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Reformas constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório

RESENHAS

Arenas e arranjos institucionais: as reformas do governo Cardoso em perspectiva comparada

Saulo Santos de Souza

Saulo Santos de Souza é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Caruaru (FADICA) e mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Saulo Santos de Souza souzasaulo@yahoo.com.br

MELO, Marcus André. 2002. Reformas constitucionais no Brasil. Instituições políticas e processo decisório. Rio de Janeiro : Revan.

O livro Reformas constitucionais no Brasil, de Marcus André Melo, afilia-se ao debate brasileiro em torno do papel das instituições e discute o conjunto de reformas constitucionais realizadas no Brasil durante a década de 1990, mais precisamente as reformas da Previdência Social, da Administração Pública e do Sistema Tributário Nacional, incluindo uma análise do conteúdo substantivo e das especificidades das áreas temáticas relacionadas às propostas de mudanças institucionais. Além disso, são formuladas questões no sentido de como e em que medida os formatos utilizados para a revisão constitucional de 1993 e para a reforma de 1995 produziram de fato mudanças estruturais no cenário político-institucional brasileiro.

Os primeiros debates acadêmicos sobre a necessidade de revisão no texto constitucional começaram a realizar-se logo em seguida à promulgação da Carta de 1988, com a retomada de diversos temas que se acreditavam superados pelos trabalhos da Assembléia Constituinte e com o questionamento dos próprios resultados da Constituição no Estado e na sociedade. No âmbito governamental, as centenas de propostas de emendas constitucionais enviadas ao Congresso Nacional pelo governo de Fernando Collor de Melo exemplificam a política revisionista adotada desde então.

Com isso, muitos estudos passaram a direcionar seu foco para as políticas de reformas setoriais, destacando o impacto dos arranjos institucionais na produção das políticas públicas e no sistema político brasileiro. Simultaneamente, as pesquisas sobre os custos constitucionais incorporaram as regras fundamentais do jogo político e o processo de escolha dessas regras ao seu conteúdo programático. Ademais, a utilização da abordagem principal-agente na análise dos arranjos institucionais contribuiu de maneira substancial para os estudos sobre problemas constitucionais de accountability horizontal e perdas de delegação. Tudo isso em seu conjunto representou um avanço intelectual em torno do papel das instituições e do desenho institucional nas esferas pública e privada.

No entanto, em que pesem as freqüentes mudanças no arcabouço institucional brasileiro, como assinala Melo, o interesse analítico nas reformas constitucionais deve-se mais precisamente à sua importância para a discussão sobre a própria democracia. De fato, uma conclusão inevitável no estudo das reformas constitucionais é que elas devem, em primeiro plano, servir para o rompimento com aspectos da Constituição que não mais se coadunam com os anseios sociais em um ambiente democrático. E mais: a opção governamental pela busca de mudanças significativas na esfera pública brasileira via propostas de reformas constitucionais pressupõe, dentre outras coisas, que as principais disputas dos atores políticos têm em sua alça de mira o próprio texto constitucional.

É nesse contexto que o livro Reformas constitucionais no Brasil insere-se, apresentando uma análise das dinâmicas que envolveram os processos decisórios em arenas de relevância para o espectro institucional brasileiro, ao mesmo tempo em que mensura os efeitos dos formatos institucionais utilizados na produção das políticas de reformas em momentos distintos da realidade política nacional. A questão de fundo é o conjunto de interesses que permearam o jogo político quando as propostas das três áreas setoriais foram introduzidas na agenda pública nacional, particularmente nos processos de formulação, negociação e tramitação legislativa das emendas constitucionais.

Duas são as principais vertentes intelectuais que permeiam o livro de Marcus André Melo. A primeira delas é a tradição neoinstitucionalista, balizada na obra de teóricos como North (1990), na Economia, e Shepsle (1981), na Ciência Política. É igualmente inevitável a citação do trabalho de Hall (1994), Political Science and the Three New Institutionalisms, que reúne o esforço de três diferentes visões analíticas na elucidação do papel das instituições quanto à determinação dos resultados sociais e políticos. A outra vertente identificada é o estudo das policy areas. É em Lowi (1964) que as arenas de política ganham sua mais expressiva força explicativa. De fato, a afirmação categórica de que são as policies que condicionam a política, e não o contrário, como o senso comum sugere, tornou a obra de Lowi referencial obrigatório para os teóricos da policy analysis. No Brasil, os recentes trabalhos de Rezende (2002) sobre o papel das políticas de reforma na performance da ação governamental refletem bem tal influência. Marcus André Melo, por sua vez, busca consolidar as duas tradições intelectuais no livro Reformas constitucionais no Brasil, ao empreender um estudo do Estado em ação, regido pelas instituições e provedor de políticas de reformas.

O enfoque na importância das regras do jogo e nas mudanças ocorridas em algumas dessas regras ao longo dos processos de reformas refletem o teor neoinstitucionalista da análise. De acordo com esse referencial teórico, as regras formais do jogo político são entendidas como o conjunto de incentivos que influenciam decisivamente as escolhas dos atores políticos, os quais buscam sempre maximizar as suas chances de chegar e se manter no poder. Além disso, ao examinar o peso das instituições nas escolhas públicas, o autor lança mão de conceitos desenvolvidos por teóricos da escolha racional, teoria dos jogos e da própria corrente do Public Choice, ressaltando, todavia, a insuficiência do debate teórico que classifica as constituições como as regras do jogo na explicação dos recentes processos de escolha institucional. Com isso, ele reconhece que uma análise exclusivamente neoinstitucional não pode fornecer respostas a todas as questões que envolvem os processos de reformas constitucionais, sendo necessário, também, considerar o papel das arenas decisórias dentro e fora do Congresso.

Por outro lado, Melo vê as constituições como mecanismos restritivos à regra da maioria, no sentido de definir limites à atuação dos atores, ao mesmo tempo que fornece instrumentos de cooperação e coordenação. Nessa linha de raciocínio, ele considera a escolha constitucional como específica tão somente por representar "um jogo dentro de outro jogo". Portanto, a questão central seria o dilema entre a constitucionalização e a desconstitucionalização das regras, e não apenas a disputa sobre os conteúdos substantivos das matérias. Olhando o problema por esse prisma, o autor dá ao estudo das reformas constitucionais a importância que lhe é devida, visto tratar-se de processos de redesenho institucional, ou seja, a escolha de novas instituições, o que lhes difere cabalmente do processo legislativo ordinário, isto é, a escolha de leis que têm meramente a finalidade de regulamentar essa nova realidade político-institucional. Todavia, vale notar que o autor inteligentemente percebe uma articulação entre as estratégias de mudanças constitucionais e as que ocorrem a nível infraconstitucional, dado que a dinâmica do jogo político nas duas situações envolve com freqüência os mesmos atores, os quais atuam quase sempre no mesmo palco, no caso o Congresso Nacional.

A interação estratégica entre os atores relevantes para os processos de reforma é vista por Marcus André Melo como sendo determinada predominantemente pela estrutura e sistemática das atividades parlamentares, as quais passam a representar as regras do jogo no âmbito do Congresso Nacional. Assim, os atores envolvidos nos processos decisórios tendem a escalonar suas preferências baseados nos arranjos institucionais vigentes, levando em conta os custos e benefícios da aprovação das propostas de reformas apresentadas ao Legislativo. Em outras palavras, "os preços relativos dos arranjos institucionais existentes moldam as preferências dos atores" (p. 60). Isso implica, entre outras coisas, que as regras do jogo no Congresso funcionam como um importante constraint na articulação de interesses dos parlamentares. Mais ainda, as alterações nos benefícios esperados pelos congressistas na aprovação das matérias substantivas afetam a forma como eles articulam suas estratégias de interação.

Ao escolher estudar as reformas previdenciária, tributária e administrativa, o autor busca identificar diferenças entre padrões de articulação de interesses, o que fica bem claro devido à heterogeneidade das áreas estudadas, às quais refletem diferentes issues e ações governamentais igualmente distintas. Além disso, a opção do autor em restringir o alcance do seu trabalho às três arenas decisórias, deixando de lado outras políticas de reforma, justifica-se pela sua importância econômica e pela representatividade no estado e na sociedade, sendo suficiente para os limites da análise pretendida. O esforço analítico, portanto, reside em buscar o que há de comum no exame das diferentes propostas de reforma, sem desprezar as variáveis situacionais e de conjuntura presentes nos diversos momentos em que elas entraram na pauta de discussão. Ao invés de se ater ao exame isolado das issue areas, o livro de Melo busca com sucesso demonstrar de que forma as interações políticas, a forma de tramitação legislativa e os interesses dos atores tiveram pontos de contato nos três tipos de reformas analisados, nos diferentes momentos político-institucionais em que elas ocorreram. Isso é em grande parte possível devido ao auxílio de quadros analíticos, onde as características, bem como as variáveis importantes das reformas são apresentadas em um plano comparado, cujo panorama destaca não apenas os resultados distintos obtidos por cada uma delas, mas também a diversidade de efeitos produzidos pelas instituições nos processos reformadores. As tabelas elaboradas pelo autor fazem uma relação também entre as diversas propostas de mudanças constitucionais e os seus produtos finais que acabaram por ser efetivamente implementados via legislação ordinária. É o que ele chama de "processos de constitucionalização versus desconstitucionalização de políticas de reforma" (p. 73). Embora tal análise comparativa tenha se limitado aos casos escolhidos, ela representa um avanço nos esforços de pesquisa relacionados com a reforma do estado, uma vez que combina no mesmo trabalho o estudo de casos com o exame dos mecanismos institucionais que os condicionam.

A análise abrange, portanto, a composição dos processos políticos e dos arranjos conjunturais que tornam interdependentes as diferentes áreas temáticas para efeito do conflito político entre os atores e da própria produção dos resultados de políticas setoriais, vis-à-vis as especificidades de cada issue area. O foco do estudo é a dinâmica política própria das interações que ocorrem na arena constituent, com ênfase secundária, portanto, nos requisitos formais necessários para o emendamento da Constituição. Nesse ponto a abordagem é claramente neoinstitucional, haja vista considerar o impacto das regras do jogo no conflito político, cuja estrutura de incentivos afeta diretamente o resultado final das interações estratégicas entre os atores relevantes, em especial o Executivo e o Legislativo, em uma perspectiva intra e interpoderes. Em suma, o autor parte do princípio de que as instituições condicionam as políticas de reforma.

Um questionamento de pronto estabelecido pelo autor é em que medida uma suposta fragmentação do presidencialismo brasileiro traria implicações para a sua capacidade governativa, incluído aí o sucesso na aprovação das propostas reformistas. Decerto, o resultado final das reformas nas três arenas observadas, as quais apresentaram diferentes graus de êxito ou malogro comparativanente com a intenção inicial do Executivo, importa que a fragmentação não é a única nem, talvez, a mais importante variável a ser considerada na investigação da matéria. Assim, o seu exame dos processos decisórios de reformas procura harmonizar as explicações fundadas na fragmentação e, conseqüentemente, nos pontos de veto do sistema político com a argumentação contrária, qual seja, a que confirma a integração do sistema político tendo em vista a preponderância do Executivo em suas relações com os outros Poderes. Para o autor, tanto os pontos de veto quanto a capacidade do Executivo de influenciar as decisões do Legislativo explicam o resultado final do jogo político, cujos casos típicos observados no livro de Marcus André Melo são, por um lado, as concessões do governo na fase extra-Congresso de elaboração das emendas e, por outro, o êxito do Executivo na aprovação de algumas propostas de reformas, ainda que no plano infraconstitucional. Tais situações ocorrem, com diferentes graus de intensidade, nos casos das reformas administrativa, tributária e da previdência social. Já a fragmentação do sistema partidário e a organização federativa do Brasil não são tomadas por Marcus André Melo como variáveis intervenientes no seu estudo do processo de reformas, a não ser tangencialmente e em conexão com o caráter do presidencialismo brasileiro.

Os casos examinados no livro restringem-se basicamente à tramitação legislativa e a produção de políticas da revisão constitucional de 1993-1994 e da reforma constitucional de 1995-1996, os quais estão sujeitos à influência do que o autor denomina de variáveis contextuais e variáveis relativas ao arranjo institucional dos trabalhos legislativos. Exemplo do primeiro grupo de variáveis é, para o autor, o constrangimento eleitoral sofrido pelos congressistas, principalmente quando a votação das propostas coincide com a proximidade do período eleitoral. Exemplo do segundo grupo, para ele, é o quorum necessário para as mudanças constitucionais. O autor conclui que as variáveis do primeiro tipo tiveram maior peso decisivo no resultado das votações, tanto no caso da revisão quanto no da reforma constitucional.

Ao analisar estes dois momentos de mudanças institucionais no Brasil, o autor o faz não isoladamente, mas de forma comparativa, levando em conta diferenças significativas nos formatos e no contexto em que a revisão e a reforma se deram, visto que tais diferenças acabaram por dar origem a resultados de políticas também distintos. Assim, a revisão constitucional de 1993 foi, para ele, marcada por fatores associados ao momento político-institucional brasileiro, com destaque para a ausência de um núcleo governista de articulação junto aos parlamentares no governo de transição pós-impeachment, os impactos negativos causados no Congresso pela CPI do orçamento, os resquícios do desgaste produzido pelos debates políticos que envolveram a promulgação da Constituição de 1988 e, ainda, a pressão exercida pelo calendário eleitoral de 1994 nos congressistas, os quais buscaram apressar a conclusão dos trabalhos de revisão tendo em vista se habilitarem a concorrer às eleições. Por sua vez, a reforma constitucional de 1995 ocorreu no contexto de um Congresso parcialmente renovado e no início de um mandato presidencial que usufruía de grande legitimidade em razão do sucesso do Plano Real junto à opinião pública, além do que, ao contrário da revisão de 1993, não havia pleitos eleitorais agendados no horizonte próximo dos parlamentares. Além dessas diferenças conjunturais observadas nos dois momentos estudados, o autor aponta outras de corte institucional como, por exemplo, a rotina de tramitação legislativa e a forma regimental de intermediação de interesses, de cujo formato dependeu a atuação dos policy advocates. Em suma, tais peculiaridades, para o autor, representaram as diferenças nas regras do jogo que balizaram as decisões dos atores no emendamento constitucional da revisão e da reforma.

As hipóteses levantadas pelo autor na parte inicial do seu livro buscam confirmação com base em uma análise que considera a natureza de cada área temática. Assim, uma das proposições lançadas à investigação empírica é que, segundo o autor, as reformas que implicam desconstitucionalização de regras são pouco passíveis de aprovação pelo Legislativo, devido à falta de credibilidade do Executivo em honrar seus compromissos de sancioná-las via legislação infraconstitucional. Os debates congressuais que envolveram as reformas tributária e da previdência social são exemplos claros de resistência por parte do Legislativo, visto que mudanças estruturais nestas arenas são virtualmente impossíveis de serem implementadas exclusivamente através de legislação ordinária. Tal argumentação não se aplica com a mesma consistência no caso da reforma administrativa, visto que determinadas especificidades desta arena não exigem mudanças via desconstitucionalização de regras, o que acabou por facilitar sua implementação pela via infraconstitucional.

O autor também utiliza conceitos de economia política (WILLIAMSON, 1994), ao inferir os custos e benefícios das propostas de reformas encaminhadas pelo Executivo. A evidência está na hipótese do autor de que reformas que impõem custos concentrados aos atores políticos têm chances reduzidas de aprovação, desde que a possibilidade de compensação de tais perdas seja remota. Neste raciocínio, os insucessos sofridos pelo governo na reforma previdenciária estão diretamente vinculados à impossibilidade de compensação dos custos acarretados pelo conteúdo substantivo das propostas. O mesmo é válido para a reforma tributária, em que a fragilidade dos mecanismos de compensação das perdas explicaram a reação contrária por parte do Legislativo. No caso da reforma administrativa tal problema é amenizado, visto que os custos não são percebidos durante a formulação das propostas, tendo, ao invés, o seu peso transferido quase que integralmente para a fase de implementação das reformas. Isto, em parte, explica a boa fortuna do governo nas alterações pretendidas para a administração pública.

Os problemas relacionados com os custos de transição para novas realidades institucionais aparecem, no exame de Marcus Melo, como conseqüência do que ele denomina legados de política. De fato, as heranças institucionais podem limitar a probabilidade de aprovação das reformas, por serem decorrência de dispositivos constitucionais virtualmente imutáveis, tais como as cláusulas que tratam do federalismo, do presidencialismo e do próprio sistema partidário. Tais preceitos, juntamente com os dispositivos constitucionais norteadores das políticas públicas aplicáveis a cada arena decisória, geram políticas cujos efeitos estendem-se ao longo do tempo. Estes legados de política, por sua vez, funcionam como mecanismos inibidores de mudanças, elevando os custos políticos de transição para diferentes regimes. O autor cita a relativa maturidade dos sistemas previdenciário e tributário brasileiros como exemplos típicos de legados de política limitadores das reformas, enquanto que as políticas anteriores de redução dos quadros do serviço público federal são identificados pelo autor como legados que facilitaram a negociação e aprovação das propostas de reforma administrativa. Mais uma vez, portanto, os elementos individualizadores das arenas decisórias surgem como fatores decisivos, ora amenizando, ora agravando os custos de transição para sistemas institucionais distintos.

Outro tema de não menos relevância para o estudo das políticas de reforma é a questão da formação de coalizões vencedoras dentro do Congresso. Este aspecto é contemplado no trabalho de Melo em sua abordagem sobre o trâmite congressual de propostas de conteúdo multidimensional, o que, no entender do autor, corresponde àqueles projetos que englobam diversas questões dentro de um único texto, dificultando, assim, as negociações passo a passo. A inseparabilidade de questões também produz o mesmo efeito, visto que a aprovação de umas depende da apreciação de outras. Tudo isto tem o condão de inibir a formação de alianças em torno de interesses convergentes, cujo objetivo é a difusão dos custos políticos de cada decisão. Marcus André Melo busca provar empiricamente que a falta de coalizões parlamentares favoráveis à aprovação de emendas constitucionais acabou por condenar ao fracasso as investidas do governo na maior parte das mudanças institucionais pretendidas, principalmente no caso das reformas tributária e da previdência social. Quanto à reforma administrativa, os dados levantados pelo autor o autorizam a afirmar que o sucesso na aprovação de grande número de propostas deu-se em virtude da ausência de custos concentrados, pelo menos para os atores políticos, o que favoreceu a formação daquelas coalizões.

Ainda tratando dos aspectos distintivos das issue areas, o autor trabalha com a hipótese de que a aversão aos prováveis riscos relacionados com os resultados das reformas pode ser fundamental na tomada de decisão dos atores relevantes em determinadas arenas de políticas. O argumento é que, nas arenas onde existe grande incerteza quanto aos subprodutos das reformas, os custos de assumirem o ônus de resultados indesejáveis são altos para os atores envolvidos, o que causa, para os parlamentares, grande aversão ao risco e, para o governo, dificuldades adicionais na aprovação das propostas. Assim, na visão do autor, dada determinada issue area, a taxa de aversão ao risco é inversamente proporcional à probabilidade de mudanças via reformas constitucionais. No livro de Marcus Melo esta variável aparece com mais clareza no caso da reforma tributária, onde as incertezas relacionadas com os efeitos da reforma sobre a arrecadação e a inflação representaram um ponto de estrangulamento nas negociações das propostas.

Um interessante paradoxo é identificado pelo autor no exame das propostas de reforma tributária. Para ele, nem o consenso em torno da necessidade da reforma, nem as fortes coalizões formadas no Congresso Nacional, decorrentes desse consenso, foram suficientes para produzir a reforma tributária, o que aparentemente advoga contra a importância da interação estratégica como variável interveniente no resultado do jogo político. Todavia, isto é parcialmente explicado, na avaliação do autor, pelo fato de os custos e benefícios que envolvem as políticas tributárias não ficarem claros para os atores envolvidos, o que torna o caminho infraconstitucional politicamente menos oneroso do que a aprovação das reformas. Tal abordagem aproxima-se das teorias que utilizam a figura do median voter para explicar como os atores políticos buscam direcionar suas decisões de forma a alcançar a maior quantidade possível de vantagens eleitorais. Percebendo que os benefícios são difusos na aprovação das reformas tributárias, os congressistas terminam optando por mudanças parciais, mais fáceis de serem exploradas na arena eleitoral. É este aspecto peculiar do caso tributário, somado à questão dos credible commitments e da mencionada aversão ao risco, que, segundo Melo, diferenciam a reforma tributária das demais propostas reformistas apresentadas no período estudado.

Também em comparação com as outras reformas, o livro sugere que o caso da reforma previdenciária foi o que apresentou maior disputa política dentro e fora do Congresso, com o envolvimento, inclusive, de centrais sindicais. Os conflitos de pronto adquiriram o caráter de disputa partidária, dando origem ao que o autor denomina de política da imposição de perdas. Num cenário de intensos conflitos, os custos da imposição de perdas concentradas aos partidos políticos foram decisivos no momento da votação das propostas. O resultado final da barganha política decorrente desses conflitos, segundo Melo, foi uma diversidade de alterações infligidas ao texto das emendas, o que acabou por descaracterizar o projeto original do governo.

Já no caso da reforma administrativa, o destaque é dado pelo autor ao relativo sucesso obtido pelo Executivo na etapa legislativa. A principal razão apontada por Marcus André Melo foram as negociações realizadas antes da tramitação no Congresso, com a participação de setores interessados. Tal estratégia, associada à difícil situação fiscal dos estados, amenizou o impacto entre os congressistas dos custos políticos das mudanças pretendidas para o setor público. Ainda nessa arena decisória, o recurso a medidas provisórias e à legislação ordinária apontam para a preponderância do Executivo nas iniciativas relacionadas com a reforma do estado.

Os dados levantados nas pesquisas empíricas foram discutidos pelo autor à luz das hipóteses inicialmente formuladas, tendo sido apresentados no livro de forma sistemática, sempre seguindo uma elaboração teórica preliminar que permite ao leitor situar-se no aparato conceitual das questões tributárias, previdenciárias e administrativas abordadas. Da mesma forma, o conjunto de notas explicativas que se acrescentam ao texto constituem-se elementos elucidativos e informações adicionais, mormente no que se refere às peculiaridades que envolveram o trato político das questões nos períodos em que ocorreram a revisão e a reforma constitucional. Neste mesmo sentido, as considerações eminentemente técnicas são empregadas em favor do próprio entendimento das matérias e em poucas ocasiões são dispensáveis.

Se, por um lado, os estudos de caso explorados por Melo no livro Reformas constitucionais no Brasil dão novo fôlego ao debate sobre os limites das explicações neoinstitucionalistas na análise do funcionamento das instituições governamentais, por outro, a análise do tema está longe de ser esgotada e representa um terreno fértil na condução de pesquisas que tomam o papel das instituições públicas como variáveis explicativas no estudo dos processos decisórios.

Por fim, o estudo das reformas institucionais empreendido por Marcus André Melo torna-se adequado na medida em que permite compreender melhor a gênese constitucional e a forma como se organiza a delimitação da ação estatal, haja vista que historicamente as abordagens sobre o papel das instituições no Brasil tendem a enfatizar a presença de um estado centralizador e autoritário. No entanto, é preciso se destacar o imprescindível papel desempenhado pelas reformas constitucionais no aperfeiçoamento dos instrumentos garantidores de direitos, na legitimação do estado e no estabelecimento de espaços que possibilitem maior participação coletiva nas escolhas públicas. Neste sentido o livro de Marcus Melo abre caminho para uma nova perspectiva de análise, ao conduzir o leitor à percepção de que os resultados do jogo político podem aproximar as reformas, ou distanciá-las ainda mais, dos ideais democráticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WILLIAMSON, O. 1995. The Institutions and Governance of Economic Development and Reform. In : WORLD BANK CONFERENCE ON DEVELOPMENT 1994. Annals. Washington : The World Bank Group.

Recebido em 19 de setembro de 2002.

Aprovado em 15 de outubro de 2002.

  • Endereço para correspondência
    Saulo Santos de Souza
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Abr 2003
    • Data do Fascículo
      Nov 2002
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