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A América Latina vista do alto

RESENHAS

A América Latina vista do alto

João Feres Jr.

City University of New York

SCHOULTZ, L. Beneath the United States : a History of US Policy toward Latin America. London & Cambridge : Harvard University Press, 1998 (ISBN 067492276x; paperback: US$ 19,95)

Beneath the United States é, sem sombra de dúvida, a contribuição mais importante ao estudo da história das relações entre EUA e América Latina publicada nos últimos anos. Nesse livro, Lars Schoultz opta pela abundância de informações e pela economia da análise, o que só contribui para valorizar seu esforço acadêmico. Livros sobre o mesmo assunto recentemente publicados, como Talons of the Eagle de Peter Smith (1996), deixam muito a desejar quando comparados com o detalhe e abrangência da obra de Schoultz.

Já na introdução, o autor deixa claro que seu objetivo é analisar as políticas dos EUA em relação à América Latina e não vice-versa. Essa opção livra-o da obrigação de dar conta das diferentes histórias dos 21 países que compõem a região e da difícil tarefa de unificá-las sob o rótulo de América Latina - coisa que outros autores tentam fazer e não conseguem. Schoultz assume uma hipótese realista em termos de uma política internacional ao afirmar que a defesa dos interesses nacionais é, através de todo o período histórico em estudo, o motivo constante da política externa americana. Esses interesses são, segundo o autor, ligados às questões de segurança, política interna e desenvolvimento econômico. O realismo do autor, contudo, é matizado pela afirmação de que "por trás desses interesses existe a crença disseminada de que os latino-americanos constituem um ramo inferior da espécie humana". É nesse ponto que o livro se afasta dos textos mais tradicionais produzidos pela disciplina de relações internacionais e se aproxima dos estudos da cultura e da ideologia. Sem aderir integralmente a uma hermenêutica do complexo de superioridade americano, Schoultz oferece um material inestimável para aqueles que desejam conhecer melhor (1) as imagens produzidas nos EUA a respeito da América Latina e (2) o poder que essas imagens exercem sobre os destinos de seu próprio objeto através dos meios materiais propiciados pelo Estado e sociedade americanos. Ainda na introdução do livro, o autor cita o relato escrito por um enviado do governo americano ao Brasil em 1839: "há por aqui um triste defeito, talvez localizado nas instituições do país, talvez no temperamento e hábitos do seu povo".

Schoultz revela a atitude de superioridade americana já nos primeiros anos de existência da República. John Quincy Adams, o sexto presidente americano, tinha um parco conhecimento dos países do sul mas um grande desprezo por tudo que fosse católico e espanhol. Adams estava convencido de que os povos que habitavam o sul do continente não tinham competência para adquirir autonomia nacional. Na qualidade de Secretário de Estado do quinto presidente americano, James Monroe, Adams participou da concepção daquela que se tornaria a ferramenta ideológica mais potente da política internacional americana: a doutrina Monroe. Segundo essa declaração unilateral de intenções, "os EUA consideram toda tentativa por parte das potências européias em expandir seu sistema político sobre qualquer parte desse hemisfério uma ameaça à nossa paz e segurança […]. Consideram também qualquer intromissão com o propósito de oprimir os recém-liberados países do continente como uma manifestação de más intenções contra os Estados Unidos" (ALLMAN, 1984). O objetivo principal de tal bravata era mostrar à Sagrada Aliança que os EUA estavam prontos para resistir a qualquer invectiva trans-oceânica. Interessante é notar que os novos países do sul são tratados pela doutrina Monroe como puros objetos e não como interlocutores. Com o passar do tempo, a sedimentação ideológica promovida por muitas gerações de políticos americanos, de Quincy Adams a Bill Clinton, transformaram a "Doutrina Monroe", de discurso eminente defensivo, em justificativa de intervenção política e militar.

Sempre auxiliado por uma abundância de citações e fontes primárias, Schoultz mostra o desenvolvimento da atitude de desprezo em relação às nações do sul através dos relatos de oficiais enviados pelo governo americano àqueles países. Nesse processo, as poucas opiniões positivas eram desprezadas em nome das impressões que confirmavam a inferioridade. Produzidos em pleno século XIX e inundados com o vocabulário da época, esses textos faziam uso explícito de argumentos racistas. A história da expansão territorial dos EUA é paralela ao desenvolvimento de uma retórica imperialista expansionista no âmbito da política doméstica. Os EUA expandiram seu território primeiro através da diplomacia, como é o caso da compra da Louisiana em 1803; depois através da diplomacia e da intimidação, usadas na aquisição da Florida em 1819; e finalmente através da agressão injustificada e homicida, que rendeu ao país a anexação de aproximadamente 3 milhões de quilômetros quadrados do então território do México. A retórica do expansionismo territorial, já presente desde a fundação da República, tornou-se hegemônica ao fim dos anos 30 do século XIX. A partir da década de 40, com a formulação da teoria do Destino Manifesto, a política externa americana passa a ser um item importante da política eleitoral interna. Segundo essa teoria, os EUA são o extrato superior da civilização ocidental branca, européia e anglo-saxã, e, como tal, predestinados por Deus a assumir a liderança da espécie humana. Em suma, é na idéia de Destino Manifesto que o racismo, o imperialismo e o messianismo se encontram como elemento formador da identidade nacional americana1 1 Em Civic Ideals, Rogers Smith (1997), faz uma análise detalhada da origem e desenvolvimento dos componentes racistas e messiânicos do discurso da democracia republicana americana. .

Essa tríade, porém, não é destituída de contradições. Schoultz mostra como a aversão americana à idéia da incorporação de povos não-brancos à união acabou por brecar o expansionismo territorial, fazendo com que mesmo os aderentes mais fervorosos da causa expansionista mudassem de idéia. Uma vez que os EUA haviam se apropriado de todas as áreas contíguas às colônias originais, que eram desabitadas ou habitadas por tribos indígenas nômades e semi-nômades, só restaram territórios de colonização mais antiga, com cidades e maior população - como é o caso do restante do México e da ilha de Cuba. O horror à incorporação de contingentes humanos não-brancos acabou por unificar os políticos e oficiais de governo americano de então.

A conquista do imenso território da costa oeste dos EUA fez com que, já em meados do século, os interesses do país se voltassem para a América Central, que, por sua configuração geográfica, poderia propiciar canais de comunicação mais rápidos entre os dois oceanos. A expansão comercial americana, contudo, tinha pela frente alguns obstáculos, entre eles a influência de nações européias no Caribe. A Grã-Bretanha era na época a maior potência naval mundial e tinha uma presença marcante na região. Os EUA já vinham exercitando seu poder na área desde a metade do século, quando tripulações de piratas americanos saquearam seguidamente cidades costeiras do México, Cuba e Nicarágua, sob o consentimento velado do governo americano. Porém, foi somente ao final do século XIX, após se recobrar das severas perdas sofridas durante a guerra de Secessão, que o país partiu para uma nova política externa de expansão comercial através do intervencionismo militar em áreas contíguas. A construção de uma marinha formidável foi crucial para a implementação desse novo projeto imperialista.

Os americanos perceberam desde cedo que a Inglaterra, por estar ocupada na administração de seu império mundial, preferia acomodar os interesses de sua ex-colônia do que entrar em conflito direto com eles. O exemplo máximo desse "arranjo de cavalheiros" se deu na questão da disputa de fronteiras entre Venezuela e Guiana Inglesa. Ao ver a segurança de seu país ameaçada pela potência européia, o presidente Guzmán Blanco pediu auxílio ao governo americano, que prontamente viram na situação uma chance para reafirmarem os princípios da doutrina Monroe. Os EUA então assumiram o papel de árbitro internacional da disputa e convocaram uma comissão de negociação formada exclusivamente por ingleses e americanos, que decidiu a questão em favor da Grã-Bretanha. Foi em 20 de julho de 1885, durante esse processo de negociação, que o Secretário de Estado americano, Richard Olney, promulgou uma nota afirmando dois direitos dos EUA: o de excluir influências extra-hemisféricas e o de exercer a hegemonia no continente. Schoultz mais uma vez mostra através de discursos oficiais que o sentimento de superioridade racial foi importante para que os americanos evitassem dar apoio à Venezuela.

Cuba foi a próxima escala do novo expansionismo americano. Essa parece ter sido a primeira vez em que meios de comunicação de massa influenciaram fortemente nas decisões políticas tomadas pelos governantes do país. Exilados cubanos conseguiram atrair a atenção dos jornais americanos em uma época que a ideologia expansionista se reavivava, alimentada por noções importadas do darwinismo social. Foi nesse clima que o misterioso incidente com o Mayne ocorreu, enquanto o navio militar estava ancorado em porto cubano. A nova imprensa sensacionalista nova-iorquina, liderada pelos jornais World, de Joseph Pulitzer, e Journal, de Randolph Hearst, cobriu o fato exaustivamente por três dias e acusou a Espanha de ter perpetrado o atentado. Os EUA então declaram guerra à Espanha. No fim do rápido conflito, os americanos vencedores se apoderaram dos despojos do velho império espanhol: Cuba, Porto Rico, Guam e Filipinas. Cuba, contudo, não foi inteiramente incorporada a união e assumiu um status de protetorado sob uma constituição desenhada por agentes do governo americano. O novo expansionismo americano, que ficou conhecido pelo nome de jingoismo, teve no Presidente Theodore Roosevelt e no Senador Henry Cabot Lodge seus maiores expoentes. Roosevelt talvez seja o governante americano que mais contribuiu para a difamação pública dos povos ao sul do rio Grande e para a exaltação da superioridade racial americana.

Schoultz, em seguida, conta a história do canal do Panamá. Muita gente não sabe que o Panamá era apenas um estado da Colômbia que se "libertou" sob os auspícios dos EUA. Dois eram os caminhos possíveis para a construção de um canal de ligação entre os oceanos. Um passava pela Guatemala e outro pelo Panamá. Apesar de já ter um acordo com a Guatemala, o Congresso americano votou a favor da via do Panamá. O governo colombiano, porém, queria que o canal fosse construído por uma empresa multinacional que tivesse também capitais europeus. Isso irritou os americanos que despacharam agentes para insuflar uma rebelião na região, e depois apoiaram a revolta com o uso de navios de guerra e tropas. A primeira ação da nova nação panamenha foi conferir os direitos de construção e exploração do canal para os EUA. Ao supervisionar as obras em 1906, Roosevelt teria falado: "homens e máquinas trabalham com intensa energia, os homens brancos supervisionam a construção e operam as máquinas enquanto as dezenas de milhares de homens negros fazem o trabalho manual que não vale a pena deixar para as máquinas".

Theodore Roosevelt foi também criador da política do "porrete" (big stick), que consistia basicamente de intervenções sistemáticas em países vizinhos que estivessem atravessando processos de instabilidade política. Do período que vai de 1898 a 1925, os EUA intervieram 31 vezes em 9 países da América Central e Caribe. Cuba, Honduras e Nicarágua lideram a lista. Durante as presidências subseqüentes, de Taft e do cientista político Woodrow Wilson, o intervencionismo militar foi usado também para promover o que ficou conhecido como Diplomacia do Dólar. Tudo começou com a ameaça de intervenção francesa na Venezuela, devido a declaração de insolvência daquele país. Alemanha e Inglaterra, que também eram credores, logo seguiram a França e reiteraram seus propósitos de apelar para a força das armas para receberem seu dinheiro. Os EUA então entraram em cena propondo uma comissão de mediação que interviesse na Venezuela, supervisionasse o tesouro e cuidasse do pagamento das dívidas. A situação se repetiu na República Dominicana, só que dessa vez os americanos não demoraram em invadir o país e se apropriarem da coleta de impostos para pagar as dívidas. Subseqüentemente, o princípio de intervenção, eternizado por Roosevelt em seu corolário à doutrina Monroe, foi estendido aos credores privados americanos que passaram a usar o Estado para cobrar seus empréstimos. Segundo Schoultz, a Diplomacia do Dólar corresponde ao período da história das relações EUA-América Latina em que o Estado americano esteve mais diretamente a serviço da iniciativa privada2 2 O autor aqui comete o erro de deixar-se levar pelas aparências. Podemos argumentar que o feroz anti-comunismo do Estado americano e a corrida armamentista da Guerra Fria foram políticas muito mais poderosas de proteção do interesse do capitalismo americano do que a Diplomacia do Dólar. .

Wilson uma vez disse que iria "ensinar os latino-americanos a elegerem bons presidentes". O que aconteceu de fato foi algo bem diferente. Usando o pretexto da pagamento de dívidas e da instabilidade política, os EUA invadiram o Haiti e ocuparam o país de 1915 a 1934. República Dominicana, Nicarágua e Cuba também sofreram ocupações até mais longas. O produto final dessas intervenções foi o massacre e tortura de civis, e, no final, a instalação de "ditaduras confiáveis" que pudessem mais facilmente promover a "estabilidade política" do país em questão.

A política externa americana assumiu novos contornos durante os governos de Herbert Hoover e Franklyn Delano Roosevelt, muito devido à influência do secretário de Estado Eliah Root. Root via a "cultura latino-americana" como diferente da anglo-saxã, de certa maneira inferior, mas também dotada de características positivas que faltavam aos americanos. A partir da quarta conferência do Bureau Internacional das Repúblicas Americanas, organismo que precedeu a OEA, os países do sul começaram a pressionar pela aprovação do direito de não-intervenção, cláusula a qual os EUA se opunham. F.D. Roosevelt lançou as bases da chamada Política de Boa Vizinhança, que, entre outras coisas, retirou os marines dos países centro-americanos que sofriam intervenção, estreitou laços diplomáticos com os países sul-americanos e inseriu os organismos multilaterais de negociação na pauta da política externa americana. Com a colaboração do milionário Nelson Rockefeller, Roosevelt criou uma agência de intercâmbio cultural com a finalidade de melhorar a imagem dos EUA na América Latina, até então desgastada pelas inúmeras intervenções militares. Essa campanha de propaganda tinha como objetivo também minimizar a influência do nazi-fascismo na região, que, segundo Rockefeller, crescia a cada dia.

A II Guerra Mundial foi, porém, um marco divisor nas relações entre as duas regiões. Ao saírem dela vitoriosos, os EUA afirmaram-se definitivamente como potência mundial e potência hegemônica do hemisfério ocidental. As consequências não tardaram a ser sentidas pelos seus vizinhos do sul. A América Latina foi relegada à condição de mais uma área de influência na geopolítica global do pós-guerra. De fato, os EUA já haviam conquistado a hegemonia na região antes da guerra e nunca tiveram grandes problemas em mantê-la. Isso levou os americanos a, num primeiro momento, aumentarem as pressões pela democratização dos governos de toda a região. Dessa vez a influência americana fez-se sentir até em países mais distantes e maiores como o Brasil e a Argentina. O embaixador dos EUA no Brasil, Adolf Berle, agradeceu a participação do país na guerra, mas pediu a convocação de eleições para presidente. Na Argentina, o embaixador americano Spruille Braden usou de todos os meios para evitar a eleição de Juan Perón nas eleições de 1946, interferindo abertamente na política interna daquele país. Ao constatar que a derrota era inevitável, Braden, que até então acusava Perón de colaboração com o Nazismo, escreveu para o presidente americano: "agora, os comunistas estão ativamente pulando no vagão do peronismo".

A atitude de Braden sinalizou o fim do curto período em que os americanos tentaram usar do imenso poder recém-conquistado para apoiar regimes democráticos no continente. O ensejo democrático sucumbiu ao anticomunismo, que rapidamente se tornou a ideologia dominante nos EUA do pós-guerra. Já em 1946, o conselheiro do Departamento de Estado americano e autor da teoria da contensão, George Kennan, escreveu de Moscou denunciando os pretensos desígnios expansionistas soviéticos. Alguns dias depois, Winston Churchill discursou contra a "cortina de ferro". Truman criou em 1947 o "Programa da Lealdade", que perseguiu comunistas infiltrados na burocracia do Estado americano. Em 1950, o Senador republicano Joseph McCarthy começou uma feroz campanha de caça aos comunistas em todos os setores da sociedade daquele país. Segundo Schoultz, a paranóia anticomunista rapidamente atingiu os burocratas americanos alocados em países da chamada América Latina. Denúncias de infiltração comunista começaram a chover de todos os cantos do continente. Contribuindo para acirrar o clima de caça às bruxas, a campanha vitoriosa do republicano Dwight Eisenhower à presidência, em 1952, tinha como ponto forte a denúncia das imaginárias inclinações socialistas dos democratas. O povo o elegeu.

Logo após a eleição de Eisenhower, seu irmão, Milton, fez uma longa peregrinação pela região e voltou com as seguintes conclusões: (1) a América Latina é pobre mas sequiosa de desenvolvimento; (2) o comunismo tem chances de prosperar na região através da infiltração, mas não da agressão direta. Com esse diagnóstico e o anticomunismo como valor máximo, a política externa americana em relação à região deu entrada na Guerra Fria. Como o fim da pobreza na região estava fora dos interesses e pretensões dos republicanos, a luta contra a infiltração comunista tornou-se a ordem do dia. A Guatemala foi a primeira vítima do Grande Irmão do Norte. O presidente eleito, Jacobo Arbenz, promoveu uma reforma agrária que acabou por contrariar os interesses de uma grande empresa fruticultora americana instalada no país, a United Fruit Company. Arbenz foi acusado de comunismo e removido do poder por uma milícia golpista organizada pela CIA e armada pelo exército americano. Outra política adotada pelo Departamento de Estado americano foi a cooperação com ditadores anticomunistas já instalados, como era o caso, por exemplo, de Manuel Odría no Peru, Perez Jiménez na Venezuela e Somoza na Nicarágua - todos foram agraciados com a maior comenda do governo americano, a Legião do Mérito, pelos valorosos serviços prestados à espécie humana. Schoultz mostra mais uma vez, através de inúmeras citações de fontes primárias, que a colaboração com ditadores "confiáveis" se tornou o carro chefe da política externa EUA-América Latina.

A revolução cubana veio acentuar ainda mais a insegurança americana. Tentando uma aproximação com os EUA, Fidel foi a Washington e conversou com o então vice-presidente, Richard Nixon. Ao fim da reunião, Nixon concluiu que o líder cubano estava "definitivamente sob o feitiço do comunismo". Em 1961, o democrata John Kennedy foi eleito presidente com o apoio dos cubanos exilados da Flórida. A política de Kennedy em relação a América Latina assumiu duas facetas. Por um lado esse presidente lançou a Aliança para o Progresso, dando início a uma fase de investimentos e ajuda financeira ao continente; por outro, Kennedy aperfeiçoou as atividades de espionagem, contra-inteligência e colaboração militar. Os mecanismos de intervenção aperfeiçoados por Kennedy foram usados pelo seu sucessor, Lyndon Johnson, para intensificar a cruzada contra o comunismo. Em 1964 foi o Brasil que recebeu apoio para o golpe. A Argentina seria a próxima vítima em 1966. Da sequência de golpes militares que transformaram quase a totalidade dos países do continente em ditaduras anticomunistas, Schoultz analisa mais detidamente a participação dos EUA no caso chileno, que em muitos aspectos se assemelha ao brasileiro: intensa colaboração militar, uso de empréstimos discriminados para financiar políticos golpistas, infiltração e propaganda golpista, garantia de envio de tropas em caso de resistência etc.

Os governos Carter, Reagan e Bush não são tratados em detalhe, provavelmente porque o autor já os analisou em obras passadas (SCHOULTZ, 1981; SCHOULTZ, 1987). Carter diminuiu os apoio às ditaduras confiáveis e foi responsável pela inserção da questão dos direitos humanos na pauta da política internacional americana. Foi derrotado por Reagan que o acusou de ter perdido a Nicarágua para os "vermelhos". Reagan promoveu uma das mais ferrenhas cruzadas anticomunistas da história do país, financiando o massacre de nicaraguenses e salvadorenhos em nome da "liberdade e do livre mercado". Bush foi apenas um seguidor um pouco mais apagado, mas responsável pela frase mais sonora do livro, na qual compara Daniel Ortega da Nicarágua a um " indesejável cachorro vira-latas que se intromete em uma festa de jardim". É com essa citação que o autor conclui o livro, argumentando que as atitudes dos americanos em relação aos seus companheiros de continente não mudaram muito desde o tempo de Quincy Adams.

Beneath the United States não deixa de ter seus problemas. Um deles é a excessiva extensão do assunto abordado. As 475 páginas do livro não bastam para contar em detalhe duzentos anos de história. Schoultz coletou material suficiente para uma obra em múltiplos volumes, o que daria mais espaço para a análise de detalhes que são simplesmente deixados de lado pelo autor. Outro problema é a falta de um tratamento interpretativo rigoroso dos textos primários apresentados. Uma vez que o argumento principal de Schoultz é que a imagem que os americanos tem de seus vizinhos é determinante na formulação de sua política externa, seria necessário estudar esta imagem mais a fundo, traçar suas origens e seu desenvolvimento, em suma, trabalhar também no nível da história das idéias. Seria esse sentimento originário da centenária aversão que os ingleses alimentaram pelos espanhóis? Qual a relação entre essas imagens e as teorias racistas do século XIX? Qual é o contexto ideológico em que o conceito de América Latina, que surgiu na segunda metade do século XIX, foi incorporado ao discurso oficial americano? Schoultz não aborda essas questões. Em suma, como historiador das idéias ele falha por ser excessivamente "cientista político"; muito ligado aos fatos mas não à análise do texto. Como cientista político, porém, ele realmente se destaca dentro do cenário da academia americana. Schoultz não se seduz pela procura de "regularidades" e, portanto, evita violentar seu objeto. O autor não deixa de expressar claramente suas preferências políticas, que são bem à esquerda do mainstream da Ciência Política americana. Para fechar o livro, o autor nos apresenta uma extensa bibliografia, que pode ser encontrada em detalhes e em versão comentada na webpage http://www.unc.edu/~schoultz/bibliography.html. Em suma, dentro do contexto atual da "Ciência Social da América Latina" produzida nos EUA, Shoultz é "as good as it gets".

BENEATH THE UNITED STATES

Recebido para publicação em setembro de 1999.

João Feres Jr. (jferes@worldnet.att.net) é Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando em Ciência Política na City University of New York (CUNY).

  • ALLMAN, T. D. 1984. Unmanifest Destiny : Mayhem and Illusion in American Foreign Policy - from the Monroe Doctrine to Reagan's War in El Salvador. Garden City, NY : The Dial Press.
  • SCHOULTZ, L. 1981. Human Rights and United States Policy toward Latin America Princeton : Princeton University Press.
  • SCHOULTZ, L. 1987. National Security and United States Policy toward Latin America Princeton : Princeton University Press.
  • SMITH, P. H. 1996. Talons of the Eagle: Dynamics of US-Latin American Relations. New York : Oxford University Press.
  • SMITH, R. 1997. Civic ideals : Conflicting Visions of Citizenship in U.S. History. New Haven : Yale University Press.
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    Civic Ideals, Rogers Smith (1997), faz uma análise detalhada da origem e desenvolvimento dos componentes racistas e messiânicos do discurso da democracia republicana americana.
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    O autor aqui comete o erro de deixar-se levar pelas aparências. Podemos argumentar que o feroz anti-comunismo do Estado americano e a corrida armamentista da Guerra Fria foram políticas muito mais poderosas de proteção do interesse do capitalismo americano do que a Diplomacia do Dólar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Nov 1999
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