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Conflitos ambientais no Rio de Janeiro: ação e debate nas arenas públicas

RESENHAS

Ciência social e ciência sócio–ambiental

José Augusto Drummond

Universidade de Brasília

FUKS, Mario. 2001. Conflitos ambientais no Rio de Janeiro. Ação e debate nas arenas públicas, Rio de Janeiro: UFRJ

Mario Fuks é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Este livro baseia–se na sua tese de doutorado, defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em 1997, infelizmente não citada na bibliografia. Parte dos materiais dessa tese foram divulgados em diversos artigos anteriores do autor —: estas já citadas na bibliografia. O texto resulta amadurecido, conciso, focalizado e bem organizado. É escrito com clareza, bem argumentado e adequadamente documentado.

O autor focaliza a emergência das questões ambientais no Rio de Janeiro (cidade e estado), sob a perspectiva "construtivista". Analisa o surgimento das questões ambientais como um exemplo de um processo mais geral de surgimento de novas questões públicas (public issues). Supõe que as questões ambientais não se automaterializam, tornando–se "públicas à medida que são veiculadas por indivíduos e grupos" — o que parece correto, mas que parece valer para qualquer public issue. Em termos empíricos, Fuks sustenta a sua abordagem construtivista analisando como, nas décadas de 1980 e 1990, as questões ambientais do Rio de Janeiro foram percebidas, definidas e argumentadas por dois tipos de atores: 1) integrantes do Ministério Público, encarregados investigar denúncias e de eventualmente instituir processos, e 2) cidadãos autores de denúncias e de processos.

Na pesquisa o autor examinou mais de 300 denúncias, inquéritos e ações constantes do arquivo do Grupo de Proteção ao Meio Ambiente e do Patrimônio Comunitário da Procuradoria de Justiça do Rio de Janeiro. Entrevistou ainda 36 cidadãos. Mario Fuks mostra que esses dois atores, apesar de não caracteristicamente "ambientalistas", foram os principais responsáveis pela construção e institucionalização da questão ambiental no Rio de Janeiro. As cerca de 300 peças judiciais examinadas foram tratadas de modo adequado em termos agregados (para verificar, por exemplo, a freqüência de tipos de queixas e de denunciantes). No entanto, gostaríamos que o autor tivesse dedicado umas 10 ou 15 páginas a mais apresentando e analisando em maiores detalhes algumas ações selecionadas de acordo com algum critério. Quase nada aprendemos sobre os processos que desencadearam esses documentos, que formam uma das duas unidades de análise do autor (as outras unidades são as entrevistas com os cidadãos, que mereceram tratamento mais aprofundado e muito mais esclarecedor) e cuja consulta deve ter demandado penoso trabalho de investigação.

Em outras palavras, poderíamos ter aprendido muito mais com a pesquisa do autor, principalmente a respeito dos resultados dos processos, denúncias e inquéritos. No entanto, Fuks focalizou o processo de construção da questão, e não os resultados dos processos examinados. Essa é uma opção legítima do autor, mas criou–nos a frustração de quase nada aprender sobre os resultados. Trata–se, portanto, de um estudo sociológico sobre o processo de emergência de public issues em que as questões ambientais aparecem como ilustração — tal como poderia ser feito com as questões de gênero, de etnia ou do trabalho.

Poderíamos encerrar esta resenha com mais algumas observações pontuais e fazer a recomendação de praxe. No entanto, seguiremos o mote do Professor Luiz Antônio Machado da Silva (autor do texto da orelha), que considera o livro "polêmico": polemizaremos com o autor, limitando–nos a três pontos que revelam nossas diferenças de abordagem.

Em primeiro lugar, não se pode deixar de mencionar a questão da "multidisciplinaridade" (Antropologia, Sociologia e Ciência Política) do texto, qualidade argumentada no texto da última capa. De fato, o texto combina contribuições dessas três disciplinas. No entanto, seu caráter "multidisciplinar" empalidece perante a multidisciplinaridade muito mais ampla e muito mais rica hoje praticada comumente por dezenas de cientistas sociais (e até por cientistas naturais), brasileiros e não–brasileiros, interessados em questões ambientais. O autor optou por ignorar inteiramente a literatura produzida sob essa perspectiva. De novo, é uma opção legítima dele, mas a verdade é que o texto é cauteloso, quase tímido, na transgressão das porosas fronteiras entre aquelas três disciplinas — de resto "irmãs" — das Ciências Sociais. Na verdade, ele escreveu um estudo clássico de Ciências Sociais, focalizado em uma temática (a construção de public issues) que consideramos escassamente ambiental, abrindo mão explicitamente de uma abordagem autenticamente multidisciplinar da questão ambiental. Isso não é dito para negar as qualidades do texto, mas sim para situá–las no seu âmbito verdadeiro — a da ciência social tradicional.

Em segundo lugar, levantamos uma questão derivada da primeira — a opção por uma abordagem restrita, tradicional. O autor afirma que o ambientalismo configura–se como um "sistema público de crenças" e que não deriva das "condições atuais de degradação do meio ambiente" nem das "condições objetivas" que o geraram. É uma afirmação realmente polêmica que infelizmente não teve uma discussão detalhada, nem sequer um esforço de comprovação em qualquer ponto do texto (ou através da citação de uma literatura pertinente). A afirmação fica, portanto, como um pressuposto. Isso em si não configura um problema, pois qualquer texto tem pressupostos.

No entanto, é um pressuposto duvidoso. Pode–se afirmar, com a mesma força e ligeireza, que a construção "subjetiva" do trabalho como uma public issue tenha ocorrido independentemente da crescente deterioração das condições de vida "objetivas" de milhões de trabalhadores, por décadas e em muitos lugares? Ou que o movimento sindical e os achados da ciência social e econômica foram irrelevantes para a construção da questão do trabalho como public issue? Essas perguntas só permitem respostas positivas dentro de uma perspectiva desconstrutivista — não assumida pelo autor.

Dessa forma, aos nossos olhos Mario Fuks acaba estudando os processos do Ministério Público e as denúncias dos cidadãos como fenômenos totalmente à parte dos problemas ambientais objetivos propriamente ditos — poluição, degradação, desmatamento etc. Do ponto de vista de nossas próprias abordagens das questões ambientais, as "construções" que os atores fazem delas formam uma fatia simbólica complementar às questões "objetivas" do meio ambiente. Talvez por isso nos qualifiquemos como cientista sócio–ambiental e estejamos aqui a ressaltar que o autor escreveu o texto como cientista social (que é exatamente o que ele deseja ser).

Como dissemos, pouco aprendemos com o texto de Mario Fuks sobre esses problemas ambientais "objetivos", embora tenhamos aprendido bastante sobre as formas por que foram "construídos" pelos atores focalizados. Temos aqui, portanto, uma acentuada diferença de abordagem ou de conceituação entre o resenhado e o resenhador. Por escolha, o autor focaliza as construções, enquanto preferimos focalizar os problemas "objetivos" juntamente com as construções "subjetivas".

Estarão as Ciências Sociais condenadas — como sugerem o autor e seu prefaciador, Luiz Eduardo Soares — a tratar apenas de questões subjetivas, cabendo a batida rotulação de "positivista" a quem discorda disso? Se esse for destino inescapável das Ciências Sociais, então, em nosso modo "positivista" de ver, elas simplesmente se desqualificam para os estudos multidisciplinares das questões ambientais "objetivas" que — queiram ou não — incluem dimensões que vão além da subjetividade, da vontade e da ação humanas. Alguém já teve sucesso em segurar o deslizamento de uma encosta desmatada à base de "mobilização comunitária"? Ou em despoluir uma baía contaminada à custa de "conscientização"? Ou em pôr fim a uma seca a partir da "construção de significados"? De novo, a qualidade tradicional da ciência social de Fuks evidencia–se.

Essas duas questões não seriam tão graves se não fosse a terceira. Trata–se do uso que o autor faz dos achados do que chama de "Ciência do Urbanismo". Como destacamos, Fuks afirma que o avanço da questão ambiental nada tem a ver com a degradação ambiental "objetiva" e escolhe deixar de lado uma ampla literatura que parte do ponto de vista oposto. No entanto, no capítulo IV ("Recursos culturais"), o autor surpreendentemente convoca a Ciência do Urbanismo para oferecer concretude aos problemas ambientais "construídos" que analisa. É apenas a partir da página 132 que ficamos sabendo que a história urbanística do Rio de Janeiro foi marcada pela "dessecação de brejos, várzeas e pântanos, desmontes de morros e de aterros de lagunas, manguezais e da Baía da Guanabara". O autor usa os achados das excelentes pesquisas de geógrafos, historiadores e urbanistas (nenhum dos quais, aliás, adota uma abordagem construtivista) sobre as mudanças na natureza do Rio — desmatamento, instalação de graves doenças contagiosas, escassez de água potável e assim por diante. A discussão dos achados dessas pesquisas, a qual termina logo na página 141, enriquece muito o quadro analisado.

Assim, Mário Fuks confere a esses achados científicos a capacidade de criar objetivamente materiais a serem "construídos". O que ele nega à emergente ciência sócio–ambiental ele aceita prontamente (e sem qualquer explicação) da ciência urbanística (contra a qual nada tenho, aliás). Por que apenas o Urbanismo tem essa capacidade? O autor não responde, pois sequer faz a pergunta. O capítulo IV fica, assim, como um verdadeiro "contrabando" a negar o seu pressuposto central de que as public issues só existem depois de construídas subjetivamente pelos atores. O Urbanismo é inequivocamente usado pelo autor como um definidor de public issues.

Com isso, o autor, coerentemente com toda a sua abordagem, mais uma vez desconhece ou nega implicitamente os achados de uma vasta literatura científica internacional e nacional que definiu, focalizou e publicizou as questões ambientais como public issues. Em nosso ver, esses achados têm sido fundamentais para "construir" as questões ambientais — ou pelo menos para fornecer as matérias–primas necessárias —, mais do que as elaborações e negociações subjetivas de atores (leigos ou cientistas). Quem se ocupou originalmente do desmatamento? Da extinção de espécies e de ecossistemas? Da perda da fertilidade ou da esterilização de solos agrícolas? Da escassez de água potável e das fontes de energia? Quem descobriu o agravamento do efeito estufa? A camada de ozônio (e o buraco na mesma)? Quem cunhou os termos "biodiversidade" e "sustentabilidade"? Quem identificou os perigos das múltiplas substâncias secretadas pelo aparato industrial do mundo moderno? E os perigos dos pesticidas?

Ora, foram cientistas. Foram biólogos, físicos, engenheiros, agrônomos e químicos que quase literalmente inventaram esses temas e colocaram–nos nas pautas locais e planetárias. Produziram assim os "tijolos" usados pelos processos "subjetivos" de construção focalizados pelo autor. Talvez pelo fato de quase todos esses e outros grandes problemas ambientais contemporâneos terem sido levantados originalmente por cientistas naturais ou da vida, Mario Fuks parece sentir–se, como cientista social, não apenas liberado de dialogar com eles, como escusado de reconhecer os seus achados científicos. A virtual ausência de cientistas sociais entre os formuladores científicos originais dos problemas ambientais é de fato intrigante, mas é uma questão à parte que não justifica que os cientistas sociais interessados nas questões ambientais neguem–se a "conversar" com eles.

Na verdade, há muitos cientistas sociais no Brasil e fora dele que dialogam com esses cientistas e que incorporaram essas questões ambientais "objetivas" ao escopo teórico e empírico dos seus estudos. Ao fazerem isso, quase sempre produziram análises das implicações sociais dessas questões ambientais melhores que as dos cientistas naturais ou da vida que originalmente formularam–nos, causando neles aprendizados positivos, em meio a processos mais ou menos sistemáticos de autêntico diálogo multidisciplinar. Mário Fuks preferiu ignorar esse segmento da produção científica. É muita coisa para ser deixada do lado de fora.

Nossa objeção, portanto, é a seguinte: por que os achados do Urbanismo informam a "construção" da public issue ambiental? Por que os achados da ciência sócio–ambiental não são capazes do mesmo? Uma regra não–escrita sobre resenhas afirma que não devemos criticar autores pelo que não fizeram. Fiel a essa regra, queremos deixar claro que não exigimos que Mario Fuks convocasse outras ciências (além da do Urbanismo) para embasar ou fornecer materiais objetivos para a construção subjetiva que focaliza. No entanto, faltam no texto duas coisas: 1) uma explicação para o uso exclusivo dos achados científicos do Urbanismo e 2) uma resolução para a óbvia tensão entre esse uso do Urbanismo e a afirmação de que a public issue ambiental independe do agravamento objetivo diagnosticado por cientistas sócio–ambientais de renome nacional e internacional.

José Augusto Drummond (jaldrummond@uol.com.br) é Ph. D. em Recursos Naturais e Desenvolvimento pela University of Wisconsin, Madison (EUA) e Pesquisador Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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