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Em busca do tempo perdido: utopia revolucionária e cultura engajada no Brasil

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Record : São Paulo/Rio de Janeiro, 2000.

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO:

UTOPIA REVOLUCIONÁRIA E CULTURA ENGAJADA NO BRASIL

Marcos Napolitano

Universidade Federal do Paraná

Marcelo Ridenti, professor de Sociologia na UNICAMP, vem se constituindo como uma referência importante na historiografia da esquerda brasileira. Se o seu livro anterior — O fantasma da revolução brasileira (Unesp, 1995) — já apontava, em parte, para a importância da relação entre cultura, ideologia e política, no seu trabalho mais recente — Em busca do povo brasileiro — ele aprofunda essa relação para tentar "desvendar os imaginários e as ações dos artistas e intelectuais de esquerda, embasados nas classes médias, seus meios artísticos e intelectuais" (p. 14). Como espectro principal desse imaginário, talvez mais um "fantasma" da fracassada Revolução Brasileira, surge o "povo". Ridenti defende a idéia de que o superdimensionamento da categoria "povo" nos anos 60, recorrente no imaginário da esquerda, seu "mesmo" e seu "outro" a um só tempo, foi uma manifestação tardia do "romantismo revolucionário".

Apoiado nesse conceito, desenvolvido por Michel Löwy (1995), Ridenti partilha da perspectiva de que o romantismo é uma "visão social de mundo [...] reação contra o modo de vida na sociedade capitalista e crítica à modernidade", feita a partir de dentro (p. 26). Paradoxalmente, o romantismo valoriza o indivíduo (subjetividade, voluntarismo) e a comunidade na qual se inserem os indivíduos, vista como conjunto orgânico, vocacionado para a realização de uma utopia histórica. Nesses termos — mistura de ativismo voluntarista e visão monolítica e idealizada das classes populares — é que deve ser analisada a relação da esquerda brasileira com as massas, atores coletivos da revolução. Assim, um certo marxismo "romântico-revolucionário" (o autor alerta para o fato de que nem todo marxismo é romântico, como afirma uma certa corrente liberal-pragmática) deu o tom de nossa (e outras) revoluções, sobretudo no Terceiro Mundo. Como caraterísticas desse "romantismo revolucionário", Ridenti destaca a existência de "vestígios nostálgicos da construção da utopia do futuro, aliado ao voluntarismo político" (p. 65), cujo modelo de "homem novo" revolucionário estava no passado, no homem rural, "autêntico homem do povo, não contaminado pela modernidade urbana capitalista" (p. 24). Fechando seu campo de definições conceituais, Ridenti afirma que o romantismo das esquerdas "não era uma simples volta ao passado, mas também era modernizador".

O livro estrutura-se em torno de alguns blocos temáticos. No primeiro capítulo, Ridenti discute o contexto político-cultural no Brasil dos anos 60, a relação entre a "revolta e a melancolia", sintetizada na tensão entre modernização capitalista e valores nacional-populares, finalizando na breve análise do campo artístico engajado, como expressão das "novas classes médias", produto mesmo da modernização urbano-industrial.

No segundo capítulo, "a grande família comunista nos movimentos culturais dos anos 60", Ridenti descreve a chamada "hegemonia" do PCB no campo artístico-cultural brasileiro, processo que vinha desde os anos 30, com o surgimento dos escritores regionalistas engajados e atinge o seu ápice na primeira metade dos anos 60, com a criação do Centro Popular de Cultura, da UNE.

O golpe militar de 1964 abala essa "hegemonia" do PCB dentro do campo cultural das esquerdas e leva, sobretudo a partir de 1967, às dissidências no próprio partido, ao lado da emergência de outras correntes e grupos. O terceiro capítulo propõe-se a analisar a cultura como o espaço privilegiado de revisão ideológica e de crítica política das "ilusões" comunistas. Mas, na prática, esse capítulo concentra-se na história das dissidências comunistas e traça um painel dos grupos e cisões da esquerda brasileira, no final dos anos 60, com sua infinidade de siglas, manifestos, críticas e auto-críticas. Ridenti procura mapear a presença de artistas e intelectuais nesses novos grupos, todos, segundo ele, expressões de um "romantismo revolucionário" cada vez mais radicalizado.

Os capítulos IV e V, um pouco deslocados na minha opinião, analisam a trajetória de dois artistas emblemáticos dos anos 60 e 70: Chico Buarque e Caetano Veloso. É curioso que Ridenti eleja, como foco da sua análise, duas obras literárias produzidas pelos compositores em questão — Benjamim (Chico Buarque) e Verdade tropical (Caetano Veloso), complementadas por poucas canções e algumas entrevistas, para analisar as contradições e inserções do artista crítico e engajado, "herdeiros do romantismo" dos anos 60, no sistema cultural hegemônico.

Finalmente, no capítulo VI, um dos mais originais e interessantes do livro, Ridenti procura analisar os ecos do romantismo revolucionário nos anos 70, a partir do que ele chama de "esboço de contra-hegemonia" da esquerda no sistema cultural como um todo, logo diluída pela força da indústria cultural. Nesse capítulo, o autor aponta para uma dicotomia que teria tomado conta de alguns artistas e intelectuais de esquerda, a partir da derrota da Revolução Brasileira: mergulhar nos "movimentos sociais" ou ocupar o espaço no mercado, na "indústria cultural", que se abria para uma boa parte deles.

O livro se movimenta num quadro cronológico que vai de 1958 até (aproximadamente) 1984, ou seja, da defesa comunista da aliança de classes "populista", tal como referendada na famosa Declaração de Março do PCB, ao fim do regime militar. Se no primero momento desse período, que podemos localizar entre 1958 e 1972, assistimos à ascensão e à derrota da Revolução Brasileira, no segundo (boa parte dos anos 70 e 80) Ridenti enfatiza a "cisão fáustica" que tomou conta dos intelectuais: manter-se crítico ou aderir ao sistema, mesmo tendo consciência de estar vendendo a alma ao demônio (leia-se: participar do mercado). Apesar do esforço que Ridenti faz para relativizar essa dicotomia, que se tornou quase um lugar-comum na historiografia da (recente) cultura brasileira, a idéia de que o artista-intelectual romântico diluiu-se na indústria cultural, com todos os prejuízos político-ideológicos desse processo, ainda dá o tom geral do seu ensaio. Na minha opinião, este é um dos pontos que devem ser revisados pela historiografia, na medida em que os trabalhos sobre os artistas e intelectuais engajados dos anos 60 aprofundem-se e se verticalizem, analisando cada área de expressão, cada trajetória individual, cotejada com as questões sociológicas e historiográficas mais gerais. Nesse sentido, defendo a necessidade de uma revisão crítica urgente das bases historiográficas sobre as relações entre cultura e política dos anos 60, que vá além das perspectivas lançadas por Roberto Schwarz (1978), no seu artigo seminal de 1970.

Justamente, um dos problemas do ensaio, ao menos na sua interface historiográfica, são as bases heurísticas. Ridenti baseia sua análise em depoimentos exclusivos e entrevistas publicadas dos "artistas e intelectuais" de esquerda que, de uma forma ou outra, ele enquadra como "românticos". A lista é enorme, com destaque para Sérgio Ferro, Ferreira Gullar, Celso Frateschi, Renato Tapajós, Antônio Callado, entre outros. Ridenti trabalha com as obras produzidas por eles apenas de maneira ilustrativa e marginal, abordagem que é assumida logo no início do trabalho em tom defensivo, diga-se. Portanto, a fala dos próprios protagonistas funciona como a medida para a análise da trajetória histórica em questão. Nesse sentido, fica a questão: "romântica" não seria a memória da derrota revolucionária?

Por outro lado, identifico-me com Ridenti quando ele tenta ir além da relação fácil entre cultura política "nacional-popular" e "populismo", ou ainda quando critica a oposição, vulgarizada pela crítica de arte, entre "engajamento" arcaico (sintetizada pelo CPC) e "vanguarda" moderna (sintetizada pelo movimento tropicalista). A complexidade da cultura engajada de esquerda no Brasil, sobretudo entre os anos 50 e 60, não pode ser reduzida a um simples "álibi" para mascarar a luta de classes e tensões internas dentro da sociedade nacional, pura mistificação ideológica da esquerda nacionalista, crítica que fez muito sucesso no início dos anos 80, disseminada no seio das próprias esquerdas.

Um dos bons momentos do ensaio é quando Ridenti tenta responder a um enigma que persegue a todos que se propõe a analisar a relação entre cultura e poder no Brasil: por que os artistas ("populares") são tão requisitados no Brasil, dentro da esfera pública e política? Para responder a essa questão, Ridenti cita Francisco de Oliveira (1988), quando este afirma que: "A trajetória de artistas e intelectuais de esquerda [...] é paradigmática daquilo que Francisco de Oliveira chamou de super-representação das classes médias na política brasileira, diretamente proporcional às dificuldades de representação das outras classes" (p. 52). Mas enquanto Oliveira defende que as classes médias se "dessolidarizaram" com as classes trabalhadoras, Ridenti matiza tal afirmação, mostrando que certos artistas e intelectuais se solidarizaram com aquelas classes, arvorando-se como seus porta-vozes ou substitutos (p. 52). Assim, o autor propõe-nos como resposta àquela questão três fatores: a) crescimento da indústria cultural, hiperdimensionando suas figuras públicas; b) tradicional postura crítica ao capitalismo e c) dificuldades de identidade e representação de classe, especialmente as subalternas.

Como vemos, o desenvolvimento da análise de Ridenti ainda está lastreada na idéia da "pedagogia" política, "equivocada porém honesta", desempenhada por "intelectuais" junto ao "povo". "Equivocada" porque romântica; "honesta" porque revolucionária. Até o golpe de 1964, diz a historiografia do período, esse circuito até que teria funcionado. Depois disso, os intelectuais isolaram-se (ou foram isolados pela repressão), voltando-se para a indústria cultural, que absorvia suas obras e pensamentos críticos de maneira enviesada, pois direcionada ao consumo da classe média. Mesmo a vanguarda tropicalista teria esse destino "fáustico", apesar do seu criticismo alegórico-hermético. Mas Ridenti se diferencia em relação aos ensaístas do período, na medida em que não vê uma trajetória histórica inexorável entre o engajamento "romântico" dos anos 50 e 60 e a "ideologia nacional-popular de mercado, legitimadora da modernização conservadora da ordem social vigente" (p. 324). Essa tese afirma que o nacional-popular de esquerda, no Brasil, foi um dos fundamentos do mercado nacional de bens culturais, como atestam as trajetórias de sucesso da Música Popular Brasileira e as novelas da Rede Globo, não só herdeiras de uma certa dramaturgia de esquerda, mas desenvolvida por comunistas de "carteirinha" (Dias Gomes, Oduvaldo Viana Filho, Ferreira Gullar).

Ridenti tenta responder a esses ensaístas, representados por Renato Ortiz (1988) e Sérgio Paulo Rouanet (1988): "Não me parece que a indústria cultural brasileira tivesse necessariamente que transformar em ideologia as utopias do nacional-popular e do tropicalismo nos anos 60 [...]. Esses movimentos poderiam ter redundado em algo diferente do vanguardismo nacional-popular de mercado da indústria cultural brasileira, se as circunstâncias históricas mais gerais e as lutas políticas tivessem tomado outra direção" (p. 328).

Até aí tudo bem. O problema é quando Ridenti vai buscar em Frederic Jameson (1994), e em seu conceito de "atomização reificada", a explicação teórica para a diluição da utopia nacional-popular "romântica" na ideologia pragmática de mercado. Conforme Jameson, "a criação cultural autêntica depende, para sua existência, da vida coletiva autêntica, da vitalidade do grupo social 'orgânico', qualquer que seja a sua forma [...] o capitalismo sistematicamente dissolve o tecido de todo o grupo social coeso, sem exceção, inclusive a sua própria classe dominante e, desse modo, problematiza a produção estética e a invenção linguística cuja fonte é a vida grupal" (p. 350).

A assertiva de Jameson é simplista e romântica. Confunde duas ordens de fenômenos distintos. Em minha opinião, a diluição da expressão cultural identitária não tem relação direta com a crise da arte engajada dos anos 50 e 60 (seja a vertente nacionalista, ou seja a vertente vanguardista, categorias que demandariam maior problematização). O próprio capitalismo, ao colocar o problema da modernização e seus corolários (modernidade e modernismo), mobilizou, dialeticamente, projetos políticos alternativos à modernização liberal-burguesa. A crise da modernidade capitalista e a abertura histórica por ela proporcionada (a sensação de perda de referências espaço-temporais) é que apresentam para intelectuais e artistas a necessidade de intervenção na esfera pública e a reorganização das bases simbólicas da vida social.

Portanto, a razão para a crise da arte engajada e o esgotamento das utopias pode não ser a "atomização reificada", mas a paulatina incorporação da "esfera pública", espaço privilegiado do artista engajado, na mídia e na indústria cultural. Assim, o que entrou em crise foi a própria noção clássica de esfera pública (que é completamente diferente de "grupo social coeso" aliás, é o seu oposto, pois pressupõe conflito e consciência crítica).

Em suma, a arte engajada brasileira estaria ligada à ordem de fenômenos da modernidade (ou melhor, das tensões advindas da modernidade e seu "entrecruzamento de temporalidades" na América Latina, e da peculiar configuração do "povo/nação" na esfera pública entre nós) e não seria apenas uma manifestação de "romantismo revolucionário", eco tardio dos valores utópicos e anticapitalistas do século XIX. Não quero minimizar ou adocicar o impacto da indústria cultural, via de regra nociva para a vida cultural brasileira. Mas chamo a atenção do leitor para um fenômeno que ainda precisa ser melhor estudado, não só em amplitude mas a partir de objetos e temas específicos: as implicações estéticas e ideológicas do entrecruzamento da cultura (e da arte) engajada de esquerda com a indústria cultural no Brasil e as formas de apropriação cultural que este fenômeno ensejou, sobretudo junto à classe média.

Um ponto a ser levado em questão é que a cultura de esquerda não visava apenas a "ir aonde o povo está". As classes populares formavam um interlocutor distante e idealizado, mas que, na minha opinião, eram secundárias em relação a um outro interlocutor: a própria classe média, classe de origem dos artistas e intelectuais. Neste caso, o objetivo era educar a própria classe média e seus extratos mais intelectualizados, realizando uma pedagogia cívica e sentimental sobre as coisas do Brasil. Se essa perspectiva estiver correta, podemos ver a ocupação da indústria cultural pela arte de esquerda não como uma "cisão fáustica", mas como expressão das mudanças da cultura política de esquerda, ao longo dos anos 60 e, sobretudo, 70: na cultura, a categoria "povo" cede espaço para a categoria "público" e na política a "nação" se vê ofuscada pela idéia de "sociedade civil", como espaço privilegiado de atuação do intelectual (CANCLINI, 2000).

Essa clivagem político-cultural, aliada aos traumas da derrota revolucionária e à crise do conceito clássico de esfera pública (na qual a capacidade de articular idéias e palavras era a medida do poder do intelectual), parece ter incrementado uma verdadeira crise de identidade na auto-imagem do artista-intelectual de esquerda que passou a se debruçar sobre a sua trajetória ora de maneira cínica (negando seu passado em nome de um realismo político), ora de maneira condescendente (afirmando um passado romantizado e puro). O ensaio de Ridenti nos oferece um mapa quase completo destes últimos. E na medida em que provoca uma série de questões ao leitor mais atento, das quais explicitamos algumas, é uma contribuição importante para entendermos a peculiar relação entre cultura e engajamento político na história recente do Brasil.

Recebido para publicação em 30 de junho de 2001.

Marcos Napolitano (napoli@cosmosnet.com.br) é Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANCLINI, N. 2000. Culturas híbridas : estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São Paulo : EDUSP.

EVANS, S. 1980. Personal Politics : The Roots of Women's Liberation in the Civil Rights Movement and the New Left. New York : Bantam Books.

JAMESON, F. 1994. Reificacão e utopia na cultura de massa. Crítica Marxista, São Paulo, nº 1, p. 1-25.

LÖWY, M. & SAYRE, R. 1995. Revolta e melancolia. O Romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis : Vozes.

OLIVEIRA, F. 1988. Medusa ou as classes médias e a consolidação democrática. In : O'DONNELL, G. & REIS, F. W. (orgs.). Dilemas e perspectivas da democracia no Brasil. São Paulo : Vértice.

ORTIZ, R. 1988. A moderna tradição brasileira. São Paulo : Brasiliense.

ROUANET, S. P. 1988. Nacionalismo, populismo, historismo. Folha de S. Paulo, 12.mar., p. D-3.

SCHWARZ, R. 1978. Cultura e política no Brasil : 1964/1969. In: _____. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro : Paz e Terra.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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