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O Irã entre o Ocidente e sua autodeterminação

RESENHAS

O Irã entre o Ocidente e sua autodeterminação

Andrew Patrick

KINZER, Stephen. 2004. Todos os homens do Xá. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil.

Todos os homens do Xá, de Stephen Kinzer, aborda o golpe orquestrado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, que em 1953 derrubou o Primeiro-Ministro Mohamed Mossadegh, que dois anos antes nacionalizara o petróleo iraniano. Kinzer faz primeiro um interessante resumo da história do país e de seu controle por estrangeiros. Conta que em 1872 o Xá Nasir-Al-Din praticamente vendeu o país. Para ter-se uma idéia, Nasir vendeu ao Barão Julius de Reuter, pioneiro das agências de notícias, o direito exclusivo de comandar as indústrias do país, irrigar suas fazendas, explorar seus recursos minerais, expandir suas estradas de ferro e linhas de bonde, criar seu banco nacional e emitir sua moeda. O Xá vivia distante da realidade de seu país e de seu povo. A ele só interessavam as mulheres de seu harém e as festas nababescas; se para manter seu estilo de vida perdulário tivesse que leiloar o país, fá-lo-ia. Nos anos seguintes vendeu aos ingleses o direito de prospecção de minérios, de abrir bancos e aos russos a exclusividade na exploração do caviar. Todas as riquezas do país estavam em mãos estrangeiras. Mas em 1891, afundado em dívidas, o Xá Nasir-Al-Din foi longe demais: vendeu a nativa e artesanal indústria de tabaco aos ingleses. Os iranianos plantavam o tabaco em pequenas propriedades e outros cuidavam do beneficiamento do produto. Tomar isso dos locais e entregá-lo a estrangeiros foi uma afronta que despertou o sentimento nacional iraniano. O boicote ao fumo foi geral. O país parou de fumar em protesto à venda do patrimônio iraniano a estrangeiros. A chamada "Revolta do Tabaco" foi o começo do fim da subserviência do povo ao absolutismo.

O filho de Nasir-Al-Din, assassinado em 1896, repetiu os mesmos erros do pai. Em 1901 vendeu ao londrino William Knox o direito exclusivo de procurar e explorar petróleo que encontrasse em solo iraniano. Knox descobriu o produto, que logo chamou a atenção do governo britânico: o futuro do Irã no século XX estava selado.

Governos fracos, autoritários e completamente fora da realidade levaram o Irã a ser literalmente repartido ao meio. Em 1907, Grã-Bretanha e Rússia dividiram o país entre si. Os britânicos ficaram com o sul e os russos com o norte. Uma faixa entre as duas áreas foi declarada como de autonomia iraniana, limitada pelos interesses estrangeiros. O Irã não foi sequer consultado, mas apenas informado desse acordo assinado em S. Petersburgo. Em 1919, outro duro golpe: a Grã-Bretanha impôs ao Irã o chamado acordo anglo-persa, em que a potência ocidental assumia o controle do exército, do tesouro e das redes de transporte e comunicações.

Kinzer escreve de maneira ágil e direta, resumindo bem a situação do país na época, que, aliás, mal podia ser chamado de país, pois a soberania, item fundamental de um Estado-nação, fôra vendida a preço módico. No entanto, essa situação criou um sentimento de inconformismo no povo iraniano. Era um momento propício para a chegada de um líder carismático. E ele veio: Reza Khan. Treinado nas brigadas cossacas, Reza, à frente de um grupo de oficiais de sua confiança, derrubou o Xá e extinguiu a dinastia que vendera o país. Passou a governar com mão de ferro, como seu ídolo Kamal Ata Turk, o modernizador da Turquia. Assim como o líder turco, reprimiu o papel da religião na sociedade e estimulou o culto à sua personalidade. Aplicou sua vontade por meio do terror exemplar, por meio de castigos públicos, mas, por outro lado, diminuiu a influência estrangeira, proibindo a venda de terras a não-iranianos e revogou a concessão britânica para produzir moeda nacional. Construiu fábricas, portos, hospitais, edifícios, avenidas, introduziu o sistema métrico e o casamento civil. Em 1935, anunciou que não mais aceitaria que o país fosse chamado Pérsia, como era conhecido até então no exterior. Dali por diante a nação seria conhecida pelo nome usado pela própria população: Irã.

Com a eclosão da II Guerra Mundial, o Xá Reza não escondeu sua simpatia pelo nazifascismo, o que fez que os Aliados, temendo que o Irã se tornasse uma plataforma para ataques à União Soviética, interviessem e forçassem o Xá a abdicar em 1941. Em seu lugar, ascendeu ao trono seu filho Mohamed Reza Pahlevi, educado em Londres e que sequer falava persa. Os interesses britânicos no país fizeram que o Xá se tornasse um verdadeiro fantoche dos europeus, fazendo suas vontades sem maiores resistências, especialmente na escolha dos primeiros-ministros, os governantes de facto no regime iraniano.

Enquanto os britânicos enriqueciam, o país continuava cada vez mais desigual socialmente. O relato de Manucher Farmanfarmaian, diretor do Instituto Iraniano do Petróleo, a respeito das condições de trabalho na refinaria de Abadan, citado por Kinzer, é pungente. Segundo o autor, o salário era de cinqüenta centavos por dia, sem direito a férias remuneradas, licença por doença ou indenização por invalidez. As condições de vida eram extremamente insalubres, não havia água encanada ou eletricidade. No inverno, as chuvas causavam alagamentos e moscas infestavam os vilarejos. No verão, o teto dos barracos feitos de barris de petróleo enferrujados sufocava os moradores, enquanto os administradores da Anglo-Iranian viviam em enormes casas com ar-condicionado, piscinas e belos jardins.

A população de Abadan revoltou-se contra essas condições desumanas a que eram submetidos. Os protestos chegaram ao Majlis (parlamento), que passou a exigir um contrato melhor com os britânicos. Estes fizeram uma proposta que ficaria conhecida como Acordo Complementar, que, apesar de algumas melhorias - como a redução da área a ser explorada -, não oferecia algo a que os iranianos muito aspiravam: treinamento para cargos mais elevados nas companhias e abertura dos livros da empresa para auditores iranianos. Outra exigência era de um acordo mais justo: ao invés de receber apenas 16% do lucro da empresa, o Deputado Abbas Iskandari propôs que, ao exemplo do acordo recém-firmado entre norte-americanos e sauditas, a Grã-Bretanha dividisse os lucros pela metade com o Irã. Segundo o autor, que vê a situação sempre com os olhos do Ocidente, se a Grã-Bretanha tivesse aceitado logo essa proposta, o impasse teria sido solucionado com maior facilidade. Mas, ao menosprezar os iranianos com a típica atitude colonialista de superioridade, contribuiu para o crescimento de lideranças nacionalistas.

O maior deles foi Mohamed Mossadegh, um homem íntegro e incorruptível, comprometido com os direitos das mulheres e dos trabalhadores, que levou o Irã à nacionalização do petróleo. O apoio popular a Mossadegh, eleito em 1951, foi esmagador, beirando os 100%; nessas condições, não havia como executar um golpe. As coisas agravaram-se para os britânicos quando Mossadegh,ao descobrir que conspiravam contra si, rompeu relações diplomáticas com a Grã-Bretanha, expulsando de lá todos os agentes britânicos. Nesse momento os EUA fizeram sua entrada triunfal no processo. Kinzer, um democrata convicto, não perde uma oportunidade de lembrar que Harry Truman sempre tentou contemporizar, fazer que os britânicos aceitassem a nacionalização e que os EUA sempre foram a favor da autodeterminação dos povos; principalmente, o autor faz um paralelo com a atualmente baixíssima popularidade dos EUA na região, lembrando que o país era então admirado e que o "Grande Satã" era a Grã-Bretanha.

Entretanto, uma alteração no comando da política norte-americana favoreceria os golpistas. Saiu de cena Truman e entrou o republicano Dwight Eisenhower, um republicano que logo foi convencido pelo escritório da CIA em Teerã (liderado por Kermit Roosevelt, neto do lendário Presidente Theodore Roosevelt) que o Irã estava entrando em ebulição e prestes a cair na órbita soviética, o que poderia significar uma crise no abastecimento de petróleo. A partir daí, o livro ganha fôlego e torna-se um verdadeiro thriller de espionagem. Em um ritmo ágil e envolvente, Kinzer conta os detalhes do golpe. Turmas de baderneiros foram contratadas para fazer arruaças no centro da cidade em nome de Mossadegh. A depredação, o suborno de jornalistas para manipular a opinião pública, aliada ao embargo imposto ao país pela Grã-Bretanha, complicava a conjuntura econômica e social iraniana. Em 19 de agosto de 1953, arruaceiros pagos com dólares americanos e oficiais comprados com promessas de cargos marcharam rumo à casa de Mossadegh. O Primeiro-Ministro fugiu e o escolhido dos britânicos, General Zahedi, assumiu em seu lugar. O Xá, que se encontrava refugiado em Roma desde o início das instabilidades, foi chamado para retornar. O golpe, conhecido internamente como Operação Ájax, só se tornaria público décadas depois do fato consumado. Na época, os jornais noticiaram que uma grande manifestação popular derrubara Mossadegh, retratado como intransigente e fanático - pelo menos até 1980, quando o próprio Kermit Roosevelt revelou os detalhes do golpe em seu livro Countercoup: Struggle for Control in Iran.

A partir daí o Xá Pahlevi passou a governar como um ditador. A Anglo-Iranian teve que dividir seu patrimônio com mais cinco companhias americanas, uma holandesa e uma francesa. Essa companhia, que manteve o nome dado por Mossadegh - Companhia Nacional Iraniana de Petróleo -, concordou em dividir ao meio seus lucros com o Irã, mas manteve a negativa de abrir os livros da empresa a iranianos e a aceitá-los em seu Conselho-Diretor.

Kinzer, como bom democrata, opõe-se o tempo todo à intervenção britânica e critica, em todo o corpo do texto, a arrogância dos ingleses que consideravam um insulto ter que negociar com "nativos ignorantes" e ainda acreditavam piamente que a Grã-Bretanha tinha uma missão civilizadora nos países que dominava. Como desumanizavam os colonizados e apenas conviviam com a elite local, submetida a seus interesses, não enxergavam as péssimas condições de vida a que era submetida a maior parte da população. Por outro lado, para o autor, todo o mal surge no momento em que os republicanos chegaram ao poder nos EUA. Com a paranóia anticomunista crescendo cada vez mais, os golpistas da CIA não tiveram grandes dificuldades para convencer Dwight Eisenhower, o republicano então recém-eleito, de que o Irã estava prestes a tornar-se um país comunista, fenômeno que poderia espalhar-se pela região, tornando-se um desastre político imenso. Kinzer lembra que Truman, em repetidas reuniões com o Xá nos EUA no início da década de 1950, advertia-o da necessidade de melhorar as condições de vida de sua população - advertências a que o Xá não dava ouvidos. Sua obsessão era tornar-se a maior potência bélica da região, já que, como Chefe das Forças Armadas, seu único trunfo para manter-se no poder era o exército. Quando estudantes iranianos fizeram reféns na embaixada norte-americana, logo após o ex-Xá receber permissão para entrar nos EUA para tratar um câncer, no final de 1979, a maioria esmagadora dos norte-americanos não entenda o porquê daquela atitude. Como a Operação Ájax não era um fato conhecido e ainda era considerada mais uma das várias teorias da conspiração que surgem de tempos em tempos sobre determinado fato, o público norte-americano não sabia que os estudantes, ao protestarem contra a entrada do Xá nos EUA, temiam uma repetição da Operação Ájax para conduzi-lo novamente ao poder. Infelizmente, a clara posição política do autor impede que tenhamos uma visão mais clara do processo histórico. Como Kinzer chega às raias do maniqueísmo ao distinguir "democratas bonzinhos" de "republicanos turrões", torna-se difícil uma análise mais isenta dos fatos. Afinal, ao mesmo tempo em que há republicanos conservadores como Bush pai e Bush filho, não devemos nos esquecer de que Abraham Lincoln era um republicano e que foram eles que aboliram a escravidão nos EUA.

As teses que Kinzer defende em seu livro são a de que o golpe de 1953 foi a raiz do terrorismo e do anti-americanismo no Oriente Médio e de que se pode traçar uma linha entre a Operação Ájax e os atentados de 11 de setembro de 2001. Apesar de parecer, em princípio, um exagero, devemos lembrar-nos de que, em 1953, os EUA há pouco surgiam como uma das duas superpotências do planeta e começavam a saborear o poder de modificar regimes que não atendiam a seus interesses. O sucesso da Operação Ájax levou a tentativas similares na Guatemala, em Cuba, na Nicarágua e ao apoio a ditaduras militares sul-americanas como a brasileira, a argentina e a chilena, em nome do combate ao comunismo. No Oriente Médio os EUA dão, ainda hoje, seu apoio ao regime absolutista saudita, assim como já o deram à ditadura de Saddam Hussein, quando este era considerado um líder moderno e laico em contraposição ao regime religioso instaurado em 1979 no Irã. Mas, ao enumerar os motivos do anti-americanismo no Oriente Médio, não podemos esquecer-nos de que os EUA apoiaram Israel desde o seu surgimento, quando cerca de 800 000 palestinos foram expulsos de suas casas, fazendo que a antipatia aos norte-americanos, britânicos e à Organização das Nações Unidas (que fez a partilha da região sem consultar os palestinos) crescesse entre os árabes. Portanto, é questionável a tese de que a raiz da antipatia aos EUA, em todo o Oriente Médio, nasceu na Operação Ájax. Porém, o golpe de 1953 foi sem dúvida um fator que contribuiu sobremaneira no conceito que os povos da região têm dos governos norte-americanos. É importante lembrar que o golpe fez que os iranianos vivessem durante 26 anos sob um regime brutal. Em 1962, o Xá criou um plano de desenvolvimento, chamado "Revolução Branca", que beneficiava somente uma elite urbana em detrimento da maioria da população que vivia na zona rural, que não possuía sequer luz elétrica ou água encanada. O governo, ao invés de reinvestir os lucros dos seus projetos em programas sociais, passou a investir em tecnologia militar de ponta, tornando-se, em pouco tempo, o maior comprador mundial da produção bélica norte-americana. Assim, apenas aumentou o fosso entre a elite ocidentalizada e os pobres tradicionalistas.

A conseqüência da falta de apoio à agricultura foi um grande êxodo rural, que em dez anos chegou quase a dobrar o número de habitantes da capital, Teerã. Essa mão-de-obra desqualificada para serviços urbanos fixava-se nas periferias, inchando-as, evidenciando as abissais diferenças entre pobres e ricos, tanto econômica quanto culturalmente. O Xá proibiu o uso do véu pelas mulheres, fazendo que muitas delas, desacostumadas com tal situação, vivessem confinadas em suas casas. A censura ao clero e a invasão a uma escola religiosa, onde 70 estudantes forma mortos pelas forças do Xá, também contribuíram para a sua imagem de "inimigo do Islã".

O Xá sabia que, para implantar sua revolução precisaria usar de métodos repressivos. Assim, instaurou um regime ditatorial e silenciou a oposição usando para isso sua polícia secreta, a Savak, que funcionava nos moldes do Mossad israelense. Embora tenha sido oficialmente criada como um grupo de contra-espionagem, suas principais táticas eram a tortura e a intimidação, fazendo que os opositores do regime sentissem-se como prisioneiros em seu próprio país - e ainda com a conivência dos Estados Unidos e de Israel.

Em 1973, ocorreu a crise do petróleo, que provocou uma terrível inflação no país, levando ao desemprego mais de um milhão de iranianos, além de levar à falência muitos comerciantes que não conseguiram suportar a concorrência estrangeira no mercado. Em 1977, pela primeira vez a inflação passou a afetar também a classe média. Essa conjuntura, de inflação e repressão política e religiosa, culminaria na Revolução Iraniana de 1979, que derrubou um governante que, ao tentar manter-se no poder unicamente pela força, perdeu o apoio até das elites que até então estavam ao seu lado.

Portanto, a história do século XX mostra-nos que, se os norte-americanos são detestados no Oriente Médio, seus governos também pouco ou nada fizeram para mudar essa situação.

Recebida em 06 de março de 2005

Aprovada em 20 de maio de 2005

Andrew Patrick Traumann (andrewpatrick@uol.com.br) é Bacharel em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestrando em História e Política pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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