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RESENHAS

OUTROS LIVROS

O fenômeno dos regimes internacionais e seu estudo

Antonio Jorge Ramalho da Rocha

Universidade de Brasília

HASENCLEVER, A.; MAYER, P.; RITTBERGER, V. Theories of International Regimes. Cambridge : Cambridge University Press, 1997. (ISBN 0521591457 hardback; ISBN 0521598494 paperback)

A obra de Hasenclever, Mayer e Rittberger pode ser considerada leitura obrigatória para estudiosos das teorias das Relações Internacionais, especialmente para aqueles que se dedicam à análise da formação, evolução e papel desempenhado por regimes no atual contexto internacional. Em parte, a obra identifica e resume os mais importantes prismas teóricos através dos quais se analisa o fenômeno dos regimes internacionais; em parte, analisa o referencial metateórico desses prismas, a consistência lógica, a eventual comprovação empírica. Por fim, é rica em sugestões de temas para futuras reflexões a respeito do fenômeno dos regimes internacionais, servindo, a um tempo, como uma espécie de guia de leitura para os que não estão familiarizados com o tema e, para os que já estão, como um fértil repositório de indicadores das insuficiências e impropriedades dos modelos teóricos de que se faz uso para discutir fenômeno tão importante no atual contexto internacional.

O texto está escrito em linguagem simples, ocasionalmente leve e agradável, mas destina-se a iniciados. Assume conceitos básicos como sendo de conhecimento geral, talvez por ser este o único modo de realmente aprofundar-se o debate. Assim, noções de "ganhos absolutos" e "ganhos relativos", "soma-zero", cooperação e conflito no plano internacional, "sobra do futuro", entre outras, não recebem dos autores tratamento mais detalhado ou explicações didáticas (o Capítulo 2 oferece uma discussão conceitual que pode ser deixada de lado pelos que já participam do debate há mais tempo). Considera regimes como tipos de instituições internacionais, sem aprofundar as distinções entre eles e as organizações internacionais ou o Direito internacional. Ao discutir de modo mais sistemático a aplicação de algumas abordagens teóricas, entretanto, o livro registra e explica, ora no corpo do texto, ora em notas de pé-de-página, conceitos simples, de modo a tornar possível e instrutiva a leitura daqueles que pela primeira vez se debruçam sobre o tema. É o caso, por exemplo, da aplicação das teorias dos jogos ao exame dos regimes internacionais, quando os autores explicam, didaticamente, os principais jogos e a aplicação da racionalidade instrumental em diferentes níveis de análise. Não resta dúvida, contudo, de que poderão tirar melhor proveito da leitura aqueles que por ventura estejam familiarizados com as principais abordagens teóricas das relações internacionais, sobretudo pelo cuidado permanente dos autores em observar a possibilidade de comprovação empírica de cada abordagem teórica discutida, apontando muitas tentativas feitas e publicadas, bem como com a discussão da estrutura lógica de cada argumento e o modo como eles "dialogam entre si" .

Uma grande novidade apresentada por Theories of International Regimes reside na preocupação com identificar o referencial metateórico das abordagens teóricas dos regimes internacionais. Com efeito, os autores não se propõem a estabelecer um conceito básico de regime internacional que pudesse servir a diferentes abordagens teóricas; menos ainda se dispõem apenas a identificar, na obra de teóricos das relações internacionais, diferentes concepções de regime, indicando suas respectivas limitações e sua utilidade para promover um melhor entendimento deste fenômeno - embora isso também seja feito. Na verdade, o texto analisa a estrutura de construção teórica das abordagens dos regimes internacionais, especialmente sua consistência lógica interna e seu fundamento epistemológico. Ao fazê-lo, indica duas grandes matrizes metateóricas, uma de base positivista e racionalista, outra de natureza construtivista e sociológica.

Na primeira, os regimes aparecem como "regras do jogo internacional", verdadeiras representações de comportamentos que se repetem ao longo do tempo, constituindo padrões que se repetem, em certo sentido "leis", no sistema internacional, daí a noção positivista, visto que se assume a possibilidade de identificar comportamentos recorrentes no plano social, a exemplo do que ocorre nas ciências da natureza. Além disso, os regimes são vistos como determinados pelos interesses dos atores principais, os quais, ao se comportarem de acordo com essas regras, condicionam a formação das expectativas dos demais atores no plano internacional. De modo geral, os Estados aparecem como atores principais e são capazes de identificar claramente seus objetivos no plano internacional, motivo pelo qual se caracteriza como racionalista esse tipo de construção de teorias dos regimes internacionais.

Grosso modo, há dois grandes conjuntos de teorias dos regimes internacionais englobados por essa aproximação metateórica: aquelas teorias vistas como baseadas na identificação dos interesses dos atores no plano internacional, em que a abordagem neoliberal das relações internacionais ganha terreno, seja fazendo uso de categorias analíticas das teorias dos jogos1 1 Incluindo a discussão sistemática dos jogos básicos e o relato de situações, no contexto internacional, que podem ser melhor explicadas com o auxílio de analogias a esses jogos (Dilema do Prisioneiro; Caça ao Veado; Jogo do Galinha etc.). , seja identificando a funcionalidade inerente a processos de barganha entre Estados no plano internacional, com ênfase para a percepção das possíveis estruturas de ganho e para a dimensão de permanente cooperação e conflito entre os Estados no plano internacional, o que os levaria a estabelecer regras com base nas quais sua interação possa ser mediada. Dessa discussão, ocupam-se os autores no Capítulo 3 da obra, discutindo a fundo os argumentos de teóricos tais que Keohane, Axelrod, Young, Osherenko, Zürn e o próprio Mayer.

O outro grande conjunto de teorias dos regimes internacionais de orientação metateórica racionalista e positivista é caracterizado pela predominância atribuída às relações de poder na formação e eventual permanência dos regimes internacionais. A ênfase recai, aqui (Capítulo 4), na preocupação com ganhos relativos, salientada pelos realistas; em contraste com o foco nos ganhos absolutos, estabelecido pelos neoliberais. Dessa perspectiva, mais que negociados, os regimes surgem na medida em que são impostos aos atores nas relações internacionais por aqueles que dispõem de maior volume de recursos de poder. Assim, a atenção dos autores direciona-se para a teoria da estabilidade hegemônica e suas variantes (Kindleberger, Gilpin, Olson e, de modo crítico, o mesmo Keohane); para a noção de que o poder é visto ora como um meio de que se servem os Estados para atingir seus objetivos (Krasner), ora como um fim em si mesmo (Grieco), sendo que, em ambos os casos, os regimes desempenham papel crucial em seu estabelecimento e manutenção; em resumo, para uma análise realista das instituições internacionais, inclusive os regimes.

Em paralelo a esta orientação racionalista e positivista, os autores apontam teorias dos regimes internacionais construídas a partir de um prisma construtivista e sociológico. Nesse caso (capítulo 5), a dimensão cognitiva ganha relevância, e os regimes são vistos como fruto da percepção que têm os atores da realidade em que estão inseridos. Nesse contexto, privilegia-se uma visão de sociedade internacional, cujas instituições, normas e princípios mostram-se mais relevantes para o entendimento do papel desempenhado pelos regimes internacionais do que o padrão de interação dos Estados. Em outras palavras, as abordagens que se fundamentam nessa orientação metateórica defendem que a própria identidade dos atores e a definição de seus interesses no contexto internacional definem-se em função do modo como eles apreendem a realidade internacional. Assim, os Estados não estabelecem, a priori, seus interesses e as regras do jogo internacional para depois avaliar a possibilidade de sua realização no contexto internacional, mas tanto os regimes como a identificação dos interesses dos Estados definem-se socialmente. A principal distinção entre as teorias que se baseiam nessa orientação metateórica dá-se, segundo os autores, entre os cognitivistas "fracos" e os cognitivistas "fortes", sendo estes os que mais se distanciam da abordagem racionalista.

Em outros termos, os cognitivistas "fracos" encontram-se no meio do caminho entre uma visão de sistema internacional, em que os regimes surgem como conseqüência do padrão de interação de Estados racionais em um contexto anárquico, e uma visão de sociedade internacional em evolução, marcada por múltiplos atores e melhor compreendida a partir do nível de análise do indivíduo, podendo ser melhor explicada não propriamente por meio de analogias com a microeconomia, mas com esquemas de interpretação sociológica do comportamento individual. Autores como Keohane (novamente), Goldstein, Ikenberry, Nye e, principalmente, Haas têm seus argumentos analisados, com ênfase na discussão dos papéis desempenhados pelo conhecimento na construção e validação dos regimes, em especial o fato de que funcionam como mapas, pontos focais e instituições capazes de condicionar as expectativas dos atores racionais na medida em que lhes captura a atenção e lhes influencia na identificação dos próprios objetivos. Entre os cognitivistas "fracos", cabe apontar os autores ressaltam o papel desempenhado pelas comunidades epistêmicas, as quais são vistas como capazes de produzir regimes internacionais.

No que diz respeito aos cognitivistas "fortes", a discussão mostra-se mais rica; talvez porque contenha temas incomuns nas análises das teorias das relações internacionais. Com efeito, para esses autores, os regimes, entre outras instituições, definem as relações entre os papéis desempenhados pelos atores no plano internacional em função daquilo que cada ator percebe como sendo suas próprias atribuições na relação com os demais. Nesse contexto, as ações e comportamentos, as percepções e os valores de cada ator são construídos e internalizados por meio de um processo de socialização, de modo que a "sombra das instituições" substitui a "sombra do futuro". Em outras palavras, ao contrário do que supõem, ou melhor, do que assumem os racionalistas, os interesses dos atores não têm precedência sobre as regras, mas são identificados, adquirem sentido e têm existência concreta em um ambiente cuja natureza essencial é marcada não apenas pela anarquia, mas também por um conjunto de normas, regras, princípios, padrões de comportamento... Em uma palavra, por um conjunto de regimes internacionais que surgem ora de maneira negociada (a partir dos interesses dos atores), ora de maneira imposta (a partir das relações de poder), ora, ainda, de forma espontânea, visto que os atores também observam, de um lado, a legitimidade desses padrões de comportamento; de outro, o grau com que logram internalizar tais padrões. Entre os teóricos mais debatidos, estão March & Olsen, Wendt, Hollis & Smith, Kratochwill, Ruggie e Cox.

Theories of International Regimes é, pois, um excelente manual destinado a iniciados e extremamente útil a principiantes. Ao exceder o objetivo que tinham quando iniciaram a redação do livro, os autores produzem um texto cuja leitura se recomenda tanto pela síntese que faz das teorias dos regimes internacionais como pelas lacunas que aponta em cada uma dessas abordagens teóricas.

Recebido para publicação em junho de 1998.

Antonio Jorge Ramalho da Rocha (ajrrocha@nutecnet.com.br) é Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Vozes dos quartéis

Francisco César Alves Ferraz

Universidade Estadual de Londrina

CONTREIRAS, H. Militares : confissões - histórias secretas do Brasil. Rio de Janeiro : Mauad, 1998.

- "Falhamos". Repetida à exaustão pelos oficiais militares brasileiros entrevistados pelo jornalista Hélio Contreiras, a expressão revela mais do que as "confissões" do título. É um balanço histórico do regime, por quem havia nele participado, de uma maneira ou outra, entre 1964 e 1985. Convidado pelo falecido editor Ênio Silveira "a escrever um livro de depoimentos de militares sobre os erros do regime (p.35)", o autor, repórter especializado no meio político e militar brasileiro, imaginava conseguir poucos depoimentos. O número expressivo de oficiais dispostos a falar surpreendeu o jornalista. A avalanche de depoimentos conseguidos, porém, não surpreende o observador mais atento. Os militares queriam falar, querem falar. Os tempos são outros e o sentimento de desgaste institucional é grande, como também o é o sentimento comum de que, vencedora na luta contra o que classificava como subversão, a instituição militar foi flagrorosamente derrotada na batalha pela sua memória, pela sua história. Para seus membros, é preciso pois, falar, pronunciar-se, dar sua versão, angariar a compreensão da sociedade para as ações históricas de uma instituição que, em seu entender, ficou como a vilã da história do Brasil contemporâneo.

Diga-se de passagem que o acesso mais facilitado de pesquisadores em relação à instituição militar e sua memória é um fenômeno já bastante consolidado nestes últimos anos1 1 Cf. a excelente trilogia de depoimentos de militares sobre o golpe militar, a consolidação do regime, a repressão e a abertura, organizada por Gláucio A. Dillon Soares, Maria Celina D'Araujo e Celso Castro (1994a; 1994b; 1995). Organizado pelos dois últimos autores supracitados, o depoimento de Ernesto Geisel (1997) é também de grande importância para o estudo da história brasileira contemporânea a partir da visão dos militares no poder. . Todavia, diferentemente dos depoimentos a historiadores e das memórias do regime elaboradas pelos seus membros, no livro de Contreiras não se encontrará o pensamento individual ou institucional dos oficiais. Nele, as "revelações" que promete já são de conhecimento dos estudiosos do regime militar.

Problema semelhante acontece nos depoimentos selecionados. Eles foram visivelmente editados pelo autor, que escolheu os trechos com o conteúdo de auto-crítica desejado. O leitor, porém, não tem como saber sequer o que foi perguntado, dificultando inclusive refletir sobre os critérios de edição escolhidos. Para aqueles que pensam nos depoimentos transcritos como uma fonte para o estudo da memória e da história do regime militar, é uma decepção.

Os critérios de escolha dos depoentes também ficaram obscuros. Embora essa preocupação pareça bizantina para um mero livro de divulgação histórica - e é de se louvar que ele não se pretende mais do que isso - o sentido de seu conteúdo pode trair o leitor comum: será que os militares que participaram do regime estão realmente representados nestas entrevistas? Será que os escolhidos nas entrevistas refletem a diversidade de opiniões e divergências internas à instituição?

O autor escolheu, preferencialmente, os críticos do regime (em boa parte de suas biografias, consta alguma punição por se opor ao andamento da "revolução"). Mas se todos os entrevistados criticaram duramente as torturas e os excessos do regime, se todos os depoentes garantem que nunca participaram nem permitiram tais violações nas unidades sob sua responsabilidade, onde estão os "radicais", inculpados por tudo isso? Quem torturou, quem cometeu excessos, quem organizou o "Sistema", quem participou dele? Obviamente, não vamos esperar que os elementos acima citados confessem tais atrocidades, mas é de se mencionar que, na mesma época em que as entrevistas estavam sendo concedidas ao jornalista, militares da "linha-dura" (inclusive alguns abertamente acusados de violação dos direitos humanos, como o brigadeiro Burnier) eram entrevistados por historiadores da Fundação Getúlio Vargas. Alguns inclusive, como o General Adir Fiúza, defendendo a tortura "em certas circunstâncias", e revelando com detalhes a (i)lógica de comando nas ações repressivas. Saberemos muito pouco das Forças Armadas brasileiras e do regime militar se não tivermos ouvidos e atenção para os que permaneceram "duros".

A estrutura do livro é problemática. Começa por um prefácio desnecessário, inútil mesmo, do senhor José de Castro Ferreira. Em seguida, transcreve um documento, cuja origens e significados o leitor só saberá depois de ler a introdução de Contreiras, páginas após. O tal documento, de 1969, assinado pelo almirante Ernesto de Mello Baptista, tecendo considerações sobre as iniqüidades da cúpula militar no processo sucessório de Costa e Silva, é oferecido ao leitor como inédito "até hoje, quando exposto na abertura deste livro" (p. 36), mas não o é, pois já havia sido publicado, quatorze anos antes, na íntegra, pelo historiador Hélio Silva em seu livro O poder militar (1984, p. 452-457).

O livro, no entanto, tem as suas qualidades. A seu favor, possui a virtude de querer propiciar a um público maior um debate fundamental sobre nossa história mais recente (e polêmica), público esse que dificilmente se interessaria pelo arrolamento exaustivo de depoimentos e depoentes, pelo questionamento de seu discurso e seus significados. Não é, portanto, um livro de historiador acadêmico, para uso e abuso de seus pares. É obra de alguém que costuma estar na crista dos fatos, escrita de maneira imediata, impactante, voltada mais para a superfície dos fatos do que para estruturas mais densas dos processos de maior duração. Não se propõe a explicar as origens ou a essência da participação militar na política brasileira, mas tão somente ouvilos sobre um passado incômodo. Para os objetivos desta obra, longe de ser um defeito, essa é uma grande virtude. Dessa maneira, permite chegar diretamente à memória de um setor da instituição militar sobre seus pontos mais polêmicos: os assuntos recorrentes, as motivações, as interpretações, as auto-críticas, as mágoas, enfim, toda uma parte importante sobre seu próprio regime está lá, exposta ao público.

A primeira constatação, geralmente o ponto de partida dos trechos selecionados, é a de que a instituição militar como um todo, e os militares, como pessoas (especialmente os do Exército), estão com a imagem pública profundamente desgastada. Para boa parte dos entrevistados, os excessos da repressão e as mazelas das políticas econômicas e sociais do regime acabaram por encobrir as qualidades e conquistas do período militar.

Não era para ser assim, dizem os entrevistados. Lembram que, na tomada do poder em 1964, muitas lideranças políticas civis, o empresariado e as classes médias apoiaram o golpe militar - sim, vários depoentes reconhecem a tomada de poder como um golpe contra as instituições constitucionais, embora ressalvem que tal tomada de poder foi necessária frente ao "descalabro do governo e incentivo à indisciplina e desagregação dos quartéis" (p. 78, 84-87, 90, 96, 105, 120). Mas as mesmas elites que apoiaram a queda de Goulart retiraram progressivamente o apoio ao regime, quando seus apetites por poder fácil e benesses governamentais foram saciados, reclamam alguns depoentes.

Com cada vez menos apoio da sociedade política, a instituição militar no governo foi se isolando, e o espaço para os radicais se ampliando, lembram os entrevistados. Dois episódios marcariam esses espaços de uma maneira desastrosa para os anseios democráticos. O primeiro foi o Ato Institucional nº 5, praticamente uma unanimidade negativa dos depoimentos, que o taxam, no mínimo, de "exagerado" e "inoportuno". O segundo foi o episódio do impedimento da posse do então vice-presidente de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo, cuja confiança da cúpula militar caíra em desgraça após suas considerações sobre o AI-5. Era o momento, disseram alguns oficiais, de se retirar da política e sanear as Forças Armadas, cada vez menos "profissionais" e mais "partidárias". A solução autoritária, no entanto, prolongou o regime até sua exaustão.

A demasiada duração do regime é, na quase unanimidade das entrevistas, a principal causa tanto para a imagem negativa da corporação, quanto para o aparecimento dos "desvios" da "revolução". É constante o consenso entre eles de que o período militar deveria ter sido encerrado com o final do mandato de Castelo Branco, com a entrega do governo a um civil "de confiança". A avaliação do período sob o governo de Castelo Branco é bastante positiva. Não faltam elogios, seja ao "caráter democrático" do general-presidente, seja às suas realizações concretas ou potenciais. Os depoimentos deixam uma impressão de que o país seria outro, melhor, mais democrático e mais justo, com Castelo por mais tempo no governo.

Esse é um dos temas mais instigantes para pesquisas futuras: a construção, dentro das Forças Armadas brasileiras, de uma memória extremamente enaltecedora e favorável a Castelo Branco. Mesmo quando alguns fazem críticas (por sinal, nenhuma digna de atenção é encontrável neste livro), nunca o fazem de maneira desclassificante ao general cearense.

O que é curioso é que, à fria luz das evidências, as conquistas do governo Castelo Branco foram mais virtuais do que concretas: o mito do general democrata se esvai nas medidas de contenção ou simples exclusão e expurgo das possíveis oposições, bem como com as denúncias documentadas de excessos do regime ainda em seu início; o desempenho econômico e social foi muito mais discreto do que apregoa o mito. E no argumento de que os "radicais" acabaram por prejudicar o desempenho de Castelo no governo, flagrase algo mais grave: até a liderança institucional de Castelo pode ser questionada, pois não conseguia conter sequer a tropa da qual era o comandante-em-chefe.

Por que o mito é tão forte, então? Arrisco-me a pensar que pode estar relacionado à sobrevivência de um wishful thinking sobre o papel político dos militares, a preservação de uma auto-imagem idealizada, pura, benevolente e democrata sobre as motivações castrenses de intervenção política, corporificada na figura do oficial estudioso e labutador, condecorado combatente da FEB, oficial legalista que relutara em assumir a testa da "revolução", e que falecera cedo demais, quando o vírus da política mais baixa já estava contaminando todos os escalões da tropa.

Seria o caso de se verificar como os outros grupos dentro da caserna, não-castelistas, percebem esse mito, assim como os vários setores políticos civis. Mais uma vez, nota-se neste livro que a falta de mais depoimentos dos "radicais" pode comprometer suas conclusões. Nas (poucas) entrevistas que concederam, não costumam endossar de maneira tão apaixonada o mito castelista.

Nos depoimentos do livro, a culpa pelos excessos do regime recai sobre dois grupos: os militares "radicais" e a oposição que optou pela luta armada. Os primeiros são mais lembrados, pois já existiam antes da guerrilha e continuaram suas ações depois de eliminados todos os focos da luta armada. São de certa forma responsabilizados pelas ações contra os direitos humanos, pela criação de um sistema repressivo quase autônomo (principalmente os Centro de Operações de Defesa Interna-CODI e os Destacamentos de Operações de Informações-DOI) e pela transformação do Serviço Nacional de Informações num poder paralelo e muitas vezes superior aos ministérios. Embora alguns depoimentos toquem diretamente no assunto, o tema da responsabilidade institucional pelas violações dos direitos humanos é evitado. Na verdade, é o problema mais delicado de se tocar, na história recente do país. Numa instituição como as Forças Armadas, não existe (ou não poderia existir) vácuo de poder. Em outras palavras, se alguma medida é tomada, se algum crime é cometido, a responsabilidade recai sobre a chefia imediata, o comandante das operações ou da unidade militar. Hipoteticamente, não existe, portanto, qualquer possiblidade de um superior hierárquico alegar desconhecimento das ações, delituosas ou não, de seus subordinados. Se ele sabia e ficou quieto, é conivente, se não sabia, é omisso.

O problema é a aplicabilidade destes princípios nos processos da repressão durante o regime militar. A versão oficial mais corrente - e que pode ser vista em alguns depoimentos do livro - é a de que alguns membros mais radicais da corporação "extrapolaram" as regras básicas, e que a instituição não pode ser confundida com a ação autônoma de alguns elementos. Por outro lado, os mesmos oficiais entrevistados ressaltam que, embora soubessem que "excessos" existiam aqui e ali, "jamais aceitaram a tortura nas suas unidades" e "faziam questão de manter a dignidade" dos presos políticos. Ou seja: subordinados e superiores sabiam o que acontecia nos porões do regime. A questão da responsabilidade por tais ações transformase, assim, de um problema previsto no regulamento disciplinar em um problema de (ir)resolução essencialmente política.

Para tanto, a oposição armada ao regime fornece, nestes depoimentos, o espelho para justificação dos atos da corporação. Recordando os atentados, assaltos a bancos e "justiçamentos" da guerrilha urbana e rural, os militares entrevistados que abordam este tema lembram que, no fundo, era uma guerra que se estava travando, que na guerra, muitas vezes, não é possível manter o controle de tudo e que, se houve excessos, isto aconteceu dos dois lados.

Justificava-se assim, pela emergência da guerra revolucionária, a transformação de cada espaço de vivência social num campo de conflito potencial entre a "boa sociedade" e o "germe do comunismo", o que quer que isso signifique. Sem procuração da sociedade para "protegê-la", membros das Forças Armadas travaram sua guerra, à cata do inimigo interno, desfrutando no mínimo, em que pese seu métodos, da aquiescência da cúpula do regime militar. A ordem dos valores se invertia. Nas palavras de um brigadeiro, "os fins não justificam os meios. Um homem não pode torturar uma pessoa e dizer que está defendendo a democracia (p. 112)". Mas eram vozes ao vento.

Assim, independentemente de algumas vozes dissonantes, a luta prosseguiu, com os resultados que todos conhecemos. E se nos dias de hoje os membros da instituição militar se ressentem do opróbio herdado pelos seus antecessores, cabe a advertência de que se deve educar as próximas gerações de oficiais militares para a democracia, e não estimular o isolamento institucional, na crença de que "não temos nada com isso" e "quanto maior a distância deles, melhor". A distância e o isolamento sempre foram fermentos eficazes para o crescimento de uma mística de "salvadores da pátria". Foi essa mística, esse espírito de distinção e superioridade frente à sociedade brasileira, a real base para a expressão que traduziu, em uma palavra, o espírito dos depoimentos desse livro: "Falhamos".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D'ARAUJO, M. C; SOARES, G. A. D.; CASTRO, C. (orgs). 1994a. Visões do golpe : a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro : Relume-Dumará.

______. 1994b. Os anos de chumbo : a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

______. 1995. A volta aos quartéis : a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro : Relume-Dumará.

D'ARAUJO, M. C.; CASTRO, C. (orgs). 1997. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas.

SILVA, H. 1984. O poder militar. Porto Alegre : L&PM.

Recebido para publicação em maio de 1998.

Francisco César Alves Ferraz (faferraz@npd.uel.br) é Professor-Assistente do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorando em História Social na Universidade de São Paulo (USP).

Prestes por si mesmo

Marcos Vinícius Pansardi

Universidade Estadual de Campinas

MORAES, Dênis de. (org.). Prestes com a palavra : uma seleção das principais entrevistas do líder comunista. Campo Grande : Letra Livre, 1997.

Em 1998 comemorou-se os cem anos de nascimento de Luiz Carlos Prestes, que um autor, muito apropriadamente, chamou de nosso primeiro "herói popular". Esta coletânea organizada por Dênis de Moraes, esperase, deve iniciar uma série de estudos sobre a vida e o pensamento de Prestes, o nome mais importante do movimento comunista brasileiro e um dos mais importantes nomes de nosso século.

É interessante observar que não há nenhum estudo sistemático sobre a vida ou o pensamento de Prestes produzido pela academia brasileira. A magnitude da figura de Prestes, sua capacidade de gerar idolatrias e ódios, parece inibir seus possíveis candidatos a biógrafos. Quem busca conhecer a vida de Prestes terá a disposição escasso material, com pouca informação empírica e com tratamento teórico escasso.

Uma primeira tentativa de biografar nosso personagem veio à luz ainda durante o Estado Novo, patrocinada pelo PCB, e tendo como objetivo primeiro a libertação de Prestes das masmorras getulianas. Coube a Jorge Amado a incumbência de escrever uma biografia romanceada da vida do líder comunista. Calcada na estética stalinista do culto à personalidade, ela tem pouco valor historiográfico, ficando apenas como um testemunho da construção do mito do "Cavaleiro da Esperança" (cf. AMADO, 1979). Dessa mesma época há ainda o livro de Abguar Bastos (cf. BASTOS, 1946).

De sua volta do exílio, após a ditadura militar, e do seu posterior desligamento do PCB, temos dois livros de entrevistas (cf. MORAES e VIANA, 1982; NIEMAYER et al., 1983), onde Prestes desenvolve suas idéias sobre sua trajetória política e pessoal, dando-nos uma valiosa visão dos acontecimentos da época. Também desse período é o livro da segunda mulher de Prestes, Maria, que revela um lado pouco conhecido do velho líder comunista: o marido, o pai e o avô (cf. PRESTES, 1982). Pouco conhecida, mais introdutória do que fruto de pesquisas profundas é o livro de Paulo Custódio (cf. CUSTÓDIO, 1995), editado numa série dedicada a biografias de "gaúchos ilustres".

Da filha de Prestes, Anita Leocádia, tem vindo a público informações importantes para se conhecer mais sobre sua vida e pensamento. Sua tese de doutorado em História sobre a Coluna Prestes, que contou como fonte principal as memórias e depoimentos do pai, constitui-se em valioso material para conhecermos a versão de Prestes de sua participação naquele episódio fundamental da história do Brasil (cf. PRESTES, 1990). Mais recentemente tivemos a publicação de seu livro sobre a participação de Luís Carlos Prestes na Aliança Nacional Libertadora (ANL) e dos acontecimentos que desembocaram na Intentona de 1935 (cf. PRESTES, 1997).

Deve-se destacar que no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, encontra-se depositado o acervo de Prestes, à disposição dos seus futuros biógrafos (apesar de partes desse acervo ainda se encontrarem nas mãos da família de Prestes, como é o caso da série de correspondências de Prestes durante seu cárcere estadonovista, que tiveram sua publicação pela editora Vozes embargada pela família de Maria Prestes).

Por fim, pode-se lembrar o filme sobre a vida de Prestes, produzido por Toni Venturini, O velho - a história de Luiz Carlos Prestes, de 1996.

* * *

João Paulo Netto, no "Prefácio" do livro organizado por Dênis de Moraes, traça um roteiro de questões que deveriam ser respondidas em futuros trabalhos: (i) quais as relações entre Prestes e o PCB? (ii) quais seus quadros referenciais sistemáticos de idéias sobre história, economia e sociedade, e sobre a estrutura social brasileira? (iii) como pensar o papel de Prestes e do PCB nos vários momentos da história brasileira dos últimos setenta e cinco anos?

Sem dúvida, essa coletânea é um material inestimável para compor as futuras respostas a essas perguntas. Aqui estão todas as principais entrevistas do líder comunista, com exceção de uma: a fundamental entrevista que Prestes concedeu a Astrojildo Pereira, principal líder comunista na época. Nesse encontro, Prestes pela primeira vez se viu diante das idéias comunistas que abraçaria por toda sua vida. Dênis de Moraes não encontrou a referida entrevista, que seria talvez de vital importância para acompanharmos a conversão de Prestes. Faltaria ainda, a nosso ver, uma coletânea do mesmo nível que abarcasse os documentos oficiais de Prestes como dirigente comunista, suas intervenções nas questões partidárias e na imprensa do partido.

A coletânea de Moraes mostra um Prestes tão coerente em defender suas idéias, como dele se esperava, quanto crítico na condenação de seus próprios erros e de seu partido. No entanto, quem buscar em Prestes o pensador original, o teórico, vai se decepcionar. Não é nesse campo que o "herói" mostra suas qualidades. Ele não produziu teorias originais, o que não significa que não tivesse interpretações e idéias próprias, como essas entrevistas bem o demonstram.

A grande qualidade de Prestes foi a de não ter medo de questionar suas próprias verdades, de rever seus atos e pensamentos. As idéias de Prestes nascem em seus longos períodos de ostracismo, nos seus momentos de derrota. São nesses momentos que ele revê seus erros, faz as autocríticas que acabarão produzindo três grandes reviravoltas em seu pensamento. Em 1930, Prestes encontrou o marxismo e a "revolução nacional-libertadora"; em 1945, a "revolução nacional-burguesa"; e em 1980 a "teoria da dependência" e a compreensão da falência do projeto pecebista.

Tanto o "Prefácio" de João Paulo Netto, como a "Apresentação" de Dênis de Moraes partem da, talvez, única unanimidade sobre Luiz Carlos Prestes: a retidão de seu caráter e a intransigência, coerência e dedicação na defesa de suas idéias. Prestes é o homem do poema de Drummond, citado em epígrafe, aquele que permanece na "pureza dos rochedos".

Tudo começa nos ambientes familiar e militar que formaram a extraordinária personalidade de Luiz Carlos Prestes. A presença forte e dominadora de sua mãe, Dona Leocádia Felizardo Prestes, obrigada a sustentar e educar os filhos com a morte prematura do Capitão Antônio Pereira Prestes, (falecido quando Luiz Carlos tinha só dez anos de idade), infunde em Prestes uma sólida consistência moral, que o ensinou a não se deixar levar pelas seduções do meio. (Para contrabalançar a influência militar, por exemplo, Dona Leocádia não permitiu a Prestes que ficasse interno no Colégio Militar). Cedo Prestes passou a ser o arrimo da família, e o pai de suas irmãs. A vida de menino pobre o levará à vida militar (na qual só entrou com "pistolão", pois no Colégio Militar só ingressavam os filhos de coronéis ou generais), pela qual ele não demonstrava inicialmente nenhum interesse. De seu pai, Prestes quardará o exemplo de vida e, principalmente, a biblioteca iluminista (Voltaire, Rousseau, Diderot) de onde sairia o contraveneno às aulas de catecismo, proferidas pelo capelão da Escola Militar, e o tornaria sensível às idéias materialistas.

Ao juvenil senso de responsabilidade de Prestes, soma-se o precoce sentido de liderança formado a partir de sua brilhante atuação como aluno da Escola Militar onde não só se destacou como o melhor aluno de sua época, mas um dos melhores de todos os tempos daquela instituição.

Nas primeiras três entrevistas, encontraremos Prestes em seu exílio boliviano, buscando um caminho que o levasse a compreender qual a causa daquela miséria que tanto o chocou, e também aos seus companheiros de Coluna, em suas andanças pelo vasto interior do Brasil. Qual a causa da brutal opressão que sofriam as populações miseráveis do campo, vítimas de um Estado que só lhes era percebido pela ação dos cobradores de impostos e da violência policial? Da experiência da Coluna, Prestes vai conhecer um povo profundamente oprimido, nutrindo um profundo sentimento antigovernista, contudo, sem consciência política para realizar transformações de qualquer monta. Em 1928, pensa a revolução - única forma de quebrar essa máquina onipresente - como um produto da atividade revolucionária da Coluna que progressivamente desperta a consciência política nas cidades e nos campos. Já aí Prestes concebe um Estado bem diferente daquele aprendido na Escola Militar, o Estado "acima dos conflitos sociais, distribuidor de justiça e harmonizador". Compreende a revolução como uma atividade popular, e não como resultante apenas de um golpe militar. Portanto, já em rota de colisão com seus antigos companheiros, que viam a revolução como um produto das elites, substitutas de um povo inerme e submisso.

Essa visão vai facilitar a conversão de Prestes ao comunismo, conversão essa produto da leitura de OEstado e a revolução, de Lênin. Aqui a concepção de um Estado a serviço das classes dominantes acende a luz que Prestes estava procurando: "Preciso raspar os miolos e colocar uma cabeça nova no lugar. Foi a impressão mais forte que já sofri". A Coluna levantou questões sobre um país que ele não conhecia; o marxismo lhe deu as respostas que ele ansiosamente esperava.

O Manifesto de maio de 1930 separa Prestes de seus companheiros de Coluna, e rompe definitivamente suas articulações com a Aliança Liberal, ao compreender que ele e seus companheiros seriam o braço armado da burguesia dissidente. Segundo Prestes, o manifesto tinha como objetivo ser um divisor de águas entre os revolucionários e os "pseudo-revolucionários" de ocasião, todos aqueles que viam o "progresso como um processo construído sobre a exploração do povo". Já aí Prestes propõe uma revolução popular agrária e antiimperialista, uma aliança entre os setores urbanos, controlados pelo PCB, e os trabalhadores do campo, sob a influência da Coluna. Contudo, seu apelo ficará no ar, pois nem os "tenentes", nem os comunistas o seguirão. Ao contrário, será atacado violentamente por todos. Os "tenentes", em sua sede golpista antioligárquica, iriam em peso para as hostes getulistas; os comunistas, por outro lado, outrora fascinados por Prestes, sentiriam o perigo de um efeito kuomintang, o "prestismo" pequeno-burguês arrastando o PC à sua sombra.

Com efeito, esse temor não era injustificado, pois foi isso exatamente o que aconteceu. A entrada de Prestes se deu à revelia da direção "obreirista" do partido. Ela foi decidida diretamente em Moscou, onde Prestes era tido como o principal líder comunista brasileiro sem ser, ainda, membro do partido. A entrada de Prestes no PC, em 1934, transformou o provinciano partido, reduzido a pequenos núcleos urbano-sindicalistas, enfraquecido pela recente substituição de sua liderança fundadora saída dos quadros do anarquismo, por uma direção operária fraca e intelectualmente medíocre, presa fácil do prestígio "prestista" que alargava e rompia os frágeis muros da estrutura partidária. Com Prestes, o partido se torna verdadeiramente um participante do "grande jogo da política", não apenas nacional, mas também internacional. Com a ANL se torna uma força política e popular. Contudo, o partido proletário vai pagar um preço por esse assalto ao céu. Mais e mais o partido se infiltra nos quartéis, mais e mais o partido é infiltrado pelos quartéis. Seu secretáriogeral será Antônio Maciel Bonfim, o "Miranda", ex-sargento do Exército, companheiro de Prestes na prematura Liga de Ação Revolucionária (LAR). A ANL não foi uma fachada comunista, mas sim a cooptação do PC pela da ala radical (socialista-nacionalista) do tenentismo.

Em entrevistas posteriores, Prestes vai sustentar que em 1935 predominava uma visão golpista, pequenoburguesa, subjetivista. A "intentona" foi a revolução do manifesto de trinta, do combate à fascistização do Estado brasileiro, a última e mais radical manifestação tenentista.

Um longo silêncio vai ser imposto a Prestes após a derrota do movimento. O Estado Novo não vai ouvir suas palavras e sua primeira entrevista será dada logo após a saída da prisão, em 1945. Nessa entrevista já estão presentes as idéias que orientarão a política pecebista ao logo de mais de três décadas. A concepção da "revolução democrático-burguesa", formulada por Otávio Brandão na década de vinte, adotada por Prestes em seu Manifesto de trinta, agora receberá sua versão "modernizada" nos textos do "tenente" Nelson Werneck Sodré. Superando a estratégia "golpista" do tenentismo, Prestes, contudo, vai dar continuidade a suas idéias sobre a necessidade da conscientização do povo, uma necessidade pedagógica, através das liberdades proporcionadas por um regime democrático, do acordo entre as forças progressistas e da reforma agrária.

Fora o período entre a cassação do PCB, no governo Dutra (em 1947), e a morte de Vargas (em 1954), quando imperou um radicalismo "golpista", produto do fechamento do caminho democrático ao Partido, e mesmo após o golpe, a visão de Prestes vai orientar-se por duas idéias: primeiro, a necessidade de reconstruir o PCB sob bases revolucionárias; depois, a visão de que uma interpretação sobre o Brasil tem que partir da idéia de "atraso", tanto de sua estrutura sócio-econômica, como de suas estruturas culturais e políticas.

Um capitalismo de base agrária e semi-feudal, dominado pelos interesses americanos e uma estrutura política baseada numa democracia frágil e sitiada por golpistas de todas as matizes: o problema consistiria em apoiar uma coalizão progressista que garantiria a consolidação democrática, regime que permitiria a sobrevivência do frágil PCB e proporcionaria também o ascenso das forças populares (política das mãos estendidas). Esse ascenso dependeria também do desenvolvimento das forças capitalistas, que, portanto, deveria ser apoiado pelas forças progressistas ("o maior problema do proletariado é que o insuficiente desenvolvimento do capitalismo é mais problemático do que a exploração desse").

Que não se duvide da forte presença da Guerra Fria em todas essas estratégias e concepções. A luta entre os Estados Unidos e a URSS, no contexto internacional, a consolidação do bloco socialista e a crença na inevitabilidade da vitória do socialismo explica a defesa incondicional de Prestes da URSS, como também é um dos fatores de peso na construção do nacional-reformismo do PCB.

Uma das características mais fortes no pensamento prestista é sua crença no papel imprescindível desempenhado pelo elemento popular nesse processo. Desejo e realidade se confundem na interpretação do período, caracterizado por ele pela transformação das classes populares no principal ator político. Assim, ele foi o responsável pela anistia de 1945, pela eleição de Vargas, pelas lutas nacionalistas, pela vitória de Kubitschek, assim como pelo desbaratamento do golpe contra sua eleição, pela luta pelas reformas etc.

O fortalecimento da aliança com a burguesia parece também se consumar. Para Prestes, a burguesia resumiria-se, principalmente, naqueles que ele considerava seus representantes máximos: Vargas, Kubitschek, Goulart e Brizola. A crescente intimidade dos comunistas com essas lideranças demonstraria a crescente radicalização daquela classe.

Por outro lado, a lealdade àquele exército em que se formara o Cavaleiro da Esperança não desapareceu sob a ideologia comunista. Na volta de seu cárcere estadonovista, Prestes ainda pensa em voltar ao exército, idéia que progressivamente abandonará. Contudo, não abandonará, pelo menos até o golpe de 1964, sua ilusão sobre o caráter essencialmente democrático da instituição ("o exército mais democrático da América Latina!"), principalmente devido a origem pequeno-burguesa (ou seja, popular) de seus oficiais. Assim é que Prestes e o PCB são pegos completamente de surpresa em março de 1964. O "golpismo" que iniciara em 1922, resignar-se-ia Prestes, fora, afinal, a grande contribuição dos "tenentes" ao ideal militar.

O Prestes que volta anistiado em 1979 incorpora as críticas mais agudas sobre a atuação do PCB no período democrático, reconhece o irrealismo da visão democrático-burguesa, produto de uma visão simplista da situação brasileira construída a partir das conclusões do VI Congresso da Internacional Comunista de 1928. Compreende que a contradição entre nação e imperialismo não existia, pois nosso País não era uma colônia ou semi-colônia e sim um País independente; que o capitalismo já era a forma de produção dominante desde o século passado e que, portanto, a contradição principal era entre proletariado e burguesia. Renega as visões dualistas e incorpora as principais críticas dependentistas. Constata a fragilidade do partido após a crise de 1956 e sua incapacidade de responder às insatisfações de seus militantes, seu fechamento ao debate. Seu centralismo democrático serviu como fortaleza onde se enclausurou a direção pecebista.

As críticas de Prestes levaram-no a um crescente isolamento do restante da cúpula do partido, até que, no início da década de 80, após 46 anos de militância, deixa o PCB. No período que vai de sua saída do PCB até sua morte, em 1990, Prestes manterá uma intensa atividade política, cujo objetivo último é construir um verdadeiro partido revolucionário, que segundo ele, nunca existiu no País.

Na política nacional, Prestes aproxima-se do PTB de Brizola e revela opiniões muito favoráveis sobre o PT e Lula, considerado por ele como um líder de extraordinário talento. Vê nesses dois partidos as únicas alternativas viáveis para a esquerda, já que o PCB e o PC do B são considerados capitulacionistas. Mas é sobre a situação internacional que as opiniões de Prestes chamam a atenção. Prestes se transforma num crítico realista do período stalinista: "o maior mal que se poderia fazer ao marxismo", "a burocracia cometeu erros imperdoáveis", "o povo está se rebelando nesses países na medida exata da repressão que sofreu dos ditadores comunistas". O período Gorbachev recebe a aprovação de Prestes: ele "está corrigindo os erros de Stálin". Mesmo quando Gorbachev decreta fim do partido único, Prestes o apóia entusiasticamente: "nenhum partido tem esse direito", "o povo quer democracia", "o socialismo é sinônimo de democracia". Sua lealdade à URSS - "nunca falei nada porque acho que isso é um problema interno da URSS [...]" -, não é maior que sua lealdade aos ideais socialistas. Prestes não assistiu ao fim da URSS, mas suas opiniões sobre os outros países do Leste Europeu nos levam a acreditar que ele compreenderia esse fato como inevitável, e um passo adiante no caminho do socialismo.

No final de sua vida Prestes se viu, novamente, um general sem soldados. Sem partido, viu suas portas se fecharem também no PDT e no PT; foi excluído de palanques sindicais, teve seu microfone cortado pela CUT. Assim como em 1930, Prestes não temeu marchar sozinho. Afinal, suas únicas lealdades seriam, como sempre foram, acima do exército, do partido e da URSS, seu país e o seu povo.

Ao se acabar de ler a última entrevista de Prestes, só nos cabe saudar a Dênis de Moraes pela produção dessa coletânea; material inestimável, não apenas para se conhecer o pensamento e a vida de Prestes, mas também do PCB, do movimento comunista e da história brasileira desse século.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, J. 1979. A vida de Luiz Carlos Prestes : o Cavaleiro da Esperança. Rio de Janeiro : Record.

BASTOS, A. 1946. Prestes e a revolução social. Rio de Janeiro : Calvino,

CUSTÓDIO, P. 1995. Luís Carlos Prestes. Porto Alegre : Tchê.

MORAES, D. de e VIANA, F. 1982. Prestes : lutas e autocríticas. Rio de Janeiro, Vozes.

NIEMAYER, O. et al. 1983. Prestes hoje. Rio de Janeiro : Codecri.

PRESTES, A. L. 1990. A Coluna Prestes. São Paulo : Brasiliense.

______.1997. Prestes e a Aliança Nacional Libertadora : os caminhos da luta antifascista no Brasil : 1934-1935. Petrópolis : Vozes.

PRESTES, M. 1982. Meu companheiro : 40 anos ao lado de Luís Carlos Prestes. Rio de Janeiro : Rocco.

Recebido para publicação em agosto de 1998.

Marcos Vinícius Pansardi (pansardi@obelix.unicamp.br) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando em Ciências Sociais pela mesma universidade.

O sociólogo na presidência

Simone Meucci

Universidade Estadual de Campinas

"A Sociologia é a arte de salvar rapidamente o Brasil"

Mario de Andrade (apud COSTA, 1968, p. 139)

O Presidente segundo o sociólogo: entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo. São Paulo: Campanhia das Letras, 1998.

Lançado em 1998, em plena campanha para reeleição, este livro foi definido por Roberto Pompeu de Toledo como uma contribuição para o debate político-eleitoral. Tal qual os editores, preferiu imaginá-lo como um instrumento útil para os governistas e para a oposição. Ambos segmentos políticos, nos disse, poderiam com o auxílio das entrevistas, marcar suas posições no interior do debate (p.12). Desse modo, esperou justificar, a um só tempo, a imparcialidade e a importância desta iniciativa editorial.

Porém, podemos afirmar com tranqüilidade, o livro dedica-se menos ao aquecimento da discussão política do que à composição de um perfil favorável do Presidente-candidato. Tratou-se de um episódio de propaganda eleitoral de uma campanha que sequer permitiu o confronto.

Tal resultado é mérito da habilidade retórica do entrevistado, mas contou também com a contribuição do entrevistador que, embora tenha formulado questões desafiadoras, parecia movido por uma indisfarçável admiração pelo Presidente. Para Roberto Pompeu de Toledo, Fernando Henrique é afinal um homem sereno e seguro, até mesmo diante das mais sombrias perspectivas do mercado financeiro mundial (p. 8).

Esta imagem do Presidente-candidato é traçada ao longo das vinte horas de entrevista reproduzidas no livro. Fernando Henrique, conduzido pelas questões do entrevistador, nos fala sobre escravidão, democracia racial, hierarquia e mobilidade social, alianças políticas, Plano Real, globalização, violência e drogas, mídia, questão agrária, reforma do Estado, teorias da mudança social e miséria. Tais assuntos, considerados genéricos, fez questão de nos explicar Roberto Pompeu de Toledo, escapam ao cotidiano da política. Parece pois nos dizer: os temas são de domínio do cientista social.

E, com efeito, o título do livro nos faz lembrar: é o sociólogo que fala durante a entrevista. Note-se, é o sociólogo que faz aqui a campanha para o político. Por isso mesmo, o livro é uma boa oportunidade para refletirmos acerca do uso da Sociologia como capital político. Em caráter amplo deve, de fato, fazer pensar sobre a natureza da Sociologia entre nós.

Não é casual que, a exemplo da tradição acadêmica uspiana, a primeira entrevista refira-se à discussão sociológica sobre o legado da escravidão no Brasil. Fernando Henrique quer revelar-se ao (e)leitor como um conhecedor profundo das marcas indeléveis do nosso passado colonial.

Além de especialista na realidade do País, o Presidente-candidato apresenta-se como um cosmopolita, um intelectual-chefe-de-Estado que transita pelo mundo dos jantares oficiais em companhia dos mais importantes líderes políticos, em manifestações populares, nos congressos e debates científicos. Quer nos mostrar, circula livremente entre os líderes políticos, o povo, os intelectuais e cientistas.

Ostenta, nesse sentido, um invejável currículo. Longas conversas diz ter mantido com Kohl, Chirac, Willy Brandt, Li Peng, João Paulo II, Lech Walesa, Clinton, Mario Soares, Sanguinetti. Testemunhou a revolução de 68 em Nanterre onde foi professor de Sociologia Geral de Daniel Cohn-Bendict. Na Polônia, viu o nascimento do movimento Solidariedade. Foi, no Brasil, um dos organizadores do movimento Pró-Diretas-Já. Presidiu a Associação Internacional de Sociologia. Apresentou em congressos e conferências internacionais o resultado de suas investigações sociológicas. Protagonizou severos debates na CEPAL e no CEBRAP.

E não parece aqui que Fernando Henrique tenha dito algum dia era necessário esquecer o que escreveu. A cada palavra quer nos convencer que é um intelectual cujos trabalhos, resultantes do rigor da perspectiva sociológica, apenas confirmam a justeza das suas opções políticas. Oportunamente, concilia a sua obra com sua prática política.

Por isso, a entrevista confirma: ele é, sobretudo, um político. Declara-se, com efeito, apaixonado pela atividade política. Afinal, ressalta, pertence a uma família de líderes: o avô fora general e o pai deputado federal pelo PTB. Ambos "participaram de muitos episódios da história do Brasil", diz com orgulho (p. 340). Quer nos mostrar, pertence a uma linhagem de heróis democratas que lhe ensinaram, ainda na infância, a importância da política.

Parece, de fato, melhor acomodado no palácio do que na academia. Vê no exercício da política e nos políticos possibilidades e comportamentos que diz não encontrar entre os intelectuais. A comparação entre as duas atividades surpreende: a academia aparece como espaço de competição e renovação, a política como o lugar da lealdade e da repetição (p. 344).

Os acadêmicos disputam entre si, permanentemente, a originalidade de dados e argumentos capazes de renovar determinada perspectiva científica. Na vida política, por sua vez, a lealdade ao eleitor e ao partido é o traço fundamental. As rupturas e as renovações no âmbito da política, previne o entrevistado, não são favoráveis, pois podem causar um retrocesso na democracia. As mudanças devem ser executadas lentamente. Para manter-se democrata é preciso, segundo Fernando Henrique, ter paciência, aceitar o jogo político, dar explicações tranquilizadoras (p. 52).

Essa concepção da dinâmica da vida política torna recomendável alianças de grande amplitude. Fernando Henrique Cardoso, com efeito, afirma que as alianças que celebrou entre segmentos políticos aparentemente tão díspares foram, de fato, a única possibilidade de encaminhar os seus projetos políticos (p. 37). Parece ter compreendido nas lições de Sociologia: no Brasil as mudanças são apenas empreendidas sob a orientação das classes conservadoras (cf. MARTINS, 1994).

Tenta porém livrar-se da acusação de que teria se aliado aos setores de direita afirmando que não há hoje, na vida política brasileira, partidos de direita. Todos os partidos brasileiros, nos diz o entrevistado, representam igualmente a democracia e a liberdade. Nenhum político no Brasil, de acordo com Fernando Henrique, ousa se opor aos ideais de liberdade (p. 36). Tal afirmação ajuda o Presidente a ocultar as diferenças fundamentais entre os partidos que o sustentam no poder.

Por outro lado, para ele, é na vida social, e não entre os partidos políticos, que estão as forças mais resistentes aos avanços na direção de mais liberdade e mais democracia. Queixoso, afirma que entre nós a sociedade nunca fora capaz de realizar as rupturas necessárias à formação de uma ordem social democrática (p. 14).

Convém anotar: se para Fernando Henrique a academia renova mas não realiza e a sociedade é, em sua essência, conservadora e atrasada, apenas nos limites estreitos do jogo político há, de fato, a possibilidade de encaminhar o País a um bom destino. Desqualificando a academia e a sociedade ele quer nos convencer, somente no âmbito da ação política, de maneira lenta e paciente, são possíveis as mudanças em benefício do País.

Fernando Henrique nos diz, uma virtude característica dos políticos, capaz de habilitá-lo para a prática do jogo político, foi obtida por meio de sua experiência como cientista social: a "proximidade" com o povo. O desenvolvimento de pesquisas sociológicas sobre os negros e favelas treinaram-no de modo especial para "compreender o outro". Quer aqui nos convencer, qualificou-se para a liderança política através dos estudos sociológicos. É, pois, um "intelectual-povo" (p. 343).

Note-se, o conhecimento sociológico é parte fundamental da apologética discursiva de Fernando Henrique Cardoso. Não devemos esquecer, a condição de sociólogo é moeda valiosa na disputa pela Presidência, especialmente quando seu maior adversário, Luis Inácio Lula da Silva, é torneiro mecânico que ingressou na carreira política através da ação sindical, "um pau-de-arara autêntico", como o intelectualizado Presidentecandidato define seu adversário durante uma das conversas (p. 21).

É pois necessária a reflexão: se este uso da Sociologia como capital político é possível e eficaz, as razões encontramos na origem das Ciências Sociais no Brasil. Em verdade, a condição de sociólogo e de político nunca foram entre nós contraditórias. A institucionalização das Ciências Sociais na década de 30 no meio acadêmico brasileiro, particulamente em São Paulo, foi iniciativa originária da ambição de formar uma nova classe de dirigentes para compor os quadros de liderança do Estado (cf. CARDOSO, 1982). Tratava-se de um projeto político que envolvera as oligarquias dissidentes do governo federal. Tal projeto partia do pressuposto de que era necessário formar adequadamente uma nova geração de políticos capazes de liderar um país constituído por uma população "inculta", "iletrada", "emotiva". Uma geração de políticos que pudessem, finalmente, terminar a obra que os líderes da República Velha não foram capazes de concluir, qual seja, a de elevar o país à condição de nação (cf. PÉCAUT, 1990).

Havia, com efeito, uma percepção generalizada de que o Brasil era um país inconcluso, cuja formação estava atrasada em relação aos países europeus e norte-americanos. As leis da evolução nos garantiam, porém, chegaríamos à condição de país civilizado. Cumpriríamos, certamente um dia, o ideal de nação.

E para que fosse menos nervosa e longa esta espera, eram necessários bons condutores, preparados para nos fazer seguir seguros o caminho que levaria à pujança. Formados pelas Ciências Sociais, a um só tempo informados pelas leis gerais que regulam o destino das sociedades e conhecedores da realidade social nacional, os políticos atuariam como "heróis civilizadores". Os fundadores dos primeiros cursos de Ciências Sociais compreendiam, não eram mais adequados para a tarefa de realização da nação os bacharéis em Direito formados sob as Arcadas, conhecedores das leis, da oratória e da literatura. O País precisava de novos dirigentes formados pelo rigor e segurança científicas. A ficção jurídica deveria ser substituída pelo realismo da ciência. E esperava-se, sobretudo, que sob a orientação adequada dos cientistas sociais, na esfera política fossem, de fato, realizadas a razão sociológica e a nação.

O Presidente-candidato considera-se, pois, a exemplo desta concepção dos antigos "heróis-civilizadores", uma liderança legítima capaz de concluir, finalmente, a tarefa de elevação do País à nova condição de "desenvolvido". O Brasil do Presidente é também, como para a maioria de nossos intelectuais da década de 30, responsáveis pela institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, uma obra inconclusa e, por isso complexa e original, do projeto civilizatório ocidental. Numa das passagens mais significativas a este respeito ele afirma: "temos uma distância grande em relação ao mundo mais desenvolvido, mas temos algo positivo: a aspiração de sermos iguais a ele. Isto é que nos move" (p. 24). É possível observar, a aspiração de Fernando Henrique, que afirma ser também a nossa, contém o drama constitutivo das Ciências Sociais entre nós.

Com a legitimidade do saber sociológico, Fernando Henrique nos apresenta um País que vive nervosamente entre duas realidades. Entre as heranças do passado escravocrata, rural, patriarcal e a nova ordem burguesa, urbana e democrática. Em verdade, misturamos, arranjamos, combinamos de modo original estas realidades discrepantes. Entretanto, não podemos esquecer, o Presidente nos disse, não queremos ser uma civilização original: nossa aspiração é, de fato, sermos iguais aos países considerados desenvolvidos (com os quais nos compara durante toda a entrevista).

A consciência de nosso atraso histórico em relação a estes países é amenizada pela certeza de que temos vocação para o desenvolvimento. Somos, de acordo com o Presidente-candidato, um país "emergente". A tendência expansiva do sistema produtivo mundial para a periferia, nos diz Fernando Henrique com certeza de sociólogo, garante o cumprimento do ideal que aspiramos.

Com efeito, o estímulo ao desenvolvimento do mercado mundial entre nós é, para o Presidente-candidato, a possibilidade de fazer com que o País ingresse no concerto das nações desenvolvidas. A estabilidade econômica obtida pelo Plano Real permite a perspectiva otimista: "[...] está havendo mudança sem haver revolução. E está havendo o desenvolvimento" (p. 83).

O fenômeno da globalização é, nesse sentido, compreendido como uma oportunidade histórica para o desenvolvimento da nação. Segundo Fernando Henrique, a expansão mundial do capital não nos impõe uma relação de dependência, mas uma relação que permite possibilidades novas de acumulação. A globalização cria uma nova situação entre países ricos e pobres, que não repete a forma de dominação imperialista (p. 99).

A rigor, para Fernando Henrique há uma condição importante de igualdade entre todos os países do mundo globalizado: estão todos igualmente expostos aos riscos do capitalismo financeiro, única ameaça que pode, de fato, levar a cabo nossa ambição de ascendermos à condição de país desenvolvido (p. 84).

A expansão do mercado na direção dos países periféricos como o Brasil faz surgir uma nova classe média, coopta os setores excluídos e marginalizados da sociedade e expurga lentamente as nódoas que herdamos de nosso passado escravocrata e colonial. Desse modo, quer nos convencer o Presidente-candidato, a realidade atrasada do País desaparecerá, pouco a pouco, através da ação favorável do capital.

O mercado é, para o Presidente-candidato, de fato, o agente soberano que permite as transformações na vida social do país que de outro modo não foram possíveis. A possibilidade de consumo é condição de cidadania. Assim, a tarefa política do nosso mais novo herói modernizador é realizar os trabalhos de reforma política necessários para a adequação do Estado e da sociedade ao novo cenário econômico e, sobretudo, permitir a expansão do mercado mundial. Não é à toa que o Presidente-candidato firmou-se como liderança política capaz de ocupar a Presidência no Ministério da Fazenda. A ação política, dentro dessa concepção da realidade social brasileira, confunde-se com a ação econômica.

A perspectiva fundamental do Presidente-candidato, que procuramos aqui resumir, revela que padecemos ainda dos mesmos prejuízos políticos dos antigos modelos interpretativos dualistas. Em verdade, a perspectiva dualista é ainda o conteúdo real da prática política que se desenvolve entre nós. A teoria da dependência não sepultou, como acreditavam alguns, os antigos modelos dualistas. Foi, de fato, responsável por um novo dualismo (cf. ARANTES, 1992).

A exploração da imagem do Presidente como, a um só tempo, sociólogo e político, é recurso que tem sua origem na compreensão de que a realidade brasileira vive entre elementos do passado e da modernidade. Isso significa, em outras palavras, dizer que a figura do Presidente-sociólogo surge, fundamenta-se e legitima-se a partir do sentimento de dualidade que povoa o nosso imaginário intelectual. Como sociólogo, Fernando Henrique reconhece o atraso e a perspectiva favorável que as leis sociológicas apontam para o destino brasileiro. Porém, apenas como político será, efetivamente, capaz de revelar a razão das leis sociológicas. Será, pois, capaz de fazer cumprir o nosso destino.

Os prejuízos práticos desta compreensão da realidade brasileira referem-se, com efeito, à valorização dos conteúdos civilizatórios do capitalismo e à noção de que as sociedades hegemônicas encerram as condições para que sigam as mudanças nas sociedades periféricas (cf. FRANCO, 1976).

Vale lembrar, a Sociologia no Brasil sempre ofereceu bases da fundamentação teórica para uma política de construção do Estado (cf. VIANNA, 1997). Uma política que sempre se pautou na constatação de que somos uma obra inacabada e original da marcha grotesca do capital. E, nesse sentido, Fernando Henrique talvez seja, de fato, a versão mais perfeita, e tardia, do "político-sociólogo", capaz de liderar a conclusão da tarefa civilizatória do capitalismo.

Ironicamente, porém, esse antigo projeto de nossas oligarquias dissidentes foi realizado pelas mãos daqueles que imaginaram estar inaugurando um caminho novo para as Ciências Sociais brasileiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, P. E. 1992. Sentimento de dialética na experiência intelectual brasileira. São Paulo : Paz e Terra.

CARDOSO, I. A. R. 1982. A universidade da comunhão paulista. São Paulo : Autores Associados; Cortez.

COSTA, J. C. 1968. Pequena história da República. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.

FRANCO, M. S. C. 1976. As idéias estão no lugar. In: Cadernos de Debate, nº 1, São Paulo : Brasiliense, p. 61-64.

MARTINS, J. de S. 1994. O poder do atraso. São Paulo : Hucitec.

PÉCAUT, D. 1990. Os intelectuais e a política no Brasil : entre o povo e a nação. São Paulo : Ática.

VIANNA, L. W. 1997. A revolução passiva : iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro : IUPERJ; Revan.

Recebido para publicação em abril de 1999.

Simone Meucci é mestranda em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

  • 1
    Incluindo a discussão sistemática dos jogos básicos e o relato de situações, no contexto internacional, que podem ser melhor explicadas com o auxílio de analogias a esses jogos (Dilema do Prisioneiro; Caça ao Veado; Jogo do Galinha etc.).
  • 1
    Cf. a excelente trilogia de depoimentos de militares sobre o golpe militar, a consolidação do regime, a repressão e a abertura, organizada por Gláucio A. Dillon Soares, Maria Celina D'Araujo e Celso Castro (1994a; 1994b; 1995). Organizado pelos dois últimos autores supracitados, o depoimento de Ernesto Geisel (1997) é também de grande importância para o estudo da história brasileira contemporânea a partir da visão dos militares no poder.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 1999
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