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Os limites da auto-análise

RESENHA

Os limites da auto-análise

Bruna Gisi Martins de Almeida

BOURDIEU, Pierre. 2005. Esboço de auto-análise. São Paulo : Companhia das Letras.

Por que a vida das grandes personalidades literárias ou dos grandes intelectuais gera tanto fascínio? Podemos especular que o deslumbramento resulte de certa curiosidade em desvendar o segredo da genialidade. Muitas vezes as biografias e autobiografias guardam um pouco desse caráter, de revelação daquilo que acreditamos ser "a" diferença, a especificidade que faz, por exemplo, Pierre Bourdieu ser "Pierre Bourdieu", o cientista social mais citado do mundo e um dos autores mais (re)conhecidos hoje no campo das Ciências Sociais. Mas como para desencorajar os leitores ávidos pelos segredos e fatos curiosos, Bourdieu abre seu Esboço de auto-análise com uma epígrafe receosa: "Isto não é uma autobiografia". Essa declaração é ao mesmo tempo um guia de leitura e uma advertência contra as interpretações a que o texto pode conduzir. O que se busca, ao contrário, é a análise, ou mais propriamente uma auto-análise, o que significa tomar como último objeto de reflexão sua trajetória e com isso objetivar a si mesmo como autor para compreender-se a partir de seus próprios conceitos. Mas por que tomou a si mesmo como objeto, Bourdieu não deixa claro. Talvez pela mesma razão porque se escrevem autobiografias: elas correspondem à necessidade subjetiva de retrospecto, de revisão, de síntese dos que chegam ao fim e olham para trás. Coerente com sua crítica à ilusão biográfica1 1 Segundo Bourdieu, as biografias e as histórias de vida teriam como pressuposto a idéia de que a vida é um todo coerente e orientado, com um início que seria uma causa primeira até um fim que seria também um objetivo para a trajetória. Esse tipo de relato organizaria, de maneira enganosa, a vida com uma lógica, um sentido que estabelece relações de causalidade entre os acontecimentos (BOURDIEU, 1996, p. 184). , reafirmou mais uma vez seu compromisso e gosto pela pesquisa sociológica, tornando o livro, nas palavras de Sérgio Miceli, "a resposta veemente a um roteiro quase típico-ideal de perguntas, que permitiriam deslindar a história social de um autor" (MICELI, 2005, p. 8).

Segundo nota da edição francesa, o livro foi redigido entre outubro e dezembro de 2001, nas vésperas de sua aposentadoria compulsória e poucos meses antes de sua morte (23 de janeiro de 2002). A primeira edição de Esboço de auto-análise foi lançada na Alemanha: Ein Soziologischer Selbstversuch (2002). Fruto de muitos anos de reflexão, esse livro seria quase uma versão reelaborada do último capítulo de Science de la science et réflexivité, cours du Collège de France 2000-2001 (2001b), que resume seu último curso. A edição brasileira, lançada pela Companhia das Letras, foi traduzida da edição francesa – Esquisse pour une auto-analyse (2004) – por Sérgio Miceli que acrescentou a essa edição notas explicativas, uma cronologia de vida e obra e uma Introdução intitulada "A emoção raciocinada".

Além de uma pequena introdução e uma conclusão, o livro está dividido em três grandes partes que não constituem capítulos propriamente ditos. Seguindo a intenção geral da obra e suas próprias indicações metodológicas, Bourdieu abre sua auto-análise não pelo início cronológico de sua vida (ou a menção a avós, pais etc.), mas pela descrição do estado do campo universitário francês, mais especificamente o da Filosofia parisiense na década de 1950, momento em que ingressou na vida intelectual. Como ele mesmo explicita, para compreender um indivíduo, para elucidar suas escolhas, ou melhor, suas "tomadas de posição" (afinal, ele não é um "existencialista"), é preciso saber antes qual posição objetiva o indivíduo ocupa no campo específico em que age, além das disputas abertas (ou veladas) e consensos tácitos característicos desse campo (BOURDIEU, 2005, p. 40).

Tendo apresentado o estado do campo intelectual francês em meados do século XX, sublinhado o predomínio da Filosofia e, nela, a hegemonia da filosofia sartriana, a segunda parte do livro é dedicada a compreender como ele próprio, Pierre Bourdieu, procurou inserir-se nesse espaço. Para isso, apresenta os confrontos e as afinidades entre ele e os outros agentes desse campo (os efeitos de "atração" e "repulsão" que os indivíduos exercem a partir de suas posições), assim como suas posições frente às diferentes concepções teóricas então correntes. Aqui Bourdieu descreve, em um dos momentos mais instigantes e fascinantes do livro, duas de suas grandes pesquisas, talvez as mais importantes do ponto de vista individual: uma realizada na Argélia e a outra na região do Béarn, no Sudoeste francês. Bourdieu foi à Argélia em princípio como soldado para lutar contra a guerra de libertação nacional argelina (1955). Foram suas experiências nesse país, pelo qual possuía um grande interesse político e científico, que promoveram, em certa medida, a conversão de Bourdieu da Filosofia para a Etnologia e, em seguida, para a Sociologia. A segunda pesquisa, sobre o Béarn, é em certa medida um ajuste com seu passado social anterior: Lasseube é a comunidade rural de origem de Bourdieu. Em um relato bastante emotivo, Bourdieu descreve o complexo processo de desnaturalização pelo qual passou para poder "objetivar" aquele mundo tão familiar. Desafio metodológico, mas também emocional e subjetivo de confrontação com o universo primeiro que o formou e do qual precisou distanciar-se: "O retorno às origens faz-se acompanhar de um retorno, embora controlado, do que fora recalcado. De tudo isso, o texto não guarda mais nenhum vestígio [...]" (BOURDIEU, 2005, p. 90). Juntamente com os relatos de suas primeiras pesquisas em Ciências Sociais, Bourdieu apresenta a forma quase obsessiva com que passou a conduzir as investigações sociológicas que fariam, nos anos 1970 e 1980, sua reputação, passando freneticamente de um objeto a outro. Tratou-se, podemos observar, de um projeto quase incessante de conhecer o mundo social "cientificamente" (isto é, objetivamente).

Na terceira e última parte do livro, Bourdieu apresenta os elementos propriamente biográficos, as informações mais íntimas, responsáveis pela formação de suas disposições de origem, de seu "habitus primário".

Bourdieu organizou esse trabalho de acordo com uma lógica analítica que parte de uma dimensão mais "objetiva" – a descrição (ácida e irônica) do estado do campo intelectual-filosófico-universitário francês no momento de seu ingresso – para chegar ao mais "subjetivo" – suas experiências de família, no colégio interno, durante a infância e a adolescência. Essa é uma operação (de resto, a maneira característica à la Bourdieu) de apresentar sua "intimidade" (ascendência, sotaque, modo de ser, trejeitos etc.), deixando claro que são elementos para análise sociológica. Mas a intenção de objetividade não torna essa retrospectiva menos carregada psicologicamente (e emocionalmente) com as evocações mais íntimas dos sofrimentos vividos na infância e das impressões deixadas por suas experiências. Esse é, em resumo, o plano do livro.

* * *

Pierre Bourdieu escolheu como último objeto de análise científica sua própria vida, sua própria trajetória. Talvez como a prova definitiva de seu sistema teórico, ele tentou analisar a formação de suas disposições intelectuais, a posição que ocupou no campo intelectual francês e a forma como essa posição objetiva (e sua evolução ao longo do tempo), orientou suas tomadas de posição científicas e políticas. Seria inútil buscar especular então qual a razão da escolha desse objeto: seja para "organizar o retorno do recalcado", como diz o próprio Bourdieu em um tom bastante "psicológico", seja para dar a versão oficial de si ou para "desencorajar as biografias e os biógrafos, como que revelando, [...] as informações que teria gostado de encontrar quando tentava compreender os escritores ou os artistas do passado" (idem, p. 133). Seguindo as orientações do próprio autor, é preciso indagar-se sobre a pertinência da análise desse objeto, a vida de Bourdieu, a partir desses conceitos e concepções.

Poderíamos pensar, por um lado, que a história de Bourdieu é, na realidade, a negação de sua própria constatação sobre o processo de violência simbólica que imprime nos habitus a inevitabilidade dos destinos sociais. Como argumenta Loïc Wacquant, retomando Raymond Aron, "Bourdieu foi a exceção às leis de transmissão do capital cultural que ele mesmo estabeleceu em seus livros iniciais" (WACQUANT, 2002, p. 96). Filho de um funcionário do correio de um vilarejo afastado na região do Béarn, Bourdieu teve uma origem social humilde. Foi sua excelência escolar que o conduziu ao mundo dos "herdeiros", da aristocracia escolar no Khâgne do Liceu Luis-le-Grand, lugar da "eleição dos eleitos" que reunia os melhores estudantes da França, no melhor curso preparatório para a École Normale Supérieure, onde Bourdieu seguiu, posteriormente, Filosofia, a melhor disciplina para promover a carreira daqueles que se destinavam, ou no mínimo aspiravam a um lugar no mundo da alta intelectualidade. No entanto, refletindo mais cuidadosamente, acredito ser exatamente essa contradição, esse desencaixe, o que nos possibilita compreender grande parte de suas tomadas de posição ou, ao menos, os seus fundamentos.

O próprio Bourdieu ressalta, no fim do livro, como conclusão para a análise, que é seu habitus clivado, movido pelas contradições características dessa posição, o que é capaz de elucidar sua forma particular de realizar a pesquisa e a escolha de certos objetos. A junção de sua origem social em um estrato baixo com o alto rendimento escolar gerou um sentimento de profunda ambivalência em relação à escola: "como se a certeza de si, ligada ao fato de sentir-se consagrado, fosse corroída, em seu próprio princípio, pela mais radical incerteza quanto à instância de consagração, espécie de mãe malvada, falha e enganosa" (BOURDIEU, 2005, p. 123). Essa relação ambígua com o mundo escolar parece acompanhá-lo durante toda a vida, chegando ao ápice no discurso que pronuncia em sua aula inaugural no Collège de France, em abril de 1982. Nesse momento da maior de todas as consagrações, honras e méritos ele decidiu, guiado pelo desconforto em participar do ritual de consagração definitiva, questionar o rito de instituição durante o próprio rito, gerando um enorme constrangimento. O que ocorreu pode ser lido em Leçon sur la leçon (1982).

Nesse sentido sua trajetória é, em certa medida, a confirmação de seu sistema teórico. Foi exatamente o seu habitus não adaptado, deslocado naquele espaço social que possibilitou uma visão "externa", distanciada daquela realidade que não era em nada natural para suas disposições. Como Bourdieu mesmo afirma em outro momento, são precisamente aqueles que ocupam posições em falso nos campos que "têm mais chances de tomarem consciência do que para os outros lhes parece evidente, pelo fato de se verem obrigados a se vigiar e a corrigir conscientemente os 'primeiros movimentos' de um habitus gerador de condutas pouco adaptadas ou deslocadas" (BOURDIEU, 2001a, p. 198). Ora, é bastante plausível concluir que ele concebeu essa dinâmica entre os diferentes habitus e as estruturas dos espaços sociais exatamente por ser a expressão de sua vivência. Esse ponto específico de sua teoria, que mostra como não existe apenas reprodução, que o distancia das concepções mais estruturalistas por dar espaço às contingências, é também o que possibilita uma existência como a sua. Essa existência, que negou seu destino social provável, permite que ele, por um lado, perceba a lógica da reprodução das desigualdades, mas permite também que ele postule a possibilidade de inadaptação entre o habitus e os espaços sociais, a possibilidade de deslocamentos que podem desorganizar as estruturas. Trata-se de uma certeza tácita da possibilidade de modificações.

A partir dessa relação entre o vivido e as estruturas mentais é possível concluir que foi também a especificidade de sua vida o fundamento de suas tomadas de posição políticas, convictas e engajadas; um engajamento diretamente ligado à preocupação genuína com as injustiças sociais. Passeron confidenciou que "aqueles que conheceram um pouco Bourdieu sabem que ele era capaz de sofrer profundamente, até de insônia, por causa das misérias do mundo, da arrogância e da hipocrisia das dominações sociais e de seus véus ou ornamentos simbólicos" (PASSERON, 2005, p. 25). Robert Castel considera, inclusive, que a "tensão entre sua consciência perspicaz do peso das coisas e sua vontade de mudá-las, porque essa ordem do mundo reflete uma enorme injustiça" (CASTEL, 2005, p. 354), seria uma tensão fundante de seu pensamento e, portanto, uma chave para a compreensão de sua obra. De fato, se considerarmos que o centro de seu sistema é justamente a tentativa de contemplar essas duas faces da realidade, a da tendência à reprodução e a da possibilidade de desestabilização constante, é preciso ter presente os fundamentos de sua visão do mundo.

Esse mesmo raciocínio é utilizado por ele para compreender Flaubert em As regras da arte (BOURDIEU, 1996b): o desencaixe do escritor no mundo (no caso de Flaubert, mais subjetivo do que objetivo e mais recusa que impossibilidade) e a negação em ajustar-se às posições que lhe eram oferecidas foi o que possibilitou o distanciamento necessário para a ampla visão do mundo social de que fazia parte. A visão global de todas as posições sociais, das oposições no campo do poder, só foi possível porque ele estava nesse espaço mas não se identificava com nenhuma das posições dadas; estava, por assim dizer, "desencaixado". Para Bourdieu, a possibilidade de enxergar as tomadas de posição teóricas no campo intelectual de maneira mais distanciada (as suas e as dos outros "concorrentes"), por não estar completamente adaptado àquela realidade, foi o que permitiu a formulação de seu sistema teórico, de seus conceitos e de sua forma peculiar de conduzir a pesquisa em Ciências Sociais, unindo o trabalho teórico com a pesquisa empírica. Foi justamente o fato de estar deslocado que lhe possibilitou perceber as falhas das posições teóricas vigentes e construir um sistema que tem como fundamento a recusa de todas as posições estabelecidas e dominantes no campo intelectual: desde o filósofo escolástico, que analisa o mundo à distância, até o sociólogo "norte-americano" que emprega métodos quantitativos e lança mão de explicações funcionalistas, passando pelo etnólogo estruturalista quase tão distante do mundo social quanto os filósofos. Foi em oposição a todas essas possibilidades teóricas que Bourdieu construiu seus conceitos, seu sistema. Levando tudo isso em consideração, podemos concluir que a vida de Pierre Bourdieu não é só um objeto interessante para ser compreendido a partir (ou em função) de seus conceitos, como é também o elemento-chave para a compreensão desses mesmos conceitos.

* * *

Bourdieu, naturalmente, estava ciente da dificuldade desse seu último projeto; sabia que não seria possível realizar a objetivação completa de si. Talvez por ter a veleidade de revelar "o que está por trás de tudo", é nesse Esboço de auto-análise – diferentemente dos outros livros –, que Pierre Bourdieu apresenta seus receios quanto às possíveis interpretações da obra, quanto às incongruências da empreitada. Parece sentir necessidade de uma justificativa, não-subjetiva, para o livro. Talvez estivesse reagindo à possibilidade de ser julgado incoerente, pois se por um lado denuncia a ilusão biográfica, por outro dedica um livro à sua própria vida. Uma auto-análise que não pode ser autobiografia nem auto-exaltação. Mas até que ponto é de fato possível realizar uma objetivação de si? Até que ponto é possível analisar a própria trajetória, a própria vida e suas escolhas a partir de um olhar distanciado? Uma das maiores críticas que Bourdieu apõe às biografias e autobiografias refere-se à tentativa de extrair um sentido e um plano para a existência narrada, uma lógica entre os acontecimentos e estados sucessivos da vida como se esta fosse orientada por uma intenção original e um objetivo final (BOURDIEU, 1996a, p. 184). Mas será possível uma objetivação tal que escape a esses problemas e "erros" quando se relata a própria história?

A exposição da própria trajetória, seja no gênero da autobiografia, seja dessa pretendida auto-análise parece-me estar necessariamente subordinada à memória, que seleciona e organiza acontecimentos e fatos e que tende, no fim das contas, a atribuir um nexo (às vezes causal, às vezes significativo) entre as experiências. Isso não quer dizer que qualquer tipo de relato biográfico esteja atado à mistificação de si ou seja prisioneiro do senso comum que algumas memórias autocongratulatórias evocam e não possa, portanto, ser utilizado para fins de pesquisa científica. A dúvida está na possibilidade de distanciamento da própria experiência. Mesmo Bourdieu não discordaria de que a justificativa subjetiva é condição para a ação, lembrando, tão a seu gosto, a teoria da ação weberiana. Podemos pensar também, como Bourdieu, que todo indivíduo só pode ser compreendido a partir da posição objetiva de um jogo (campo) específico e que, conseqüentemente, existem sempre as dimensões consciente e inconsciente das ações. Daí que essa dimensão inconsciente faria parte das estratégias objetivas que os agentes necessariamente operam no campo. Assim, será realmente possível ver nossas próprias razões também como estratégias sem assumir uma postura inevitavelmente cínica?

Poderíamos especular que esse intento é mais razoável para um indivíduo como Bourdieu, treinado para refletir, compreender e explicar sociologicamente o mundo social. Mas podemos pensar também que é igualmente mais difícil a um indivíduo como Bourdieu, para quem as convicções teóricas e políticas, os princípios e motivos parecem estar sempre presentes como fundamentos. Como lembrou Passeron, Bourdieu era alguém que "pensava ter encontrado a 'lei universal da gravitação social': a verdade newtoniana de sua teoria final havia-se tornado, a seus olhos, uma Causa universalmente válida, ao mesmo tempo científica e moral, que deveria ter alcançado, por sua coerência teórica, a unanimidade dos sociólogos e que, pelo menos na França, só lhe parecia ser contestada por gente medíocre, por razões mesquinhas, cientificamente impuras" (PASSERON, 2005, p. 25). Descontado o ressentimento provável de um desentendimento de 30 anos, não raramente encontramos relatos e evidências nos trabalhos de Pierre Bourdieu dessa crença na potencialidade política da verdade sociológica. Löic Wacquant, que também o acompanhou por muito tempo, afirma que ele compreendia a Ciência Social como uma espécie de "serviço público" que, a partir de sua capacidade de desnaturalização, poderia revelar as injustiças do mundo (WACQUANT, 2002, p. 100). Sem entrar no mérito da pertinência (ou utilidade) de sua visão sobre as Ciências Sociais, cabe aqui questionar a possibilidade de distanciamento das suas razões, quando elas parecem-lhe tão verdadeiras.

De uma forma geral, Pierre Bourdieu parece em alguns momentos apresentar uma visão idealizada de suas escolhas, sempre genuínas e coerentes com sua visão do mundo, com sua postura política. Além disso, não é possível encontrar no Esboço de auto-análise a análise do período em que autor e obra tornaram-se dominantes no campo da Sociologia (sem mencionar seu grande reconhecimento pelas outras disciplinas: Pedagogia, Crítica Literária, Historiografia etc.). Mas mais do que uma falha de sua auto-análise, essa "omissão" parece-me ser o resultado da impossibilidade de constatar criticamente sua própria hegemonia e conseguir exercê-la ao mesmo tempo, relativizando suas convicções.

É sempre possível argumentar que não cabe reivindicar essa postura pura em uma obra que, além de ser um esboço, está repleta de ressalvas e (auto-)explicações de antemão. Mas, por outro lado, talvez a leitura que enfatiza as dimensões e possibilidades analíticas seja a única possível, se queremos seguir as indicações de Bourdieu e tratar seu livro como mais um estudo científico de um "objeto" (no caso, ele próprio). O fato de esse esboço de auto-análise possuir inúmeras passagens emotivas, vazada em forma quase literária, que desperta em seus leitores e admiradores sentimentos de empatia, de uma identificação no seu aspecto mais subjetivo que é a identificação com o sentimento, faz praticamente toda forma de crítica correr o risco de parecer fria e insensível (e não como deveria ser: "objetiva").

Em todo caso, a conclusão central que, parece-me, pode ser extraída dessa discussão refere-se justamente à dificuldade mesma em explicar sociologicamente uma vida singular e as escolhas que fazem dela uma vida. Mesmo quando a experiência é-nos alheia, é muito difícil saber, no plano individual, de que forma relacionam-se as dimensões objetiva e subjetiva. É o que revela a passagem em que Bourdieu apresenta, de uma forma bastante destoante do resto do texto, a postura de acordo com a qual as causas internas parecem muito mais reais para a explicação da própria história: "[...] o trabalho desatinado era ainda a maneira de preencher um vazio imenso e de livrar-se do desespero ao demonstrar interesse pelos outros; o abandono dos píncaros da Filosofia pela miséria das favelas era, pois, uma espécie de expiação sacrificial de meus irrealismos adolescentes [...]. E tudo o que disse aqui a respeito das causas ou das razões de cada uma das experiências evocadas, como minhas aventuras argelinas ou meus entusiasmos científicos, mascara, portanto, a pulsão subterrânea e a intenção secreta que constituíam a face oculta de uma vida dilacerada" (BOURDIEU, 2005, p. 98).

Aqui Bourdieu parece abrir mão, por um instante, de todas as restrições sociológicas da auto-análise e expõe razões aparentemente "mais verdadeiras" porque inconscientes (ou melhor: conscientes da sua inconsciência) para suas escolhas. Apesar da passagem ser bastante clara no que se refere à percepção subjetiva das razões, não parece razoável simplesmente assumir que somente as causas internas são capazes de elucidar as experiências relatadas (o que estaria em contradição não somente com esse livro, mas com todo o projeto teórico de Bourdieu) e que podemos, portanto, descartar todos os argumentos utilizados anteriormente. Por outro lado, não devemos, igualmente, encarar essas explicações como uma percepção distorcida ou falsa dos fatos de sua vida. Esse trecho revela, na realidade, quando contextualizado e reinserido no livro, a quase impossibilidade de integrar, quando se trata da própria história, as causas subjetivas e objetivas. Demonstra a dificuldade em compreendê-las enquanto determinações simultâneas para a ação, que é o que de fato são.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_____. 2004. Esquisse pour une auto-analyse. Paris : Raisons d'agir.

CASTEL, R. 2005. Conclusão : Pierre Bourdieu e a rigidez do mundo. In : ENCREVÉ, P. & LAGRAVE, R.-M. (orgs.). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil.

MICELI, S. 2005. Introdução : a emoção raciocinada. In : BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise. São Paulo : Companhia das Letras.

PASSERON, J.-C. 2005. Morte de um amigo, fim de um pensador. In : ENCREVÉ, P. & LAGRAVE, R.-M. (orgs.). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil.

WACQUANT, L. 2002. O legado sociológico de Pierre Bourdieu : duas dimensões e uma nota pessoal. Revista de Sociologia e Política, n. 19, p. 95-110, nov.

Recebida em 25 de agosto de 2005.

Aprovada em 30 de outubro de 2005.

Bruna Gisi Martins de Almeida (brunagisi@gmail.com) é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política da mesma universidade.

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    Segundo Bourdieu, as biografias e as histórias de vida teriam como pressuposto a idéia de que a vida é um todo coerente e orientado, com um início que seria uma causa primeira até um fim que seria também um objetivo para a trajetória. Esse tipo de relato organizaria, de maneira enganosa, a vida com uma lógica, um sentido que estabelece relações de causalidade entre os acontecimentos (BOURDIEU, 1996, p. 184).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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