Graças ao consenso que se instalou entre os representantes dos agricultores, o Estado e os industriais, foi imposto aos agricultores o modelo produtivista, sem praticamente nenhuma outra alternativa. Essa política levou à marginalização aqueles menores estabelecimentos que não puderam ou não souberam adaptar-se, resultando no êxodo do campo. Entretanto, neste país desde 1980, o modelo produtivista atingiu seus limites, não podendo mais representar a ponta de lança da política agrícola.

Devido às constantes crises de superprodução, o objetivo da atividade agropecuária deixou de ser produzir mais, para se transformar em produzir menos, com a finalidade de manter a renda dos produtores rurais. Hoje não há mais justificativas para se favorecer uma elite de agricultores, levando à marginalização e depois ao desaparecimento de 2% a 3% dos estabelecimentos "menos competitivos" a cada ano. Esse modelo acentuou drasticamente a desertificação do espaço rural8 8 Na França, a população rural perfazia 27% da população total em 1945; hoje ela não passa dos 6%. . Ao contrário disso, o estabelecimento agrícola deveria ser concebido enquanto o lugar privilegiado de regulação do êxodo rural. Por seu turno, os estabelecimentos produtivistas estão em situação potencial de crise quase permanente, completamente dependentes das contingências externas, reduzindo de forma radical o espaço de liberdade do produtor. E a agricultura praticada por eles é cada vez mais intensiva e especializada, ocasionando graves problemas ambientais.

Frente a este quadro desalentador, em Bruxelas em 1991 foi proposta uma nova definição da Política Agrícola Comum: produzir menos, mais barato, poluir menos, permitindo a reprodução de um número maior de estabelecimentos agropecuários. Todavia a reação francesa foi categórica: "não sacrificaremos nossos estabelecimentos mais dinâmicos". Assim, tudo indica que a curto prazo não haverão modificações sensíveis nos rumos da política agrícola no Hexágono, no máximo ocorrerão algumas adaptações técnicas e econômicas.

No Canadá, a agricultura encontra-se dominada por unidades familiares relativamente grandes e capitalizadas. Nesta situação, ocorreu a marginalização de zonas agrícolas periféricas, resultando no desaparecimento dos pequenos estabelecimentos considerados não-rentáveis. Naquele país, as pequenas e médias empresas rurais (PME) é que são valorizadas socialmente. Contrastando com o caso brasileiro, lá a terra é abundante, não havendo lugar portanto para os conflitos por este meio de produção, devido a razões históricas e à baixa densidade demográfica.

A pesquisa indicou também que a reconversão para uma agricultura de tipo sustentável já parece inevitável para metade dos produtores quebequenses. Acredita-se que a capacidade de adaptação da agricultura familiar está longe de esgotar-se no Canadá.

O Brasil apresenta uma realidade rural muito distinta daquela das sociedades de capitalismo avançado. Isto acabou imprimindo uma marca própria na produção acadêmica aqui realizada. Maria de Nazareth Wanderley aponta quatro eixos ordenadores dessa produção. O primeiro diz respeito ao lugar do campesinato na sociedade colonial e no escravismo, desnudando-se as formas tradicionais de produção e reprodução do campesinato. O segundo tratou das perspectivas da produção familiar frente à modernização da sociedade e da agricultura. O conceito fluido de pequena produção foi deslocado pela noção mais apropriada de agricultura familiar. O processo seletivo de modernização provocou fluxos migratórios espetaculares, agravando o êxodo campocidade concomitantemente ao afluxo para as novas fronteiras agrícolas. O terceiro eixo abordou o significado das fronteiras como locus de gestação de utopias, mas também como geradora de frustrações da reforma agrária, deformada em projetos de colonização. A fronteira aparece como palco privilegiado de conflitos em torno da posse da terra. Por fim, um quarto eixo temático debruçar-se-á sobre os movimentos sociais agrários, retematizando a reforma agrária.

A Polônia aparece como um caso sui generis na medida em que a agricultura privada rompe o esquema do "campo coletivizado" dos países do Leste. A agricultura familiar monopoliza o mercado alimentar, tendo certa autonomia financeira que, ao lado da pluriatividade, lhe confere relativa segurança. Contudo, com a transição para uma economia de mercado a insegurança aparece, decorrente da nova conjuntura: inflação, estagnação econômica, desemprego, superprodução, queda da demanda, empobrecimento e concorrência externa. Graças ao seu peso eleitoral, os agricultores familiares foram guindados à posição de força política disputadíssima. Neste contexto movediço, os produtores rurais hesitam entre os fascínios de uma economia de mercado e a contestação de seus efeitos indesejáveis.

O último caso estudado, a Tunísia, revela uma agricultura poliforme alicerçada em estabelecimentos familiares convivendo ao lado de grandes estabelecimentos privados, cooperativados ou estatais, que se valem do trabalho assalariado. Neste jogo entre uma agricultura de subsistência e uma agricultura produtivista, a produção familiar figura como a mal-amada. O desenvolvimento agrícola tunisiano é pensado a partir dos grandes estabelecimentos como protagonistas preferenciais da modernização. À agricultura familiar resta uma política de assistência - e não de desenvolvimento -, que não permite sua consolidação. Em 1986, como num filme já visto, um programa de ajuste estrutural do FMI impôs a redução da intervenção estatal, privatizações e a liberalização dos preços. Em decorrência, vários projetos de ajuda aos pequenos produtores rurais foram suspensos. Também lá a visão tecnicista dominante só é capaz de pensar a agricultura familiar em termos de manutenção da população no campo, nunca em termos de produção agrícola.

Oito temáticas transversais de discussão percorrem todos os países investigados. As lógicas produtivas dos agricultores familiares aparece como um primeiro tema. O modo de funcionamento dos seus estabelecimentos depende dos fatores familiares e dos fatores de dependência, numa "sábia alquimia" entre diversas variáveis. A existência desta agricultura depende da gerência de três exigências básicas: os valores tradicionais, o projeto para o futura e as limitações do ambiente.

A partir daí, faz-se mister analisar as diferentes lógicas familiares de funcionamento das unidades produtivas. Três temas se destacam para determinar estas lógicas familiares: a terra, como patrimônio familiar, como ferramenta de trabalho ou como objeto de especulação; o trabalho, familiar ou assalariado; e a reprodução do estabelecimento, onde as estratégias podem ser muito familiar, medianamente familiar e pouco familiar. Isto posto, é preciso aquilatar o grau de dependência tecnológica, financeira e do mercado. A capacidade de adaptação da agricultura familiar varia segundo o grau de dependência. Tendo presente que modelos absolutos não existem, quatro paradigmas teóricos de unidades de produção foram concebidos:

1. empresa: pouco ou não familiares e fortemente dependentes;

2. empresa familiar: distingue-se do modelo anterior pela importância primordial da família, muito dependente do exterior9 9 A pesquisa revelou que as empresas dominam, com 53% da amostra. No Brasil, isto ocorre principalmente no sul. ;

3. agricultura camponesa e de subsistência: funcionam mais num modelo de subsistência e de sobrevivência que camponês10 10 Presente em todos os países, marginal na França e no Canadá, bem implantada no Brasil (21,5%), na Tunísia e na Polônia. Para o sul do Brasil, Ivaldo Gehlen prefere utilizar a denominação modelo caboclo ao invés de camponês. Ver GEHLEN, 1998. ;

4. agricultura familiar moderna: menor papel da família e maior autonomia11 11 Bem implantada em todos os países, com 31% dos estabelecimentos estudados. .

Com base nesta modelização, percebe-se que no Canadá, na França e na Tunísia a maior parte da produção familiar se dá num sistema extensivo.

A seu turno, os agricultores familiares brasileiros revelam um pequeno grau de integração com o mercado; em compensação, uma grande independência alimentar. Aqui, 50% das unidades pesquisadas apresentam uma agricultura familiar moderna, particularmente em Ijuí e em Leme. Nestas unidades, a noção de patrimônio e de reprodução do estabelecimento permanecem familiares. A família participa do trabalho apenas medianamente, pois recorrem regularmente ao emprego de trabalhadores assalariados. Os estabelecimentos são relativamente intensivos. Prudentes em relação à integração ao mercado, estes agricultores brasileiros estimam que o êxito de sua atividade depende da constância, dos investimentos realizados e do grau de mecanização.

A pesquisa revelou ainda a existência de zonas de transição. Em Leme evolui-se do modelo camponês para uma agricultura familiar moderna. Em Ijuí transita-se da agricultura familiar moderna para o modelo empresa. Da análise realizada pode-se inferir que as lógicas familiares são um fator de estabilidade desta agricultura, enquanto que o grau de dependência é um fator de adaptação.

Um segundo tema que atravessa o conjunto das áreas pesquisadas diz respeito às estratégias fundiárias adotadas pelos agricultores. A cada momento as estratégias serão função das trajetórias fundiárias, que poderão ser ascendentes, descendentes, marcadas por rupturas ou inversões de tendências. Construiu-se uma tipologia dos agricultores familiares, segundo suas estratégias fundiárias: os resignados, os frustrados, os satisfeitos e os empreendedores.

Comparativamente, o Brasil apresenta as maiores taxas de pressão demográfica sobre a terra. Ao mesmo tempo, fica evidente o caráter conquistador dos produtores em nosso país e a sua "deslocalização", ou seja, a sua propensão à mobilidade geográfica. No Cariri, verifica-se um importante bloqueio fundiário. Há uma grande "fome de terras", mas a terra como meio de produção e não como território patrimonial. Os brasileiros que tentam a aventura, que têm um comportamento mais ofensivo, obtém mais êxito. Mas a distância sociocultural é grande entre os moradores nordestinos e os colonos do Rio Grande do Sul, no sentido das chances de levar a bom termo as estratégias de conquista. Já no Velho Mundo, os agricultores possuem maior fidelidade ao patrimônio.12 12 Ao abordar esta temática, Marie-Claude Maurel comete um deslize ao afirmar que não existiria agricultura sem terra, nem produtor agrícola sem direito de uso sobre um bem fundiário. No mesmo sentido, Maria Halamska diz que a exploração familiar corresponde a uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família. Primeiro, os últimos avanços agronômicos como a hidroponia e a biotecnologia estão a indicar a possibilidade real de uma agricultura sem terra. Segundo, o Brasil é um exemplo nítido de que é possível sim agricultura (e familiar) sem propriedade e mesmo sem direito legal de uso da terra (o caso da posse, por exemplo).

O terceiro tema transversal relevante trata das estratégias familiares de reprodução social, particularmente no que compete ao destino dos filhos. Estes projetos futuros acalentados para a prole traduzem muitas vezes a avaliação que os agricultores fazem da situação global circundante. Mostrando um senso de realidade bastante grande por parte desta população rural, observa-se uma ampla convergência entre projetos e o que efetivamente se realiza.

Para aquilatar as diferentes aspirações familiares e as realidades concretas, aqui também procedeu-se uma modelização. As estratégias foram agrupadas em sete modelos. Dentre estes, a estratégia ruralista, patrimonial, exolocal e tradicional mostrou-se fortemente característica de várias áreas brasileiras. Aí os filhos permanecem no campo, fora do estabelecimento paterno, enquanto as filhas migram para a cidade. Já a estratégia ruralista, patrimonial, patrilocal e tradicional está presente no sul do Brasil, onde os filhos casados residem no estabelecimento dos pais.

As diferentes realidades familiares foram ordenadas em nove modelos. Entre os quais, o modelo "primogênitos não-manuais emigrados, caçula agricultor" apareceu significativamente no nordeste brasileiro e em Ijuí. Já o modelo "filhos homens agricultores no município" emergiu de modo acentuado no nordeste e em Leme. Por último, o modelo "um filho homem agricultor no estabelecimento" está presente particularmente em Leme e em Ijuí.

No Cariri, as famílias são "exportadoras" de filhos homens, com ênfase na promoção sócio-profissional ou são aquelas cujos filhos encontram-se bloqueados no município. Ijuí também "exporta" filhos, no entanto o esforço de promoção é mais acentuado. Em Leme, as estratégias centram-se no próprio estabelecimento.

Verifica-se que onde há êxodo rural os pais estimam que a salvação está na fuga do campo. Nos países do hemisfério sul, coube às unidades familiares financiarem a urbanização. Para muitos, o êxodo aparece como a busca de liberdade e a recusa de um meio tido como fechado e medíocre. Para outros, significa uma fuga das incertezas. O certo é que o destino da prole afeta o sentimento de identidade territorial ou profissional dos agricultores.

Como quarta temática manifesta em todos os países pesquisados, discute-se o trabalho familiar agrícola face à pluriatividade. Para abordá-lo, também foram confeccionados modelos. Assim, nos países do sul, aparece o modelo "famílias extensas, parcialmente pluriativas, com trabalho assalariado", significativamente no Cariri e em Ijuí. "Pai, filho e assalariados", ausente nos países do norte, também ocorre no Cariri e em Leme. A "família extensa" é forte em Ijuí. Os "pluriativos" são encontrados também no Cariri.

É importante destacar que em todos os países estudados a pluriatividade constitui uma realidade muito mais importante do que uma simples retração de categorias marginais, numa alternativa de emergência. Fenômeno recente, em muitos lugares a pluriatividade desnuda-se como uma escolha consciente de "viver a agricultura", o que suscita problemas teóricos novos. Os economistas não conseguem explicar este "comportamento irracional", guiado pelo apego à terra, a um determinado modo de vida, que mantém uma agricultura mesmo que deficitária. É preciso se perguntar até que ponto todas as tomadas de decisões dos agricultores são frutos de cálculos racionais, de escolha de alternativas colocadas, da execução de projetos. Qual o lugar da subjetividade, da magia, da fantasia, da loucura, da "irracionalidade" destes atores sociais?

Na maior parte das vezes, os pluriativos não constituem uma reação a uma situação precária, mas significam uma escolha de uma maneira de assegurar a subsistência da família. A pluriatividade bem como o êxodo rural são estratégias adaptativas às novas situações. No hemisfério norte, os pluriativos assumem melhor esta escolha, integram-se melhor na sociedade local, com atitudes mais positivas em relação às políticas agrícolas. No sul, apresentam atitudes mais negativas vis-à-vis à sociedade local; antes de uma escolha, a pluriatividade é encarada como um fracasso, devido à impossibilidade de seguir um caminho mais agrícola13 13 No Brasil, o tema da pluriatividade é relativamente recente. O "Projeto Rurbano", coordenado pelo economista da Unicamp José Graziano da Silva está entabulando um amplo mapeamento da pluriatividade no país. Textos produzidos pelo Projeto podem ser encontrados na página http://www.eco.unicamp.br/projetos. .

O quinto tema investigado diz respeito à percepção que os agricultores têm de sua profissão. Aqui, uma constatação maior se impõe: a noção de profissão de agricultor é tanto mais aceita quanto maior for a integração ao mercado. A integração ao circuito comercial significa uma maior abertura para o mundo, mas também coloca a necessidade de valorização de uma dada identidade. Esta identidade profissional se constrói num longo caminho que vai do camponês ao agricultor.

A vida local é a sexta temática abordada de forma transversal. Até algum tempo, associava-se esse tema aos chamados "estudos de comunidade", considerado como obsoleto em nome da universalidade do mundo moderno. Felizmente, hoje esta questão está sendo recolocada e, a partir da redemocratização do Brasil, quando o poder local deixou de ser mera caixa de ressonância do poder central, ela ganha absoluta atualidade. Entre nós, é preciso entender o espaço local como o lugar privilegiado da construção de uma identidade cidadã. Urge reinventar a localidade. Numa sociedade moderna, os agricultores não se diluem em um meio disperso, mas constróem um espaço de vida, o espaço local no qual as relações de interconhecimento se revitalizam.

Ligado a isto, a própria relação campo-cidade era julgada secundária, sob pretexto do "fim do rural". Opondo-se a esta concepção determinista, os autores lançam a hipótese inversa, segundo a qual os progressos sociais beneficiam também os espaços locais e a população rural. Mas esta postura significa remar contra a corrente que considera, nos países pobres, o rural como sinônimo de precariedade. É o caso do Brasil, onde o caracter colonial inibiu o fortalecimento das comunidades rurais14 14 Curiosamente, no Brasil nós não temos a figura da "cidade rural", dotada de infra-estrutura social e administrativa, mas que nem por isto perde o seu caráter rural (transformando-se em urbana), como por exemplo o village francês. Cf. WANDERLEY, 1997. .

Buscando identificar a forma como os produtores rurais sentem a localidade, quatro situações foram identificadas: a localidade fortalecida - Canadá, França e Polônia; a localidade dependente - Ijuí; a localidade precária - Cariri e Zaghouan na Tunísia; e a localidade deslocalizada - Leme e Ras el Djebel na Tunísia.

Para compreender a relação da agricultura familiar com a sociedade global, sétimo tema, foram concebidos quatro tipos ideais: o camponês (dos quais 56% são brasileiros); os produtores; os profissionais e os modernizados. Nesta temática, poderia ter sido mais explorada não apenas as relações com a sociedade envolvente imediata, mas ainda a situação destes agricultores face a emergência dos blocos econômicos, questão crucial nos dias que correm15 15 No caso sul-americano, ver ROMANO, 1996. .

No oitavo e último item analisado - o significado do Estado junto aos agricultores - foi enfatizado o papel decisivo que esta instituição pode desempenhar na evolução da unidade de produção familiar, mesmo se essa última possui uma capacidade de agir que lhe dá certa autonomia. A Polônia ilustra bem essa autonomia da agricultura familiar. De forma complementar, o estudo ressaltou o fato de que a história sociopolítica local tem enorme peso na formação das representações sobre o Estado e a política agrícola. Caberia ainda acrescentar que, em que pese a onda neoliberal de enxugamento da máquina estatal, o Estado em todos os níveis ainda desempenha um papel fundamental relativamente aos agricultores familiares, em particular em termos de políticas de desenvolvimento rural nos países periféricos.

Ao se falar em uma "outra agricultura", de maneira subjacente a questão ambiental, notadamente a discussão do lugar da sustentabilidade na agricultura familiar16 16 Ver EHLERS, 1996. , está colocada. Porém, acreditamos que este assunto mereceria um lugar de destaque ao lado de todos os temas abordados neste relevante estudo. Não é preciso argumentar sobre sua pertinência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, R. 1992. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo : Hucitec/Anpocs/ Unicamp.

CHAYANOV, A. 1981. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In: GRAZIANO DA SILVA, J. e STOLKE, V. A questão agrária. São Paulo : Brasiliense.

EHLERS, E. 1996. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma. São Paulo : Livros da Terra.

GEHLEN, I. 1998. Agricultura familiar de subsistência e comercial: identidade cabocla e inclusão social. In: FERREIRA, A. D. D. e BRANDENBURG, A. (orgs.). Para pensar outra agricultura. Curitiba : Ed. da UFPR.

KAUTSKY, K. 1968. A questão agrária. Rio de Janeiro : Laemmert.

LÊNIN, V. I. 1982. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo : Abril.

MARX, K. 1980. O capital. Critica da economia política. 3ª ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.

ROMANO, J. O. 1996. Atores e processos sociais agrários no Mercosul. Estudos: sociedade e agricultura.

Rio de Janeiro; n. 6. jul.

WANDERLEY, M. N. 1997. O lugar dos rurais: o meio rural no Brasil moderno. Trabalho apresentado no XXI Encontro da ANPOCS, Caxambu, MG.

Recebido para publicação em abril de 1999.

Osvaldo Heller da Silva (osvaldo@coruja.humanas.ufpr.br) é Doutor em Sociologia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

  • 1
    O conceito de bloco no poder foi elaborado por Nicos Poulantzas e se refere à unidade das classes e frações politicamente dominantes de uma dada formação social, unidade esta promovida pelo Estado, sob a égide da fração hegemônica. Este conceito está espalhado por toda a obra de Poulantzas. Ver especialmente Nicos Poulantzas, 1986, pp. 133-137, em que o autor discute a relação entre o conceito de hegemonia e o de bloco no poder.
  • 2
    Neste ponto, Sônia Regina de Mendonça está acompanhada por autores como REIS (1979), TOPIK (1987), FRITSCH (1988), dentre outros.
  • 3
    Entre eles está, como notou Anderson, a incapacidade, por parte de Gramsci, de fornecer uma "demarcação precisa dos setores respectivos da Sociedade Civil e do Estado" e, portanto, de captar a especificidade deste último. Cf. ANDERSON, 1986, p. 33.
  • 4
    A autora usa como referência nesta passagem o livro de Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo. Para uma formulação explícita dessa tese, ver também POULANTZAS, 1978, p. 81.
  • 5
    Para Poulantzas, "o Estado não constitui no entanto um simples conjunto de peças descartáveis: ele apresenta uma unidade de aparelho, isso que se designa comumente pelo termo de centralização ou centralismo, ligada por sua vez à unidade [...] do poder de Estado. Isso se traduz por sua política global e maciça em favor da classe ou fração hegemônica [...]". Cf. POULANTZAS, 1985, p. 157.
  • 6
    Os dilemas metodológicos do estrutural-funcionalismo da análise poulantziana já foram analisados por vários autores que, basicamente, apontam para o problema de se postular aprioristicamente que o Estado, ou um dos seus ramos, deverá sempre atender aos interesses a largo prazo da fração hegemônica numa dada formação social. Cf., por exemplo, PREZWVOSRKY, 1995 e BARROW, 1993.
  • 7
    Considerar o Estado como variável autônoma não implica, como tem mostrado o debate recente, em adotar uma concepção formalista-juridicista de Estado. Cf., por exemplo, BLOCK, 1980. Para o caso brasileiro no período em questão, consultar o interessante trabalho de FRITSCH, 1988.
  • 1
    Fundada sobre o monopólio da representação, o arbítrio da Justiça do Trabalho e a arrecadação compulsória de recursos financeiros, a estrutura sindical corporativa tem sido alvo freqüente de críticas por parte de representantes dos trabalhadores, do patronato e do governo. As mais recentes manifestações contrárias à sua manutenção partiram do próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso e de membros de seu governo (como o ex-Ministro do Trabalho, Edward Amadeo). Para um questionamento acerca da efetividade do discurso governamental, consultar o prefácio do livro de Coletti, de autoria de Armando Boito Jr.
  • 2
    Pois não se pode negar que alguns sindicatos são mais dependentes do que outros. Alguns sindicatos filiados à CUT, por exemplo, adotaram a prática de devolver o imposto sindical, não dependendo, portanto, desse recurso assegurado pelo Estado para sua sobrevivência financeira, e puderam fazer isso porque desenvolveram, ao longo dos anos, um trabalho de organização e mobilização de suas bases, procurando representar efetivamente os interesses dos trabalhadores a eles filiados.
  • 3
    Apesar de, no plano do discurso, as lideranças cutistas apresentarem críticas à estrutura sindical, buscam "se manter nas diretorias dos sindicatos oficiais [...] ou conquistá-las quando estão na oposição" (RODRIGUES, 1990: 93).
  • 4
    Uma delas foi difundida nacionalmente em 1993, durante o Fórum Nacional de Debate sobre Contrato Coletivo e Relações de Trabalho, coordenado pelo Ministério do Trabalho, quando a CUT defendeu a adoção do contrato coletivo de trabalho como alternativa global à estrutura sindical corporativa (SIQUEIRA NETO E OLIVEIRA, 1996: 308-9).
  • 5
    Coletti opõe aqui o sindicalismo rural tradicional (pelego), representado pela Contag, ao sindicalismo combativo, representado pela CUT, a partir de uma distinção estabelecida na prática de ambas as correntes sindicais, isentando o sindicalismo cutista de peleguismo. No entanto, a Contag acabou filiando-se à CUT em 1995, "hipótese praticamente impensável dez anos antes" (p. 245-6). Teria a Contag abandonado seu modelo de ação sindical ou a CUT passado a aceitar uma prática que anteriormente condenava? Esta é uma questão que, embora não seja fundamental para a tese do autor, poderia ser explorada pelo texto.
  • 6
    O autor reconstrói, com muita propriedade, o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo e seu papel para a deterioração da condição do pequeno produtor e para a expansão do assalariamento temporário.
  • 7
    Retomando mais uma vez a questão aqui já mencionada, poderíamos acrescentar que a constituição de um movimento sindical combativo, preocupado com a organização e a mobilização dos trabalhadores, representativo de sua base e, conseqüentemente, menos pelego (no sentido definido pelo autor), também ajuda a obscurecer o caráter perverso da estrutura sindical, pois como atribuir à estrutura a responsabilidade pelas mazelas do sindicalismo se essa mesma estrutura possibilitou o desenvolvimento de duas correntes sindicais tão diferentes?
  • 1
    Tanto os apologistas do capitalismo quanto os teóricos marxistas defenderam o fim apocalíptico da agricultura familiar na modernidade, tida como sinônimo de atraso. Ver KAUTSKY, 1968; LÊNIN, 1982; e MARX, 1980.
  • 2
    Os autores pensam a diversidade em termos de estratégia de adaptação. Cabe indagar se em todos os casos é sempre à agricultura familiar que compete se adaptar à situação? Ou será que em alguns casos, ocupando um lugar menos dominado, esta agricultura possa pretender que, ao contrário, seja a situação que deva se adaptar a ela?
  • 3
    O trabalho de campo foi realizado nas seguintes regiões: Quebec e Saskatchewan (Canadá); Bretanha, Marais Poitevin e Causse Noir (França); Cariri na Paraíba, Leme em São Paulo e Ijuí no Rio Grande do Sul (Brasil); Zaghouan e Ras El Djebel (Tunísia); e Drobin, Steszew e Zator (Polônia).
  • 4
    A pesquisa de campo foi executada antes do final do regime socialista na Polônia.
  • 5
    O primeiro volume apresenta problemas de tradução do francês para o português, como usar o termo "exploradores" no lugar de "produtores"; "exploração" ao invés de "unidades de produção" ou "estabelecimento"; "terrenos" no lugar de "regiões" ou "áreas"; "paróquias" ao invés de "comunidades"; "país" no sentido de "região"; "categorias de superfície" no lugar de "estratos de área"; e expressões ininteligíveis como "fazenda familiar", "proprietários parceiros", "geada ou pousio da terra" e "relação no geral".
  • 6
    Abramovay já alertava para esta distinção. Cf. ABRAMOVAY, 1992.
  • 7
    A este respeito, consultar CHAYANOV, 1981.
  • 8
    Na França, a população rural perfazia 27% da população total em 1945; hoje ela não passa dos 6%.
  • 9
    A pesquisa revelou que as empresas dominam, com 53% da amostra. No Brasil, isto ocorre principalmente no sul.
  • 10
    Presente em todos os países, marginal na França e no Canadá, bem implantada no Brasil (21,5%), na Tunísia e na Polônia. Para o sul do Brasil, Ivaldo Gehlen prefere utilizar a denominação modelo caboclo ao invés de camponês. Ver GEHLEN, 1998.
  • 11
    Bem implantada em todos os países, com 31% dos estabelecimentos estudados.
  • 12
    Ao abordar esta temática, Marie-Claude Maurel comete um deslize ao afirmar que não existiria agricultura sem terra, nem produtor agrícola sem direito de uso sobre um bem fundiário. No mesmo sentido, Maria Halamska diz que a exploração familiar corresponde a uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família. Primeiro, os últimos avanços agronômicos como a hidroponia e a biotecnologia estão a indicar a possibilidade real de uma agricultura sem terra. Segundo, o Brasil é um exemplo nítido de que é possível sim agricultura (e familiar) sem propriedade e mesmo sem direito legal de uso da terra (o caso da posse, por exemplo).
  • 13
    No Brasil, o tema da pluriatividade é relativamente recente. O "Projeto Rurbano", coordenado pelo economista da Unicamp José Graziano da Silva está entabulando um amplo mapeamento da pluriatividade no país. Textos produzidos pelo Projeto podem ser encontrados na página http://www.eco.unicamp.br/projetos.
  • 14
    Curiosamente, no Brasil nós não temos a figura da "cidade rural", dotada de infra-estrutura social e administrativa, mas que nem por isto perde o seu caráter rural (transformando-se em urbana), como por exemplo o village francês. Cf. WANDERLEY, 1997.
  • 15
    No caso sul-americano, ver ROMANO, 1996.
  • 16
    Ver EHLERS, 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 1999
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