Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

DOSSIÊ BRASIL: ANOS 90

Apresentação

Maria Antonieta P. Leopoldi

Este volume 18 da Revista de Sociologia e Política traz o tema Brasil: anos 90. Ele procura contribuir para melhor entendermos a década que correspondeu a um dos períodos de maior trans-formação do Brasil no século XX. Apesar de estarmos ainda muito próximos, já é possível uma visão em perspectiva, buscando fixar as principais linhas de mudança.

Os seis artigos aqui publicados avaliam as transformações do Estado brasileiro e de seu papel na economia a partir da análise de aspectos como: a descentralização do sistema de saúde, a privatização de empresas públicas, a quebra dos monopólios estatais em áreas como petróleo, gás, energia e telecomunicações, a criação de agências reguladoras, a política industrial e a guerra fiscal.

Antônio Junqueira Botelho sustenta que as agências reguladoras do petróleo (ANP), das tele-comunicações (ANATEL) e da energia elétrica (ANEEL) são herdeiras dos grupos de pesquisa em tecnologia que foram desestruturados com a privatização das empresas estatais, trazendo nova luz sobre os efeitos dessa alteração nas prerrogativas do Estado. Na mesma linha de argumentação, José Eduardo Pereira Filho analisa as mudanças no setor de telecomunicações nos anos 90 à luz do modelo estatal que se estruturou com o regime militar. Seu estudo de caso sobre a Embratel evi-dencia o difícil ajuste de uma grande empresa estatal, que ao ser privatizada defronta-se com uma ordem competitiva. Por sua vez, o trabalho de Ricardo César Rocha da Costa avalia em detalhe a forma como se deu o processo de descentralização da política de saúde ao longo da década de 90 e as ligações desse processo com a reforma do Estado e a política de ajuste fiscal do governo Cardoso.

O debate atual sobre as políticas públicas mostra que nem sempre existe uma identidade entre a descentralização da gestão de políticas e as práticas de democratização. Ricardo Rocha da Costa acrescenta a esse achado a idéia de que descentralizar políticas sociais não significa atribuir a elas uma centralidade na agenda de reformas do governo. A descentralização funcionou também como um instrumento, como uma via para o ajuste fiscal, desonerando o governo federal de gastos que fo-ram, então, transferidos para o pagamento dos encargos da dívida.

No que tange à economia brasileira, o artigo de Miguel Matteo e Jorge Tapia sublinha o desloca-mento do complexo industrial paulista da grande São Paulo para uma área espacialmente mais am-pliada em direção a três eixos: interior (Campinas-Sorocaba), litoral (Santos) e Vale do Paraíba (São José dos Campos). Contudo, o que se observa é que esse movimento amplia a área industrial para o entorno da região metropolitana de São Paulo, ao contrário de esvaziá-la. Juntamente com a grande São Paulo, esses três eixos representam 90% do valor produzido pela indústria paulista e quase a metade do total da produção industrial brasileira. Esse processo de ampliação do espaço industrial, chamado pelos autores de "descentralização centralizada", é uma das características fundamentais da década de 90. Importante é também a observação de que esse processo de descentralização não corresponde a uma política do governo federal, mas obedece a mecanismos de mercado e responde a políticas locais e regionais de atração de investimentos. Essa questão vai ser melhor discutida no trabalho de Otávio Dulci, sobre a guerra fiscal dos estados travada na segunda metade dos anos 90. Reunidos, estes dois trabalhos dão uma idéia de como a industrialização brasileira avançou nesses anos sem o envolvimento direto do poder central e como gerou conflitos federativos e terminou envolvendo o Judiciário, o Congresso e o próprio Executivo.

Por fim, do trabalho de Marcus Faro de Castro e Maria Izabel V. de Carvalho dois aspectos importantes merecem ser ressaltados: de um lado, a reflexão dos autores sobre os motivos que levaram a transição para a democracia, diversamente de outras transições anteriores, a abandonar o modelo desenvolvimentista; e, de outro lado, a periodização que estabelecem para explicar os momentos de reforço da política de "freios e contra-pesos" e os momentos de centralização da gestão da política econômica no Executivo. Os autores vêem na fase inicial da Nova República (a partir de 1985) um momento de revitalização do Legislativo, do Judiciário e do federalismo, que seriam os freios e contrapesos à ação centralizadora do Executivo. Contudo, essa fase encerrou-se a partir do estilo não-partidário, centralizador e autocrático da política macroeconômica de Fernando Collor (1990-1992), que ligou o combate à inflação às reformas econômicas e às reformas do Estado, reagindo à negociação com o Congresso Nacional e com os partidos políticos e provocando um impasse, o que conduziu a seu afastamento do poder. Fernando Henrique Cardoso manteve a gestão macroeconômica insulada, mas adotou um estilo mais pragmático de governo, no qual algumas políticas foram negociadas de maneira processual no Congresso ou por meio de barganhas informais. Dessa forma, o Executivo pautou a agenda das reformas, usou e abusou das medidas provisórias, mas também negociou as reformas que não eram prioritárias para a agenda do ajuste fiscal.

Alguns mitos que predominaram nas análises do inicio da década de 90 caem por terra a partir da leitura desses trabalhos. Um deles é o de que não houve crescimento industrial nos anos 90 e que São Paulo desindustrializou-se no período, com a saída de várias indústrias para outras partes do país. Outro mito foi o de que a política industrial voltada para o desenvolvimento tecnológico desa-pareceu com o desmantelamento dos centros de pesquisa sediados nas empresas estatais privati-zadas. Temos evidências do renascimento desses centros de pesquisa, agora no bojo das agências reguladoras recém-criadas nos setores de telecomunicações, petróleo, energia, transportes terres-tres, indústria espacial, recursos hídricos, recursos minerais e tecnologia da informação, os quais contaram, em 2001, com fundos orçados em cerca de R$1 bilhão para pesquisa tecnológica nessas áreas.

De um ponto de vista mais geral, que mudanças poderíamos apontar no capitalismo brasileiro nos anos 90?

A década de 90 não indica que tenha havido um processo de desindustrialização, mas uma reorientação para formas espacialmente mais descentralizadas, em torno dos eixos tradicionais de industrialização.

Alguns dos impactos que a política de privatização e desregulamentação gerou sobre os setores de telecomunicações, energia elétrica, petróleo e gás começam a ser avaliados. Um deles é a situação atual das agências reguladoras e suas equipes técnicas. A desregulamentação do setor de seguros possibilitou o crescimento de várias empresas de seguro-saúde, o que sugere um processo crescente de privatização da proteção da saúde. O setor de empresas seguradoras de saúde envolve hoje uma população de usuários de mais de 50 milhões que gastam com o pagamento de planos de saúde privados cerca de US$ 3,5 bilhões, segundo dados de 1999.

Do ponto de vista do Estado, verifica-se que o Brasil está efetivamente saindo do modelo inter-vencionista e caminhando para novas formas de governança que envolvem o mercado e redes associativas com entidades da sociedade civil.

O Estado não abandonou a gestão da economia brasileira; mudou a forma de geri-la em várias áreas. Poderíamos assim delimitar quatro âmbitos nos quais o Estado atuou no período recente: (i) na área da política macroeconômica, a ação do Estado manteve-se tal como no regime militar (1964-1985), altamente concentrada e insulada, aprofundando esse insulamento a partir do governo Collor; (ii) em várias áreas sujeitas à privatização ou desregulamentação, o Estado deixou a atividade de empresário e interventor e passou ao papel de regulador, especialmente nos serviços de utilidade pública, como telecomunicações, energia, estradas e portos; (iii) em algumas políticas sociais, o governo federal efetivamente descentralizou recursos e funções para estados e municípios, a partir de regulamentação legal proveniente da Constituição de 1988. Foi o caso das políticas de educação, saúde e assistência social; (iv) na área da política industrial, observa-se que a ação estatal atém-se às macropolíticas que afetam o setor, tais como abertura comercial, proteção tarifária (para alguns setores afetados negativamente pela abertura), política cambial, apoio às exportações de manufaturados e políticas de treinamento do trabalhador. Os incentivos à formação de novas áreas industriais vêm agora dos interesses do mercado e das administrações locais, que tratam de atrair empreendimentos para seus municípios e estados. Assim, parte da política industrial transferiu-se, nos anos 90, para outros níveis, basicamente estadual e municipal, e passou a envolver redes e parcerias entre empresas, associações de classe, organismos como SEBRAE, SENAI e SESI, e governos locais. Isso indica que os clusters industriais, os consórcios de empresas de um setor e os acordos supraregionais são as novas formas de realizar a política industrial nos novos tempos.

Essas são algumas das conclusões suscitadas pelos trabalhos que compõem este número da Revista de Sociologia e Política.

Maria Antonieta P. Leopoldi (leopoldi@uninet.com.br) é Doutora em Ciência Política pela Universidade de Oxford e Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: editoriarsp@gmail.com