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Bushmanders & Bullwinkles

RESENHAS

Atualização dos limites dos distritos: uma crítica ao sistema de representação majoritária dos Estados Unidos

Emerson Urizzi Cervi

MONMONIER, Mark. 2001. Bushmanders & Bullwinkles. How Politicians Manipulate Electronic Maps and Census Data to Win Elections. Chicago : University of Chicago Press.

O livro Bushmanders & Bullwinkles – How Politicians Manipulate Electronic Maps and Census Data to Win Elections ("como os políticos manipulam mapas eletrônicos e dados censitários para vencer eleições") – está catalogado como uma obra da área da Ciência Política norte-americana, embora tenha sido escrito por um geógrafo e professor de cartografia. Mas, o que um geógrafo tem a escrever sobre sistema político e eleitoral? No Brasil, especificamente, pouco. Porém, nos Estados Unidos, onde a legislação exige atualizações constantes nos mapas eleitorais por especialistas na área, os geógrafos têm uma participação mais efetiva nos processos eleitorais, antes mesmo das campanhas políticas começarem. Por isso Mark Monmonier, professor de Geografia na Maxwell School of Citizenship e de Assuntos Públicos na Syracusse University, escreveu este livro em que critica a manipulação dos mapas eleitorais para beneficiar, nas eleições ao Congresso, determinado partido político – aquele que estiver na Casa Branca, mais especificamente.

A movimentação das linhas que dividem os distritos eleitorais não é uma prática recente nos Estados Unidos. Seu início data de 1812, quando os Federalistas do Estado de Essex foram beneficiados. De então até hoje, democratas e republicanos já se beneficiaram das "brechas" da legislação para obter vantagens na definição dos conjuntos de eleitores. Em virtude da relação direta entre o perfil sócio-econômico e a identificação política é possível "agrupar" os eleitores de modo a beneficiar determinado partido. Indiretamente, Monmonier critica o sistema eleitoral majoritário norte-americano de escolha dos congressistas. É em grande parte graças a este sistema que os líderes dos partidos conseguem tirar vantagens da redistritalização feita a cada dez anos nos Estados Unidos. Um dos efeitos colaterais dessa prática política, segundo o autor, é o constante questionamento das esferas judiciais superiores, que em última instância definem por onde passarão os limites de cada distrito.

Se o objeto do livro é tratar de questões específicas do sistema eleitoral norte-americano, qual seria a relevância do tema para a Ciência Política brasileira? Na minha opinião a leitura é bastante relevante, visto que estamos tornando-nos um país que vive em constante discussão sobre as reformas políticas (partidária e eleitoral) e que sempre surgem teses sobre a transformação da atual forma proporcional de eleição dos congressistas para o sistema majoritário puro ou misto. As possibilidades de manipulação dos resultados eleitorais em sistemas majoritários, como demonstra Monmonier no caso norte-americano, são grandes. E o mais importante: essa manipulação não se dá no dia da eleição ou por artifícios usados durante as campanhas eleitorais, mas antes delas, o que impede a sociedade de perceber o quanto a democracia está sendo deturpada pelos líderes políticos que deveriam zelar por sua manutenção. É por essa razão – além do fato de desnudar algumas mazelas do que se autodenomina "a maior democracia do mundo" – que a leitura de Bushmanders & Bullwinkles é recomendada.

I. De GERRYMANDER A BUSHMANDER

O termo "gerrymander", muito comum na política dos Estados Unidos, significa um crescimento eleitoral de maneira ilícita. Trata-se de um neologismo incorporado ao léxico político norte-americano há quase dois séculos. "Gerrymander" surgiu em 1812, quando o então Governador de Massachussets, Elbrig Gerry, defendeu a transformação dos limites do Condado de Essex, dentro de seu estado, criando um distrito senatorial com maioria de eleitores Federalistas, o que garantiria sua eleição. O novo formato do distrito lembrou ao chargista do jornal Boston Gazette uma salamandra. Após a transformação do mapa do distrito em uma salamandra e a publicação de um artigo no mesmo jornal em que criticava a prática adotada pelo governador de Massachussets para beneficiar os federalistas, o jornal passou a chamar o resultado daquela redistritalização de "gerrymander" e o neologismo entrou definitivamente para o vocabulário político do país, o que só foi possível graças à repetição da prática de Elbrig Gerry ao longo desses quase 200 anos. Reproduzo abaixo dois esquemas explicativos apresentado na página 9 no livro, em que fica claro como funciona a redistritalização em favor de um partido.

De acordo com os esquemas, no Quadro 1, contendo três distritos, há uma distribuição compacta deles. Em cada um há um centro urbano que concentra um número maior de eleitores. Como de maneira geral os eleitores urbanos tendem a votar em candidatos democratas com mais freqüência do que em republicanos, é provável que pelo menos em dois desses distritos o representante eleito seja democrata em função da "diluição" dos votos rurais nas três áreas. No Quadro 2, após uma redistritalização hipotética, teríamos um gerrymander, pois os três centros urbanos acabaram ficando no mesmo distrito eleitoral, o de número 2 (com o formato de uma cobra), enquanto os distritos 1 e 3 ficaram apenas com eleitores rurais, beneficiando o partido republicano que agora passaria a ter dois representantes entre os três distritos eleitorais.



Monmonier, em seu livro, mostra como os republicanos, sob o governo de George Bush (o pai), em 1992, manipularam os mapas eleitorais na redistritalização para beneficiar os candidatos de seu próprio partido no distrito de Nova York nas eleições para o Congresso em 1993 – o que fez que o autor transformasse o neologismo gerrymander em "bushmander". Como quase tudo nos Estados Unidos, a questão étnica é um componente importante para a prática do gerrymander. Considerando que os eleitores republicanos são na maioria brancos, a redistritalização de Nova York em 1992 moveu os limites do distrito retirando de seu interior as áreas de maioria negra ou hispânica. Isso fez que o partido republicano tivesse grande vantagem nos novos limites para a votação do ano seguinte.

No início do texto o autor escreve que seu objetivo é promover uma apreciação bem informada sobre a redistritalização, incluindo seus diversos efeitos. Ele mostra que a atualização decenal dos limites pode ser uma desvantagem para os partidos políticos, eleitores e grupos étnicos; além disso, mostra como os legisladores, juízes e outros representantes eleitos usam o remapeamento para promover seus próprios interesses ideológicos ou pessoais.

II. IGUALDADE DE REPRESENTAÇÃO E MINORIAS

Como Monmonier demonstra, a redistritalização periódica é indispensável nos sistemas majoritários de eleição, principalmente em países em formação (como os Estados Unidos dos séculos XVIII e XIX) e com grande mobilidade populacional. Sem a revisão dos distritos a cada década seria possível que um distrito "esvaziado" de eleitores (devido à migração populacional), tivesse uma sobre-representação, enquanto novos centros urbanos, com grandes taxas de crescimento populacional, terminassem sub-representados. Mas precisamos lembrar que a redistritalização não é a única forma para resolver o problema da eqüidade de representação do número de cadeiras no Congresso disputadas em relação ao número de vagas por distrito. Por meio do sistema norte-americano adapta-se o número de cadeiras, que é constante, ao tamanho dos distritos, variável. Já no sistema majoritário, adotado pela Alemanha, a forma de equalização das representações é inversa. Ali, os distritos são fixos, mas o que muda é o número de cadeiras disputadas a cada eleição, fazendo com que as vagas sejam variáveis.

Até 1965, nos Estados Unidos, o principal fator para a redistribuição dos distritos era a população representada. Considerava-se como parâmetro o número de 30 mil cidadãos representados para cada congressista. Sendo assim, os limites dos distritos moviam-se acompanhando os fluxos migratórios, sem levar em conta outras variáveis, tais como a presença de minorias em determinadas regiões. Em meados dos anos 1960, com a aprovação das leis dos direitos civis, que entre outras coisas deu – definitivamente – direito de voto aos negros, outros critérios passaram a ter relevância para a distritalização.

A nova legislação determinava que as revisões não poderiam mais desconsiderar a presença de minorias e a necessidade de elas fazerem-se representar no Congresso. Assim, os limites dos distritos não podiam mais dividir uma região com minorias ao meio, pois, se isso acontecesse, as chances de um candidato de minoria ser eleito em qualquer distrito seriam muito reduzidas. Então, com o ato de direito ao voto, aprovado em 1965, os cartógrafos foram proibidos de dividir um distrito em que os membros de um grupo minoritário constituíssem maioria e o número de habitantes em determinado distrito deixou de ser o único critério objetivo de definição das divisas entre os distritos. O problema, para Monmonier, é que o critério da divisão para atender minorias é incompatível com o sistema inicial, por permitir discussões sobre nuanças de até onde se pode considerar o espaço geográfico ocupado majoritariamente por uma minoria. Esse impasse acabou gerando mais espaço para a manipulação política.

A redistritalização decenal nos Estados Unidos passou a ser mais problemática quando nos anos 1960 a Suprema Corte instituiu que os distritos não deveriam passar apenas por uma reconfiguração da sua representação no Congresso e nas casas legislativas a cada dez anos, mas que os distritos eleitorais deveriam ter minimizadas as variações entre os tamanhos das populações desses distritos. É bem verdade que a prática da manipulação eleitoral por meio da configuração dos distritos não nasceu com os direitos civis, pois gerrymander é conhecido desde o início do século XIX. Mas ela acentuou-se – tanto assim que o caso que deu origem ao livro foi a criação de distritos para latinos e negros de Nova York durante o governo George Bush, para deixar as áreas de maioria branca mais "favoráveis" aos candidatos republicanos. Também é verdade que Bush não foi o primeiro a usar o artifício na história política recente, lembra o livro. Nas eleições congressuais de 1984 os democratas fizeram os democratas ocuparam 28 das 45 vagas da Califórnia (portanto, 62% do total de cadeiras) com apenas 48% dos votos válidos. Depois do remapeamento de 1992, para o Congresso de 1994, os democratas conseguiram 52% dos votos no Estado, o que lhes garantiu 27 das 52 cadeiras, totalizando exatos 52% das vagas.

III. O LEGADO DE GERRY

Em três capítulos do livro o autor descreve aspectos técnicos das fórmulas utilizadas pelos geógrafos para o remapeamento eleitoral do país. É onde faz algumas críticas sobre a forma como os novos recursos tecnológicos vêm facilitando a manipulação dos mapas pelos políticos, pois com sistemas de localização via satélite (do tipo GPS – Global Position System), associados à base de dados censitários da população norte-americana (tais como origem e raça da população), torna-se cada vez mais fácil distribuir os eleitores de modo que um quarteirão a mais em determinado distrito eleitoral urbano termine por definir uma ampla vantagem a um partido político. O fato é que a legislação eleitoral estabelece que a representação para as casas do Senado e dos Representantes deve passar por uma revisão a cada dez anos e que deveria haver uma vaga na Casa dos Representantes para cada 30 mil cidadãos, mas desconsidera o viés gerado pelas demais exigências legais na redistribuição dos distritos.

A questão fundamental para a democracia, segundo o autor, é que as tênues maiorias geradas pela maximização das representações feitas pelos computadores acirram as disputas ideológicas internas. Ele lembra que a redistritalização do início dos anos 1990 foi a que gerou maiores debates entre sulistas e defensores dos direitos civis, havendo resistência de todos os lados e estendendo os debates até as áreas metropolitanas do Norte do país. Nessas discussões sempre acabam misturando-se questões como raça e partidos políticos, terminando por expor a Suprema Corte, que se divide entre a saída da remediação da representação racial pelo gerrymander ou a manutenção de rígidos critérios de distribuição dos distritos. Os problemas causados pelo acirramento dos debates na redistritalização eleitoral são considerados pelo autor como uma "determinação tecnológica", pois a evolução da informática acabou oferecendo aos políticos as ferramentas necessárias para ampliar o debate sobre qual seria o desenho mais justo para a representação política no país.

Em outro trecho do livro Monmonier examina alguns exemplos de redistritalização ocorridos nas últimas décadas, detalhando as mudanças nos distritos do estado do Mississipi, entre 1964 e 1984, quando implementaram-se os critérios para respeitar os direitos civis. De fato, ao analisar historicamente as adequações é possível perceber que desde os anos 1960 as minorias norte-americanas têm ocupado cada vez mais distritos eleitorais compactos, o que em última análise significa que, embora elas tenham passado a ter representantes em virtude dos novos critérios de redistritalização, os distritos foram compactando-se, o que tem reduzido o número total de representantes das minorias.

IV. PARA ALÉM DOS LIMITES

No último trecho do livro de Monmonier é possível perceber uma defesa sutil da idéia de substituição do sistema majoritário de representação pelo proporcional nos Estados Unidos, o que já ocorre nas eleições em alguns municípios do país. O objetivo seria evitar as distorções geradas na prática pelo sistema majoritário. Porém, o autor reconhece que a tradição é a principal barreira para as mudanças que ele acredita necessárias para o avanço da democracia norte-americana. O autor cita o fato de um funcionário credenciado de alto escalão do governo Clinton, Lani Guinier, ter em 1993 criticado o sistema majoritário eleitoral dos Estados Unidos e logo em seguida ser acusado de posicionar-se contra as tradições norte-americanas, o que o obrigou a deixar o governo. Monmonier lembra que qualquer sistema que queira promover a eqüidade de representação entre maioria e minorias só funcionará de fato nos Estados Unidos quando os afro-americanos, que são 1/8 da população do país, ocuparem a mesma proporção de cadeiras no Congresso, o que não ocorre ainda.

Ainda mostrando simpatia pelo sistema de representação proporcional, o texto lembra as experiências já existentes de representação proporcional em alguns estados norte-americanos que tiveram até quatro representantes por distrito, eleitos por ordem de votação, além dos municípios em que atualmente os conselhos locais são preenchidos por meio de eleições proporcionais, com votos múltiplos, de modo não exatamente igual ao sistema brasileiro, mas em que deixa de existir a disputa majoritária entre os partidos políticos.

Como conclusão, o autor mostra que durante os anos 1990 ficou evidente que o remapeamento com o objetivo de estimular as candidaturas de minorias não tem prejudicado em nada os eleitores da maioria branca. Pelo contrário: mesmo em distritos compactos de maioria hispânica ou afro-americana os candidatos democratas brancos também são votados, o que muitas vezes inviabiliza a representação das minorias por políticos afro-americanos ou hispânicos. Logo, concentrar minorias em distritos próprios não lhes garante representação. Também demonstra que o fato de um distrito possuir uma forma irregular não o torna mais difícil de representar no Congresso e que as novas tecnologias permitem desrespeitar a equidade da representação de minorias pelas nuanças de interpretação gerados pelo sistema. Principalmente, o livro identifica três inimigos naturais do sistema de representação majoritária em que o número de vagas no Congresso é fixo: encarecimento artificial da representação minoritária; impossibilidade da exata igualdade de representação da população devido à adoção de mais de um critério de distribuição dos distritos e incentivo à ganância dos integrantes de partidos políticos que usam os instrumentos disponíveis para aumentar suas chances de vitória eleitoral.

Por essas conclusões é que o livro Bushmanders & Bullwinkles torna-se interessante para todos os envolvidos na reforma política no Brasil: quando se fala em mudança do sistema de representação eleitoral, uma das correntes com mais força no debate local é a que defende a aproximação do nosso sistema ao dos distritos majoritários norte-americanos, apesar das falhas que possui.

Recebida em 2 de agosto de 2003

Aprovada em 12 de agosto de 2003

Emerson Urizzi Cervi (ecervi@netbank.com.br) é Doutorando em Ciência Política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e Professor da Faculdade Internacional de Curitiba (FACINTER) e da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2004
  • Data do Fascículo
    Nov 2003
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