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Para além de uma "cidadania à brasileira": uma consideração crítica da produção sociológica nacional

Beyond citizenship in its "particularly Brazilian" form: critical considerations on national sociological production

Au-delà d'une "citoyenneté à la brésilienne »: un aperçu critique de la production sociologique nationale

Resumos

A literatura nacional acerca da "aventura da cidadania no Brasil" apresenta freqüentes sugestões de que os termos da ordem normativa moderna instalaram-se entre nós de uma maneira peculiar quando confrontados aos das chamadas "sociedades modernas centrais". Como indício dessa "excepcionalidade", faz-se alusão à pretensa particularidade da institucionalização de garantias e obrigações civis, políticas e sociais entre nós: os caminhos tomados, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivas de cada uma delas, tanto quanto seus principais pilares de sustentação, seriam a prova do "desvio normativo brasileiro". O presente artigo consistirá num esforço de revisão crítica: em primeiro lugar, farei uma consideração pontual e seletiva da literatura recente sobre "cidadania no Brasil" a fim de apontar dificuldades e dilemas analíticos. Em seguida, empreenderei uma problematização daquelas que julgo ser duas das principais ancoragens teóricas no pensamento social brasileiro, jogando luz sobre os elementos que influenciam de forma determinante interpretações a respeito da pretensa "excepcionalidade normativa" do Brasil moderno. Por fim, defenderei a necessidade de uma ênfase analítica na dimensão contingente da construção da cidadania a fim de se evitar abordagens "essencializantes" dos processos de definição de nossa ordem normativa. Para tal, farei algumas incursões historiográficas com o propósito de ilustrar a tentativa de contornar os dilemas assinalados a partir da operacionalização de duas idéias-chave: por um lado, a noção de oportunidades políticas e, por outro, a idéia conforme a qual direitos e deveres são não só categorias jurídicas mas também práticas situacionais.

cidadania no Brasil; Sociologia Política; modernidade; essencialismo


Brazilian literature on the "adventure of citizenship in Brazil" frequently suggests that the terms of the modern normative order were set up here in a peculiar form, if we consider them in relation to those prevailing in what are referred to as the modern societies of "the center". As an indication of this "exceptional nature", allusions are made to the supposed particularities of the institutionalization of political, social and civil guarantees and obligations in Brazil: the routes taken, the historical sequence that has ensued, the actual depth and breadth of every one of them and of the bases that sustain them, are seen as proof of "Brazilian normative deviance". The present article represents an effort toward critical review. I begin with a specific and selective consideration on recent literature on "citizenship in Brazil" meant to indicate some of the difficulties and analytical dilemmas. This is followed by a problematization of what I consider to be two of the main theoretical anchors of Brazilian social thought, in order to shed light on elements having a decisive influence on interpretations made regarding modern Brazil's alleged "normatively exceptional" character. Finally, I argue for the need for an analytical emphasis on the contingent dimension of citizenship building, in order to avoid "essentializing" approaches to the processes that define our normative order. For these purposes, I will make some historiographic incursions meant to illustrate the type of attempts that have been made to deal with such dilemmas through the operationalization of two key ideas: on the one hand, the notion of political opportunities and on the other, the idea according to which rights and duties are not only juridical categories but also situated practices.

citizenship in Brazil; Political Sociology; modernity; essentialism


La littérature nationale concernant « l'aventure de la citoyenneté au Brésil » suggère souvent que les termes de l'ordre normatif moderne se seraient introduits chez nous d'une façon particulière lorsqu'ils sont opposés à ceux des prétendues « sociétés modernes centrales ». Comme indice de cette « particularité », on évoque la prétendue singularité de l'institutionnalisation des garanties et des obligations civiles, politiques et sociales chez nous : les voies empruntées, la séquence historique avouée, l'étendue et la profondeur concrètes de chacune, aussi bien leurs principaux piliers, seraient l'épreuve de « l'exception normative brésilienne ». Cet article consiste en un effort de révision critique : d'abord, je parlerai d'une façon ponctuelle et sélective de la littérature récente sur « la cytoyenneté au Brésil » afin d'identifier les difficultés et les dilemmes analytiques. Ensuite, je me consacrerai à l'enjeu que j'estime être deux des principaux ancrages théoriques de la pensée sociale brésilienne, en éclairant les éléments influant nettement les interprétations concernant la prétendue « exception normative » du Brésil moderne. Enfin, je prônerai le besoin d'une mise en relief analytique de la dimension contingente de la construction de la citoyenneté afin d'éviter les approches «essentialistes » des processus de définition de notre ordre normatif. A cet effet, je mènerai quelques incursions historiographiques dans le but d'illustrer la tentative d'évier les dilemmes soulignés à partir de la mise en oeuvre de deux idées clés : d'une part, la notion d'opportunités politiques et, d'autre part, l'idée selon laquelle des droits et des devoirs appartiennent aussi bien à des catégories juridiques qu'aux pratiques situationnelles.

citoyenneté au Brésil; Sociologie Politique; modernité; essentialisme


ARTIGO

Para além de uma "cidadania à brasileira": uma consideração crítica da produção sociológica nacional1 1 Agradeço as valiosas sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política, que me ajudaram não só a ajustar os objetivos inicialmente propostos como também a aprimorar o argumento do trabalho. O presente artigo é fruto do desenvolvimento do projeto de pesquisa "Embates normativos e construção da cidadania na 'Era Vargas' (1930-1945): para uma problematização de duas tradições sociológicas brasileiras" (FAPEMIG - Processo nº: EDT 5/07).

Beyond citizenship in its "particularly brazilian" form: critical considerations on national sociological production

Au-delà d'une "citoyenneté à la brésilienne » : un aperçu critique de la production sociologique nationale

Sergio B. F. Tavolaro

RESUMO

A literatura nacional acerca da "aventura da cidadania no Brasil" apresenta freqüentes sugestões de que os termos da ordem normativa moderna instalaram-se entre nós de uma maneira peculiar quando confrontados aos das chamadas "sociedades modernas centrais". Como indício dessa "excepcionalidade", faz-se alusão à pretensa particularidade da institucionalização de garantias e obrigações civis, políticas e sociais entre nós: os caminhos tomados, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivas de cada uma delas, tanto quanto seus principais pilares de sustentação, seriam a prova do "desvio normativo brasileiro". O presente artigo consistirá num esforço de revisão crítica: em primeiro lugar, farei uma consideração pontual e seletiva da literatura recente sobre "cidadania no Brasil" a fim de apontar dificuldades e dilemas analíticos. Em seguida, empreenderei uma problematização daquelas que julgo ser duas das principais ancoragens teóricas no pensamento social brasileiro, jogando luz sobre os elementos que influenciam de forma determinante interpretações a respeito da pretensa "excepcionalidade normativa" do Brasil moderno. Por fim, defenderei a necessidade de uma ênfase analítica na dimensão contingente da construção da cidadania a fim de se evitar abordagens "essencializantes" dos processos de definição de nossa ordem normativa. Para tal, farei algumas incursões historiográficas com o propósito de ilustrar a tentativa de contornar os dilemas assinalados a partir da operacionalização de duas idéias-chave: por um lado, a noção de oportunidades políticas e, por outro, a idéia conforme a qual direitos e deveres são não só categorias jurídicas mas também práticas situacionais.

Palavras-chave: cidadania no Brasil; Sociologia Política; modernidade;essencialismo.

ABSTRACT

Brazilian literature on the "adventure of citizenship in Brazil" frequently suggests that the terms of the modern normative order were set up here in a peculiar form, if we consider them in relation to those prevailing in what are referred to as the modern societies of "the center". As an indication of this "exceptional nature", allusions are made to the supposed particularities of the institutionalization of political, social and civil guarantees and obligations in Brazil: the routes taken, the historical sequence that has ensued, the actual depth and breadth of every one of them and of the bases that sustain them, are seen as proof of "Brazilian normative deviance". The present article represents an effort toward critical review. I begin with a specific and selective consideration on recent literature on "citizenship in Brazil" meant to indicate some of the difficulties and analytical dilemmas. This is followed by a problematization of what I consider to be two of the main theoretical anchors of Brazilian social thought, in order to shed light on elements having a decisive influence on interpretations made regarding modern Brazil's alleged "normatively exceptional" character. Finally, I argue for the need for an analytical emphasis on the contingent dimension of citizenship building, in order to avoid "essentializing" approaches to the processes that define our normative order. For these purposes, I will make some historiographic incursions meant to illustrate the type of attempts that have been made to deal with such dilemmas through the operationalization of two key ideas: on the one hand, the notion of political opportunities and on the other, the idea according to which rights and duties are not only juridical categories but also situated practices. .

Keywords: citizenship in Brazil; Political Sociology; modernity; essentialism.

RÉSUMÉS

La littérature nationale concernant « l'aventure de la citoyenneté au Brésil » suggère souvent que les termes de l'ordre normatif moderne se seraient introduits chez nous d'une façon particulière lorsqu'ils sont opposés à ceux des prétendues « sociétés modernes centrales ». Comme indice de cette « particularité », on évoque la prétendue singularité de l'institutionnalisation des garanties et des obligations civiles, politiques et sociales chez nous : les voies empruntées, la séquence historique avouée, l'étendue et la profondeur concrètes de chacune, aussi bien leurs principaux piliers, seraient l'épreuve de « l'exception normative brésilienne ». Cet article consiste en un effort de révision critique : d'abord, je parlerai d'une façon ponctuelle et sélective de la littérature récente sur « la cytoyenneté au Brésil » afin d'identifier les difficultés et les dilemmes analytiques. Ensuite, je me consacrerai à l'enjeu que j'estime être deux des principaux ancrages théoriques de la pensée sociale brésilienne, en éclairant les éléments influant nettement les interprétations concernant la prétendue « exception normative » du Brésil moderne. Enfin, je prônerai le besoin d'une mise en relief analytique de la dimension contingente de la construction de la citoyenneté afin d'éviter les approches «essentialistes » des processus de définition de notre ordre normatif. A cet effet, je mènerai quelques incursions historiographiques dans le but d'illustrer la tentative d'évier les dilemmes soulignés à partir de la mise en oeuvre de deux idées clés : d'une part, la notion d'opportunités politiques et, d'autre part, l'idée selon laquelle des droits et des devoirs appartiennent aussi bien à des catégories juridiques qu'aux pratiques situationnelles.

Mots-clés : citoyenneté au Brésil ; Sociologie Politique ; modernité ; essentialisme.

I. INTRODUÇÃO

Há, na literatura nacional acerca da "aventura da cidadania no Brasil", freqüentes sugestões de que os termos da ordem normativa moderna instalaram-se entre nós de uma maneira um tanto quanto peculiar quando confrontados aos das chamadas "sociedades modernas centrais". Não se trata de dizer que as noções de direitos e deveres, universalmente definidas e ancoradas na abstrata figura do indivíduo-cidadão, sejam estranhas in toto à tessitura normativa do Brasil moderno. No entanto, nas mais variadas referências à institucionalização de garantias e obrigações civis, políticas e sociais entre nós, abundam as advertências de que o caminho tomado, a seqüência histórica assumida, a abrangência e profundidade efetivas de cada uma delas, tanto quanto seus principais pilares de sustentação, atestam uma peculiaridade - ou, no limite, certa "excepcionalidade". Dessa feita, em reflexões tão díspares quanto a de Vera Telles (1994), que qualifica de "enigma brasileiro" a durabilidade no Brasil moderno de "relações sociais que se estruturam sem a mediação dos direitos" (TELLES, 1994, p. 46), e a de Décio Saes (2001, p. 395), que se refere à "feição peculiar do processo de formação da cidadania [no Brasil]", parece-me claramente delineada a imagem de uma espécie de "cidadania à brasileira".

Em linhas gerais, o presente artigo pretende adentrar o campo de investigação a respeito das condições de possibilidade das transformações da cidadania no Brasil, a fim de abordar criticamente essa imagem de excepcionalidade que me parece permear parte significativa do tratamento acerca da institucionalização de direitos e deveres na moderna sociedade brasileira. Vale dizer, é notória, na produção científica nacional, a centralidade ocupada por alguns dos pressupostos do esquema conceitual de T. H. Marshall2 2 Nunca é demais lembrar que Marshall define o complexo da cidadania moderna nos seguintes termos: "O elemento civil é composto por direitos necessários à liberdade individual - liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e fé, o direito de propriedade e de concluir contratos válidos, e o direito à justiça. (...) as instituições mais diretamente associadas aos direitos civis são as cortes de justiça. Por direitos políticos eu entendo o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um corpo investido de autoridade política ou como eleitor de membros de tal corpo. As instituições correspondentes são o parlamento e os conselhos locais de governo. Quanto ao elemento social entendo ser toda uma gama de direitos, desde um modicum de segurança e bem-estar econômico até o direito de compartilhar por completo a herança social e de viver a vida de um ser civilizado conforme os padrões prevalecentes na sociedade. As instituições mais conectadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais" (MARSHALL, 1992, p. 8). . Cabe desde já um questionamento: não seria um paradoxo o fato de que, apesar de referir-se ao caso inglês, o retrato proposto por Marshall ser comumente adotado como referência primordial para pensar-se a pretensa especificidade normativa brasileira? Será precisamente esse o ponto articulador das observações críticas que se seguem. A meu ver, o paradoxo é apenas e tão-somente aparente: a freqüência e intensidade das alusões da bibliografia em questão ao referido esquema deve-se, em larga medida, ao fato dele ajustar-se àquela mesma imagem de "excepcionalidade normativa" projetada e alimentada por uma porção importante do pensamento social brasileiro. Ora, se o padrão de institucionalização de direitos e deveres observado na Inglaterra (ao menos tal qual narrado por Marshall) apresenta-se-nos como "o caso clássico" a partir do qual outras experiências contemporâneas podem ser mensuradas, então variações daquele retrato (sejam elas de cunho cronológico ou mesmo a subversão da célebre seqüência direitos civis ? políticos ? sociais sugerida por Marshall) seriam, no limite, provas cabais de "excepcionalidade normativa".

Mas, quais seriam os "andaimes" sobre os quais se sustentam essa imagem de "peculiaridade normativa"? Penso que há uma forte correspondência entre, de um lado, parte majoritária do tratamento acerca da "aventura da cidadania no Brasil" de atribuir o rótulo de "desvio" à experiência normativa brasileira e, de outro, a considerável resistência de parte importante de nosso pensamento sociológico quanto a colocar em pé de igualdade as linhas mestras da sociabilidade do Brasil contemporâneo e aquelas das chamadas "sociedades modernas centrais". Nesse aspecto em particular, minha atenção voltar-se-á para duas abordagens do pensamento social brasileiro que lograram delimitar, como nenhuma outra, o campo cognitivo no interior do qual operam as mais influentes interpretações e diagnósticos a respeito da modernidade no Brasil. Uma delas tende a atribuir a tal "excepcionalidade" à posição periférica e dependente do Brasil no sistema capitalista internacional. A outra tende a atrelá-la a certa herança patriarcal-patrimonial que remontaria ao nosso período colonial3 3 Tratei de forma sistemática cada uma dessas abordagens em Tavolaro (2005), denominando-as de sociologia da dependência (onde me referi especificamente a alguns dos principais aspectos dos pensamentos de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando H. Cardoso) e de sociologia da herança patriarcal-patrimonial (em que salientei algumas das importantes contribuições de Gilberto Freyre, Sergio B. de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta). . A meu ver, aí está o elemento complicador: conforme procurarei mostrar, essa correspondência faz que esforços voltados à explicação e interpretação da construção e funcionamento da cidadania no Brasil ganhem traços "essencializantes" na medida em que os embates e lutas em torno da ordem normativa brasileira são forçosamente obscurecidos - por vezes de maneira um tanto dramática - diante de certas "variáveis independentes". Dessa maneira, o caráter propriamente sociológico da análise, que no meu entendimento deveria ater-se primordialmente à dimensão agonística e contingente da definição das configurações de cidadania, é subrepticiamente deixado em segundo plano. A dinâmica normativa brasileira é então quase que "naturalizada", ainda que sob uma roupagem histórica e social: tácita ou explicitamente, condição periférica e dependente, em um caso, e herança patriarcal-patrimonial, em outro, são catapultadas à condição de "determinantes em última instância" de nossa pretensa excepcionalidade, ou seja, são apresentadas como fontes explicativas preponderantes do "desvio brasileiro" em relação aos pressupostos do retrato traçado por Marshall.

Obviamente, recai sobre os cientistas sociais a tarefa de investigar até que ponto essas "variáveis independentes" conseguem dar conta não só da grande variedade de configurações de cidadania que se institucionalizou em diferentes momentos da história brasileira4 4 Sobre a amplitude dessa variedade normativa, talvez seja suficiente aludir às disparidades existentes entre, de um lado, a configuração de cidadania delineada ao longo da chamada "Era Vargas" e, de outro, as mudanças iniciadas a partir do início dos anos 1990. , mas também dos inúmeros projetos díspares de normatividade que se confrontaram ao longo desses anos. Seria possível, a partir das noções de "posição periférica e dependente" e "herança patriarcal-patrimonial", captar toda a plêiade de mudanças que permeia a recente história brasileira? Tais noções seriam, além disso, capazes de explicar a miríade de projetos de normatividade (muitos deles consideravelmente divergentes e irreconciliáveis), ancorados em setores os mais variados da sociedade brasileira, que se confrontaram em torno da definição da configuração de direitos e deveres que, segundo esses mesmos projetos, deveria pautar a sociabilidade no Brasil?

É precisamente a intenção de salientar o aspecto contingente e "situacional" da construção da cidadania - e, dessa feita, evitar qualquer armadilha "essencializante" - que me leva a explorar duas idéias. A primeira delas, que faz referência à dimensão macro das "condições de possibilidade de transformações normativas", é a noção de oportunidades políticas. A segunda delas, a saber, a noção de luta por garantias legais como um conjunto de práticas situacionais, pretende jogar luz sobre a dimensão micro do processo de construção da cidadania, em que atores sociais diversos constroem projetos normativos díspares e embatem-se em torno da reconfiguração da ordem normativa. Ambas comportam elementos que permitem uma ênfase analítica na dimensão agonística e contingente da definição da normatividade. Conforme procurarei desenvolver, ao situar os processos de construção da cidadania moderna entre oportunidades políticas e práticas, a sociologia política afasta-se do perigo de tornar-se refém de percepções congeladas da dinâmica do social. Minha intenção, ao cabo desses esforços, é escapar à imagem de uma "cidadania à brasileira" em favor de considerações mais atentas a variações diacrônicas e sincrônicas (leia-se, contextuais e "situacionais") de configurações de direitos e deveres na tessitura mesma do Brasil moderno, para além de ancoragens explicativas a-temporais (uma vez mais, ainda que apresentadas e instrumentalizadas sob roupagens históricas). Para tal, ao longo e ao final do artigo, farei referências a certos eventos históricos - amplamente trabalhados seja pela produção historiográfica brasileira, seja pela produção no campo de nossas ciências sociais - que ajudam a revelar o caráter situacional e agonístico de algumas das diversas ordenações normativas que vieram a institucionalizar-se em diferentes momentos da história brasileira. Centrar-me-ei, ao final do artigo, em duas transformações históricas específicas que, consideradas à luz das noções de oportunidades políticas e de direitos e deveres como práticas "situacionalmente" vivenciadas, ilustram o caráter contextual e agonístico da construção da cidadania, a saber: as transformações normativas em torno da emergência da república e, em segundo lugar, a crise do arranjo normativo da "República Velha"5 5 Agradeço especialmente aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política pela sugestão de preencher esta lacuna do artigo a fim de tornar mais palpáveis minhas críticas à produção bibliográfica nacional acerca do que chamei de "aventura da cidadania no Brasil". . Minha intenção é, precisamente, chamar atenção para os vários "discursos dissonantes" que apontavam para uma configuração de direitos diversa daquela que imperava sob a égide das oligarquias agrárias.

Mas, antes de indicar essa alternativa analítica, o presente artigo consistirá num esforço de revisão crítica: em primeiro lugar, farei uma consideração pontual e seletiva da literatura recente sobre "cidadania no Brasil" a fim de apontar dificuldades e dilemas analíticos. Em seguida, empreenderei uma problematização daquelas que julgo ser duas das principais ancoragens teóricas no pensamento social brasileiro, jogando luz sobre os elementos que influenciam de forma determinante interpretações a respeito da pretensa "excepcionalidade normativa brasileira".

II. TRÊS VETORES, UM DIAGNÓSTICO: DA "EXCEPCIONALIDADE" NORMATIVA BRASILEIRA

Seria um equívoco assumir que a literatura científica nacional mostra-se insensível às redefinições políticas recentes e seus impactos sobre a cidadania. Ora, mesmo uma superficial consideração da produção acadêmica é facilmente capaz de confirmar não ser este o caso6 6 Um bom exemplo da sensibilidade da literatura para tais variações de configuração pode ser encontrado no estudo de Maria da Glória Gohn a respeito das transformações no perfil das relações sociedade civil- Estado ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990. Segundo a autora, "Nos anos 70 e até meados dos anos 80, era um tanto consensual entre os movimentos e as redes de assessorias que se deveria construir um contra-poder popular, uma força popular independente do Estado. [...] Ao longo dos anos 80, com a transição democrática, os movimentos passaram a ser interlocutores privilegiados do Estado, porque este estava se democratizando e buscando também mudar sua face aparente, de repressão" (GOHN, 1997, p. 313-314). Gohn afirma que nos anos 1990 aquele cenário viria a alterar-se uma vez mais já que o próprio Estado não mais precisava dos movimentos sociais para se legitimar, ao mesmo tempo em que os movimentos progressistas quiseram participar e criar um espaço democrático não-estatal. . O ponto nevrálgico, por assim dizer, parece-me ser de outra ordem. Trata-se do peso que, implícita ou explicitamente, certas noções caras ao pensamento social brasileiro têm nas explicações e interpretações sobre o perfil da normatividade no Brasil moderno, como se fossem determinantes em última instância, ou ainda, o motor por excelência de sua dinâmica e transformação. A problematização dessas atribuições explicativas enseja uma série de questionamentos: seria realmente possível identificar a existência de certos elementos e referências normativas permeando toda a história brasileira, a despeito de algumas inegáveis redefinições? Seria essa, então, a prova cabal da força determinante de certas "variáveis independentes", como que pré-definindo os rumos da sociabilidade e normatividade brasileiras? E mais: seriam as tais "variáveis" capazes de explicar até mesmo as subversões normativas que coloriram nossa história constitucional7 7 Que o digam os contrastantes contornos normativos facilmente observáveis em uma breve comparação entre as constituições de 1824 (de influência liberal e, ao mesmo tempo, legitimadora de um Estado não-secular), de 1891 (também de inspiração liberal mas marcadamente secular), de 1934 (que, como sabemos, combinava preceitos liberais e corporativos), e de 1937 (marcadamente corporativa e autoritária). Cf. Costa (1985), Lessa (1999) e Vianna (1978). ? O que dizer dos inúmeros projetos alternativos e lutas tendo em vista tais mudanças8 8 Que o digam, por sua vez, as diversas lutas populares que desde longa data habitam, com maior ou menor grau de organização, o universo político brasileiro (PRADO Jr., 1994). Talvez um exemplo bastante interessante seja justamente a luta sindical que coloriu o cenário paulista no início do século XX, contrapondo projetos os mais variados de normatização das relações capital-trabalho (socialistas, anarquistas, anarco-sindicalistas, comunistas, "amarelos", dentre outros) aos contornos liberais e não-intervencionistas das oligarquias que dominaram a política nacional entre 1891 e 1929. Além dos já clássicos Moraes (1978), Rodrigues (1966) e Simão (1981), v. também Araújo (1998) e Gomes (1979). ?

Entendo que respostas para algumas dessas perguntas demandam uma avaliação crítica da produção científica nacional acerca dessa problemática. Não há espaço aqui para um tratamento pormenorizado desse que se tornou um amplo e ramificado campo da produção brasileira. Foge, ainda, aos meus propósitos levar a cabo uma revisão cronológica dessa literatura. Em vez disso, pretendo realizar uma consideração seletiva e pontual a partir de três vetores que, no meu entendimento, permeiam tal produção de maneira a proporcionar suporte à idéia-força segundo a qual a construção e dinâmica da cidadania no Brasil mostrou-se (e ainda revelase) algo peculiar em relação às experiências das chamadas "sociedades centrais". São eles: a) primeiramente, a idéia de que os processos de modernização no Brasil desenrolaram-se de tal forma a não se concretizar um cenário de diferenciação social plena, ou seja, Estado, mercado e sociedade civil não chegaram a constituir esferas relativamente autônomas capazes de operar com base em códigos próprios9 9 Não resta a menor dúvida de que o padrão intervencionista do Estado brasileiro em um período que muitos vêem como sendo um dos marcos da modernidade no Brasil (FAUSTO, 1985), a chamada "Era Vargas", ajudou sobremaneira a moldar essa imagem de baixa diferenciação da dinâmica societal brasileira. Ver, a esse respeito, Carone (1977). ; b) em segundo lugar, afirma-se não ter havido um processo consistente de secularização da normatividade, razão pela qual valores e códigos de sociabilidade tradicionais fazem valer sua influência nas noções de direitos e deveres entre nós10 10 O ativo papel da Igreja Católica na dinâmica política brasileira, ao menos desde o início dos anos 1930, é freqüentemente resgatado como um sinal da "imperfeita secularização" dos domínios públicos brasileiros. V. Bruneau (1982). ; c) por fim, salienta-se a imperfeita e porosa separação entre âmbitos públicos e privados no Brasil, em virtude da qual o caráter universal da cidadania moderna não consegue prevalecer11 11 Estudos clássicos como o de Victor Nunes Leal (1977) comumente sugerem a instrumentalização do aparato público por lideranças políticas locais, regionais e mesmo nacionais em vista de benefícios e projetos privados, algo que não teria modificado-se de maneira radical nem mesmo após as seguidas ondas de modernização atravessadas pela sociedade brasileira (SOUZA & LAMOUNIER, 1990). .

Que fique bem claro: não quero dizer com isso que não tenha havido, em meio à tendência de tomar como fato consumado nossa pretensa especificidade política e normativa, empreendimentos auto-críticos a esse respeito nas ciências sociais brasileiras. Ora, já no início dos anos 1980, em um balanço da então recente produção brasileira sobre movimentos sociais, Ruth Cardoso (1983) chamava atenção à desconsideração, por aquela bibliografia, das semelhanças existentes entre nós e os "países centrais"12 12 De acordo com Cardoso (1983), ao colocar ênfase no processo de centralização e hiperdesenvolvimento do Estado brasileiro, aquela literatura fechou os olhos para um fenômeno comum às "sociedades desenvolvidas", com conseqüências também similares do ponto de vista do teor das lutas por direitos: tal literatura não se deu conta de que, tanto aqui como lá, o aparato político-adminidstrativo e seus planejadores tendiam a dialogar com os usuários e consumidores de serviços estatais, a despeito do sistema político autoritário vigente no Brasil. Cabe lembrar que Ruth Cardoso voltaria a realizar reflexões dessa natureza em Cardoso (1987) e Cardoso (1994). Uma extensa e cuidadosa auto-crítica realizada na década de 1990, igualmente voltada para a produção científica sobre movimentos sociais, pode ser encontrada em Gohn (1997), especialmente o capítulo 8 ("Movimentos sociais no Brasil na era da participação: 1978-1989"). Para uma revisão do ponto de vista da produção sobre sociedade civil, ver Lavalle (2003). . No entanto, ao mesmo tempo em que balanços críticos com essa tonalidade não foram a regra, a perspectiva da "excepcionalidade brasileira" foi a que tendeu a prevalecer.

Um exemplo privilegiado do primeiro vetor (a relação baixa diferenciação social Þ peculiaridade normativa brasileira) pode ser encontrado nas reflexões de Marcelo Neves (1996). Para ele, a sociedade brasileira (segundo o autor, um caso de "modernidade periférica") contemporânea difere das sociedades modernas centrais na medida em que "à hipercomplexificação social e à superação do 'moralismo' fundamentador da diferenciação hierárquica não se seguiu a construção de sistemas sociais que, embora interpenetráveis e mesmo interferentes, construam-se autonomamente no seu topos específico" (NEVES, 1996, p. 98). Por isso, de acordo com o autor, a modernização brasileira resultou num cenário de "complexidade desestruturada e desestruturante": observa-se entre nós um processo de superação da tradição e desagregação da moral convencional que, no entanto, não é acompanhado da formação de âmbitos e sistemas de ação autônomos (incluindo aí o Estado), por um lado, e de uma "moral pós-convencional" (vide Habermas) característica da modernidade central, por outro. As implicações normativas dessa modernização torta não poderiam, conforme Marcelo Neves, ser mais funestas: tendo em vista a sobreposição de esferas de sociabilidade, torna-se impossível a constituição de um sistema jurídico resguardado de outros códigos normativos e, dessa feita, dinamizado a partir de critérios próprios. Com isso, disparidades de poder (tanto econômicas quanto de natureza política) fazem-se sentir de forma um tanto quanto destrutiva, gerando insegurança generalizada nas relações de conflitos de interesse (pois que as fronteiras entre o lícito e o ilícito apresentam-se por demais nebulosas e generalizadas). Isso significa que o próprio Estado passa a atuar primordialmente como "palco de realização de interesses particularistas [...], à margem de textos constitucionais e legais de conteúdo democrático, cuja concretização possibilitaria a construção da cidadania" (NEVES, 1996, p. 101)13 13 Trata-se, conforme salientou Sérgio Costa, de um argumento bastante recorrente na literatura científico-social brasileira: "Afirma-se que, historicamente, 'tanto os setores empresariais como os trabalhadores urbanos definiramse como atores políticos pela via do Estado'. É como se a separação das esferas da economia, da sociedade civil e da sociedade política não houvesse sido plenamente completada" (COSTA, 1994, p. 50). Tal argumento, em cujo núcleo encontra-se a idéia segundo a qual a forte presença do Estado em todos os âmbitos da sociedade brasileira tolheu quase que completamente a construção de espaços públicos autônomos, acha-se difuso em uma ampla gama temática. Ver, por exemplo, o trabalho de Ferreira (1996) a respeito dos obstáculos à incorporação da qualidade ambiental ao universo de direitos, que segundo a autora, acham-se fortemente vinculados à seguinte questão: "o problema central na história recente da relação do Estado brasileiro com a sociedade e suas demandas é a inexistência do reconhecimento oficial e extra-oficial da dimensão concreta da cidadania" (FERREIRA, 1996, p. 247). . Em tais circunstâncias, prevalece, por um lado, certo "fetichismo legal" (pois que a lei funciona como "mecanismo de discriminação social") e, por outro, as figuras do subcidadão e do sobrecidadão14 14 Para uma consideração cuidadosa das noções de " sub e sobrecidadão" pelo próprio autor, às quais encontram-se vinculadas as idéias de " sub e sobreintegração" jurídica, ver Neves (1994). (notoriamente diferenciados em termos de possibilidades de fazer valer seus direitos e cumprir deveres)15 15 Ver Kant de Lima (1991) para uma defesa da idéia segundo a qual a própria estrutura do sistema processual penal brasileiro tende a reforçar desigualdades sócio-econômicas. .

Quanto ao segundo vetor (a relação baixa secularização Þ peculiaridade normativa brasileira), é também freqüente na literatura a noção conforme a qual concepções de mundo e valores tradicionais permanecem permeando os códigos de sociabilidade a ponto de impedir que uma normatividade de tipo pós-convencional, nos dizeres de Jürgen Habermas, instale-se de forma plena no Brasil moderno16 16 Os inúmeros trabalhos a respeito da constante presença do catolicismo na dinâmica social brasileira (mesmo que decrescente e, nas últimas três décadas, em favor de outras religiões, especialmente as pentecostais) sinalizam para essa direção. Para uma síntese esclarecedora (ainda que de um ponto de vista "estrangeiro") da literatura brasileira sobre o papel do catolicismo no Brasil, ver Casanova (1994). . Dentre as elaborações recentes, talvez o trabalho de Marilena Chauí (1994) seja um dos mais emblemáticos desse segundo vetor. Em suas reflexões a respeito das "raízes teológicas do populismo no Brasil", a autora identifica elementos de caráter mágico-religioso permeando a dinâmica política brasileira responsáveis por bloquear a difusão das idéias de igualdade de direitos e de igualdade jurídica dos cidadãos. Dentre esses elementos encontra-se a imagem do Brasil como pertencente "ao mundo da natureza e não ao mundo da cultura e da história", regido por Deus e administrado por Seu enviado (CHAUÍ, 1994, p. 23-24). Daí a imagem do poder humano como "um favor divino àquele que O representa", razão pela qual "[d]eixa de haver a coisa pública como terra comum da coletividade cívica e como fundo público" (idem, p. 26). Segundo a autora, é "com essa matriz que as classes populares têm acesso à política como luta entre o bem e o mal e na qual a questão não é a do poder, mas a da justiça e da felicidade" (idem, p. 25). Conforme Chauí, são três as conseqüências normativas dessa peculiaridade: a) "a impossibilidade de efetuar a idéia liberal da política como pacto ou contrato"; b) "a impossibilidade de realizar a política democrática baseada nas idéias de cidadania e representação"; e, por fim, c) "a impossibilidade de visualizar a idéia socialista de justiça social, liberdade e felicidade". Isso tudo porque aqueles elementos mágico-religiosos impedem a diferenciação entre a instância de poder e a lei, entre a instância da lei e a do saber social, e entre o poder e o ocupante do governo.

O trabalho de Teresa Sales (1994), por sua vez, revela-se representativo do terceiro vetor (a relação indiferenciação público-privado Þ peculiaridade normativa brasileira). Em suas reflexões a respeito das "raízes da desigualdade social na cultura política brasileira", Sales atribui importância nodal à "relação mando/subserviência, cuja manifestação primeira se deu no âmbito do grande domínio territorial que configurou a sociedade brasileira nos primeiros séculos de sua formação"17 17 Vale aqui salientar o parentesco entre essas reflexões e as de Evelina Dagnino (1994) a respeito do que qualifica como o "autoritarismo social" permeando a dinâmica da sociedade brasileira. Conforme a autora, trata-se de um "ordenamento social presidido pela organização hierárquica e desigual do conjunto das relações sociais [...]. [...] esse autoritarismo social se expressa num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade [...], um código estrito, que pervade a casa e a rua, a sociedade e o Estado [...] [e que] reproduz a desigualdade nas relações em todos os seus níveis" (DAGNINO, 1994, p. 104-105). . De acordo com a autora, "os mesmos senhores rurais que estão na base do incomensurável poder privado que foi a marca inconteste de nossa formação histórica até o advento da República, esses mesmos senhores que controlam os aparelhos de justiça, os delegados de polícia e as corporações municipais, são eles que amparam o homem comum de todos esses controles sob a proteção do clã" (SALES, 1994, p. 28). Por isso é que, para ela, o liberalismo dos senhores de terra no Brasil jamais passou de um "privatismo conservador", em que a dependência pessoal permaneceu elemento crucial para a durabilidade das relações de mando/subserviência. Conforme a autora, o declínio da sociedade agrária e do coronelismo não teve por implicação um novo tipo de equacionamento da relação público-privado já que a burocracia estatal, por meio de programas de governo assistencialistas, tendeu a reproduzir a porosidade entre os dois âmbitos em benefício da "privatização das relações sociais" - obviamente, sob o controle dos mais poderosos. Em tais circunstâncias, a institucionalização de direitos no Brasil configurou aquilo que Sales denomina de "cidadania concedida": os direitos básicos (de ir e vir, de justiça, à propriedade, ao trabalho) são tidos e vividos como uma dádiva, ou seja, como algo que é concedido em troca de subserviência pessoal. Ao invés de cidadãos detentores de direitos universais, têm-se beneficiários de favores concedidos por intermediários que instrumentalizam o Estado em causa própria. Assim sendo, o caminho da construção da cidadania no Brasil não poderia ser mais tortuoso: "freqüentemente começa pela cidadania social via programas sociais de governo" e mantém o Estado como agente fundamental "enquanto provedor de um welfare que, mesmo quando de bem-estar tenha muito pouco e quando assimilado qual dádiva pelas populações beneficiárias, propicia a existência de um contendor para os movimentos populares na luta pelos seus direitos" (SALES, 1994, p. 49-50)18 18 Para uma análise na mesma direção, ver ainda o dossiê: os movimentos sociais e a construção democrática (GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1999, p. 45-46): "A indistinção entre público e privado, subjacente a uma concepção oligárquica de política, em que os interesses privados assumem precedência sobre o interesse público, está no centro de uma matriz básica que continua presidindo a configuração da sociedade brasileira, e em relação à qual as instituições políticas da democracia representativa liberal se acomodaram sem rupturas significativas". .

É assim que se consolida, na literatura brasileira a respeito da construção da cidadania entre nós, uma imagem apenas parcialmente conciliável às experiências das "sociedades modernas centrais", ou ainda, uma espécie de espelho invertido da cidadania dos "países centrais". Nessa linha de argumentação, Vera Telles (1994) defende a idéia segundo a qual aquilo "que faz a nossa diferença está no fato de sermos uma sociedade que se construiu ao revés do imaginário igualitário fundador dos 'termos modernos', e nem mesmo chegou a garantir o princípio básico da equivalência jurídica que a noção de igualdade supõe" (idem, p. 9495). Assim, para a autora, não é de se estranhar que "a afirmação das diferenças, quando não repõe privilégios, é feita na lógica de discriminações que transfiguram desigualdades em modos de ser não apenas distintos, mas incomensuráveis" (ibidem).

III. A(S) CIDADANIA(S) NO BRASIL À SOMBRA DE UM DEVIR PRÉ-DEFINIDO

Deixe-me remeter o leitor a duas reflexões que me parecem sintetizar alguns dos dilemas analíticos aqui investigados. Num trabalho que veio a tornar-se referência inequívoca na produção nacional, Wanderley Guilherme dos Santos (1987)19 19 Vale lembrar que a primeira edição de Cidadania e Justiça data de 1979. É notória a posição de destaque que, desde então, o referido trabalho veio a ocupar na literatura científica brasileira. aponta os períodos de 1930-1943 e 1966-1971 como os mais significativos no tocante à institucionalização de políticas sociais no Brasil. Como bem sabemos, é com a expressão "cidadania regulada" que o autor cunha o padrão de cidadania que veio a prevalecer na Era Vargas e em períodos posteriores de nossa história. Por "regulada", Santos entende aquela configuração de direitos e deveres em que a atribuição do status de cidadão é vinculada ao exercício de funções definidas e reconhecidas pela lei. De acordo com o autor, historicamente, o processo de extensão desse tipo peculiar de cidadania deu-se por meio da sanção de novas profissões e/ou ocupações e, em segundo lugar, por meio da ampliação do escopo de direitos vinculados àquelas profissões. Isso significa, conforme W. G. dos Santos, que a extensão daquela ordem normativa não ocorreu por meio da expansão dos valores (tais como, renda, educação, saúde, moradia etc.) inerentes ao conceito de "membro da comunidade". Isso ajudaria a explicar o universalismo torto (já que significativamente restrito) de nossa normatividade: as prerrogativas de cidadania permaneceram embutidas na vida profissional dos indivíduos ao mesmo tempo em que os direitos dos cidadãos eram definidos de acordo com o lugar que ocupavam no processo produtivo conforme o reconhecimento legal (SANTOS, 1987). Dessa maneira, o universo de beneficiários das políticas de bemestar ficava circunscrito aos que obtinham a devida sanção estatal, tolhendo toda e qualquer atitude de confronto que almejasse autonomia em relação ao Estado. Vale dizer, a referência de W. dos Santos à Alemanha de Bismarck talvez pudesse ser vista como uma nuança ao rótulo de "particularidade brasileira" atrelado à "cidadania regulada"20 20 Conforme o autor, "Marcante na evolução brasileira [...] é o fato de que os períodos em que se podem observar efetivos progressos na legislação social coincidem com a existência de governos autoritários [ou seja, Era Vargas e o pós-1966]. Nessa conexão, a experiência brasileira aproximar-se-ia da estratégia bismarckiana de tentar obter a aquiescência política do operariado industrial em troca do reconhecimento de alguns de seus direitos civis [...]" (SANTOS, 1987, p. 89). . Mas a imagem de "excepcionalidade" ganha fôlego renovado tão logo se observa que o autor atribui peso determinante à "tardia industrialização brasileira" na definição de nossa ordem normativa contemporânea, além de causa maior do atraso no processo de complexificação social. Assim, segundo W. G. dos Santos, caberia àquele fator a responsabilidade pela institucionalização da cidadania no Brasil ter assumido uma ordem, ritmo, formato, escopo e objetivo incomparáveis àqueles observados nos chamados casos clássicos. A imagem de uma "cidadania à brasileira" torna-se, então, claramente delineada: a) nela, a dimensão social não só teria experimentado precedência temporal sobre as demais; b) essa mesma dimensão social seria suficientemente preponderante para configurar o campo normativo conforme sua própria lógica; c) a isso se agrega a idéia da neutralização de lutas e conflitos (contrários àquela lógica) por aquele ente responsável pela implementação e regulação dos benefícios sociais, a saber, o Estado.

Por um caminho um tanto quanto diverso, José Murilo de Carvalho (2001) chega a um retrato consideravelmente similar do padrão de cidadania que veio a predominar no Brasil moderno. Ao denominar tal padrão de "cidadania passiva", Carvalho joga luz sobre a Era Vargas para argumentar que entre nós prevaleceu, na maior parte dos casos, a institucionalização de direitos "desde cima" e, paralelamente, a noção de que garantias individuais tenderam a permanecer atreladas às ações governamentais. Nesse sentido, tal qual W. G. dos Santos, Carvalho (2001) defende que: a) via de regra, prevaleceram, nos diferentes momentos da tessitura normativa brasileira moderna, a dimensão social da cidadania em detrimento dos direitos políticos e civis; b) em tais circunstâncias, a garantia da cidadania tendeu a ser vislumbrada como resultante da gratidão e lealdade do beneficiário face ao Estado. Vale dizer, não se trata, para o autor, de um padrão normativo que tenha se esgotado no período 1930-45. Ao contrário, parece sintomático para J. M. de Carvalho o fato de que o regime militar (1964-1985), em vez de ter subvertido a lógica normativa da Era Vargas, acabou levando-a ao extremo na medida em que unificou e universalizou o sistema de seguridade social (com a criação do INSS e a extensão dos direitos sociais aos trabalhadores rurais).

Mas, conforme salientei, a fonte explicativa de Carvalho (2001) para a "excepcionalidade brasileira" é um tanto quanto diferente daquela utilizada por Santos (1987); em vez de "industrialização tardia", o autor atém-se a dois fatores para explicar os freqüentes obstáculos ao enraizamento de direitos políticos e civis na normatividade brasileira: de um lado, o papel central da escravidão, do latifúndio e da constante intrusão de interesses privados na dinâmica do Estado e, por outro, nossa herança ibérica. Vale dizer, para o autor, a despeito de remontarem à nossa história colonial, ambos teriam permanecido de uma forma ou de outra ativos até os dias atuais. A questão crucial é que, segundo Carvalho, tais aspectos sempre e mostraram-se alheios às noções normativas que emergiram com o Iluminismo: o direito natural e a liberdade individual. Daí, pois, o hiato que nos separa das sociedades modernas centrais.

Uma vez mais, seria erro grosseiro afirmar que a literatura especializada mostrou-se insensível a quaisquer tipos de contra-tendências ou mesmo a indícios de transformações no tecido normativo brasileiro. A bem da verdade, a dinâmica política da primeira metade dos anos 1980 deu margem a análises bastante otimistas quanto às mudanças em curso e de suas implicações para o aprofundamento e ampliação do universo de direitos e de seus beneficiários. Para muitos, os ares da redemocratização e a efervescência política que a acompanhou apresentaram-se como provas da subversão quase que definitiva da timidez e superficialidade da cidadania entre nós21 21 Nesse sentido, talvez não seja tão exagerado afirmar que o artigo de Tilman Evers (1984) assumiu, naquele contexto, um papel emblemático. Para enfatizar o que argumentava ser a novidade oculta dos novos movimentos sociais, Evers elencou uma enorme lista dos "novos grupos sociais" a ocupar o então renovado cenário político brasileiro, colocando em evidência a diversidade e complexidade políticas gestadas ainda durante a ditadura. . Nesse sentido, naquele clima de pujança mobilizatória, Eunice Durham acreditava que "[a] transformação de necessidades e carências em direitos, que se opera dentro dos movimentos sociais, pode ser vista como um amplo processo de revisão e redefinição da cidadania" (DURHAM, 1984, p. 29). Mas, ainda assim, não se dissiparam as desconfianças quanto à autenticidade e alcance das transformações em curso: contrastando a sociedade brasileira à norte-americana, supostamente marcada por uma correspondência entre os preceitos legais da Constituição e a dinâmica social concreta, Eunice Durham afirmava que a onda de mobilização dos anos 1980 seria uma experiência totalmente nova no Brasil, "um processo de construção coletiva de uma nova cidadania" uma vez que "não temos uma tradição democrática desse tipo, nem uma tradição de gestão coletiva na vida política. Os direitos que constam das nossas leis foram importados e sempre se mostraram inoperantes" (DURHAM, 1984, p. 29; itálicos meus). Ou seja, mesmo num clima intelectual e político de otimismo, como o foi aquele de meados dos anos 1980, reaparece como um fantasma o abismo entre a tessitura normatividade brasileira e a dos "países modernos centrais"22 22 Evidentemente, não é minha intenção reduzir o teor da produção brasileira da década de 1980 em torno da cidadania ao adjetivo otimista, opondo-a ao pretenso "pessimismo" da produção da década de 1990. O esforço analítico empreendido ao longo destas páginas revela não ser este o meu propósito. .

Certas dimensões assumidas pelo cenário político pouco tempo depois das eleições presidenciais de 1989 não colaboraram para amenizar o diagnóstico preponderante da "excepcionalidade normativa brasileira"23 23 Nunca é demais lembrar que as inúmeras experiências de participação popular em administrações municipais, muitas das quais ganharam maturidade ao longo dos anos 90, eram freqüentemente salientadas como sinal de que, dentre outras coisas, a democratização não havia sido em vão. Ver, por exemplo, Vilas Boas (1994), Dossiê: os movimentos sociais e a construção democrática (1999) e Avritzer (2002). . Ainda que a "onda neoliberal" tenha sido percebida e tratada como um fenômeno de alcance quase global, abundaram os diagnósticos conforme os quais o neoliberalismo recaiu sobre nós - e sobre nossa então recém-revigorada cidadania - de maneira particularmente acentuada. As reflexões de Evelina Dagnino parecem-me emblemáticas desse sentimento: conforme a autora, "[s]ob a inspiração neoliberal, a cidadania começou a ser entendida e promovida como mera integração individual ao mercado. Ao mesmo tempo, [...] direitos estabelecidos têm sido crescentemente retirado dos trabalhadores [...]. Paralelamente, projetos filantrópicos do chamado terceiro setor têm se expandido em número e escopo [...]" (DAGNINO, 2003, p. 4).

No final das contas, tem-se a clara percepção de que mesmo sob o impacto de transformações de alcance mundial (como é o caso do neoliberalismo, de acordo com a literatura científico-social), não se observa cicatrizes profundas na imagem de "excepcionalidade normativa brasileira". Isso porque, na produção aqui considerada, o propalado hiato entre a cidadania do Brasil moderno e a das chamadas sociedades centrais, expressados nos três vetores anteriormente discutidos, ver-se-ia aprofundado de forma ainda mais dramática: a) O encolhimento do Estado implicaria na redução de redes de proteção social que, por sua vez, alavancaria a presença do mercado em diferentes âmbitos sociais em detrimento da atuação autônoma das organizações da sociedade civil; b) Interesses privados tenderiam a tornar-se ainda mais preponderantes sobre uma esfera pública não só mal consolidada como em processo de retraimento; c) Códigos de normatividade outros (muitos dos quais a meio caminho entre visões tradicionais e a secularidade legal) teriam maior probabilidade de tornar-se preponderantes e de regular a dinâmica social e política de certas localidades e âmbitos sociais em função da menor capacidade do Estado e de uma vigorosa esfera pública para garantir o "rule of law".

Vale aqui retomar as interpretações de Santos (1987) e Carvalho (2001). Primeiramente, nota-se que apesar de fazerem uso de fontes explicativas comumente tidas pelo "imaginário sociológico brasileiro" como diametralmente opostas (uma de cunho marcadamente econômico, outra de fundo cultural-institucional), W. G. dos Santos e J. M. de Carvalho convergem quanto ao retrato que constroem do padrão de cidadania que acreditam ter prevalecido no Brasil ao menos desde o desmantelamento da República Velha. Ambos vislumbram o golpe de 1930 como o início da transição de uma ordem normativa liberal restrita para uma ordem tendencialmente universalista e antiliberal. Nela, a dimensão social da cidadania teria sobrepujado os direitos políticos e civis, mesmo naqueles momentos em que pleitos eleitorais diretos foram realizados e em que boa parte da população pôde minimamente gozar de liberdade de expressão. Em segundo lugar, "industrialização tardia", de um lado, e "herança ibérica", de outro, assumem peso tal em uma e outra análises que todo o desenrolar da construção da tessitura normativa brasileira tende a ser visceralmente atrelado (e até mesmo reduzido em última instância) a cada um deles. Por fim, percebe-se que ambas as empreitadas explicativas orbitam ao redor dos dois territórios cognitivos de maior destaque no pensamento social brasileiro: é legítimo dizer que, enquanto a noção de "industrialização tardia" gira em torno da abordagem da sociologia da dependência, a idéia de "herança ibérica" encontra-se ancorada em nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial.

Ora, quando aplicadas a contextos específicos, parece-me que as duas abordagens abrem mão do caráter contingente do processo de institucionalização das ordens normativas correspondentes àqueles contextos na medida em que "industrialização tardia"e herança ibérica" assumem o papel de "variáveis independentes". Isso porque: a) Uma e outra são com freqüência resgatadas para explicar, sob o rótulo (implícito ou explicito) de determinantes em última instância, os diferentes (por vezes até antagônicos) contornos da sociabilidade dos mais significativos momentos da história brasileira (como, por exemplo, a variada e multifacetada ordem que se seguiu à Independência, a tardia abolição da escravidão, a liderança do Exército na Proclamação da República, a constelação político-institucional pós-1891, a industrialização hipertardia, e assim por diante); b) Ao serem assim resgatadas, tais variáveis assumem o primeiro plano do empreendimento interpretativo, sobrepondo-se e, conseqüentemente, empurrando para o segundo plano os projetos, interesses, anseios e visões de mundo díspares que se enfrentaram continuamente na dinâmica social e cujo desenrolar foi responsável por definir o destino da sociabilidade e da normatividade do Brasil moderno. Dessa maneira, "projetos marginais" são comumente obscurecidos e negligenciados em favor de uma indevida ênfase conferida a projetos e concepções vencedores, cuja prevalência é apontada como evidência da pretensa força explicativa daquelas mesmas variáveis; c) Esse movimento de sobreposição, que, como afirmei, obscurece a presença e relevância de projetos, interesses, anseios e concepções de mundo alternativos àqueles que predominaram e moldaram a ordem social e normativa, embute uma concepção de necessidade e inexorabilidade ao devir histórico, a despeito da notória ocorrência de "contra-discursos" e suas pressões por rotas diver-gentes às que acabaram por prevalecer.

Revelador, para mim, é o fato de que esses diagnósticos encontram correspondência no retrato traçado por duas das mais importantes abordagens do pensamento social brasileiro acerca do status da modernidade no Brasil: nossa sociologia da dependência e nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial. Vale dizer, não são razões de afinidade intelectual que me levam a devotar maior atenção a essas duas referências explicativas. Sem dúvida alguma, essas não são as únicas referências a permear a literatura especializada a respeito da cidadania no Brasil. A justificativa para essa consideração especial está no lugar de centralidade que tanto herança patriarcalpatrimonial quanto dependência ocupam no "imaginário sociológico brasileiro", por assim dizer: elas lograram delimitar os dois principais territórios cognitivos no interior dos e em referência aos quais foram e permanecem sendo realizadas algumas das mais influentes reflexões, interpretações e explicações a respeito da configuração e dinâmica da sociedade brasileira moderna (TAVOLARO, 2005)24 24 É legítimo dizer que essas duas abordagens permanecem ainda hoje referências nodais no "imaginário sociológico brasileiro", fornecendo idéias e noções-chave a partir das quais inúmeras tentativas de explicação e interpretação do Brasil contemporâneo esforçam-se para apreender aspectos tão variados quanto a formação e funcionamento de nosso Estado, a estrutura e funcionamento de nosso campo político-partidário, a dinâmica sindical brasileira, os movimentos sociais e nossa pretensamente singular cultura política, além, é claro, da suposta peculiaridade de nossa cidadania. O problema da normatividade do Brasil moderno e, em particular, das configurações de direitos e deveres que se institucionalizaram entre nós não escapam à centralidade dessas duas idéias-força. .

O ponto nevrálgico, por assim dizer, são as conseqüências explicativas e interpretativas da resistência de ambas as abordagens quanto a colocar a experiência do Brasil contemporâneo e a das chamadas "sociedades modernas centrais" em pé de igualdade. Por um lado, Florestan Fernandes (1975; 1976) argumenta que, apesar de termos internalizado os mesmos padrões gerais de organização social, política e econômica que as sociedades capitalistas centrais, o aspecto determinante não foi superado: a nossa condição de dependência econômica25 25 De acordo com Caio Prado, "Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu" (PRADO JR., 1970, p. 22). O problema, para o autor, é que essa motivação inicial não só perdurou por séculos como se mantém ativa em nossodesenrolar histórico: "É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país [...]" (PRADO JR., 1970, p. 23). . Segundo o autor, ao perpetuar nossa posição capitalista periférica, tal condição impede que as conquistas das sociedades centrais sejam plenamente vivenciadas pela maior parte da população brasileira: os pressupostos cívico-humanitários, igualitários e democráticos da ordem burguesa. Isso explicaria, conforme a ordem pós1930 (e, de forma ainda mais acentuada, a constelação pós-1964) foi capaz de mostrar, as nossas peculiaridades normativas, expressas na dificuldade de "conciliação concreta, aparentemente a curto e longo prazos, entre democracia, capitalismo e auto-determinação" (FERNANDES, 1976, p. 254)26 26 Algumas das referências centrais da abordagem da sociologia da dependência, a despeito das irredutíveis especificidades de cada trabalho e autor, são: Prado Jr. (1970; 1971; 1994), Fernandes (1975; 1976), Ianni (1971; 1978), Cardoso (1972) e Cardoso e Faletto (1979). .

Por outro lado, enquanto Raymundo Faoro (2001) enxerga o Estado patrimonial e sua burocracia como sendo as fontes primordiais de nossas especificidades, Gilberto Freyre e S. B. de Holanda voltam-se para nossas raízes patriarcais que, segundo ambos, por séculos lograram permear quase que por completo a ordem social brasileira. Segundo Holanda, ainda que muito longinqüamente, foi-nos determinante um traço específico da cultura lusitana: sua "aversão congênita a qualquer ordenação impessoal da existência" (HOLANDA, 1994, p. 75). A esse traço encontrar-se-ia estreitamente vinculada a marcante e ainda não superada presença de códigos de sociabilidade típicos de um momento em que o pater familias - e a correspondente família de tipo patriarcal - era o centro articulador por excelência da dinâmica social. Daí a proeminência do privado sobre o público, inclusive (e talvez principalmente) no próprio funcionamento do Estado27 27 Algumas das principais referências de nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial, também aqui guardadas suas irredutíveis particularidades, são: Freyre (1990; 1996; 2000), Holanda (1994), Faoro (2001) e Matta (1980; 2000). .

Ora, ainda que amplamente tidas como maneiras diametralmente opostas de interpretar e explicar o status da modernidade no Brasil, ambas as abordagens tendem a ver um hiato - em essência, jamais inalterado - entre a sociedade brasileira contemporânea e os "países modernos centrais" na medida em que: a) Estado, mercado e sociedade civil jamais se acharam plenamente diferenciados no Brasil na mesma proporção em que naquelas sociedades; b) o público e o privado invariavelmente viram-se imbricados entre nós de maneira um tanto acentuada; c) leis secularizadas sempre encontraram obstáculos para fazerem-se preponderantes na estrutura normativa brasileira. Portanto, as correspondências entre os diagnósticos da literatura acerca da "aventura da cidadania no Brasil" e os retratos traçados por duas das principais abordagens do pensamento social brasileiro tornam-se evidentes28 28 A título de ilustração, parece-me sugestivo que, enquanto para Dagnino (2003) a chave-explicativa de nossa peculiaridade normativa está na "cultura de autoritarismo social" que permeia a sociabilidade brasileira desde longa data, Saes (2001) atribui nossa pretensa especificidade à "configuração assumida pelo processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil" que, segundo o autor, jamais deixou de ser "retardatário e dependente". .

A pergunta que se coloca é, quais seriam os problemas advindos de tal correspondência para a compreensão da "aventura da cidadania no Brasil"? Chamo atenção especial para dois pontos vulneráveis: a) toma-se por certo um dado retrato notavelmente "congelado" (e invariável) da sociabilidade do Brasil moderno (1. forte entrelaçamento entre Estado-mercado-sociedade civil; 2. "promiscuidade" na relação público-privado; 3. baixo grau de secularização normativa), apoiado em uma imagem também hipostasiada da sociabilidade supostamente peculiar às chamadas "sociedades modernas centrais". Com isso, tende-se ou a subestimar variações históricas em um e outro cenários ou a simplesmente desconsiderá-las por completo (sob o argumento de que são por demais marginais e sem qualquer impacto no núcleo da dinâmica social); b) as variações de configuração de cidadania que por ventura ocorreram ao longo de nossa história são sumariamente desconsideradas ou vistas como essencialmente superficiais frente a certos padrões pretensamente típicos de um e outro contextos. Ganha força renovada, então, a imagem de uma "cidadania à brasileira", uma espécie de idéia-força que, em vez de jogar luz, via de regra obscurece o teor das disputas e processos históricos que levaram a essa ou àquela configuração de direitos e deveres29 29 Nesse sentido, por exemplo, a redemocratização de meados da década de 1980 não teria alterado o cerne do padrão de diferenciação social supostamente característico do Brasil moderno, em que o Estado tende a ocupar (assim reza o argumento) posição nodal na dinâmica da sociedade brasileira (apesar da inegavelmente exuberante emergência de movimentos sociais e outras organizações no seio da sociedade civil naquele momento de nossa história política). Na mesma linha, o período da chamada "República Populista" não teria alterado as linhas mestras da configuração de direitos e deveres institucionalizada ao longo da Era Vargas (a despeito das efervescentes disputas eleitorais de então), na medida em que a dimensão social teria sido "sacralizada" no seio de nossa tessitura normativa. Dessa feita, as diferentes configurações da cidadania no Brasil têm seu devir pré-definido por um dado quadro analítico-conceitual, incapaz de fazer frente a variações (por mais gritantes que sejam). .

Ora, tal opção analítica reduz a um plano secundário a dimensão contingente e agonística da construção da normatividade; trata-se, a meu ver, de uma dimensão que uma sociologia política que se pretenda atenta à variedade de configurações de direitos e deveres nas sociedades modernas não pode abster-se. Acredito que as noções de práticas e oportunidades políticas, tais quais abordadas a seguir, auxiliam-nos a salientar esses aspectos.

IV. DO FATOR CONTINGÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: ALGUNS APONTAMENTOS HISTÓRICOS

Bem sabemos que os contornos normativos embutidos na Constituição de 1822 diferem bastante daqueles que vieram a prevalecer na ordem constitucional posterior a 1891 (COSTA, 1985). Também sabemos que as principais medidas legislativas adotadas pelo governo provisório em 1930 subverteram, em boa medida, referências normativas nodais da chamada República Velha (CARONE, 1974). Quanto à Constituição de 1934, ao mesmo tempo em que introduziu novas noções de direitos e deveres, é amplamente vista como tendo recuperado termos legais previamente defenestrados pelo governo provisório que se seguiu à queda de Washington Luís (VIANNA, 1989). Mudanças novamente significativas viriam a se concretizar com a Carta Magna outorgada em 1937, muitas das quais confirmadas em 1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho (DUARTE, 1999). O perfil daquela ordem normativa também sofreria sérios abalos com a Constituição de 1946, que perduraria (aos trancos e barrancos, a bem da verdade) por quase duas décadas (WEFFORT, 1978). Os anos 1960, contudo, abriram mais um novo capítulo na estrutura normativo-legal brasileira, que somente começaria a ser plenamente virado a partir da abertura política de meados dos anos 1980 (LAMOUNIER, 1990). Seria suficiente atribuir essa ampla gama de configurações de direitos e deveres a variáveis independentes erigidas em torno da idéia de "peculiaridade da modernidade no Brasil"? Qual o ônus de tal opção explicativa para se pensar as "condições de possibilidade" da cidadania no Brasil?

Ora, conforme argumentei anteriormente, implícita ou explicitamente, as premissas fundamentais do ensaio clássico de T. H. Marshall (1992) tornaram-se referência central na produção científica nacional a respeito do tema aqui tratado30 30 Ver, por exemplo, o trabalho de Holston e Caldeira (1998), em que se trabalha a noção de "disjunção" da cidadania no Brasil contemporâneo. Conforme os autores, "Usando a tipologia de T. H. Marshall, tal 'disjunção' significa que em comparação com os direitos sociais e políticos, a dimensão civil não foi efetivamente entrelaçada ao tecido da cidadania brasileira. Ao contrário, as proteções e imunidades dos direitos civis [...] são geralmente percebidas e experimentadas como privilégios elitistas de status social [...]" (HOLSTON & CALDEIRA, 1998, p. 276). . Em linhas gerais, conforme W. G. dos Santos (1987) salientou, afirma-se que a ordem, o ritmo, o formato, o escopo e o objetivo dos direitos e deveres entre nós diferem sobremaneira dos casos clássicos do "centro da modernidade". O que questiono é precisamente a capacidade desse retrato um tanto quanto inflexível do pretenso padrão de sociabilidade no Brasil moderno - que, como afirmei, acha sua correspondência numa imagem consideravelmente estereotipada da sociabilidade dos "países modernos centrais" -, apoiado em "determinantes em última instância" como aqueles aqui problematizados, de captar toda essa gama de transformações normativas. Portanto, o ônus de tal opção explicativa, que implica na imagem de uma "cidadania à brasileira", é o de mostrar-se pouco sensível à dimensão contingente e agonística do processo de institucionalização de direitos e deveres (uma vez pensado como fruto de lutas e conflitos entre projetos díspares de normatividade)31 31 Ao menos em parte, é esse o espírito da crítica de Francisco de Oliveira (1994) à noção de "cidadania concedida" trabalhada por Teresa Sales (1994). . Gostaria, ao final deste artigo, de chamar atenção para dois eventos históricos já consagrados pela historiografia brasileira que me parecem ilustrar o caráter contextual e agonístico da institucionalização e vivência da cidadania no Brasil. A bem da verdade, as inúmeras experiências de lutas por direitos que coloriram o cenário político brasileiro nos anos 1970 e 1980 poderiam servir-me de referência para ilustrar essa dimensão. Nesse exato sentido, por exemplo, as lutas por saneamento básico e saúde no município de São Paulo, cuidadosamente investigadas por Pedro Jacobi (1989), revelam justamente a abertura de oportunidades políticas ímpares na esteira do enfraquecimento do regime militar e a crescente capacidade de movimentos de bairros de vocalizar seus projetos e vivências de cidadania32 32 Ver, ainda, o número especial da revista Pólis dedicado ao tema "São Paulo: conflitos e negociações na disputa pela cidade", organizado por Renata Villas-Bôas (1995). . O mesmo pode ser dito em relação às disputas locais e regionais que, de maneira mais sistemática a partir do final dos anos 1970, conduziram à internalização de direitos ambientais na ordem normativa brasileira (VIOLA & LEIS, 1995). No entanto, pretendo ater-me a dois cenários que, por razões que mencionarei mais adiante33 33 Por ora, cabe apenas adiantar que a configuração normativa e societal assumida pela sociedade brasileira a partir de 1930 é vista, tanto por nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial, como por nossa sociologia da dependência como emblemática de nossa "excepcionalidade". Faoro (2001), por exemplo, vê na "Era Vargas" a retomada daquele padrão patrimonialistaestamental que por séculos permaneceu "nosso problema não-resolvido". Já tanto Ianni (1968) quanto Cardoso e Faletto (1979) vêem naquela configuração a única capaz de proporcionar a uma sociedade periférica como a nossa o salto modernizador almejado. , revelam-se emblemáticos à própria imagem que a produção sociológica nacional projeta a respeito da cidadania no Brasil: primeiramente, as disputas e embates em torno da ordem normativa que viria a ser institucionalizada com a queda da monarquia e, em segundo lugar, o desmonte da normatividade que havia caracterizado a chamada "República Velha".

Antes de dar prosseguimento a essa tarefa, porém, é preciso notar que até mesmo o debate internacional vem a certo tempo levantando críticas ao ensaio de T. H. Marshall, jogando luz sobre suas limitações em relação às variações normativas observadas nas próprias "sociedades centrais". Nesse sentido, criticou-se desde a simplicidade do tratamento dedicado por Marshall aos conflitos de classe (BOTTOMORE, 1992), até sua completa desconsideração quanto às diferenças étnico-raciais (GORJANICYN, 2000) e de gênero (FRASER & GORDON, 1994) observadas nas sociedades modernas. Critica-se, ainda, a periodização de institucionalização de direitos assumida por Marshall tanto quanto a sua cegueira frente a fatores geopolíticos (MANN, 1996). Merece destaque também a crítica à insensibilidade de seu esquema analítico às diversidades normativas observáveis no interior de Estados-Nações, cujas localidades e regiões são freqüentemente permeadas por desigualdades e conflitos de natureza normativa (SOMERS, 1993).

Gostaria, pois, de lançar mão de duas noções que acredito auxiliarem a sociologia política frente ao desafio de enfatizar a dimensão "situacional", contingente e agonística nos estudos a respeito da consolidação da cidadania moderna, quais sejam, oportunidades políticas e práticas. Em ambos os casos, trata-se de salientar que disputas pela definição dos contornos da ordem normativa de uma dada sociedade envolvem embates em que projetos de sociedade, interesses individuais e coletivos, demandas as mais variadas, anseios e, mais genericamente falando, visões de mundo díspares lutam entre si em torno de recursos políticos, simbólicos, econômicos e sociais que são escassos (isto é, que não podem, no limite, ser repartidos de maneira rigorosamente igualitária entre todos).

A idéia de oportunidades políticas ganhou notoriedade no debate acadêmico especialmente a partir da segunda metade da década de 1980 na esteira das discussões em torno das condições de emergência dos movimentos sociais34 34 Sem qualquer intenção de propor uma genealogia da noção em questão, indico as seguintes referências na literatura a respeito de movimentos sociais que passou a trabalhar com a idéia de " oportunidades políticas" de maneira sistemática, procurando aprimorá-la tendo em vista a exploração de seu potencial: McAdam, McCarthy e Zald (1988); Morris e Mueller (1992); Traugott (1995); McAdam, McCarthy e Zald (1996); Tarrow (1999). . Em síntese, conforme salientei em trabalho anterior (TAVOLARO, 2008), afirma-se que "disputas políticas são alavancadas quando mudanças nas oportunidades e constrangimentos políticos criam incentivos para atores sociais que não possuem recursos próprios" (TARROW, 1999, p. 2)35 35 Até mesmo disparidades de recursos financeiros (dinheiro) e políticos (poder) entre os agentes em disputa podem ser compensadas na medida em que os mais frágeis logrem tirar vantagem de oportunidades. . A questão-chave é que, quando tais circunstâncias especiais convergem com a percepção dos próprios agentes quanto aos custos de sua falta de ação36 36 Isso implica que caso essas circunstâncias especiais não sejam codificadas pelos próprios agentes como oportunidades políticas, não importa o quão poderosos eles sejam, terão pouquíssimas (ou mesmo não terão qualquer) possibilidade de efetivar as almejadas transformações (uma vez mais, sejam elas políticas, normativas, econômicas, culturais etc.) (FRIEDMAN & BENFORD, 1992). , elas podem apresentar-se como janelas de oportunidade para o engajamento em embates, cujos resultados podem inclusive alavancar ciclos de disputas mais prolongados e de maiores dimensões37 37 Não se trata de atribuir única e simplesmente a estruturas formais (como é o caso de instituições estatais) o rótulo de "oportunidades políticas privilegiadas": tais "janelas de oportunidade" podem ter origem não só em instituições políticas consideravelmente estáveis (cujas transformações normalmente ocorrem vagarosa e gradualmente) como também em eventos altamente voláteis e transformações passageiras (MCADAM, MCCARTHY & ZALD, 1996). Ao mesmo tempo, podem apresentar-se atreladas tanto ao aparato estatal e sua dinâmica como a grupos e/ou problemas consideravelmente específicos (GAMSON & MAYER, 1996). .

Propósitos heurísticos levam-me a trabalhar com uma espécie de "índice de disponibilidade de oportunidades políticas", capaz de ajudar-nos a pensar como os próprios agentes envolvidos em embates em torno da manutenção ou transformação (total ou parcial) de ordens normativas (mais ou menos sedimentadas) decodificam sinais de abertura de janelas políticas para a institucionalização e/ou consolidação de seus próprios projetos de sociedade, interesses, anseios e visões de mundo. De acordo com Sidney Tarrow (1999) e McAdam (1996), pode-se pensar em cinco aspectos que sugerem tanto ao analista quanto ao agente a existência de circunstâncias especiais no horizonte político: a) a pronunciada decadência na habilidade ou disposição do Estado de coibir ou até reprimir dissenso; b) o surgimento ou aprofundamento de brechas no interior das elites; c) a abertura de acesso institucional e nãoinstitucional à emergência de atores até então ausentes do processo decisório; d) o aparecimento de novos aliados que podem mostrar-se influentes nas disputas por poder; e por fim, e) rearranjos na configuração do sistema político (TAVOLARO, 2008). Ainda segundo Tarrow (1999), mesmo que transitórios ou até mesmo efêmeros, podem surgir novos centros de poder caso essas janelas de oportunidades sejam aproveitadas.

Dessa feita, uma vez trazida para o centro da análise, a noção de "oportunidades políticas" tem o potencial de tornar a compreensão dos cenários em que se institucionalizam certas configurações de cidadania imune a quaisquer ordens de "determinação em última instância"; ou seja, torna os esforços interpretativos e explicativos da definição de uma dada ordem normativa imunes à vinculação da dinâmica social a "variáveis independentes" externas às próprias lutas sociais. Portanto, as mudanças de configuração de direitos e deveres observadas nos diferentes momentos da história brasileira não precisam ser tidas como decorrência desta ou daquela tendência implícita em nossa sociabilidade "desde tempos imemoráveis". Em vez disso, podem ser pensadas como janelas de oportunidades aproveitadas por certos projetos de normatividade.

Já a ênfase na dimensão prática da luta por direitos é caudatária de uma longa tradição do pensamento sociológico que busca salientar o nível micro da dinâmica social, com todas as suas minúcias, sutilezas e, fundamentalmente, o caráter "situacional" das relações intersubjetivas. Não poderei aqui me prolongar na consideração dessa importante área de investigação sociológica. Gostaria apenas de fazer breve menção aos esforços de Erving Goffman (1959) para chamar atenção do papel central da "definição da situação" como forma de estabelecer-se o controle nos processos intersubjetivos de estabelecimento de padrões de conduta. Goffman salienta que o empenho em direção a tal definição dá-se por meio de um conjunto de práticas (dentre as quais as práticas "corretivas", "defensivas", ou mesmo "de proteção") por meio das quais se estabelecem, de maneira um tanto quanto contingente, os termos do contexto da interação. Vale lembrar, nessa mesma direção, Garfinkel (1984) e Berger e Luckmann (1967) procuraram acentuar o caráter circunstancial e situado (e, sem sombra de dúvidas, reflexivo) das práticas e interações cotidianas que constituem a complexa tessitura do social.

Ora, conforme Somers (1993) demonstrou em estudo sobre a luta por direitos na Inglaterra entre os séculos XVII e XVIII, "[o]s contextos locais de processos legais [...] geraram culturas políticas e legais diferentes, que acabaram por produzir diferentes padrões de cidadania em diferentes comunidades" (SOMERS, 1993, p. 605). Dessa feita, conforme a localidade em questão, a implementação e institucionalização de direitos ci-vis, políticos e sociais tiveram seqüências bastante singulares tendo em vista seus diferentes níveis de participação política. Assim, no tocante à dimensão micro dos embates em torno da definição e institucionalização da cidadania, conforme a qual os direitos e deveres devem ser vistos em termos de práticas "situacionais" e contextuais, inspirome em esforços analíticos como aquele levado adiante por Bryan Turner (1993). Conforme já tive oportunidade de salientar (TAVOLARO, 2008), para Turner a cidadania é "um conjunto de práticas (jurídicas, políticas, econômicas e culturais) que definem uma pessoa como sendo um membro competente da sociedade, e que por conseqüência moldam o fluxo de recursos em benefício de pessoas e grupos sociais" (TURNER, 1993, p. 2). O autor argumenta que a ênfase na dimensão prática da luta por e gozo de direitos previne o analista de lidar com a cidadania como um mero arranjo de garantias e obrigações. Evita, dessa forma, um tratamento demasiadamente jurídico da cidadania, preferencialmente ancorado na esfera de ação do Estado. É necessário, pois, como sugere Ann Mische (1995), levar em conta as "exortações performativas" envolvidas nos em-bates em torno da definição e atribuição de direitos, em vez de adotar uma perspectiva por demais formal. Nessa mesma direção, também já havia chamado atenção para o fato de que Margareth Somers (1993) reivindica uma abordagem dinâmica e fluída do processo de construção da cidadania, vista como "um conjunto de práticas sociais institucionalmente embutidas". De acordo com a autora, mesmo que institucionalizados na forma de lei, os direitos não deixam de ser "práticas [...] contingentes ao e constituídas por redes de relações e idiomas políticos" (SOMERS, 1993, p. 589). A meu ver, essa dimensão prática e situacional da cidadania pode ser encontrada nas diferentes "demandas normativas" que permeiam setores os mais variados da sociedade. É o embate entre essas "demandas díspares" a respeito de direitos e deveres que denota, de maneira muito especial, aquela dimensão micro da definição da cidadania.

Dessa maneira, àqueles que se preocupam com a temática das condições de possibilidade da construção da cidadania no Brasil, "oportunidades políticas"e "práticas" podem apresentar-se como antídotos ao perigo de vincular a dinâmica da institucionalização de direitos e deveres no Brasil a fatores exógenos às próprias disputas e embates normativos. Além disso, em vez de atribuir peso explicativo a priori a uma dada imagem (freqüentemente congelada) do suposto padrão de sociabilidade do Brasil moderno (em que a. Estado-mercado-sociedade encontram-se invariavelmente entrelaçados; b. público-privado acham-se imbricados; c. a normatividade encontra-se semisecularizada), há que se avaliar cada contexto, quais os atores implicados, tanto quanto os projetos de sociedade e de normatividade em disputa, suas capacidades circunstanciais para fazer valer seus interesses além, é claro, a existência ou não de oportunidades políticas que tornam transformações normativas mais ou menos aptas a ocorrerem. É precisamente nesse sentido que a imagem de uma "cidadania à brasileira" deve dar espaço a investigações menos generalizantes e mais contextualizadas de lutas em torno da institucionalização de direitos e deveres. Há que se considerar aspectos circunstanciais e situacionais não como fatores marginais e acessórios às "grandes tendências históricas", mas sim como elementos centrais nos embates em torno da definição das configurações de cidadania. Isso porque, quaisquer que sejam tais configurações, por mais institucionalmente consolidadas que sejam, elas jamais deixam de ser objeto de disputas, seja para sua manutenção, seja para sua transformação. Deixe-me, aqui, fazer uma incursão historiográfica que seja capaz de ilustrar esse argumento.

Pretendo realizar alguns apontamentos a respeito das disputas normativas que se desenrolaram a partir da crise do regime monárquico até o desmanche da "República Velha"38 38 Eis a justificativa deste recorte temporal: foi precisamente a configuração de direitos e deveres que veio a consolidar-se no universo normativo brasileiro a partir de 1930 a que mais corresponde àquela imagem do padrão de sociabilidade moderno tido como "especificamente brasileiro" (conforme discutido nos dois primeiros itens deste artigo). Ou seja, a partir dos anos 1930, a ênfase nos direitos sociais (em detrimento dos direitos políticos e civis) dar-se-á em meio a um cenário que a historiografia e ciências sociais nacionais identificam como fortemente marcado por: a. Considerável intervenção estatal no mercado e na sociedade civil; b. Papel ativo da Igreja católica na dinâmica política (sob a liderança de D. Sebastião Leme); c. Instrumentalização da esfera pública pelos interesses privados em favor tanto da emergente burguesia industrial como de outros atores com ligações privilegiadas ao aparelho do estado. . A meu ver, o que deve ser assinalado é que a configuração de direitos e deveres tanto quanto o padrão de sociabilidade característicos daquele momento resultaram de embates e disputas em que demandas normativas díspares disputaram posições de proeminência na organização da ordem social. Foi a disponibilidade ou não de oportunidades políticas favoráveis que tornou possível que prevalecessem ou não; ainda assim, mesmo que institucionalizadas, muitas das normas que adquiriram status legal e universal somente ganhavam vida em situações práticas, por setores da sociedade capazes de vivenciá-los em seu dia-a-dia. A expansão e o efetivo gozo desses direitos dependeram de lutas pela sua institucionalização e pelo reconhecimento de seus portadores enquanto cidadãos. Darei ênfase, pois, às "demandas dissidentes" que povoaram o período e que ajudaram a mudar a orientação e o perfil da sociedade brasileira naqueles momentos.

Na verdade, sabemos que a própria República já nasceu cindida entre ao menos dois projetos díspares, um dos quais centralista (apoiado tanto por setores do Exército como por setores da oligarquia gaúcha e intelectuais, todos sob inspiração positivista), e um outro federalista (cujo principal pilar de sustentação era a oligarquia agrária paulista, apoiada por alguns de seus pares de outras províncias que se viam marginalizadas na estrutura política monárquica)39 39 Obviamente, também sabemos que já no Império os confrontos entre um projeto centralista e outro federalista encontravam ancoragem institucional nas disputas que opunham Liberais (partidários de uma estrutura políticoinstitucional que garantisse autonomia local) e Conservadores (defensores do Poder Moderador instituído pela Constituição de 1824). Os Liberais compreendiam classes médias urbanas, padres e figuras emergentes das oligarquias de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Já, os Conservadores apoiavam-se em burocratas do Império, magistrados, grandes comerciantes, além dos setores mais importantes das oligarquias mais tradicionais, como aquelas do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Ver Carvalho (1980) e Costa (1985). . Não há dúvidas de que, a despeito de ter fornecido os dois primeiros presidentes de nossa então imberbe experiência republicana (Deodoro e Floriano), a concepção centralista não conseguiu tornar-se hegemônica - que o digam as disputas em torno da Constituição de 189140 40 Segundo Lessa (1999), os militares (alguns dos quais nem mesmo centralistas eram) ocupavam apenas ao redor de 25% da Assembléia Constituinte; disputavam poder com outros dois grupos proeminentes, os federalistas moderados e os hiper-federalistas. , as pressões que resultaram na abrupta renúncia do Marechal Deodoro e a emergência do Partido Republicano Paulista (PRP) para posição de destaque ainda nos primeiros anos da década de 1890. Mas qualificar sumariamente a "República Velha" como sendo a "República Oligárquica" (ou mesmo "República do café-comleite") faz que corramos o risco de esquecermonos (ou, pior, negligenciarmos) o quão repleto de "embates discursivos" foram as quatro décadas que antecederam o golpe de 1930. Mas há uma série de "demandas normativas dissidentes" que conseguimos encontrar naquele cenário:

1. Em meio a uma República cuja configuração institucional a partir de 1891 assumiu um perfil marcadamente federalista e liberal, um primeiro "discurso dissidente" era aquele que abarcava uma série de projetos de sociabilidade e normatividade sob forte inspiração positivista. O "Apostolado Positivista", sob o comando de Teixeira Mendes e Miguel Lemos, certamente foi quem manifestou de maneira mais hiperbólica tais projetos (LINS, 1964). Provavelmente a mais indelével de suas conquistas institucionais tenha sido a secularização do Estado (CRUZ COSTA, 1964) - para não falar da insígnia Ordem e Progresso na bandeira (Carvalho, 1990). Mas suas demandas foram muito mais abrangentes: o "Apostolado" defendia a institucionalização de uma República presidencialista de tipo ditatorial41 41 Tarefas legislativas deveriam ser unificadas pelo poder Executivo já que a Câmara de Representantes teria a única prerrogativa de cuidar de questões orçamentárias. Vale dizer, o processo eleitoral dessa câmara seguiria uma linha corporativa. tanto quanto uma legislação social e trabalhista que nos remete aos anos que se seguiram à emergência de Getúlio Vargas ao poder em 193042 42 Em um projeto apresentado ao Governo Provisório em 25 de dezembro de 1889, Teixeira Mendes salientava a importância de melhorias nas condições de vida do proletariado como um pré-requisito para o progresso brasileiro. Seu projeto mencionava questões tão variadas quanto: salário mínimo (o salário deveria ser dividido em duas partes, uma das quais seria uma espécie de gratificação), limitação da jornada de trabalho diária (não mais que sete horas por dia) e semanal (feriados e domingos seriam livres), férias (15 dias/ano), pensões (dispensa paga em caso de doenças; pensões a viúvas e dependentes menores de 21 anos; aposentadoria àqueles com mais de 63 anos), estabilidade no emprego (conquistada após sete anos de trabalho no mesmo local) dentre outros. Ver A incorporação do proletariado na sociedade moderna, no trabalho de Lins (1980). , ou seja, projetos que em muito destoavam do perfil liberal-federalista da ordem normativa, política e social então predominante43 43 Ver Carta à S. Exa. o Sr. Dr. Joaquim Nabuco e Bases de uma constituição ditatorial federativa (publicada em 31 de janeiro de 1890), em Paim (1981). .

2. Ao longo de toda a "República Velha", parte importante do oficialato do Exército apresentou-se como outra importante fonte de "projetos alternativos" à ordem estabelecida. Já tive oportunidade de mencionar que aqueles que deram apoio a Deodoro pretendiam a consolidação de uma estrutura políticoinstitucional centralizada em favor do Executivo Federal. Esse projeto alternativo não se esgotou ao final do mandato de Floriano (CASTRO, 1995). Em 1910, ao ser eleito presidente, o Marechal Hermes da Fonseca tentou colocar em prática uma nova tentativa de minar a configuração política e normativa que Campos Sales logrou consolidar com a manobra que ficou conhecida como "a Política dos Governadores". Nem mesmo a frustrada campanha de "Salvação Nacional" proposta pela administração de Hermes, que visava enviar oficiais militares para desalojar líderes oligarcas locais de seus postos de comando político (CARVALHO, 1985), arrefeceu o ânimo oposicionista militar. Na década de 1920, ele ressurgiria na figura do movimento tenentista44 44 Em princípio, como comprovam as reivindicações da revolta de 1922, o principal objetivo era levar adiante uma espécie de "purificação do Estado", acabando com a "corrupção generalizada" a partir da derrubada das oligarquias. Clamava-se por reformas eleitorais que garantissem o voto secreto e a institucionalização de uma justiça eleitoral autônoma (SAES, 1985). . Em 1924, o nacionalismo tenentista assumiu uma tonalidade mais radical, impunhando a bandeira de um Estado mais centralizador e menos afeito a práticas políticas liberais (até mesmo o sufrágio universal passou a ser visto como um mero instrumento de manipulação das massas pelas elites oligárquicas) (FAUSTO, 1970). Como sabemos, o teor desse "discurso" viria a ocupar posição central no cenário político pós-1930, assumindo um perfil ostensivamente anti-liberal e prócorporativista (PERISSINOTTO, 1997).

3. As classes baixas e médias urbanas foram outro foco de disseminação de "projetos dissidentes" da ordem vencedora posterior a 1891: artesãos, alfaiates, jornalistas, pequenos comerciantes e burocratas com pouca qualificação começaram a mostrar-se simpáticos a um tipo de atuação do Estado na dinâmica política que divergia de um perfil liberal. Foram esses setores que levaram adiante a chamada "Revolta da Vacina": insatisfeitos com os impactos no custo de vida urbano decorrentes das freqüentes crises do café, apoiavam uma maior intervenção do Estado na economia e até mesmo incentivos à industrialização (SAES, 1986). Foi nesse ambiente que o "movimento jacobino" prosperou, principalmente entre as classes baixas do Rio de Janeiro e outros centros. Marcadamente nacionalistas (provavelmente em função da visibilidade que os comerciantes portugueses ganhavam a cada alta inflacionária), propunham a nacionalização do comércio varejista, da propriedade da terra, da navegação mercante e de empresas de seguro, além de subsídios aos pequenos produtores. Partidários de um regime presidencialista centralizador (sem a presença de corpos legislativos, vistos como nocivos à unidade política da nação), reivindicavam a institucionalização de leis que protegessem os trabalhadores urbanos e industriais, a jornada de oito horas/dia, e educação elementar para todos (QUEIROZ, 1986).

4. Há que se destacar, também, a existência de um "discurso intelectual de cunho autoritário" concomitante ao aparecimento de várias instituições de ensino superior no Brasil (PINHEIRO, 1985). Naquele contexto, inúmeros intelectuais que se interpretavam como portadores de uma missão modernizadora para um atrasado Brasil (LAHUERTA, 1997) passaram a ver a ordem vigente como um obstáculo ao progresso nacional. Em linhas gerais, era esse o mote das obras de figuras como Alberto Torres, Francisco Campos, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Lamounier (1985) sugere que, guardadas as especificidades de cada um deles, todos eram proponentes de uma espécie de "ideologia de Estado", pela qual a autoridade do aparelho estatal era percebida como o princípio tutelar de um Brasil moderno.

5. Outra notória fonte de "dissenso discursivo" era certo setor da oligarquia gaúcha, em particular aquele que veio a conquistar posição de hegemonia na dinâmica política do Rio Grande do Sul após Floriano ter debelado a Revolução Federalista (1893-1895). Júlio de Castilhos, uma das figuras inauguradoras da linhagem política da qual descende Getúlio Vargas, era um admirador da filosofia social de Augusto Comte. Sua retórica combinava a defesa de liberdades individuais com educação elementar universal, secularização normativa e intervenção do Estado em benefício da proteção dos trabalhadores (LOVE, 1971)45 45 Enquanto governador no RS, Castilhos queria a institucionalização de um poder Executivo que governaria sobre bases plebiscitárias ao lado de um Legislativo cuja única função seria lidar com questões orçamentárias. De fato, a Constituição gaúcha que ele e Assis Brasil elaboraram logo após 1891 contava com um Legislativo unicameral (restrito a questões orçamentárias), amplas prerrogativas ao Executivo (dentre as quais a aprovação de leis via decretos, em última instância sujeitos à aprovação de conselhos municipais, e o poder de anular resoluções e atos de autoridades locais), a possibilidade de reeleição para governador (número irrestrito de vezes, desde que aprovada por 75% dos votos), supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e privados, e abolição de privilégios profissionais (LOVE, 1985). . Tal orientação antiliberal, intervencionista e centralista não sofreu mudanças significativas quando Borges de Medeiros o substituiu na liderança do Parti-do Republicano do RS e à frente do governo gaúcho. Vale notar, Medeiros enfatizava que o Estado deveria manter-se fortemente presente na regulação da sociedade e da economia tendo em vista o bem comum (LINS, 1964). Não é de se admirar, pois, que em 1928 o então governador Getúlio Vargas lançou subsídios a empreendedores locais além de incentivos tarifários aos exportadores de arroz e carne. Por fim, deu apoio à criação de associações de produtores em resposta à crise que caiu sobre a economia gaúcha ao final da I Guerra Mundial.

6. É claro que os próprios trabalhadores urbano-industriais converteram-se, ao longo das quatro décadas que antecederam o desmonte da República Velha, em formadores e disseminadores de projetos que rivalizavam a ordem liberal vigente. A grande diversidade das propostas e demandas das associações de trabalhadores que agitaram a cena política nos primórdios da industrialização brasileira esteve, durante alguns anos, sob o domínio dos anarquistas. A imagem negativa que atribuíam ao aparato estatal justificava sua luta pela formação de organizações autônomas e altamente descentralizada de trabalhadores a fim de que, uma vez livremente associados, pudessem controlar a condução da produção econômica. Os anarco-sindicalistas, tendência que veio a tornar-se predominante tanto em São Paulo quanto no Rio no final da década de 1910, concebia o sindicato como o mais importante instrumento operário para a melhoria de suas condições de vida e trabalho (FAUSTO, 1976; ARAÚJO, 1998)46 46 A implicação política dessa concepção era o desprezo da arena política liberal-democrática e das instituições correspondentes (partidos e dinâmica parlamentar) em favor da greve e outros instrumentos de "ação direta" (como sabotagem e boicote). Isso não significa que não lutassem pela institucionalização da proteção ao trabalhador: ao contrário disso, brigaram pela jornada de oito horas, pela proteção às mulheres e menores, pelo dia de descanso, por compensações em caso de acidente de trabalho, pela melhoria das condições higiênicas do ambiente de labuta, dentre outros (VIANNA, 1989). . Havia, ainda, tendências "reformistas" (ou "trabalhistas", como quer Boris Fausto), cujas propostas tinham uma tonalidade marcadamente corporativista, acreditando na cooperação entre as classes sociais e na mediação pelo Estado dos conflitos entreempregadores e empregados (ARAÚJO, 1998). Havia, também, os socialistas e, mais tarde, os comunistas. Os primeiros se organizaram desde 1902, lançando como plataforma de luta a jornada de oito horas, restrição do trabalho de menores (14 anos), proteção às mulheres e regulamentação do trabalho noturno. Já os comunistas, fortes a partir dos anos 1920 (com a fundação do PCB), passaram a combinar a luta sindical com uma estratégia partidária tendo em vista a subversão do padrão liberal de organização das condições de trabalho então vigente. Divergências internas resultariam no controle de certos sindicatos pela tendência trotskista, segundo a qual as relações trabalhistas somente poderiam ser efetivamente regulamentadas e, por conseguinte, os direitos trabalhistas realmente respeitados, caso o Estado assumisse posição de mediação entre capital e trabalho (MUNAKATA, 1984).

7. Mesmo a emergente burguesia industrial propagava "projetos dissonantes" na medida em que clamava por maior presença estatal na dinâmica econômica. Em linhas gerais, afirmava-se que somente uma postura intervencionista e protetora do Estado poderia garantir condições para que a imberbe indústria nacional pudesse prosperar em meio à competição internacional. Aquele foi o momento em que as divergências entre agricultores-exportadores e industrialistas começaram a tornar-se mais pronunciadas - os primeiros afirmando que o Brasil deveria dar continuidade à sua "vocação agrícola", os segundos dizendo que somente a industrialização poderia trazer-nos a almejada autonomia econômica. No Rio de Janeiro, tais divergências levaram à formação, já em 1904, de uma associação autônoma de empreendedores industriais, o "Centro Industrial do Brasil" (CIB), em 1919 desmembrado no "Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Algodão" (CIFTA) (LEME, 1978). Em São Paulo, a separação ganhou contornos mais salientes em 1928, com a fundação do "Centro Industrial do Estado de São Paulo", cujas lideranças (dentre eles Francisco Matarazzo e Roberto Simonsen) logo deram início a uma franca campanha em favor de medidas protetoras e incentivos à indústria brasileira (DINIZ, 1978)47 47 É preciso que se diga que, com algumas raríssimas exceções (caso do CIB quando sob o comando de Jorge Street), os industrialistas e comerciantes resistiram o quanto puderam à institucionalização de medidas tomadas pelo Estado em benefício dos trabalhadores, argumentando que isso encareceria ainda mais a produção nacional (GOMES, 1986). Mas isso em nada contradizia sua reivindicação por um sistema de tarifas pró-indústria e uma política monetária que lhes fosse mais favorável, além de créditos que estimulassem a produção e consumo de manufaturados nacionais. .

8. Há que se mencionar, também, a existência de uma espécie de "discurso legal dissidente", que desde o início do século XX expressava-se em diversas tentativas (algumas logradas) de modificar o teor liberal com que a questão trabalhista fora moldada desde a Legislação Penal de 1890, confirmado pela Constituição de 1891 (FAUSTO, 1976; VIANNA, 1989). Tal "discurso dissidente" já havia manifestado-se ainda quando o presidente provisório Deodoro da Fonseca institucionalizou medidas que regulamentavam o trabalho de menores de 12 anos (Decreto n. 1 313), cuja inspeção ficaria a cargo do Ministério do Interior (MORAES, 1978). Quatro anos mais tarde, o Congresso Nacional aprovou uma lei (n. 976, de 6 de janeiro de 1903) permitindo a organização de sindicatos por trabalhadores rurais, por meio dos quais poderiam adquirir crédito e comercializar a sua produção. Em 1905, um projeto de autoria do Deputado Joaquim Inácio Tosta pretendia a extensão de tal provisão para profissionais liberais e a formação de sindicatos e associações cooperativas a serem consultadas pelo governo em questões relacionadas às suas atividades. Em 1917, o Deputado Nicanor de Carvalho pretendeu superar o caráter fragmentário e desconectado das medidas até então propostas por meio da elaboração de um "Código do Trabalho". Para tal, foi formada uma Comissão Legislativa responsável exclusivamente para lidar com questões sociais e trabalhistas. O referido "Código do Trabalho" incluía provisões que abarcavam aspectos tão variados quanto: contratos de trabalho, regulamentação do trabalho de mulheres e menores, acidentes de trabalho e a criação de comissões de conciliação de conflitos trabalhistas. A versão elaborada em 1923 do "Código" proposto pelo Deputado Nicanor (Projeto n. 265) foi ainda mais ampliada, incluindo uma série de ousadas medidas: a delimitação da jornada de trabalho (oito horas/dia, 48 horas/semana), a definição da jornada semanal em seis dias, a obrigatoriedade de férias pagas (15 dias/ ano), a idade mínima de 14 anos para ingresso no mercado de trabalho (não mais que seis horas/dia), proibição de trabalho noturno para mulheres e a criação de fundos de pensão. Ainda que todas essas propostas tenham enfrentado dura oposição, abriu-se de forma mais sistemática o caminho para tentativas de internalização da problemática trabalhista pelo aparelho do Estado. Esse certamente foi o caso do "Departamento Nacional do Trabalho" (Decreto n. 3 550, de 16 de outubro de 1918), criado para inspecionar o cumprimento de leis trabalhistas, substituído cinco anos depois pelo "Conselho Nacional do Trabalho" (Decreto n. 16 027, de 30 de abril de 1923). Primeiramente concebido como uma divisão de consulta do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, o CNT acabou assumindo a responsabilidade de discutir e elaborar projetos legislativos. Ao longo da década de 1920, a regulamentação de férias, o trabalho de menores e compensações de acidentes de trabalho (GOMES, 1986) receberam enorme atenção legislativa, tendo sido propostos inúmeros projetos de lei. Em 1926, uma Emenda Constitucional conferiu ao Congresso Nacional legitimidade para legislar sobre questões trabalhistas (VIANNA, 1989)48 48 Talvez uma das últimas propostas ousadas de legislação com teor social apresentadas antes do Golpe de 1930 tenha sido de autoria do Dep. Agamenon Magalhães (vale lembrar, figura nodal da Era Vargas) versando sobre a criação de um "fundo de assistência e seguridade social", que deveria tornar obrigatória a assistência médica e farmacêutica aos trabalhadores. A oposição foi tão acentuada que a proposta não chegou nem mesmo a ser votada. .

V. CONCLUSÕES

Ora, são notórias as similaridades entre, de um lado, o conjunto desses projetos normativos, de sociedade; demandas, interesses, anseios e concepções de mundo brevemente assinalados nas páginas anteriores e, de outro, os padrões de sociabilidade e normatividade que se consolidaram ao longo dos quinze anos que se seguiram à emergência de Vargas ao Governo Provisório (vide o Decreto n. 19 398, de 11 de novembro de 1930, as Constituições de 1934 e de 1937, e a CLT). Parece-me legítimo, pois, afirmar que muitos dos "projetos discrepantes", vivenciados como práticas de lutas por direitos por uma ampla gama de setores da sociedade, co-habitaram a cena política da República Velha e confrontaram-se para estabelecer uma nova ordem normativa à sociedade. Isso não implica dizer que a orientação da dinâmica social pós-1930 já estivesse pré-determinada por aqueles atores e seus "discursos". É aqui que entra a dimensão contingente e agonística da cidadania: foi a existência de certas oportunidades políticas, muitas das quais fomentadas pelos agentes e propostas em disputa, que deram a chance para que aquelas "demandas discrepantes" saíssem das margens da ordem social, coadunassem-se e buscassem reconfigurar a normatividade e a sociabilidade à sua própria imagem49 49 Uma vez mais, quando falo de oportunidades políticas refiro-me aos cinco aspectos anteriormente assinalados, a saber: a) a abertura de acesso institucional e nãoinstitucional à participação de novos atores, até então marginalizados no processo decisório; b) realinhamentos de poder no sistema político; c) o surgimento de novos aliados potencialmente influentes; d) o surgimento ou aprofundamento de fissuras no interior de elites; e, finalmente, e) o declínio da capacidade ou da vontade do Estado de coibir ou mesmo reprimir o dissenso. .

Como bem mostrou a historiografia da República Velha, ao menos em duas ocasiões anteriores ao Golpe de 1930 (as sucessões presidenciais de 1910 e 1922) as bases daquela ordem manifestaram de maneira mais acentuada suas vulnerabilidades, muitas das quais voltariam à tona na sucessão de 1929. Na sucessão do mineiro Afonso Pena, a aliança hegemônica São Paulo-Minas Gerais (que desde Prudente de Moraes conseguira permanecer inabalada) viu-se ameaçada por outras lideranças estaduais que, insatisfeitas com os desequilíbrios de poder na Federação, juntaram-se ao redor do Senador gaúcho Pinheiro Machado (fundador do Partido Republicano Conservador) para apoiar a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca (enquanto São Paulo e Bahia uniram-se em torno da candidatura de Rui Barbosa, cuja plataforma bradava apoio aos cafeicultores). Conforme sugeri acima, ao ganhar, a campanha "salvacionista" de Hermes intentou minar os pilares do poder oligárquico, enviando oficiais para assumir o poder no Ceará, em Alagoas, Pernambuco e Sergipe. A vitória do mineiro Venceslau Brás, em 1914, ajudaria a curar as feridas então abertas.

O establishment oligárquico federativo ver-seia novamente abalado em 1922, quando três estados de menor calibre (Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco) juntaram-se a lideranças do RS para mais uma vez perfurar a aparente inquebrantável composição São Paulo-Minas Gerais. A bem da verdade, tentativa parecida já havia sido feita em 1918 por grupos políticos desses três mesmos estados, frustrados com a vitória de Rodrigues Alves. Em 1920, o então governador de SP, Washington Luís, uniu-se ao Governador de Minas Gerais, Arthur Bernardes, para definir o político mineiro como "candidato oficial" à sucessão de Epitácio Pessoa (que havia assumido a presidência após a morte súbita de Rodrigues Alves). Foi a definição do vice de Bernardes, o maranhense Urbano Santos, que acabou alavancando as insatisfações dos estados menores, levando-os a juntarem-se a líderes gaúchos (dentre eles o governador Borges de Medeiros) em torno da chapa de oposição Nilo Peçanha (Rio de Janeiro) - J. J. Seabra (Bahia), chamada de "Reação Republicana". A vitória de Bernardes não foi de pronto reconhecida pela oposição, que reclamava em alto e bom tom do "demasiado apoio do governo federal aos estados plantadores de café em detrimento dos demais". Até mesmo o apoio dos militares foi sugerido por Nilo a fim de que se constituísse uma "corte de honra" para decidir sobre o resultado das eleições. Epitácio, contudo, conseguiu apagar o incêndio.

Esse não seria o destino do pleito que colocou em disputa os governadores Júlio Prestes (São Paulo) e Getúlio Vargas (Rio Grande do Sul). Dessa vez, a escolha do governador paulista como "candidato oficial" frustrou as pretensões do político mineiro Antônio Carlos, que queria levar seu estado ao comando da Presidência. Vital Soares (Bahia) foi escolhido para vice de Júlio Prestes, ao passo que MG e RS ofereceram a João Pessoa (Paraíba) o posto de vice do candidato Vargas. Como revelou a troca de cartas entre Washington Luís e Getúlio, o então presidente mostrou-se enormemente insatisfeito com a candidatura de seu anti-go Ministro da Fazenda50 50 Cf. o documento "Correspondência trocada entre Getúlio Vargas e Washington Luís", reproduzida pela Agência Americana (telegrafada) ( A Revolução de 30, 1982). . Mas previra que Júlio ganharia com folga, como foi de fato noticiado no dia 1º de março de 1930, por uma diferença de mais de 200 mil votos. O resto da história todos sabemos.

O que gostaria de salientar é que, em todas essas ocasiões, as brechas, vulnerabilidades e feridas do arranjo político da República Velha vieram à tona. Joseph Love (1971) conseguiu sintetizá-las de maneira bastante fiel: a) a liderança da aliança São Paulo-Minas Gerais invariavelmente levava o governo federal a canalizar esforços demasiados à valorização do café em detrimento e ao custo das economias de outros estados da federação; b) outros estados sentiam-se indevidamente desconsiderados; c) eleições para governadores eram freqüentemente carregadas de problemas de legitimidade, muitas vezes forçando o governo central a intervir à revelia das oligarquias locais; d) os acordos informais e a própria estrutura institucional característica da República Velha (estabilizada por Campos Sales) mostravase crescentemente incapaz de absorver novos setores que começaram a apresentar-se na cena política de maneira cada vez mais pronunciada à medida que o país urbanizava-se e a economia tornava-se mais complexa.

Foram precisamente essas fissuras que se abriram e se constituíram como "oportunidades políticas" ótimas para que "projetos normativos alternativos" - fomentados de maneira contextual e situacional - assumissem posições de comando e redefinissem os rumos da sociedade brasileira de então. É nesse exato sentido que, em vez de uma "cidadania à brasileira" - supostamente definida de antemão por esta ou aquela tendência macro (cultural ou econômica), advinda seja de uma pretensa herança histórica ou de uma dada posição no cenário capitalista internacional -, defendo que entendamos as diferentes configurações de direitos e deveres experimentados pela nossa sociedade como fomentadas e consolidadas entre práticas de lutas e oportunidades políticas. Essas, a meu ver, são chaves-explicativas que nos ajudam a compreender algumas das condições de possibilidade da construção da cidadania no Brasil.

Recebido em 14 de dezembro de 2006.

Aprovado em 3 de dezembro de 2007.

Sergio B. F. Tavolaro (sergiotavo@fafcs.ufu.br) é Doutor em Sociologia pela New School for Social Research (Estados Unidos) e professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia.

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  • WEFFORT, F. 1978. O populismo na política brasileira Rio de Janeiro : Paz e Terra.
  • 1
    Agradeço as valiosas sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política, que me ajudaram não só a ajustar os objetivos inicialmente propostos como também a aprimorar o argumento do trabalho. O presente artigo é fruto do desenvolvimento do projeto de pesquisa "Embates normativos e construção da cidadania na 'Era Vargas' (1930-1945): para uma problematização de duas tradições sociológicas brasileiras" (FAPEMIG - Processo nº: EDT 5/07).
  • 2
    Nunca é demais lembrar que Marshall define o complexo da cidadania moderna nos seguintes termos: "O elemento civil é composto por direitos necessários à liberdade individual - liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e fé, o direito de propriedade e de concluir contratos válidos, e o direito à justiça. (...) as instituições mais diretamente associadas aos direitos civis são as cortes de justiça. Por direitos políticos eu entendo o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um corpo investido de autoridade política ou como eleitor de membros de tal corpo. As instituições correspondentes são o parlamento e os conselhos locais de governo. Quanto ao elemento social entendo ser toda uma gama de direitos, desde um
    modicum de segurança e bem-estar econômico até o direito de compartilhar por completo a herança social e de viver a vida de um ser civilizado conforme os padrões prevalecentes na sociedade. As instituições mais conectadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais" (MARSHALL, 1992, p. 8).
  • 3
    Tratei de forma sistemática cada uma dessas abordagens em Tavolaro (2005), denominando-as de
    sociologia da dependência (onde me referi especificamente a alguns dos principais aspectos dos pensamentos de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando H. Cardoso) e de
    sociologia da herança patriarcal-patrimonial (em que salientei algumas das importantes contribuições de Gilberto Freyre, Sergio B. de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta).
  • 4
    Sobre a amplitude dessa variedade normativa, talvez seja suficiente aludir às disparidades existentes entre, de um lado, a configuração de cidadania delineada ao longo da chamada "Era Vargas" e, de outro, as mudanças iniciadas a partir do início dos anos 1990.
  • 5
    Agradeço especialmente aos pareceristas anônimos da
    Revista de Sociologia e Política pela sugestão de preencher esta lacuna do artigo a fim de tornar mais palpáveis minhas críticas à produção bibliográfica nacional acerca do que chamei de "aventura da cidadania no Brasil".
  • 6
    Um bom exemplo da sensibilidade da literatura para tais variações de configuração pode ser encontrado no estudo de Maria da Glória Gohn a respeito das transformações no perfil das relações sociedade civil- Estado ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990. Segundo a autora, "Nos anos 70 e até meados dos anos 80, era um tanto consensual entre os movimentos e as redes de assessorias que se deveria construir um contra-poder popular, uma força popular independente do Estado. [...] Ao longo dos anos 80, com a transição democrática, os movimentos passaram a ser interlocutores privilegiados do Estado, porque este estava se democratizando e buscando também mudar sua face aparente, de repressão" (GOHN, 1997, p. 313-314). Gohn afirma que nos anos 1990 aquele cenário viria a alterar-se uma vez mais já que o próprio Estado não mais precisava dos movimentos sociais para se legitimar, ao mesmo tempo em que os movimentos progressistas quiseram participar e criar um espaço democrático não-estatal.
  • 7
    Que o digam os contrastantes contornos normativos facilmente observáveis em uma breve comparação entre as constituições de 1824 (de influência liberal e, ao mesmo tempo, legitimadora de um Estado não-secular), de 1891 (também de inspiração liberal mas marcadamente secular), de 1934 (que, como sabemos, combinava preceitos liberais e corporativos), e de 1937 (marcadamente corporativa e autoritária). Cf. Costa (1985), Lessa (1999) e Vianna (1978).
  • 8
    Que o digam, por sua vez, as diversas lutas populares que desde longa data habitam, com maior ou menor grau de organização, o universo político brasileiro (PRADO Jr., 1994). Talvez um exemplo bastante interessante seja justamente a luta sindical que coloriu o cenário paulista no início do século XX, contrapondo projetos os mais variados de normatização das relações capital-trabalho (socialistas, anarquistas, anarco-sindicalistas, comunistas, "amarelos", dentre outros) aos contornos liberais e não-intervencionistas das oligarquias que dominaram a política nacional entre 1891 e 1929. Além dos já clássicos Moraes (1978), Rodrigues (1966) e Simão (1981), v. também Araújo (1998) e Gomes (1979).
  • 9
    Não resta a menor dúvida de que o padrão intervencionista do Estado brasileiro em um período que muitos vêem como sendo um dos marcos da modernidade no Brasil (FAUSTO, 1985), a chamada "Era Vargas", ajudou sobremaneira a moldar essa imagem de
    baixa diferenciação da dinâmica societal brasileira. Ver, a esse respeito, Carone (1977).
  • 10
    O ativo papel da Igreja Católica na dinâmica política brasileira, ao menos desde o início dos anos 1930, é freqüentemente resgatado como um sinal da "imperfeita secularização" dos domínios públicos brasileiros. V. Bruneau (1982).
  • 11
    Estudos clássicos como o de Victor Nunes Leal (1977) comumente sugerem a instrumentalização do aparato público por lideranças políticas locais, regionais e mesmo nacionais em vista de benefícios e projetos privados, algo que não teria modificado-se de maneira radical nem mesmo após as seguidas ondas de modernização atravessadas pela sociedade brasileira (SOUZA & LAMOUNIER, 1990).
  • 12
    De acordo com Cardoso (1983), ao colocar ênfase no processo de centralização e hiperdesenvolvimento do Estado brasileiro, aquela literatura fechou os olhos para um fenômeno comum às "sociedades desenvolvidas", com conseqüências também similares do ponto de vista do teor das lutas por direitos: tal literatura não se deu conta de que, tanto aqui como lá, o aparato político-adminidstrativo e seus planejadores tendiam a dialogar com os usuários e consumidores de serviços estatais, a despeito do sistema político autoritário vigente no Brasil. Cabe lembrar que Ruth Cardoso voltaria a realizar reflexões dessa natureza em Cardoso (1987) e Cardoso (1994). Uma extensa e cuidadosa auto-crítica realizada na década de 1990, igualmente voltada para a produção científica sobre movimentos sociais, pode ser encontrada em Gohn (1997), especialmente o capítulo 8 ("Movimentos sociais no Brasil na era da participação: 1978-1989"). Para uma revisão do ponto de vista da produção sobre sociedade civil, ver Lavalle (2003).
  • 13
    Trata-se, conforme salientou Sérgio Costa, de um argumento bastante recorrente na literatura científico-social brasileira: "Afirma-se que, historicamente, 'tanto os setores empresariais como os trabalhadores urbanos definiramse como atores políticos pela via do Estado'. É como se a separação das esferas da economia, da sociedade civil e da sociedade política não houvesse sido plenamente completada" (COSTA, 1994, p. 50). Tal argumento, em cujo núcleo encontra-se a idéia segundo a qual a forte presença do Estado em todos os âmbitos da sociedade brasileira tolheu quase que completamente a construção de espaços públicos autônomos, acha-se difuso em uma ampla gama temática. Ver, por exemplo, o trabalho de Ferreira (1996) a respeito dos obstáculos à incorporação da qualidade ambiental ao universo de direitos, que segundo a autora, acham-se fortemente vinculados à seguinte questão: "o problema central na história recente da relação do Estado brasileiro com a sociedade e suas demandas é a inexistência do reconhecimento oficial e extra-oficial da dimensão concreta da cidadania" (FERREIRA, 1996, p. 247).
  • 14
    Para uma consideração cuidadosa das noções de "
    sub e
    sobrecidadão" pelo próprio autor, às quais encontram-se vinculadas as idéias de "
    sub e
    sobreintegração" jurídica, ver Neves (1994).
  • 15
    Ver Kant de Lima (1991) para uma defesa da idéia segundo a qual a própria estrutura do sistema processual penal brasileiro tende a reforçar desigualdades sócio-econômicas.
  • 16
    Os inúmeros trabalhos a respeito da constante presença do catolicismo na dinâmica social brasileira (mesmo que decrescente e, nas últimas três décadas, em favor de outras religiões, especialmente as pentecostais) sinalizam para essa direção. Para uma síntese esclarecedora (ainda que de um ponto de vista "estrangeiro") da literatura brasileira sobre o papel do catolicismo no Brasil, ver Casanova (1994).
  • 17
    Vale aqui salientar o parentesco entre essas reflexões e as de Evelina Dagnino (1994) a respeito do que qualifica como o "autoritarismo social" permeando a dinâmica da sociedade brasileira. Conforme a autora, trata-se de um "ordenamento social presidido pela organização hierárquica e desigual do
    conjunto das relações sociais [...]. [...] esse autoritarismo social se expressa num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas dispostas nos seus respectivos
    lugares na sociedade [...], um código estrito, que pervade a casa e a rua, a sociedade e o Estado [...] [e que] reproduz a desigualdade nas relações em todos os seus níveis" (DAGNINO, 1994, p. 104-105).
  • 18
    Para uma análise na mesma direção, ver ainda o dossiê: os movimentos sociais e a construção democrática (GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA, 1999, p. 45-46): "A
    indistinção entre público e privado, subjacente a uma concepção oligárquica de política, em que os interesses privados assumem precedência sobre o interesse público, está no centro de uma matriz básica que continua presidindo a configuração da sociedade brasileira, e em relação à qual as instituições políticas da democracia representativa liberal se acomodaram sem rupturas significativas".
  • 19
    Vale lembrar que a primeira edição de
    Cidadania e Justiça data de 1979. É notória a posição de destaque que, desde então, o referido trabalho veio a ocupar na literatura científica brasileira.
  • 20
    Conforme o autor, "Marcante na evolução brasileira [...] é o fato de que os períodos em que se podem observar efetivos progressos na legislação social coincidem com a existência de governos autoritários [ou seja, Era Vargas e o pós-1966]. Nessa conexão, a experiência brasileira aproximar-se-ia da estratégia bismarckiana de tentar obter a aquiescência política do operariado industrial em troca do reconhecimento de alguns de seus direitos civis [...]" (SANTOS, 1987, p. 89).
  • 21
    Nesse sentido, talvez não seja tão exagerado afirmar que o artigo de Tilman Evers (1984) assumiu, naquele contexto, um papel emblemático. Para enfatizar o que argumentava ser a novidade oculta dos novos movimentos sociais, Evers elencou uma enorme lista dos "novos grupos sociais" a ocupar o então renovado cenário político brasileiro, colocando em evidência a diversidade e complexidade políticas gestadas ainda durante a ditadura.
  • 22
    Evidentemente, não é minha intenção reduzir o teor da produção brasileira da década de 1980 em torno da cidadania ao adjetivo
    otimista, opondo-a ao pretenso "pessimismo" da produção da década de 1990. O esforço analítico empreendido ao longo destas páginas revela não ser este o meu propósito.
  • 23
    Nunca é demais lembrar que as inúmeras experiências de participação popular em administrações municipais, muitas das quais ganharam maturidade ao longo dos anos 90, eram freqüentemente salientadas como sinal de que, dentre outras coisas, a democratização não havia sido em vão. Ver, por exemplo, Vilas Boas (1994), Dossiê: os movimentos sociais e a construção democrática (1999) e Avritzer (2002).
  • 24
    É legítimo dizer que essas duas abordagens permanecem ainda hoje referências nodais no "imaginário sociológico brasileiro", fornecendo idéias e noções-chave a partir das quais inúmeras tentativas de explicação e interpretação do Brasil contemporâneo esforçam-se para apreender aspectos tão variados quanto a formação e funcionamento de nosso Estado, a estrutura e funcionamento de nosso campo político-partidário, a dinâmica sindical brasileira, os movimentos sociais e nossa pretensamente singular cultura política, além, é claro, da suposta peculiaridade de nossa cidadania. O problema da normatividade do Brasil moderno e, em particular, das configurações de direitos e deveres que se institucionalizaram entre nós não escapam à centralidade dessas duas idéias-força.
  • 25
    De acordo com Caio Prado, "Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu" (PRADO JR., 1970, p. 22). O problema, para o autor, é que essa motivação inicial não só perdurou por séculos como se mantém ativa em nossodesenrolar histórico: "É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país [...]" (PRADO JR., 1970, p. 23).
  • 26
    Algumas das referências centrais da abordagem da
    sociologia da dependência, a despeito das irredutíveis especificidades de cada trabalho e autor, são: Prado Jr. (1970; 1971; 1994), Fernandes (1975; 1976), Ianni (1971; 1978), Cardoso (1972) e Cardoso e Faletto (1979).
  • 27
    Algumas das principais referências de nossa
    sociologia da herança patriarcal-patrimonial, também aqui guardadas suas irredutíveis particularidades, são: Freyre (1990; 1996; 2000), Holanda (1994), Faoro (2001) e Matta (1980; 2000).
  • 28
    A título de ilustração, parece-me sugestivo que, enquanto para Dagnino (2003) a chave-explicativa de nossa peculiaridade normativa está na "cultura de autoritarismo social" que permeia a sociabilidade brasileira desde longa data, Saes (2001) atribui nossa pretensa especificidade à "configuração assumida pelo processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil" que, segundo o autor, jamais deixou de ser "retardatário e dependente".
  • 29
    Nesse sentido, por exemplo, a redemocratização de meados da década de 1980 não teria alterado o cerne do padrão de diferenciação social supostamente característico do Brasil moderno, em que o Estado tende a ocupar (assim reza o argumento) posição nodal na dinâmica da sociedade brasileira (apesar da inegavelmente exuberante emergência de movimentos sociais e outras organizações no seio da sociedade civil naquele momento de nossa história política). Na mesma linha, o período da chamada "República Populista" não teria alterado as linhas mestras da configuração de direitos e deveres institucionalizada ao longo da Era Vargas (a despeito das efervescentes disputas eleitorais de então), na medida em que a dimensão social teria sido "sacralizada" no seio de nossa tessitura normativa. Dessa feita, as diferentes configurações da cidadania no Brasil têm seu devir pré-definido por um dado quadro analítico-conceitual, incapaz de fazer frente a variações (por mais gritantes que sejam).
  • 30
    Ver, por exemplo, o trabalho de Holston e Caldeira (1998), em que se trabalha a noção de "disjunção" da cidadania no Brasil contemporâneo. Conforme os autores, "Usando a tipologia de T. H. Marshall, tal 'disjunção' significa que em comparação com os direitos sociais e políticos, a dimensão civil não foi efetivamente entrelaçada ao tecido da cidadania brasileira. Ao contrário, as proteções e imunidades dos direitos civis [...] são geralmente percebidas e experimentadas como privilégios elitistas de
    status social [...]" (HOLSTON & CALDEIRA, 1998, p. 276).
  • 31
    Ao menos em parte, é esse o espírito da crítica de Francisco de Oliveira (1994) à noção de "cidadania concedida" trabalhada por Teresa Sales (1994).
  • 32
    Ver, ainda, o número especial da revista
    Pólis dedicado ao tema "São Paulo: conflitos e negociações na disputa pela cidade", organizado por Renata Villas-Bôas (1995).
  • 33
    Por ora, cabe apenas adiantar que a configuração normativa e societal assumida pela sociedade brasileira a partir de 1930 é vista, tanto por nossa
    sociologia da herança patriarcal-patrimonial, como por nossa
    sociologia da dependência como emblemática de nossa "excepcionalidade". Faoro (2001), por exemplo, vê na "Era Vargas" a retomada daquele padrão patrimonialistaestamental que por séculos permaneceu "nosso problema não-resolvido". Já tanto Ianni (1968) quanto Cardoso e Faletto (1979) vêem naquela configuração a única capaz de proporcionar a uma sociedade periférica como a nossa o salto modernizador almejado.
  • 34
    Sem qualquer intenção de propor uma genealogia da noção em questão, indico as seguintes referências na literatura a respeito de movimentos sociais que passou a trabalhar com a idéia de "
    oportunidades políticas" de maneira sistemática, procurando aprimorá-la tendo em vista a exploração de seu potencial: McAdam, McCarthy e Zald (1988); Morris e Mueller (1992); Traugott (1995); McAdam, McCarthy e Zald (1996); Tarrow (1999).
  • 35
    Até mesmo disparidades de recursos financeiros (dinheiro) e políticos (poder) entre os agentes em disputa podem ser compensadas na medida em que os mais frágeis logrem tirar vantagem de oportunidades.
  • 36
    Isso implica que caso essas circunstâncias especiais não sejam codificadas pelos próprios agentes como
    oportunidades políticas, não importa o quão poderosos eles sejam, terão pouquíssimas (ou mesmo não terão qualquer) possibilidade de efetivar as almejadas transformações (uma vez mais, sejam elas políticas, normativas, econômicas, culturais etc.) (FRIEDMAN & BENFORD, 1992).
  • 37
    Não se trata de atribuir única e simplesmente a estruturas formais (como é o caso de instituições estatais) o rótulo de "oportunidades políticas privilegiadas": tais "janelas de oportunidade" podem ter origem não só em instituições políticas consideravelmente estáveis (cujas transformações normalmente ocorrem vagarosa e gradualmente) como também em eventos altamente voláteis e transformações passageiras (MCADAM, MCCARTHY & ZALD, 1996). Ao mesmo tempo, podem apresentar-se atreladas tanto ao aparato estatal e sua dinâmica como a grupos e/ou problemas consideravelmente específicos (GAMSON & MAYER, 1996).
  • 38
    Eis a justificativa deste recorte temporal: foi precisamente a configuração de direitos e deveres que veio a consolidar-se no universo normativo brasileiro a partir de 1930 a que mais corresponde àquela imagem do padrão de sociabilidade moderno tido como "especificamente brasileiro" (conforme discutido nos dois primeiros itens deste artigo). Ou seja, a partir dos anos 1930, a ênfase nos direitos sociais (em detrimento dos direitos políticos e civis) dar-se-á em meio a um cenário que a historiografia e ciências sociais nacionais identificam como fortemente marcado por:
    a. Considerável intervenção estatal no mercado e na sociedade civil;
    b. Papel ativo da Igreja católica na dinâmica política (sob a liderança de D. Sebastião Leme);
    c. Instrumentalização da esfera pública pelos interesses privados em favor tanto da emergente burguesia industrial como de outros atores com ligações privilegiadas ao aparelho do estado.
  • 39
    Obviamente, também sabemos que já no Império os confrontos entre um projeto
    centralista e outro
    federalista encontravam ancoragem institucional nas disputas que opunham
    Liberais (partidários de uma estrutura políticoinstitucional que garantisse autonomia local) e
    Conservadores (defensores do Poder Moderador instituído pela Constituição de 1824). Os
    Liberais compreendiam classes médias urbanas, padres e figuras emergentes das oligarquias de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Já, os
    Conservadores apoiavam-se em burocratas do Império, magistrados, grandes comerciantes, além dos setores mais importantes das oligarquias mais tradicionais, como aquelas do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Ver Carvalho (1980) e Costa (1985).
  • 40
    Segundo Lessa (1999), os militares (alguns dos quais nem mesmo
    centralistas eram) ocupavam apenas ao redor de 25% da Assembléia Constituinte; disputavam poder com outros dois grupos proeminentes, os
    federalistas moderados e os
    hiper-federalistas.
  • 41
    Tarefas legislativas deveriam ser unificadas pelo poder Executivo já que a Câmara de Representantes teria a única prerrogativa de cuidar de questões orçamentárias. Vale dizer, o processo eleitoral dessa câmara seguiria uma linha corporativa.
  • 42
    Em um projeto apresentado ao Governo Provisório em 25 de dezembro de 1889, Teixeira Mendes salientava a importância de melhorias nas condições de vida do proletariado como um pré-requisito para o progresso brasileiro. Seu projeto mencionava questões tão variadas quanto: salário mínimo (o salário deveria ser dividido em duas partes, uma das quais seria uma espécie de gratificação), limitação da jornada de trabalho diária (não mais que sete horas por dia) e semanal (feriados e domingos seriam livres), férias (15 dias/ano), pensões (dispensa paga em caso de doenças; pensões a viúvas e dependentes menores de 21 anos; aposentadoria àqueles com mais de 63 anos), estabilidade no emprego (conquistada após sete anos de trabalho no mesmo local) dentre outros. Ver
    A incorporação do proletariado na sociedade moderna, no trabalho de Lins (1980).
  • 43
    Ver
    Carta à S. Exa. o Sr. Dr. Joaquim Nabuco e
    Bases de uma constituição ditatorial federativa (publicada em 31 de janeiro de 1890), em Paim (1981).
  • 44
    Em princípio, como comprovam as reivindicações da revolta de 1922, o principal objetivo era levar adiante uma espécie de "purificação do Estado", acabando com a "corrupção generalizada" a partir da derrubada das oligarquias. Clamava-se por reformas eleitorais que garantissem o voto secreto e a institucionalização de uma justiça eleitoral autônoma (SAES, 1985).
  • 45
    Enquanto governador no RS, Castilhos queria a institucionalização de um poder Executivo que governaria sobre bases plebiscitárias ao lado de um Legislativo cuja única função seria lidar com questões orçamentárias. De fato, a Constituição gaúcha que ele e Assis Brasil elaboraram logo após 1891 contava com um Legislativo unicameral (restrito a questões orçamentárias), amplas prerrogativas ao Executivo (dentre as quais a aprovação de leis
    via decretos, em última instância sujeitos à aprovação de conselhos municipais, e o poder de anular resoluções e atos de autoridades locais), a possibilidade de reeleição para governador (número irrestrito de vezes, desde que aprovada por 75% dos votos), supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e privados, e abolição de privilégios profissionais (LOVE, 1985).
  • 46
    A implicação política dessa concepção era o desprezo da arena política liberal-democrática e das instituições correspondentes (partidos e dinâmica parlamentar) em favor da greve e outros instrumentos de "ação direta" (como sabotagem e boicote). Isso não significa que não lutassem pela institucionalização da proteção ao trabalhador: ao contrário disso, brigaram pela jornada de oito horas, pela proteção às mulheres e menores, pelo dia de descanso, por compensações em caso de acidente de trabalho, pela melhoria das condições higiênicas do ambiente de labuta, dentre outros (VIANNA, 1989).
  • 47
    É preciso que se diga que, com algumas raríssimas exceções (caso do CIB quando sob o comando de Jorge Street), os industrialistas e comerciantes resistiram o quanto puderam à institucionalização de medidas tomadas pelo Estado em benefício dos trabalhadores, argumentando que isso encareceria ainda mais a produção nacional (GOMES, 1986). Mas isso em nada contradizia sua reivindicação por um sistema de tarifas pró-indústria e uma política monetária que lhes fosse mais favorável, além de créditos que estimulassem a produção e consumo de manufaturados nacionais.
  • 48
    Talvez uma das últimas propostas ousadas de legislação com teor social apresentadas antes do Golpe de 1930 tenha sido de autoria do Dep. Agamenon Magalhães (vale lembrar, figura nodal da Era Vargas) versando sobre a criação de um "fundo de assistência e seguridade social", que deveria tornar obrigatória a assistência médica e farmacêutica aos trabalhadores. A oposição foi tão acentuada que a proposta não chegou nem mesmo a ser votada.
  • 49
    Uma vez mais, quando falo de oportunidades políticas refiro-me aos cinco aspectos anteriormente assinalados, a saber: a) a
    abertura de acesso institucional e nãoinstitucional à participação de novos atores, até então marginalizados no processo decisório; b)
    realinhamentos de poder no sistema político; c) o
    surgimento de novos aliados potencialmente influentes; d) o surgimento ou aprofundamento de
    fissuras no interior de elites; e, finalmente, e) o
    declínio da capacidade ou da vontade do Estado de coibir ou mesmo reprimir o dissenso.
  • 50
    Cf. o documento "Correspondência trocada entre Getúlio Vargas e Washington Luís", reproduzida pela Agência Americana (telegrafada) (
    A Revolução de 30, 1982).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 2009

    Histórico

    • Recebido
      14 Dez 2006
    • Aceito
      03 Dez 2007
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