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Apresentação

DOSSIÊ "FEDERALISMO"

Apresentação

Marta Arretche

Multiplica-se no mundo a adoção da fórmula federativa. Estados nacionais ameaçados de dissolução em vista de intensos conflitos étnicos ou religiosos adotam instituições federais. Estados nacionais ameaçados pela competição externa agregam-se em blocos que adotam alguma forma de divisão compartilhada no poder. Elites regionais inscrevem na agenda política a adoção de princípios de autonomia regional em estados unitários.

A julgar pelos argumentos apresentados, a motivação dos Federalistas - de que o ritmo das decisões seja retardado pela existência de muitas instâncias de veto - não está entre as principais motivações das federações surgidas no século XX. A ampliação das funções do Estado ao longo do século XX e a complexidade das decisões a serem tomadas operam no sentido de limitar a atração pelo princípio da dispersão da autoridade. Argumentos de inspiração tocquevilleana - baseados na superioridade da proximidade e da descentralização - permanecem, entretanto, atuais, orientando as demandas por autonomia regional e pela institucionalização de espaços locais que estimulem o engajamento cívico dos cidadãos. Paralelamente, a superioridade de um arranjo em que unidades autônomas racionalmente cedem parte de sua autonomia para obter um bem coletivo de interesse comum permanece como uma motivação importante. Em suma, a superioridade desse arranjo parece crível, a julgar pela disseminação da mudança na forma dos estados nacionais.

Entretanto, nosso conhecimento sobre a efetividade dessa promessa é ainda muito limitado. Na verdade, boa parte dos estudos sobre o real funcionamento das federações não dá razões para otimismo. Os estudos empíricos levar-nos-iam a crer que as federações são antes um "problema" que uma "boa solução". Parece haver um abismo entre as expectativas derivadas por suas anunciadas virtudes e as avaliações sobre as federações "em ação". É provável que esse abismo seja explicado por nosso limitado conhecimento sobre o modo como de fato funcionam as instituições políticas nas federações contemporâneas e, particularmente, que importância elas podem ter para o bom governo, para a democracia, para a redução das desigualdades. Este número da Revista de Sociologia e Política pretende ser uma contribuição, particularmente dedicado ao caso brasileiro.

O artigo de Jonathan Rodden sugere uma estratégia para a agenda de estudos empíricos sobre federalismo e descentralização. Demonstra que as federações de fato existentes são diferentes do modelo de federação suposto pelas teorias do federalismo fiscal. Além disso, considera que os estudos comparados não levaram suficientemente a sério a variação nas formas institucionais do federalismo e da descentralização, o que torna essencialmente problemáticas as conclusões obtidas pelos estudos quantitativos. Nessa perspectiva, o autor desagrega diferentes dimensões analiticamente relevantes para o estudo da descentralização e do federalismo e sugere que os estudos de caso são um caminho fértil para a identificação de variáveis e indicadores que permitam uma descrição mais precisa do fenômeno.

Os demais artigos deste volume dedicam-se à análise da federação brasileira. O artigo de Celina Souza apresenta uma caracterização da federação brasileira, pelo ângulo de suas definições constitucionais. Embora admita que as definições constitucionais não são suficientes para prever o funcionamento das instituições políticas, sua contribuição consiste em caracterizar as opções de desenho constitucional da federação brasileira. Apresenta a evolução desse desenho nas diversas constituições brasileiras e concentra-se na Constituição de 1988, descrevendo seu contexto de formulação e seus princípios constitucionais.

Os artigos de Fernando Abrucio e Daniel Vazquez dedicam-se à questão dos mecanismos de coordenação federativa. Fernando Abrucio defende a necessidade de mecanismos institucionais que permitam uma relação de equilíbrio e interdependência entre as unidades da federação; examina com detalhe as estratégias de coordenação federativa implementadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso e indica os desafios remanescentes para o governo Lula. Daniel Vazquez examina os resultados de um mecanismo de coordenação federativa na área de educação fundamental: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o Fundef. Mostra seus limitados impactos equalizadores no âmbito nacional, que são fortemente explicados pelo impacto da política de ajuste fiscal na fase de implementação.

O artigo de Aaron Schneider mostra a desigualdade entre os estados brasileiros no que diz respeito às oportunidades para a participação democrática. Tomando como objeto de análise a formulação do orçamento nos estados de Pernambuco, Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul, conclui que os conflitos políticos intra-estaduais - particularmente a polarização e fragmentação do sistema partidário - afetam a disposição dos governantes para democratizar a formulação do orçamento.

Finalmente, os artigos de Maria Hermínia Tavares de Almeida e meu próprio dedicam-se ao problema do grau de centralização-descentralização da federação brasileira. Maria Hermínia Tavares de Almeida dá particular atenção à agenda descentralizadora da redemocratização e à Constituição de 1988. Tomando como variáveis a definição de competências e a agenda da descentralização em políticas setoriais _ no seu caso, a política fiscal e diferentes políticas sociais -, conclui que a tendência predominante é a de um arranjo completo em que convivem tendências descentralizadoras e impulsos centralizadores. Não obstante, a iniciativa do governo federal permanece central para a produção de políticas que suponham arranjos cooperativos. Meu artigo concentra-se na análise da questão tributária e fiscal na história brasileira. Argumenta que o modelo brasileiro tendeu a combinar descentralização de receitas com centralização da autoridade sobre as decisões de arrecadação e de gasto, isto é, limitação da autonomia dos governos subnacionais para a regulamentação da cobrança de impostos e do destino do gasto. Mudanças de regime político não são suficientes para explicar as mudanças no sistema tributário e fiscal; a centralização decisória e o padrão de alianças em cada arena particular permitem melhor explicar essas variações.

Acredito que este volume reúne contribuições à compreensão das características peculiares do federalismo brasileiro e do modo como ele tem evoluído ao longo de sua história. Espero que ele incentive novos e mais trabalhos nesse campo de pesquisa.

Recebido em 17 de agosto de 2004

Aprovado em 20 de agosto de 2004

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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