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O terceiro setor como executor de políticas públicas: Ong's ambientalistas na baía de Guanabara (1990-2001)

The third sector as executor of public policies: environmental Ngo's acting in the Bay of Guanabara (1990-2001)

Le secteur tertiaire comme exécuteur de politiques publiques: Ong's écologistes dans la baie de Guanabara (1999-2001)

Resumos

Nos últimos dez anos a sociedade civil organizada brasileira vem ocupando espaços cada vez maiores na discussão, formulação e execução de políticas públicas. Representando um mosaico de instituições multifacetárias dotadas de singular capacidade de execução de ações locais com visão global, focalizamos especialmente as organizações não-governamentais ambientalistas que atuam em um estuário de grande importância para o estado do Rio de Janeiro e que sofre agressões diárias: a baía de Guanabara. Os nossos achados indicam que vários projetos de recuperação e/ou preservação ambiental desenvolvidos com a participação dessas entidades mobilizam voluntários e os meios de comunicação, sensibilizam a população para as questões ecológicas e contribuem para a educação de comunidades urbanas de baixa renda, delineando um relacionamento de homem e meio ambiente de maneira holística e configurando novos atores sociais. Assim, dão maior eficácia às intervenções públicas na recuperação da qualidade ambiental dos ecossistemas do estuário.

políticas públicas; organizações não-governamentais; baía de Guanabara; políticas ambientais; participação política; sociedade civil


Over the last ten years, organized civil society has gained a growing presence in the discussion, formulation and implementation of public policies in Brazil. Representing a mosaic of multi-faceted institutions endowed with a singular capacity to implement local actions from a global perspective, we focus particularly on environmentalist NGOs that act in the Bay of Guanabara, an estuary of great importance for the state of Rio de Janeiro that is subjected to aggression on a daily basis. Our findings indicate that several projects on environmental preservation or recuperation that have been developed with the participation of these NGOs mobilize volunteers and the media, sensitize the population to ecological issues and contribute to the education of low income urban communities, providing guidelines for a holistic relationship between humans and the environment and constituting new social actors. In this way, they provide more efficient means for public intervention in the recovery of the environmental quality of the estuary's eco-systems.

public policies; non-governmental organizations; Guanabara Bay; political participation; civil society


Au long des dix dernières années, la société civile organisée brésilienne occupe des espaces de plus en plus importants lorsqu'il s'agit du débat, de la formulation et de l'exécution de politiques publiques. Nous focalisons une mosaïque d'institutions multiformes, dotées d'une singulière capacité d'exécution d'actions locales à visée globale, surtout les organisations non-gouvernementales pour la protection de l'environnement qui subissent des agressions journalières et qui agissent dans un estuaire de grande importance pour l'état de Rio de Janeiro: la baie de Guanabara. Nos recherches indiquent que plusieurs projets de remise en état et/ou de préservation environnementale mis en oeuvre avec la collaboration de ces organismes écologiques mobilisent les volontaires et les moyens de communication. Ils touchent la population en ce qui concerne les problèmes écologiques et contribuent à l'éducation de communautés urbaines en difficultés, ce qui dessine un rapport homme et environnement de façon holistique et stimule l'intervention de nouveaux acteurs sociaux. Ainsi, ces ONG favorisent l'efficacité des interventions publiques dans la récupération de la qualité environnementale des écosystèmes de l'estuaire.

politiques publiques; organisations non gouvernementales; baie de Guanabara; politiques environnementales; participations politiques; société civile


ARTIGOS

O terceiro setor como executor de políticas públicas: Ong's ambientalistas na baía de Guanabara (1990-2001)1 1 Este texto resume os principais achados da dissertação de mestrado em Ciência Ambiental de Solange Maria da Silva Nunes Mattos, Recuperação ambiental na baía de Guanabara: avaliação das principais contribuições das ONGS ambientalistas, 1990-2001, RJ, defendida na Universidade Federal Fluminense, em novembro de 2002 (MATTOS, 2002), sob a orientação de Sandra Hacon e a co-orientação de José Augusto Drummond.

The third sector as executor of public policies: environmental Ngo's acting in the Bay of Guanabara (1990-2001)

Le secteur tertiaire comme exécuteur de politiques publiques: Ong's écologistes dans la baie de Guanabara (1999-2001)

Solange Maria da Silva Nunes Mattos; José Augusto Drummond

RESUMO

Nos últimos dez anos a sociedade civil organizada brasileira vem ocupando espaços cada vez maiores na discussão, formulação e execução de políticas públicas. Representando um mosaico de instituições multifacetárias dotadas de singular capacidade de execução de ações locais com visão global, focalizamos especialmente as organizações não-governamentais ambientalistas que atuam em um estuário de grande importância para o estado do Rio de Janeiro e que sofre agressões diárias: a baía de Guanabara. Os nossos achados indicam que vários projetos de recuperação e/ou preservação ambiental desenvolvidos com a participação dessas entidades mobilizam voluntários e os meios de comunicação, sensibilizam a população para as questões ecológicas e contribuem para a educação de comunidades urbanas de baixa renda, delineando um relacionamento de homem e meio ambiente de maneira holística e configurando novos atores sociais. Assim, dão maior eficácia às intervenções públicas na recuperação da qualidade ambiental dos ecossistemas do estuário.

Palavras-chave: políticas públicas; organizações não-governamentais; baía de Guanabara; políticas ambientais; participação política; sociedade civil.

ABSTRACT

Over the last ten years, organized civil society has gained a growing presence in the discussion, formulation and implementation of public policies in Brazil. Representing a mosaic of multi-faceted institutions endowed with a singular capacity to implement local actions from a global perspective, we focus particularly on environmentalist NGOs that act in the Bay of Guanabara, an estuary of great importance for the state of Rio de Janeiro that is subjected to aggression on a daily basis. Our findings indicate that several projects on environmental preservation or recuperation that have been developed with the participation of these NGOs mobilize volunteers and the media, sensitize the population to ecological issues and contribute to the education of low income urban communities, providing guidelines for a holistic relationship between humans and the environment and constituting new social actors. In this way, they provide more efficient means for public intervention in the recovery of the environmental quality of the estuary's eco-systems.

Keywords: public policies; non-governmental organizations; Guanabara Bay; political participation; civil society.

RÉSUMÉ

Au long des dix dernières années, la société civile organisée brésilienne occupe des espaces de plus en plus importants lorsqu'il s'agit du débat, de la formulation et de l'exécution de politiques publiques. Nous focalisons une mosaïque d'institutions multiformes, dotées d'une singulière capacité d'exécution d'actions locales à visée globale, surtout les organisations non-gouvernementales pour la protection de l'environnement qui subissent des agressions journalières et qui agissent dans un estuaire de grande importance pour l'état de Rio de Janeiro: la baie de Guanabara. Nos recherches indiquent que plusieurs projets de remise en état et/ou de préservation environnementale mis en oeuvre avec la collaboration de ces organismes écologiques mobilisent les volontaires et les moyens de communication. Ils touchent la population en ce qui concerne les problèmes écologiques et contribuent à l'éducation de communautés urbaines en difficultés, ce qui dessine un rapport homme et environnement de façon holistique et stimule l'intervention de nouveaux acteurs sociaux. Ainsi, ces ONG favorisent l'efficacité des interventions publiques dans la récupération de la qualité environnementale des écosystèmes de l'estuaire.

Mots-clés: politiques publiques; organisations non gouvernementales; baie de Guanabara; politiques environnementales; participations politiques; société civile.

Este texto pretende verificar os efeitos da interação entre novas formas de gestão pública descentralizada no contexto de políticas de despoluição urbana, com foco em projetos de recuperação ambiental na baía de Guanabara, e a atuação da sociedade civil, aqui representada pelas organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas. Pretende-se analisar a atuação dos atores sociais (ONGs e comunidades beneficiadas) e atores políticos (órgãos de governo) como promotores do desenvolvimento local, verificar como eles mobilizam-se em torno do planejamento e da execução de projetos e programas ambientais e identificar em que medida as comunidades são beneficiadas pelas ações das ONGs ambientalistas. Pretende-se dar uma contribuição, fundamentada em dados originais, ao estudo da questão do papel do terceiro setor em políticas públicas de elevada repercussão, executadas no contexto político-geográfico altamente visível de uma baía famosa e apregoada como símbolo de beleza natural, mas também alvo de inúmeras externalidades negativas e agressões, tanto rotineiras quanto acidentais.

A discussão nacional sobre a resolução das complexas questões presentes na estrutura social brasileira e o seu desenvolvimento em bases sustentáveis tem destacado, dentre outras noções, as de co-responsabilidade e complementaridade entre as ações efetivadas pelos diversos setores atuantes no campo social. A hipótese que orienta boa parte da literatura é que a interação de ações e agentes que implementam políticas públicas propicia a troca de conhecimento sobre as distintas experiências, proporciona maior racionalidade, qualidade e eficácia às ações desenvolvidas e evita superposições de recursos e competências. A noção de co-responsabilidade tem impulsionado a constituição de parcerias, o que implica reconhecer, entender e encontrar as melhores formas de relacionamento entre agentes com lógicas distintas de atuação, com objetivos comuns e sem perda de identidades nem desvio de missões institucionais específicas. Nesse sentido, as significativas diferenças e os conflitos entre as lógicas de governo, de mercado e da sociedade civil organizada são dificuldades entendidas como incentivos à constituição de arranjos cooperativos entre as partes. Devido à natureza diversificada e às funções que desempenham, as instituições governamentais, as organizações do mercado e as da sociedade aglutinam competências bastante diferentes, mas cuja complementaridade é cada vez maior e necessária.

A ativa participação das entidades sem fins lucrativos na sociedade brasileira remonta ao final do século XIX. O processo de constituição e consolidação das ONGs, hoje com presença tão forte no cenário nacional, é mais recente. Pertence às décadas de 1960 e 1970, marcadas por graves restrições político-partidárias impostas pela ditadura militar. O processo expandiu-se e consolidou-se basicamente nas décadas de 1980 e 1990, período em que as ONGs cresceram em número, ampliaram-se em escopo e tornaram-se mais visíveis. Apesar da sua evolução ainda recente, pode-se afirmar que as ONGs alcançaram papel relevante como catalisadoras dos movimentos e das aspirações sociais e políticas da população brasileira.

Autores como Petras (1990) e Moller (1991) criticam as organizações não-governamentais por promoverem a "profissionalização" do exercício da cidadania e por beneficiarem-se de um processo de empobrecimento da população, que reduziria sua capacidade de agir autonomamente, sem o apoio de atores "externos" como as ONGs. Herculano (2000), por outro lado, sustenta que não se pode negar que, onde faltam bens públicos ligados à educação, à saúde, ao saneamento básico, dentre outros, os benefícios produzidos pela ação dessas organizações para as populações representam ganhos substantivos cujo valor é difícil desqualificar. A literatura sobre o tema e sobre as suas implicações sobre a cidadania já é extensa (cf., entre outros, FERNANDES, 1985; LANDIM & FERNANDES, 1988; DINIZ, 1995; AVRITZER, 1997; SERVA, 1997; LANDIM, 1998; LANDIM & BERES, 1999; REILLY, 1999; CAMARGO 2001; VIEIRA, 2001).

O fato de essas organizações nascerem, em sua maioria, de iniciativas de intelectuais e profissionais altamente capacitados e descontentes com o Estado conferiu-lhes uma certa credibilidade e deu-lhes capacidade de constituir redes de comunicação e de intervenção. Afinal, esses líderes integram a elite do saber do país. Existe o outro lado da moeda, porém: essas organizações podem ser usadas pelo próprio Estado, atolado em uma máquina burocrática sucateada e incapaz de desempenhar as suas incumbências, para disfarçar e prolongar a sua inadimplência e mesmo a sua paralisia.

Em geral, não se espera nem se defende, mesmo entre os observadores simpáticos a essa faceta das ONGs, que elas substituam a organização popular ou as ações do Estado. Porém, há um consenso de que elas podem ocupar com eficácia espaços e lacunas deixados pelo Estado, movidas por preocupações privadas (ainda que com a missão de realizar o interesse público) e baseadas em redes de conhecimentos e em padrões próprios de eficiência e eficácia. Essas instituições não geram nem distribuem lucros, mas movimentam e transferem volumes financeiros significativos. Tornam-se cada vez mais profissionalizadas e formam o que alguns autores caracterizam como um mercado próprio (GARRISON, 2000).

Mesmo sem se aderir a uma perspectiva neoliberal extremada, dominada pelo imperativo da redução do tamanho e das funções do Estado, é fácil constatar que nos anos recentes disseminou-se nos sistemas democráticos ou representativos de muitos países ocidentais o conceito de que a responsabilidade social não é mais um atributo exclusivo do Estado, nem da ação cívica dos indivíduos tomados um a um. Além do fenômeno da emergência das ONGs, podemos verificar em pesquisas recentes que segmentos da sociedade civil brasileira, especialmente empresas que buscam exclusivamente o lucro, estão aderindo a ou tomando a iniciativa de realizar programas de "responsabilidade social". Seriam elas movidas por um sentimento de altruísmo? Provavelmente não, pois em uma economia globalizada essa atitude pode ser também uma estratégia capaz de ajudar as empresas a desenvolverem uma boa imagem junto aos seus consumidores, fornecedores e reguladores, implicando uma preciosa vantagem em um ambiente competitivo (COSTA, 2002).

Este estudo parte da premissa de que a sociedade civil e o governo estão buscando, cada vez mais, parcerias entre si e assumindo co-responsabilidade pela oferta de alguns bens públicos. Existe um consenso em expansão de que os recursos naturais - como categoria especial de bens públicos - precisam ser geridos de modo sustentável e conservados por quem faz uso deles (DRUMMOND, 2000). No caso aqui examinado, nota-se que a motivação maior dos atores é evitar erros do passado, como os enormes gastos em grandes projetos, como o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, no qual houve mais acidentes de percurso e menos resultados do que a cidadania tolera hoje em dia.

O presente estudo, sem pretender esgotar o assunto, busca contribuir para a discussão e o entendimento da questão da execução não-estatal das políticas públicas. O olhar recaiu sobre um ecossistema importante e de alta visibilidade, a baía de Guanabara, muito sacrificado por numerosas agressões ao longo de longos anos de laissez-faire e de intervenção estatal incompleta ou ineficaz, em função da urbanização e da industrialização típicas do modelo econômico em que vivemos, criador de exclusão social e de degradação ambiental. Constatamos que as ações de preservação e recuperação ambientais desenvolvidas pelas ONGs estudadas contribuem para resgatar, por meio da ação coletiva eficaz, uma relação mais harmoniosa entre homem e meio ambiente, há muito perdida.

O estudo busca dar resposta às seguintes questões: quais são as contribuições que as ONGs ambientalistas dão com o seu envolvimento em projetos de recuperação ambiental da baía de Guanabara? Elas atuam de maneira sinérgica com o governo e com as comunidades locais? Elas estão preocupadas com a eficácia do seu trabalho? As suas ações conseguem acelerar o desenvolvimento local?

Os resultados da investigação evidenciam a eficácia das novas formas da gestão descentralizada de políticas públicas, com a participação da sociedade civil, no contexto de um dos ambientes costeiros mais degradados do país, do ponto de vista ambiental e social. A baía de Guanabara e a sua bacia contribuinte, apesar da sua importância histórica, econômica, cultural, científica, social e ambiental, sofrem os efeitos de um processo secular de alteração e destruição, o qual se acentuou nas últimas décadas, com a implantação do modelo de desenvolvimento urbano-industrial (AMADOR, 1997; CANEDO, 2000).

A nossa abordagem foi qualitativa. Primeiramente, desenhamos o perfil das entidades a serem pesquisadas e elaboramos um questionário para obter informações; na segunda etapa, as instituições selecionadas foram contatadas por telefone ou via correio eletrônico, com as finalidades de sondar se aceitavam participar da pesquisa e de agendar entrevistas; a terceira etapa constou da aplicação dos questionários, em entrevistas pessoais conduzidas pelos autores nas sedes das entidades. O questionário constou de perguntas abertas, informando o entrevistado sobre o objetivo da pesquisa e esclarecendo que representantes de outras organizações também seriam entrevistados.

A pesquisa aplicou uma ferramenta de análise social denominada "Diagnóstico de grupos de interesses", utilizada na pesquisa Mapeamento e caracterização dos grupos de interesse da Shell Brasil na atividade de perfuração do Bloco BC-4 (Bacia de Campos), desenvolvida pela ONG Instituto Pro-Natura (2001). O método consiste na coleta de dados por meio da consulta direta aos indivíduos representativos dos grupos de interesse. Ele permite um levantamento mais autêntico das demandas, expectativas e problemas, freqüentemente não captados por meio dos canais formais de comunicação (questionários enviados pelo correio ou pela internete, folhetos e documentos institucionais etc.).

Assim, o depoimento e o discurso dos entrevistados, fielmente reproduzidos, foram as principais fontes de informações. No entanto, a nossa pesquisa baseou-se também em outras fontes, como revisões bibliográficas e de documentos de projetos e instituições, portais oficiais das organizações, além de visitas às comunidades envolvidas e aos locais onde se desenvolvem os projetos (entre outros, ver ASSOCIAÇÃO PROJETO RODA VIVA, 2000). Optou-se por trabalhar, basicamente, com a técnica de entrevistas semi-estruturadas, o que implica fazer poucas perguntas ao entrevistado. A maioria das perguntas foi colocada no transcurso da própria entrevista. Usou-se um roteiro de perguntas abertas2 2 O questionário foi testado por meio de aplicação e apresentação aos colegas de turma da autora principal, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense (PPGCA-UFF), para ajustes, críticas e sugestões. Foi submetido ainda à apreciação de Neyla Vaserstein, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, e da Professora Selene Herculano, do PPGCAUFF, a quem agradecemos pela colaboração. . Novas perguntas foram formuladas no transcorrer da entrevista, de acordo com as circunstâncias.

A escolha dos entrevistados não foi aleatória. Obedeceu aos seguintes critérios, na tentativa de formar uma amostra de informantes qualificados: do setor público, foram selecionados os órgãos diretamente envolvidos nas questões ambientais, sobretudo aqueles que financiam e/ou executam projetos de recuperação ambiental na baía de Guanabara; do terceiro setor, as organizações escolhidas foram selecionadas dentre as inscritas no Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas (Cnea), mantido pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Esse cadastro serve para pré-qualificar as ONGs ambientalistas para diversos fins, oferecendo uma amostra confiável das entidades desse tipo atuantes na baía de Guanabara, já que adota critérios rigorosos de seleção. Um segundo critério de seleção foi a indicação de outras ONGs pelas próprias ONGs contatadas. Usamos ainda a listagem de entidades que consta do cadastro elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (2000). Da sociedade civil, foram identificados líderes locais por meio de indicações feitas pelas próprias ONGs. Essas lideranças das comunidades beneficiadas pelos projetos desenvolvidos no entorno da baía de Guanabara foram entrevistadas à parte.

Do resultado da aplicação desses critérios e dos contatos com as ONGs por telefone ou correio eletrônico, foram selecionados para as entrevistas: no governo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro (Semads); das 26 ONGs fluminenses listadas no CNEA, oito foram entrevistadas por desenvolverem projetos de vulto no entorno da baía de Guanabara, embora algumas também atuem em outras localidades. Foram visitadas ainda quatro comunidades (de três municípios - duas em Magé, uma em São Gonçalo e outra em Niterói) beneficiadas pelas ações das ONGs. Foram entrevistadas as lideranças locais e fotografados aspectos dos trabalhos realizados pelas ONGs. As entrevistas e visitas foram realizadas entre maio de 2001 e março de 2002.

Duas das mais notáveis características do setor das ONGs no Brasil são a sua origem ainda recente e o crescimento meteórico do seu número. As ONGs mais antigas no Brasil não têm mais do que 30 ou 40 anos de idade, já que nasceram nas décadas de 1960, 1970 e 1980, via de regra como manifestações de crítica e resistência à ditadura militar e às suas políticas públicas verticalmente decididas e de alcance social limitado. A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), o Instituto de Estudos da Religião (ISER) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), por exemplo, todos do Rio de Janeiro, nasceram a partir de uma combinação de (1) ação cidadã, (2) acompanhamento sistemático de políticas públicas de grande capilaridade social (segurança pública, política salarial, assistência e seguridade sociais etc.) e (3) assessoria a movimentos e organizações populares.

Por muitos anos, pertencer a ONGs significava ser de oposição a quase qualquer governo - federal, estadual ou municipal. Com a redemocratização do país, a partir de meados da década de 1980, muitas ONGs transitaram para a condição de parceiras de certas coalizões de poder, atuando na formulação e execução de políticas públicas, configurando um novo ator social - o terceiro setor - que passou a assumir papéis asseverativos e até executivos de grande alcance social. As ONGs examinadas neste texto atuam nesse formato mais recente, embora as origens mais antigas do ISER emprestem-lhe um caráter de ONG "pioneira".

Quanto ao crescimento acelerado das ONGs, um levantamento da Associação Brasileira de ONGs (Abong) Abong) (ABONG, 1996; ver ainda ABONG, 1998a; 1998b; 1998c; 2002) mostrou o quão rapidamente se disseminaram as ONGs no Brasil. Ele revelou que cerca de 60% das 143 mais importantes ONGs do país tinham sido criadas depois de 1984 e 15,4% depois de 1989. Somente 21% das ONGs tinham mais de 20 anos em 1996. A pesquisa do WWF (apud GARRISON, 2000, p. 37) constatou que apenas 39,2% das ONGs ligadas às questões de meio ambiente existem há mais de 10 anos e que a grande maioria delas foi criada pouco antes ou pouco depois da II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92). Para além da sua crescente expressão numérica, o setor de ONGs no Brasil tem a sua relevância política reconhecida por uma literatura analítica relativamente extensa (citada acima) e até por relatórios de instituições governamentais de fomento (por exemplo, BNDES, 2001).

Isso se reproduz na amostra selecionada para esta pesquisa, pois as instituições entrevistadas são relativamente novas, em sua maioria fundadas entre os fins da década de 1980 e início da década de 1990. A exceção é o ISER, fundado na década de 1970, embora a sua área de meio ambiente tenha sido criada apenas em 1991. Em 2002, a idade média das ONGs aqui examinadas era de 13 anos. Isso demonstra que, em termos de gerar organizações específicas dentro da sociedade civil, o marco histórico do despertar para a questão ambiental no Brasil é bem recente.

Quando as organizações foram indagadas sobre os seus objetivos institucionais, percebe-se em suas respostas, apesar dos seus diferentes enfoques e metodologias, que elas têm ligação íntima com as seguintes questões: conscientização ecológica das comunidades de baixa renda, inserção das mesmas no meio ambiente, educação, disseminação de informações e formação de opinião. Verifica-se, também, que a pesquisa científica e social é uma tônica de grande parte destas instituições. O fato de prestarem serviços para as comunidades e, simultaneamente, enfocar cientificamente questões mais amplas relativas a políticas exige uma capacidade para abordar temas estruturais, incluindo as realidades e preocupações das populações locais, combinando o conhecimento técnico com a presença nas - e o conhecimento a respeito das - comunidades.

Em relação aos públicos-alvo das ONGs pesquisadas, existe considerável variedade. Incluem desde comunidades locais, passando por grupos sociais mais amplos e pelo governo, até a sociedade como um todo. Isso é um traço comum a muitas ONGs de vários tipos e setores: a de atuarem tanto na dimensão "macro" quanto na dimensão "micro".

Analisando os principais projetos desenvolvidos - listados no Quadro 1 (abaixo) - pelas ONGs entrevistadas, constata-se uma diversificação das ações. Elas atuam em nichos específicos, mas convergem para as questões educacional, de conscientização e de mobilização. A maioria desenvolve projetos que abrangem o fornecimento e a organização de informações e a conscientização das comunidades inseridas nos ecossistemas objeto de recuperação e/ou proteção. Diante disso, entendemos o trabalho das ONGs de acordo com a definição de Aquino Alves sobre terceiro setor (em que se inserem as ONGs) - ele representa um "espaço institucional que abriga ações de caráter privado, associativo e voluntarista que são voltadas para a geração de bens de consumo coletivo, sem que haja qualquer tipo de apropriação particular de excedentes econômicos que sejam gerados nesse processo" (Alves apud WOOD, 1999, p. 68), haja vista o caráter público que essas ações representam.


Constatamos que todas as ONGs abordadas têm um perfil de desenvolvimento de projetos sócio-ambientais e/ou de pesquisa, indicando a sua especialização para determinados fins. Algumas entidades disseram ter um perfil originalmente ativista, mas informaram que ao longo do tempo tornaram-se mais voltadas para a execução de projetos sócio-ambientais. Assim, as ONGs incorporaram um caráter propositivo e mesmo executivo, talvez em resposta às transformações globais. Para Giddens (1991, p. 46), "na era da globalização a participação em atividades coletivas está tornando-se um fator decisivo na constituição de identidades pessoais e nas biografias pessoais na moderna sociedade industrial". Fica patente que criatividade e inovações só podem surgir em ambientes abertos em que haja a discussão das idéias e o debate das opiniões. Os projetos coletivos acontecem na medida em que se relacionam com os projetos individuais. O terceiro setor é o campo propício para o desenvolvimento desses projetos coletivos.

Verifica-se, a partir dos dados do Quadro 2 (abaixo), que todas as ONGs estudadas têm assento em conselhos e comitês ambientalistas ou participam de algum cadastro oficial ou, ainda, de associações e consórcios. Isso indica um nível elevado de organização, facilitando uma ação profissionalizada e/ou em rede. Aponta ainda para uma intensa troca de informações ou, pelo menos, para a existência de fóruns apropriados para isso. Em nossa percepção, a importância desse fato reside em possibilitar que as ações dessas instituições disseminem-se independentemente dos governos, o que indica uma preocupação com a continuidade das intervenções.


O Quadro 3 (abaixo) traz os dados sobre a abrangência geográfica das ações das ONGs entrevistadas. Encontramos vários níveis de abrangência, de municipal a nacional, mas nenhuma delas atua em nível internacional. Vale ressaltar que as ações executadas são quase todas pontuais, sendo a exceção principal o ISER, pois a natureza de sua atividade leva-o a atingir uma população maior e mais difusa, em virtude da ampla divulgação de suas pesquisas. Isso indica uma vocação das ONGs para a implementação de ações locais (inclusive agendas 21), mesmo quando elas sejam dotadas de uma ampla visão de mundo.


Constatamos, a partir dos dados reunidos no Quadro 4 (abaixo), que 50% das ONGs são de base, ou seja, a participação comunitária angariada é grande, tanto na forma de voluntariado quanto na filiação à entidade. As demais contam com pouca ou nenhuma participação desse tipo, pelo fato de não ser esse o seu objetivo precípuo. Mesmo assim, desenvolvem ações e têm vínculos indiretos com comunidades urbanas de baixa renda.


O Quadro 5 (abaixo) contém dados sobre a infra-estrutura das ONGs. Foi observado nas visitas que na sua grande maioria as ONGs têm sedes apropriadas para o desenvolvimento de suas atividades, bem como boas instalações, inclusive equipamentos de informática. A maioria não dispõe de laboratórios, no entanto. Registramos ainda o alto nível de qualificação dos corpos técnicos de algumas ONGs e uma diversificação da formação do pessoal de outras. As fontes de recursos estão basicamente nos financiamentos e/ou patrocínios de projetos desenvolvidos, nos quais os principais financiadores são o governo, grandes empresas e agências internacionais. Com menor incidência, as entidades financiam-se com doações e com recursos próprios.


Analisando os dados do Quadro 6 (abaixo), de que constam os projetos específicos desenvolvidos no entorno da baía de Guanabara, verificamos o quase domínio do Consórcio Baía Azul, que se formou após o notório episódio de derramamento de óleo pela refinaria Duque de Caxias (da Petrobrás), em janeiro de 2000. Da multa de R$ 50 milhões cobrada pelo Ibama à Petrobrás, R$ 2 milhões e 400 mil foram alocados para o trabalho de replantio de manguezais no entorno da baía, a ser executado pelo Consórcio Baía Azul. O ISER também realizou um trabalho de pesquisa em função do acidente, encomendado pelo Semads. Outras iniciativas fora desse contexto foram desenvolvidas apenas pelo IBG e pelo Mundo da Lama, por estarem ligados especificamente à baía de Guanabara e ao ecossistema manguezal.


Os dados do Quadro 7 (abaixo), desdobrando os do quadro anterior, colocam a questão das metas previstas versus as realizadas, com base nos dados levantados nas entrevistas. Notamos em primeiro lugar um ponto de confluência em atrelar as atividades de reflorestamento à disseminação de informações, produção de conhecimento, sensibilização e transferência de valores para a sociedade. No tocante ao cumprimento de prazos e metas, é preciso considerar que esses dados são retratos parciais, pois espelham aquilo que a visão do entrevistado permite ou prioriza enxergar. Contudo, percebe-se um compromisso com as comunidades em concretizar o proposto, mesmo com recursos escassos.


Analisamos a seguir as informações obtidas nas entrevistas. O resultado da pesquisa efetuada pelo ISER3 3 Informações obtidas em entrevista realizada no ISER com Samyra Crespo, em 12 de março de 2002; os dados estatísticos da pesquisa não foram obtidos, por terem sido encomendados pela Semads. sobre a percepção do dano ambiental causado pelo derramamento de óleo (em janeiro de 2000) na baía de Guanabara fornece informações relevantes para a nossa análise. A pesquisa comparou a percepção da população da situação da baía antes e depois do derramamento. O resultado indica que as pessoas tiveram dificuldade em avaliar o dano, porque a baía de Guanabara já é vista como histórica e diariamente agredida. Ou seja, elas sabem que o problema agravou-se depois do acidente, mas estão convencidas também de que existem derramamentos diários em menor proporção, mas igualmente graves. Um achado interessante dessa pesquisa é que a imagem da empresa causadora do dano, a Petrobrás, não piorou depois do episódio de janeiro de 2000.

Outra questão levantada pela pesquisa do ISER diz respeito ao efeito do episódio sobre a atividade econômica no entorno da baía. Para a maioria dos entrevistados, a população que vive dos recursos fornecidos pela Baía de Guanabara já tem uma atividade econômica decadente, independentemente do derramamento recente. São julgadas necessárias, por isso, uma ampla política pública para a recuperação da baía e a criação de um Conselho Gestor para ela. No que tange às indenizações pagas pela Petrobrás, as pessoas em sua maioria consideraram que foram justas, que foram suspensas antes do tempo necessário e que foram transferidas para pessoas e entidades sem base em critérios adequados. Finalmente, as pessoas percebem conflitos de atribuições entre o Ibama, o estado e os municípios, mas atribuem ao estado do Rio de Janeiro a principal responsabilidade pela despoluição da baía da Guanabara. Consideram que se passaram anos de descaso público e que isso fez que os órgãos ambientais ficassem decadentes e sucateados, mesmo que se perceba o começo de uma melhora.

A pesquisa do ISER mostra, também, que é pequena a diferença entre a opinião da população atingida e a da população não-atingida a respeito do grande desastre ambiental representado pelo derramamento de petróleo de janeiro de 2000. A principal diferença é que a baía de Guanabara é valorizada como paisagem por quem não freqüenta as suas praias, por serem poluídas e/ou distantes, e por não dependerem dela para a sua sobrevivência. Podemos concluir, a partir dessa pesquisa, que o público em geral não tem a percepção de valor desse ecossistema enquanto patrimônio público e que a sua preservação exige uma postura mais ativa da sociedade civil. Notamos, nesse caso, uma ação voltada à integração das comunidades com o meio em que vivem, no intuito de disseminar um sentimento favorável à sua preservação. A ação ecológica passa pela instrumentalização de comunidades de baixa renda, de forma a levá-las a buscar a sustentabilidade.

As opiniões seguintes trazem para a discussão um aspecto interessante: a visão das organizações quanto à implementação dos projetos que não contemplam uma visão "holística", considerada essencial no trato das questões ambientais atualmente4 4 Não discutimos o mérito da questão sobre se a atuação das ONGs examinadas tem ou não caráter "holístico". Consideramos que a questão ambiental tende a ser tratada por elas de maneira holística ou interdisciplinar ou ao menos multidisciplinar. No entanto, como muitas vezes os financiamentos obtidos e as parcerias feitas exigem o cumprimento de metas específicas ou setoriais, as abordagens mais integradas ou abrangentes podem perder ênfase. De toda forma, nota-se que tipicamente cada organização tem uma "marca" na sua abordagem - ênfase na educação e na mobilização comunitária - o que tende a ampliar os efeitos de ações eventualmente focalizadas em metas mais estreitas. . Constatou-se a persistência de um ranço tecnocrático do Estado, que traz projetos prontos para execução, sem internalizar uma abordagem multidisciplinar. Para Jannuzzi (2002, p. 70), o processo de planejamento no contexto de uma sociedade democrática não pode ser conduzido de modo tecnocrático, como se as pressões políticas não fossem legítimas ou como se os interesses divergentes não devessem ser explicitados. O planejamento público é um jogo político legítimo, de que participam e devem participar técnicos de planejamento e vários outros stakeholders, isto é, outros grupos de pressão com interesse na definição das políticas, situados no governo, na sociedade civil e nas diferentes instâncias da burocracia pública (federal, estadual e municipal). Não é um processo linear, mas permeado de vicissitudes e sujeito a condicionantes político-institucionais.

Assim, a implementação das políticas depende também do papel crucial desempenhado pelo agentes encarregados de colocá-las em ação, os quais podem desenvolver ou criar barreiras adicionais à sua efetivação. Como em toda atividade dessa natureza, é importante garantir a participação e o controle sociais no processo, a fim de legitimá-lo perante a sociedade, garantir o compromisso dos agentes implementadores e alcançar a efetividade social almejada pelas políticas públicas. Afinal, as decisões públicas são sempre difíceis, já que os recursos são em geral insuficientes para atender à totalidade dos problemas. Jannuzzi (ibidem) e González (1999, p. 27) afirmam existir uma tendência emergente de necessidade do envolvimento de múltiplos atores nas políticas sociais, estabelecendo-se parcerias para o combate à pobreza em nível local.

De acordo com um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA apud ANDRADE, 1999, p. 6), "o Brasil não é um país que gasta pouco com a área social. O problema é que gasta mal. Os investimentos representam 20,9% do PIB, sendo que a média latino-americana é de 10,8%". As ONGs, nesse contexto, são importantes agentes de atenuação desse quadro de desperdício de investimentos sociais, reorientando a comunidade e os demais agentes públicos para soluções alternativas e eficazes. Guattari (1990, p. 52) já dizia que se precisa de "[...] uma autêntica revolução política, social e cultural, reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais, revolução que deverá concernir não só as relações de forças visíveis mas também a sensibilidade, a inteligência e o desejo". Esse movimento envolve, entre outras coisas, a articulação entre o social e o ambiental.

Camargo (2001, p. 18) relata que, historicamente, esse tipo de trabalho está vinculado às iniciativas de caridade das mulheres da alta sociedade, uma iniciativa essencialmente feminina, privada, por vezes ligada a preceitos religiosos. Só nas últimas décadas, em decorrência da luta por direitos humanos, civis e sociais, é que esse trabalho começou a ser visto, em algumas esferas da sociedade civil ocidental, como possibilidade de ação cívica, bem como de ação voltada para o bem alheio ou público. Nos anos 1990, o movimento chamado "Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida" revitalizou uma consciência adormecida na sociedade brasileira: a da solidariedade, traduzida em esforço voluntário. A partir desse movimento, surgiram muitos outros com a mesma proposta: fazer que a sociedade tome iniciativas próprias para resolver os seus problemas e, ao mesmo tempo, pressionar o Estado para que cumpra o seu papel de formular políticas públicas e executá-las com eficiência. Não casualmente, a engenharia institucional em construção ao longo do ano de 2003 para executar o "Programa Fome Zero", prioridade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, inclui a participação de numerosos organismos da sociedade civil em sua concepção, em seu acompanhamento e sua execução.

Essas idéias são relevantes para refletir sobre algumas práticas recorrentes de ONGs ambientalistas no entorno da baía de Guanabara. Muito esforço e pesquisa, muitas atividades e muitos recursos vêm sendo aplicados nessa área. As ONGs que cumprem funções públicas percebem a sua prática como uma nova forma de articulação de uma emergente esfera pública social e consideram-se precursoras de uma nova institucionalidade. Em suma, essas entidades podem assumir um papel estratégico quando se transformam em sujeitos políticos autônomos e levantam a bandeira da cidadania, da democracia e da busca de um novo padrão de desenvolvimento que não produza a exclusão social e a degradação ambiental.

Vimos que as ONGs brasileiras, particularmente no segmento ambientalista, apresentaram um crescimento muito rápido a partir da Eco-92. Vimos, também, que os seus objetivos, apesar de enfoques e metodologias diferentes, apresentam uma forte ligação com a questão educacional e de conscientização ecológica. O fato de terem públicos-alvo variados demonstra uma característica singular de atuação local - buscam-se nichos bem definidos, mas concebidos e elaborados a partir de uma visão global, já que o nível de instrução dos corpos técnicos dessas instituições é muito alto. Vimos ainda que esses corpos técnicos dedicam-se a alcançar a articulação entre o desenvolvimento social e a conservação ambiental.

As ONGs estudadas têm forte capacidade de mobilizar voluntários e profissionais para as questões da conservação da natureza, no sentido de revitalizar a consciência da solidariedade, traduzida em esforço cívico ou voluntário. Desenvolvem projetos de preservação e/ou recuperação de ecossistemas degradados, conseguem envolver as comunidades locais, otimizam os recursos escassos de entidades estatais tipicamente sucateadas ou falidas. Criam conexão das pessoas com a natureza e sensibilizam-nas para cuidar do que seria uma extensão de suas casas. Um dos resultados observados nos projetos bem-sucedidos é que as comunidades que dependem desses recursos naturais para as suas atividades produtivas assumem uma postura de seus guardiões.

Verificamos que as ONGs caminham para uma especialização e profissionalização de suas atividades, bem como para a formação de redes de relacionamento e fóruns de debates. Agrupam-se em consórcios e em frentes comuns de trabalho e participam de conselhos e comitês gestores de unidades de conservação. Detecta-se uma mudança em suas intervenções, antes mais voltadas para o ativismo de denúncia e protesto e agora mais asseverativas e mesmo executivas. Nesse quadro, elas exibem um traço bem peculiar, que é a preocupação com a eficiência e eficácia dos resultados de suas ações, traço baseado em sua consciência da precariedade - permanente ou passageira, não importa - da ação estatal e na necessidade de "fazer mais e melhor" do que o Estado.

As ONGs estudadas desenvolvem ações pontuais, à exceção de instituições de formação de opinião, como o ISER, voltadas para pesquisa e a disseminação dos seus resultados. Isso lhes confere um conhecimento das bases e uma conseqüente penetração nas comunidades, constituindo-se, entre outras coisas, em potenciais instrumentos de implementação de agendas 21 locais, atualmente em plena expansão pelo país afora. As ONGs conseguem alcançar, portanto, uma forte capilaridade social, um recurso valioso para qualquer coalizão de poder ou governo para implementar as suas políticas públicas na área ambiental e social. Assim, a existência de um espaço público não-estatal parece tornar-se cada vez mais condição necessária para a democracia contemporânea, que, como vimos, sofre hoje uma profunda crise de legitimidade. Enfrentar os desafios de aperfeiçoar os instrumentos de governabilidade e criar novas estruturas de governança, no que diz respeito à capacidade de ação estatal na implementação das políticas e na consecução das metas coletivas, são requisitos necessários para superar a crise da democracia representativa.

Não se deve esquecer que o crescimento do terceiro setor é um fenômeno mundial, que pressupõe um espaço democrático. A sociedade civil assumirá um papel protagonista, pois o Estado vem reduzindo a sua presença, tornando-se cada vez mais orientador e normatizador e cada vez menos executor. O espaço assim ganho pela sociedade civil parece ser irreversível, pois ela torna-se "constitucionalmente" (independentemente do que rezem os textos constitucionais) parceira do bem-estar comum. Ela alcança um nível de domínio e competência setoriais que o Estado não consegue mais ter.

Na medida em que as comunidades desejam maior nível de qualidade de vida e desenvolvimento social e em que o Estado distancia-se delas, amplia-se o espaço de intervenção do terceiro setor. As ONGs - principalmente as que desenvolvem projetos comunitários - atuam in loco, conhecem bem a realidade local de cada comunidade. Essa proximidade com a vida das pessoas faz grande diferença na eficácia do investimento. O Estado não vem conseguindo fazer isso sozinho com o mesmo sucesso.

Entretanto, não deve ser desprezado o princípio de que as políticas públicas são eminentemente prerrogativas do Estado e que precisam "irrigar" todo o organismo social. Assim, normativamente, continua a valer o imperativo de que os setores sociais eventualmente desorganizados não podem ser "punidos" com a ausência de oferta de bens públicos. Continua a valer a necessidade de que as políticas públicas, executadas diretamente pelo setor público, ou indiretamente pelo terceiro setor, contemplem todos os cidadãos, mesmo os desorganizados. Dessa forma, o corolário do avanço eficaz do terceiro setor não é o desmantelamento dos serviços públicos propriamente estatais e sim o seu aprimoramento, pois que sempre haverá diferenças no grau de organização dos diversos setores sociais e nos serviços que o terceiro setor pode oferecer-lhes. O papel do Estado moderno, democrático e voltado para o bem público é precisamente atacar e superar os eventuais desníveis no atendimento das necessidades e dos direitos (a esse respeito, ver ARRETCHE, 1996).

As ações das ONGs ambientalistas encontram respaldo no artigo 225 da Constituição brasileira: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (BRASIL, 2005). Isso significa que o meio ambiente, como bem público de uso comum da população, não pode ser objeto de apropriação privada ou estatal contrária ao interesse público. Impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio ambiente significa dizer que se, por acaso, o governo não tomar as devidas providências contra a degradação ambiental, os cidadãos e as suas associações devem contar com meios legais de exigir, com sucesso, a proteção ambiental.

Constatamos, também, que as ONGs desenvolveram uma capacidade de angariar fundos junto a financiadores, principalmente o governo e as instituições internacionais de fomento, para o custeio de suas atividades. Há, portanto, um campo fértil para a sustentabilidade das ONGs para além do simples dispêndio de parcelas dos orçamentos públicos. A isso devemos somar o fato distinto, mas aparentado, de haver uma tendência de aumento da responsabilidade social entre o empresariado brasileiro. Isso sinaliza não apenas ações diretas do setor privado com objetivo de produzir bem-estar, mas uma outra fonte de patrocínio para as atividades sócio-ambientais do terceiro setor, via parcerias entre empresas e ONGs. No Brasil, há 1,2 milhão de pessoas atuando em mais de 250 mil organizações não-governamentais, que movimentam cerca de R$ 12 bilhões anuais - o que corresponde a 1,2% do PIB brasileiro (VILELA, 2002, p. C-2) -, sendo que a tendência dessas cifras é ascendente O terceiro setor vem fazendo mais do que buscar atender às necessidades da sociedade que o governo e a iniciativa privada não atendem; ele é em si mesmo uma força econômica que gera, cada vez mais, renda e emprego.

A nossa pesquisa constatou, ainda, que o Estado, percebendo a contribuição social das ONGs, promove parcerias por meio de programas e projetos sociais, contemplando a sua participação em grandes projetos, como o Plano de Despoluição da baía da Guanabara, executado sob responsabilidade exclusiva do Governo. Nesse contexto, as ONGs apresentam-se como agentes de ampliação da cidadania, em um momento de construção das novas práticas sociais, que assinalam uma abertura maior de espaço na gestão das políticas públicas e novas relações entre Estado e sociedade.

A principal conclusão da nossa pesquisa sugere que as ONGs ambientalistas, atuando em conjunto com o governo, são um eficiente instrumento de planejamento e execução de políticas públicas na área ambiental. Elas promovem o trabalho voluntário, despertam o sentimento de cidadania e valorizam o bem público. Ajudam, ainda, a conscientizar a população acerca da preservação dos ecossistemas. Finalmente, constroem fóruns de debates abertos à sociedade civil, nos quais se consubstanciam soluções para problemas ambientais locais.

OUTRAS FONTES

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Recebido em 01 de março de 2004

Aprovado em 10 de setembro de 2004

Solange Maria da Silva Nunes Mattos (solange@aprec.org.br) é Mestre em Ciência Ambiental pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Diretora-Executiva da Associação de Proteção de Ecossistemas Costeiros (Aprec).

José Augusto Drummond (jaldrummond@uol.com.br) é Doutor em Recursos Naturais e Desenvolvimento pela University of Wisconsin (EUA) e Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB).

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  • 1
    Este texto resume os principais achados da dissertação de mestrado em Ciência Ambiental de Solange Maria da Silva Nunes Mattos,
    Recuperação ambiental na baía de Guanabara: avaliação das principais contribuições das ONGS ambientalistas, 1990-2001, RJ, defendida na Universidade Federal Fluminense, em novembro de 2002 (MATTOS, 2002), sob a orientação de Sandra Hacon e a co-orientação de José Augusto Drummond.
  • 2
    O questionário foi testado por meio de aplicação e apresentação aos colegas de turma da autora principal, do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense (PPGCA-UFF), para ajustes, críticas e sugestões. Foi submetido ainda à apreciação de Neyla Vaserstein, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, e da Professora Selene Herculano, do PPGCAUFF, a quem agradecemos pela colaboração.
  • 3
    Informações obtidas em entrevista realizada no ISER com Samyra Crespo, em 12 de março de 2002; os dados estatísticos da pesquisa não foram obtidos, por terem sido encomendados pela Semads.
  • 4
    Não discutimos o mérito da questão sobre se a atuação das ONGs examinadas tem ou não caráter "holístico". Consideramos que a questão ambiental tende a ser tratada por elas de maneira holística ou interdisciplinar ou ao menos multidisciplinar. No entanto, como muitas vezes os financiamentos obtidos e as parcerias feitas exigem o cumprimento de metas específicas ou setoriais, as abordagens mais integradas ou abrangentes podem perder ênfase. De toda forma, nota-se que tipicamente cada organização tem uma "marca" na sua abordagem - ênfase na educação e na mobilização comunitária - o que tende a ampliar os efeitos de ações eventualmente focalizadas em metas mais estreitas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      10 Set 2004
    • Recebido
      01 Mar 2004
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