Acessibilidade / Reportar erro

Desenho institucional e accountability: pressupostos normativos dateoria minimalista

Institutional design and accountability: normative proposals of minimalist theory

Conception institutionnelle et accountability: hypothèses de la théorie minimaliste

Resumos

O artigo busca sistematizar algumas contribuições de teóricos contemporâneos (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato e Lijphart, entre outros) sobre os limites da agregação de preferências e sobre os pressupostos institucionais mais propícios para o desenvolvimento da accountability. A partir dessa análise, objetivamos demonstrar o vínculo existente entre os teóricos minimalistas da democracia e os pressupostos normativos nos quais eles baseiam-se, especialmente, a valorização da dimensão da accountability. Nossa hipótese é a de que não existe ausência de normatividade na concepção minimalista-procedimentalista-schumpeteriana de democracia. Tentamos mostrar isso por meio da análise da relação entre desenho institucional e accountability. Buscamos mostrar como o desenho institucional dos regimes democráticos influencia a formação de características da democracia, que podem ser entendidas como indicadores de qualidade democrática (ou seja, uma dimensão normativa da democracia). A análise dá-se a partir da diferenciação entre desenhos majoritários e proporcionalistas e as características institucionais e normativas a eles vinculados, buscando-se explicitar argumentos contemporâneos acerca da impossibilidade de agregação de preferências e da relação desenho institucional-accountability. A metodologia empregada consiste na sistematização de argumentos centrais e na análise teórica de artigos e livros dos autores selecionados.

accountability; desenho institucional; Schumpeter; teoria democrática; agregação de preferências


This article attempts to systematize some contributions from contemporary theory (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato and Lijphart, among others) on the limits of preference aggregation and on the most propitious institutional bases for the development of accountability. Through this analysis, we seek to demonstrate the link between minimalist theories of democracy and their normative bases, and in particular, the value that is placed on the dimension of accountability. It is our hypothesis that there is no absence of normativity in the minimalist-proceduralist-Schumpeterian conception of democracy. We have tried to show this through analysis of the relationship between institutional design and accountability. We seek to demonstrate how the institutional design of democratic regimes influences the formation of the characteristics of a democracy, which can be understood as indicators of the quality of democracy (in other words, the normative dimension of democracy.) Our analysis unfolds through the differentiation of majoritarian and proportionalist designs and the institutional and normative characteristics that are tied to them, attempting to make contemporary arguments on the impossibility of preference aggregation and the relationship between institutional design-accountability explicit. The methodology we use consists of systematizing central arguments and carrying out theoretical analysis of the books and articles of selected authors.

accountability; institutional design; Schumpeter; Democratic Theory; preference aggregation


L'article vise à décrire certaines contributions de théoriciens contemporains (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato et Lijphart, entre autres) sur les limites de l'agrégation des préférences et les conditions institutionnelles plus propices au développement de l'accountability. A partir de cette analyse, nous avons cherché à démontrer le lien entre les théoriciens minimalistes de la démocratie et les hypothèses normatives sur lesquelles ils s'appuyent, en particulier, l'appréciation de la dimension de l'accountability. Notre hypothèse est que la normativité ne fait pas défaut dans la conception minimalisto-procédural de Schumpeter de démocratie. Nous essayons de le montrer en examinant la relation entre la conception institutionnelle et l'accountability. Nous cherchons à montrer comment la conception institutionnelle des régimes démocratiques influencent la formation des caractéristiques de la démocratie, qui peuvent être interprétées comme des indicateurs de la qualité démocratique (c'est-à-dire une dimension normative de la démocratie). L'analyse est effectuée à partir de la distinction entre les dessins majeurs et proportionnalistes et les caractéristiques institutionnelles et réglementaires qui leur sont liées, et cherche à expliquer les arguments contemporains sur l'impossibilité de l'agrégation de préférences et de la relation dessin institutionel-accountability. La méthodologie utilisée consiste à organiser les principaux arguments et à effectuer l'analyse théorique des articles et des livres d'auteurs sélectionnés.

accountability; conception institutionnelle; Schumpeter; théorie démocratique; l'agrégation des préférences


ARTIGOS

Desenho institucional e accountability: pressupostos normativos dateoria minimalista

Institutional design and accountability: normative proposals of minimalist theory

Conception institutionnelle et accountability : hypothèses de la théorie minimaliste

João Francisco Araújo Maria

RESUMO

O artigo busca sistematizar algumas contribuições de teóricos contemporâneos (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato e Lijphart, entre outros) sobre os limites da agregação de preferências e sobre os pressupostos institucionais mais propícios para o desenvolvimento da accountability. A partir dessa análise, objetivamos demonstrar o vínculo existente entre os teóricos minimalistas da democracia e os pressupostos normativos nos quais eles baseiam-se, especialmente, a valorização da dimensão da accountability. Nossa hipótese é a de que não existe ausência de normatividade na concepção minimalista-procedimentalista-schumpeteriana de democracia. Tentamos mostrar isso por meio da análise da relação entre desenho institucional e accountability. Buscamos mostrar como o desenho institucional dos regimes democráticos influencia a formação de características da democracia, que podem ser entendidas como indicadores de qualidade democrática (ou seja, uma dimensão normativa da democracia). A análise dá-se a partir da diferenciação entre desenhos majoritários e proporcionalistas e as características institucionais e normativas a eles vinculados, buscando-se explicitar argumentos contemporâneos acerca da impossibilidade de agregação de preferências e da relação desenho institucional-accountability. A metodologia empregada consiste na sistematização de argumentos centrais e na análise teórica de artigos e livros dos autores selecionados.

Palavras-chave:accountability; desenho institucional; Schumpeter; teoria democrática; agregação de preferências.

ABSTRACTS

This article attempts to systematize some contributions from contemporary theory (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato and Lijphart, among others) on the limits of preference aggregation and on the most propitious institutional bases for the development of accountability. Through this analysis, we seek to demonstrate the link between minimalist theories of democracy and their normative bases, and in particular, the value that is placed on the dimension of accountability. It is our hypothesis that there is no absence of normativity in the minimalist-proceduralist-Schumpeterian conception of democracy. We have tried to show this through analysis of the relationship between institutional design and accountability. We seek to demonstrate how the institutional design of democratic regimes influences the formation of the characteristics of a democracy, which can be understood as indicators of the quality of democracy (in other words, the normative dimension of democracy.) Our analysis unfolds through the differentiation of majoritarian and proportionalist designs and the institutional and normative characteristics that are tied to them, attempting to make contemporary arguments on the impossibility of preference aggregation and the relationship between institutional design-accountability explicit. The methodology we use consists of systematizing central arguments and carrying out theoretical analysis of the books and articles of selected authors.

Keywords:accountability; institutional design; Schumpeter; Democratic Theory; preference aggregation.

RÉSUMÉS

L'article vise à décrire certaines contributions de théoriciens contemporains (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato et Lijphart, entre autres) sur les limites de l'agrégation des préférences et les conditions institutionnelles plus propices au développement de l'accountability. A partir de cette analyse, nous avons cherché à démontrer le lien entre les théoriciens minimalistes de la démocratie et les hypothèses normatives sur lesquelles ils s'appuyent, en particulier, l'appréciation de la dimension de l'accountability. Notre hypothèse est que la normativité ne fait pas défaut dans la conception minimalisto-procédural de Schumpeter de démocratie. Nous essayons de le montrer en examinant la relation entre la conception institutionnelle et l'accountability. Nous cherchons à montrer comment la conception institutionnelle des régimes démocratiques influencent la formation des caractéristiques de la démocratie, qui peuvent être interprétées comme des indicateurs de la qualité démocratique (c'est-à-dire une dimension normative de la démocratie). L'analyse est effectuée à partir de la distinction entre les dessins majeurs et proportionnalistes et les caractéristiques institutionnelles et réglementaires qui leur sont liées, et cherche à expliquer les arguments contemporains sur l'impossibilité de l'agrégation de préférences et de la relation dessin institutionel-accountability. La méthodologie utilisée consiste à organiser les principaux arguments et à effectuer l'analyse théorique des articles et des livres d'auteurs sélectionnés.

mots-clés:accountability; conception institutionnelle; Schumpeter, théorie démocratique, l'agrégation des préférences.

I. INTRODUÇÃO

Este artigo, dividido em duas partes, busca sistematizar algumas contribuições de teóricos contemporâneos (Schumpeter, Riker, McGann, Przeworski, Cox, McCubbins, Powell, Crisp, Arato, Lijphart, dentre outros) a respeito dos limites da agregação de preferências (primeira parte) e sobre os pressupostos institucionais mais propícios para o desenvolvimento da "accountability" (segunda parte). A partir desta análise, tentaremos demonstrar o vínculo existente entre teóricos minimalistas da democracia e os pressupostos normativos nos quais se baseiam, em especial a valorização da dimensão da accountability.

A primeira parte aborda, a partir de Schumpeter e da literatura pós-schumpeteriana, os limites teóricos da concepção de "interesse coletivo" e do "bem comum". Schumpeter critica a concepção clássica de democracia, que acredita na existência de um bem comum e de uma vontade geral. Para ele, a democracia é um procedimento competitivo por meio do qual as elites políticas adquirem ou não a aprovação dos eleitores para suas propostas. Arrow, Riker e McGann comprovam a afirmação de Schumpeter da inexistência de "uma vontade geral" por evidenciarem, teórica e empiricamente, dilemas da agregação de preferências individuais. A pergunta que fica, dessa parte, e para a qual tentaremos esboçar algumas possibilidades de resposta é: sendo a agregação de preferências individuais improvável, por que seria desejável, afinal, a regra da maioria?

O debate sobre a impossibilidade de agregação de preferências individuais, dentre outros fatores, ajuda a mudar o foco da literatura sobre a representação política. Esta passa a preocupar-se mais com a dimensão da accountability e do controle1 1 A preocupação com o alcance do bem comum esteve muito vinculada, na literatura sobre a representação política, com o debate sobre mandato livre e vinculado. O foco teria mudado para a preocupação com a accountability. Segundo Miguel (2005, p. 28) o conceito de accountability "apresenta um modelo mais sofisticado e atraente das relações entre representantes e representados do que as visões antitéticas do "mandato livre' e "mandato imperativo'". do representante do que com a busca do "bem comum" (fortemente abalada após Schumpeter). Ao perceber que o conceito de accountability passa a ser central, analisamos, na segunda parte do artigo, como alguns teóricos contemporâneos entendem a relação entre diferentes tipos de desenho institucional - principalmente sob o foco do tipo de sistema político (presidencialismo/parlamentarismo) - e a dimensão da accountability. Isto é, consideramos quais seriam os pressupostos institucionais mais fecundos para um maior desenvolvimento da dimensão da accountability, que, por sua vez, é entendida como um indicador normativo de qualidade democrática presente em teóricos minimalistas da democracia.

Mesmo partindo de teorias minimalistas (schumpeterianas) da democracia, percebemos a existência de um vínculo entre a discussão institucional e a normativa. Diferentes desenhos institucionais geram distintas características democráticas, que podem ser entendidas por meio de uma dimensão normativa, por serem indicadores de qualidade democrática. Isso significa que características democráticas distintas podem ser apontadas como critério da qualidade de uma democracia. Com isso, tais critérios de qualidade democrática explicitam que o valor normativo mais importante para cada perspectiva teórica da democracia é diferente, porém não inexistente. Na perspectiva minimalista de democracia também existem valores normativos indicadores da "qualidade" de uma democracia.

Mais especificamente, no campo da representação política, desenhos institucionais majoritários (concentradores de autoridade) vinculam-se à dimensão normativa da accountability e aos indicadores de qualidade democrática a ela ligados, principalmente a vinculação entre representante e representado. Desenhos institucionais proporcionalistas/consensualistas (dispersores de autoridade) associam-se à dimensão normativa da inclusão mais ampla possível dos cidadãos ("inclusividade") e de suas preferências no ato de governar (maior congruência representacional). Diante disso, esvazia-se a crítica de que a concepção procedimentalista-minimalista da democracia seria ausente de valores normativos.

Nossa hipótese central é que há a presença de valores normativos na concepção minimalistaprocedimentalista-schumpeteriana de democracia. A análise da literatura contemporânea que trata da relação entre desenho institucional e accountability tem como objetivo explicitar o vínculo existente entre autores que partem de uma concepção minimalista de democracia e a valorização implícita de alguns pressupostos normativos, como é o caso da accountability.

Isso tudo demonstra que as críticas que identificam as perspectivas democráticas minimalistas com teorias ausentes de preocupações normativas são inconsistentes, já que, inclusive no debate minimalista de democracia, existem preocupações normativas subjacentes. Mostra também a incongruência do discurso de alguns teóricos minimalistas que crêem estar limitados a critérios procedimentais e não substantivos, ou seja, que acreditam que suas teorias sobre a democracia sejam neutras em relação a valores.

II. PRIMEIRA PARTE

II.1. O interesse coletivo e o problema da agregação de preferências: a discussão pósschumpeteriana

A idéia geral de doutrina clássica da democracia, consolidada no século XVIII, pode ser assim definida: "o método democrático é o arranjo institucional para chegar-se a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo" (SCHUMPETER, 1984, p. 313).

Nessa concepção, há pouca discordância sobre qual seja o fim último da democracia: seria alcançar o bem comum. Existe, portanto, a idéia de um bem comum, passível de ser alcançado. O bem comum seria o centro em torno do qual as vontades individuais gravitam e a pré-condição básica para a existência de uma vontade geral.

Schumpeter (1984) critica fortemente a crença na existência de um tipo de bem comum na política, e tal foi sua principal crítica à doutrina clássica da democracia. Não haveria algo consensual que possamos chamar de "bem comum", já que também não existe uma natureza humana única. Para a doutrina clássica de democracia, a legitimação da democracia dá-se em cima da idéia de bem comum (embasado na crença normativa da igualdade2 2 Porque o bem comum seria o bem de todos (iguais). ), ao passo que, para Schumpeter, a legitimação da democracia dá-se em cima dos procedimentos democráticos. Para ele, não existe a idéia de unicidade da natureza humana e de uma vontade racional claramente definida como o motor da ação social. A vontade do povo é produto e não o motor (causa) do processo político. A relação deve ser entendida de forma que os procedimentos políticos caracterizem-se como elemento causal da "vontade do povo" (preferências sociais), e não o inverso, como afirma a doutrina a clássica.

Para Schumpeter, a "vontade geral" é uma conseqüência do ordenamento político (de suas instituições, métodos, liderança etc.), e não sua causa. Não é a vontade geral que será a causa primeira da formação do ordenamento político, mas este que, com suas regras, competições e procedimentos, poderá dar sentido a algum tipo de vontade social dos indivíduos.

Deparamo-nos, na análise dos processos políticos, com uma vontade que, em grande parte, não é genuína, mas manufaturada. E, freqüentemente, esse artefato é tudo aquilo o que na realidade corresponde à volunté générale da doutrina clássica. Eventualmente, a parte disso que corresponder à vontade do povo é o produto, e não o motor do processo político (idem, p. 328-329)

Democracia seria apenas um método (o que está em consonância com uma visão de análise mais empírica) que pode ser discutido racionalmente, porque não é nem um ideal nem parte de um sistema de valor, como o faz a doutrina clássica. Porém, Schumpeter não nega a importância da ética na democracia e sua afirmação não indica que ele seja anti-ético, dado que "a mera distância dos fatos não é argumento contra uma máxima ética ou uma esperança mística" (idem, p. 333).

Para ele, a doutrina clássica é ineficiente para explicar os mecanismos de tomada de decisão política. Elaborará, então, outra teoria da democracia, centrada na idéia de competição pela liderança política.

"E definimos: o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população" (idem, p. 336).

Schumpeter inverte o foco e a hierarquia de relevância na análise. Muda um paradigma. Em sua análise, não são os representados (eleitores) que possuem centralidade, mas os futuros representantes como uma elite (liderança) que está disputando os votos dos eleitores.

Bebendo nas fontes de Schumpeter, Riker (1983) reflete sobre a democracia dando centralidade para a idéia do voto, entendendo-o como um mecanismo de agregação de valores sociais. Tendo como ponto de partida a "teoria da escolha social", buscará entender como valores e preferências individuais podem ser agregados e "amalgamados" em escolhas sociais. O voto vinculará, então, a teoria da escolha social à teoria democrática, por ser a principal instituição da democracia. Riker está mais preocupado com os mecanismos institucionais da representação do que com sua dimensão normativa.

O paradoxo do voto é o fato de que, a partir da regra da maioria, escolhas individuais coerentes podem coexistir com escolhas coletivas incoerentes (MAY, 1952; RAE, 1969). Ou seja, mesmo que indivíduos sejam racionais e tenham preferências completas, ordenadas e transitivas, as decisões coletivas podem refletir uma intransitividade. Com isso, vemos que a transitividade das decisões individuais não leva necessariamente à transitividade das decisões coletivas, já que algo que ocorre no meio do caminho quebra essa corrente de lógica e transitividade. E o voto, como mecanismo de agregação de preferência, é justamente o que se encontra entre a decisão individual e a decisão coletiva; por isso a importância de compreender o papel que ele cumpre entre a decisão racional individual e a possibilidade de irracionalidade da decisão coletiva.

Tal paradoxo, inicialmente percebido por Condorcet, trouxe inúmeras conseqüências para a teoria política. Inicialmente, constituiu um duro golpe na chamada "doutrina clássica da democracia", que acredita na existência de uma "vontade geral" e de um "bem comum" acima das vontades individuais e que foi duramente criticada por Schumpeter. Para a doutrina clássica, o bem comum é anterior à vontade dos indivíduos, e o processo eleitoral seria uma forma de chegar-se próximo dessa vontade geral.

O teorema da impossibilidade coloca-nos que, dependendo do método de agregação de preferência (método de votação e eleitoral), teremos resultados finais (a dita vontade geral) muito diferentes.

Não existe mais a imparcialidade do método, que deixa de ser algo instrumental, um mero instrumento de coleta das vontades individuais e uma forma de processá-las numa vontade geral. O instrumento eleitoral passa a influenciar diretamente no resultado final. A vontade geral (que apenas esperava ser descoberta) deixa de ser anterior à votação e passa a ser uma conseqüência das instituições, competições eleitorais, procedimentos e métodos de votação adotados.

Há uma reviravolta no pensamento político em consonância com o pensamento de Schumpeter. Sob o ponto de vista da impossibilidade de identificação de uma vontade geral a partir da agregação unívoca de preferências individuais, Arrow, Schumpeter, Riker e McGann estão alinhados em seus pensamentos. A crítica desses autores é que não conseguimos alcançar (e identificar) o bem comum mediante mecanismos de agregação de preferências individuais. Mas isso não implica, lógica e necessariamente, a impossibilidade da existência de um bem comum em uma dimensão normativa e metafísica. Implica apenas que ele não é passível de ser alcançado pelo voto.

Riker compara as dimensões liberalmadisoniana e populista3 3 Riker criticará duramente os populistas, pois crê que só a partir da perspectiva liberal do voto é possível construir verdadeiramente uma sociedade democrática, dado que já foi provado (por esse paradoxo do voto) a impossibilidade de alcançar-se a volunté genérale. do voto. Na primeira, a função dele é apenas controlar e sancionar os representantes, ao passo que, na populista, sua função é levar os indivíduos a alcançarem um bem comum superior. Para ele, por não conseguirmos captar socialmente o que as pessoas desejam4 4 Apenas conseguimos captar vontades e preferências individuais (antes de tentarmos agregar essas preferências individuais em "vontades coletivas"). Alguns teóricos refletirão, inclusive, acerca da impossibilidade de identificação da preferência individual, pois o que o indivíduo expressa como preferência seria uma preferência "distorcida" de sua "real" preferência. Nessa linha está a reflexão marxiana acerca da ideologia como falsa-consciência; teorias sobre o inconsciente influenciadas pelo pensamento freudiano e tentativas de síntese do pensamento de Marx e Freud encontradas na teoria crítica da escola de Frankfurt. Para a discussão acerca do conceito de ideologia, vide Mannheim (1968), Geuss (1988), • i•ec (1996), Eagleton (1997), Stoppino (2002). , não conseguiremos definir qual resultado político (outcome) será a expressão desse querer5 5 Interessante notar que a idéia de accountability vertical, nessa perspectiva, só é possível se pensada em termos de um indivíduo (agente) e um indivíduo (principal). Caso haja um agente para vários principais (grupos sociais), não conseguiremos medir essa ligação de controle porque, quando há mais de duas pessoas, existe a impossibilidade de agregação de preferências. . Ele compara o populismo ao direito divino dos reis. A autoridade deste está na vontade de Deus, que é impossível de ser encontrada; o mesmo acontecendo com a vontade geral. E, da mesma forma que "a vontade de Deus" perdeu sua capacidade legitimadora e estabilizadora do ordenamento social, a idéia de vontade geral pode deixar de ser crível e, com isso, deixar de legitimar ordenamentos políticos autoritários.

McGann (2006), influenciado, como Riker, pela teoria da escolha social, irá preocupar-se com os mecanismos de funcionamento da democracia. Para ele, na democracia temos dois momentos centrais: a) O momento em que os eleitores escolhem seus representantes (regras eleitorais) e b) o momento em que os representantes (políticos) decidem (regras de decisão social).

No primeiro momento, a preocupação institucional concentra-se nas regras de preenchimento (alocação) de cadeiras: as regras eleitorais. O foco é como - por meio de que regras/instituições -agregar as preferências dos indivíduos com o intuito de escolher o representante político. O segundo, de tomada de decisões por parte dos políticos eleitos, constitui-se num momento de produção de resultados políticos. O foco de análise serão as regras de tomada de decisão.

É interessante notar que os representantes estão sujeitos ao mesmo paradoxo do voto que os representados. Assim, como esses últimos devem agregar preferências para configurar um quadro de representantes, os políticos necessitam agregar preferências entre eles para produzirem resultados políticos. Porém, ao passo que, no primeiro momento, existe a possibilidade de o método de agregação de preferências ser majoritário ou proporcional, no segundo momento, para McGann, só cabe o método majoritário6 6 O que faz que os políticos tentem minimizar os efeitos da intransitividade das decisões coletivas, reduzindo o número de escolhas (geralmente a duas). de tomada de decisões.

Para ambos os momentos do procedimento democrático, são aplicados os axiomas da soberania popular e da isonomia política. Interpretando isonomia em termos de imparcialidade, McGann mostra alguns axiomas para sua realização, como a anonimidade (as regras de decisão social e de alocação de cadeiras devem tratar todos os votantes igualmente, independente de suas identidades) e a neutralidade (as regras do sistema eleitoral não podem discriminar nem favorecer alternativas). Outros axiomas, não vinculados à isonomia política, são a "decisividade" (os procedimentos democráticos deverão produzir um resultado que seja uma alternativa entre empate, vitória e derrota), a "weak monotonicity" (acontece quando o resultado final não pode piorar, mesmo quando alguns votantes optam por alterar uma alternativa), a independência binária (independência na tomada de decisão em relação a alternativas irrelevantes) e a transitividade (se prefiro a a b e prefiro b a c, logo preferirei a a c).

Como vimos, a partir do paradoxo de Condorcet, no momento democrático relativo às regras de decisão social, pode existir uma intransitividade das preferências. Condorcet provou que existe uma intransitividade entre as preferências individuais e as preferências coletivas, pois, mesmo que haja uma racionalidade7 7 Uma decisão racional deve ser entendida como aquela na qual as preferências são: completas, ordenadas e transitivas. individual na tomada de decisão, isso não significa que haverá uma racionalidade coletiva das decisões. Condorcet provou que não existe nenhum método de agregação de preferências individuais que consiga garantir a transferência da racionalidade individual para a esfera coletiva.

Ampliando sua análise a partir das conseqüências da descoberta de Condorcet, McGann percebe que a isonomia política em sistemas eleitorais (momento a) implica em proporcionalidade. Assim, um procedimento de alocação de cadeiras que possua neutralidade, "weak monotonicity" e anonimidade, satisfaz, em grande parte, à característica da proporcionalidade. Já a isonomia política em regras de decisão social (momento b) implica na regra da maioria, aplicada aos processos decisórios.

McGann contribui a esse debate por perceber o caráter cíclico (dificuldade de agregar preferências individuais em uma função de bem-estar social) e aleatório desse processo. Condorcet prova que as preferências sociais são cíclicas, pois nenhum procedimento democrático de agregação de preferências pode conduzir sempre ao mesmo resultado. Essa conclusão, referendada por Riker e McGann, está em consonância com a crítica de Schumpeter acerca da inexistência do bem comum, pois ele não acreditava que o resultado político fosse produto da vontade dos indivíduos.

McGann e Riker não acreditam em um "bem comum" como expressão da agregação das preferências individuais, pois, assim como Condorcet, percebem que a transitividade das decisões individuais pode levar à intransitividade das decisões coletivas. Porém, diferentemente de Riker e Arrow, que identificam, nesse caráter cíclico, algo negativo, McGann não é pessimista em relação a isso, pois a considera algo inerente ao procedimento democrático.

Para ele, o caráter cíclico das preferências não é algo prejudicial à democracia, pois apenas significa a simples presença de múltiplas coalisões que podem ser substituídas. Essa característica (a "ciclicidade") da regra majoritária permitiria a proteção de minorias e deixaria de ser um problema, pois passaria a ser entendida como uma mera característica da democracia.

A regra majoritária deixaria de ser entendida como uma regra de produção de decisões arbitrárias e inconsistentes. Tornar-se-ia, em vez disso, uma regra procedimentalmente justa porque trata todos os eleitores de forma igual. Com isso, aproximar-se-iam o pensamento de McGann e o de Schumpeter, no entendimento de que, em uma definição de democracia, o mínimo que devemos ter é um consenso acerca dos procedimentos.

II.2. Por que, afinal, a regra majoritária seria desejável?

É difundida a idéia de que sistemas de governos democráticos normalmente são identificados com regimes de governos em que vale a regra da maioria. Contudo, para Bobbio (2000), não se pode concluir que a regra da maioria seja exclusiva de regimes democráticos nem que as decisões coletivas nas democracias sejam tomadas exclusivamente por intermédio dessa regra, pois "a história do princípio da maioria não coincide com a história da democracia como forma de governo" (BOBBIO, 2000, p. 430).

A regra da maioria pode ser defendida por um argumento normativo e outro técnico. Do ponto de vista normativo, a regra da maioria permitiria o melhor desenvolvimento de valores como a liberdade e a igualdade. Todavia, essa relação não é necessária, já que "a idéia de igualdade não pode ser assumida como razão justificadora do princípio de maioria" (idem, p. 434). O que caracterizaria um regime democrático seria mais o sufrágio universal do que a regra majoritária.

Do ponto de vista técnico, são maiores as possibilidades de defesa da regra da maioria, que é um método eficiente de tomada de decisões coletivas entre opiniões divergentes. A regra da maioria oferece uma solução para a inviabilidade prática da unanimidade e para o elitismo da decisão monocrática. Além disso, ela seria uma regra de tomada de decisão procedimentalmente justa.

A regra da maioria é um procedimento característico da democracia para a resolução de conflito, que pode ser compreendido como um jogo de soma zero. Para Bobbio, é uma condição necessária da democracia, porém não suficiente; deve ser ampliada ao maior número de pessoas possível. Existem outras formas de resolução de conflitos, como a negociação (contratação), caracterizando-se como um jogo de soma positiva ou negativa8 8 "A decisão por maioria é uma típica decisão cujo resultado da soma é zero, uma decisão na qual há quem ganhe e quem perde [...]. Diferentemente, o resultado de um compromisso, cuja forma jurídica típica é o contrato, é geralmente um resultado cuja soma é positiva" (BOBBIO, 2000, p. 440). .

Os limites da regra da maioria, para Bobbio, podem ser enquadrados como limites de validade (a regra do jogo deve ser aceita por unanimidade para viabilizar o procedimento democrático-jogo), de aplicação (para questões técnicas e/ou de foro íntimo, a regra da maioria não é a mais adequada) e de eficácia (nem sempre leva ao resultado prometido).

Para McGann (2006), a regra majoritária proporciona maior capacidade de decisão ("decisividade"). Para a construção de decisões e resultados políticos, apenas a regra majoritária seria viável, o que não ocorreria com as regras de alocação de cadeiras, que também poderiam ser proporcionais.

Se vincularmos democracia e regra da maioria, essa última constitui-se como um dos argumentos para justificarmos a democracia. O diferencial da democracia seria possuir a regra da maioria, o que seria uma vantagem do ponto de vista normativo (regra mais propícia para o desenvolvimento da liberdade e igualdade) e institucional (regra mais eficiente/mais decisiva para a resolução de conflitos de interesses).

Para Przeworski (1999), teórico minimalista, a democracia seria um método de escolha de representantes. Segundo ele, a democracia como método de tomada de decisão não teria critérios (racionais, representativos e igualitários) superiores a um sorteio aleatório, por exemplo. Dado que ela não garante nem racionalidade9 9 Para Przeworski, as decisões produzidas em uma democracia, em geral, não podem ser esperadas como decisões racionais, mas isso não é uma deficiência do método (tomar decisões coletivas por meio do voto), mas da estrutura básica dos interesses. , nem representatividade10 10 As eleições e o voto não são mecanismos suficientes (apesar de necessários) para efetivar a representatividade, porque, entre outros fatores, (i) os eleitores não são bem informados, (ii) eles têm que punir diversas ações diferentes de seus representantes com apenas um instrumento (o voto) e (iii) eles não são homogêneos. e nem igualdade11 11 Eleições e voto não garantem igualdade, pelo fato de uma igualdade perfeita só poder ser alcançada mediante o custo de redução total da produção. Os cidadãos, antecipando isso, votam por taxas que permitam a manutenção de certo grau de desigualdade. , por que deveríamos optar pela democracia?

Alguns motivos seria o fato de (i) a democracia legitimar as decisões tomadas (e, com isso, desencorajar golpes); ii) ela ainda ser um instrumento para expulsar os representantes corruptos, ineficientes e não-desejáveis, que não estariam agindo de acordo com a vontade dos cidadãos e iii) ela possuir instrumentos de vínculo entre representante e representado.

Por mais que a democracia e a regra da maioria sejam insuficientes, ainda não foi inventado nenhum instrumento12 12 Para teóricos minimalistas pós-schumpeterianos, como Przeworski, a democracia deve ser entendida como procedimento e não um regime dotado de substância normativa. melhor para que os representados possam controlar os representantes. Ou seja, a democracia garante mecanismos de accountability que investem o cidadão com o poder de punir aqueles políticos que se desviarem da sua vontade. O principal mérito da democracia não seria levar ao "bem comum", mas possuir mecanismos que imponham a vontade dos indivíduos13 13 O voto é entendido, nessa perspectiva, como instrumento de accountability, responsabilização e sanção. e a possibilidade de vetar políticas indesejadas pelos cidadãos. Na democracia, não se pode depender da coincidência entre a vontade do povo e a decisão política tomada pelos políticos. E a superioridade da perspectiva democrática schumpeteriana, para seus defensores, estaria no estabelecimento de um consenso mínimo sobre procedimentos (eleições).

III. SEGUNDA PARTE: DESENHOS INSTITUCIONAIS E ACCOUNTABILITY

Nesta seção, abordaremos como diversos autores analisam a relação entre desenho institucional e qualidade da democracia (preocupação madisoniana). James Madison, um dos autores de O Federalista, temia o surgimento e domínio de facções no governo representativo (MADISON, HAMILTON & JAY, 1982). Por isso, notabilizouse por defender que as instituições democráticas pudessem equilibrar-se entre si, de modo que viessem a minimizar as chances de superposição de um grupo (uma facção) a outros. Com isso, explicitou a relação causal entre o tipo de desenho institucional existente e as características da democracia. Dessa forma, diferentes características da democracia passam a ser entendidas como consequência de arranjos institucionais distintos. Ou seja, a qualidade de uma democracia será julgada a partir de diferentes critérios, mas sempre levando em conta seu pressuposto institucional.

Nessa parte do artigo, as diferenças teóricas e normativas entre os autores analisados conduzirão a indicadores distintos para o julgamento da qualidade da democracia. A literatura preocupada em entender os determinantes institucionais14 14 Um dos grandes méritos de Lijphart (2003) foi selecionar, em sua análise empírica, instituições que agregam um poder explicativo central. As instituições centrais seriam: 1) tipo de composição de gabinetes, 2) tipo de relação entre executivo e legislativo, 3) sistema bi ou multi-partidário, 4) sistemas eleitorais (majoritários x proporcionais), 5) sistema de grupos de interesse, 6) governo unitário ou federado, 7) legislatura uni ou bi-cameral, 8) flexibilidade ou rigidez constitucional, 9) ausência ou presença de revisão judicial da constitucionalidade e 10) dependência ou autonomia do banco central. de características democráticas (que podem ser consideradas como critérios de qualidade democrática) pode ser agrupada em duas grandes correntes de política comparada: a corrente majoritária e a proporcionalista-consensualista15 15 É importante perceber que, ao longo deste artigo, sempre que nos referirmos a sistemas, regimes ou modelos majoritários e proporcionalistas, estaremos nos referindo a desenhos institucionais democráticos que, em seu conjunto, são concentradores (majoritários) ou dispersadores (proporcionais) de poder. Não estaremos nos referindo somente aos sistemas e métodos eleitorais. Para um compêndio dos principais sistemas e métodos eleitorais vide "IDEA Handbook (2005)". (LIJPHART, 1984; 2003; POWELL, 2002, p. 20-43; MELO, 2007).

O foco da análise será (i) a divisão institucional entre sistemas majoritários (concentradores de poder) e proporcionalistas (dispersores de poder) e (ii) a dimensão da accountability16 16 Para Melo (2007), o debate acerca dos efeitos dos arranjos institucionais sobre a accountability foi beneficiada pelas contribuições a) dos modelos de principal-agente e b) das análises a partir de pontos de veto ( veto players/ veto points). . A distinção entre sistemas majoritários17 17 Melo (2007) ressalta que a dimensão da accountability está enraizada no ideal normativo majoritário mais do que no proporcionalista. A redução do debate sobre qualidade de democracia à dimensão da accountability seria uma evidência da força do viés majoritário na literatura comparada. e proporcionais (ou consensuais) aqui trabalhada não possui uma relação necessária e direta com sistemas eleitorais, que podem ter métodos de maioria18 18 Maioria simples ou absoluta. (em que o vencedor leva tudo) ou métodos proporcionais. Simplificadamente, no método majoritário, os candidatos ou partidos com maior número de votos são declarados vencedores. Uma de suas vertentes é o First Past the Post (FPTP): "First Past the Post is the simplest form of plurality/majority electoral system. The winning candidate is the one who gains more votes than any other candidate, even if this is not an absolute majority of valid votes"19 19 " First Past the Post é a forma mais simples de um sistema político pluralista/maiorista. O candidato vencedor é aquele que ganha mais votos do que qualquer outro candidato, ainda que isso não seja a maioria absoluta dos votos válidos" (trad. do revisor). (IDEA, 2005, p. 35).

Já o método proporcional, em resumo, consiste em ter-se um número de "cadeiras de representantes" diretamente proporcional ao número de votos obtidos pelo partido. Ele requer o uso de distritos eleitorais com mais de um membro.

Nos regimes concentradores da autoridade, a idéia de "accountability" e "regra da maioria" é central, ao passo que, nos sistemas consensualistas, o princípio central é a "inclusividade" (e congruência representacional).

Em relação à accountability, nós entendemola como sendo o mecanismo de responsabilização do político (agente) por parte dos seus eleitores (principal), que possuem um instrumento de sanção retrospectivo (voto) para "incentivar" (positivamente ou negativamente20 20 O incentivo positivo constitui-se na reeleição do representante, e, o negativo, em sua sanção, ao não receber o voto do eleitor para ser reeleito. ) seu representante a não se desviar dos seus interesses. Com isso, o mecanismo institucional da accountability é um meio para alcançar-se a responsividade21 21 Accountability e responsividade são conceitos diferentes. O primeiro pode ser entendido como o mecanismo que garante ao eleitor (principal) a capacidade de responsabilizar os representantes (agentes) por seus atos políticos e garante-lhe o poder de punição (voto). Isso faz que o representante seja incentivado/obrigado a "prestar contas" de suas ações para o eleitor, promovendo uma conexão entre ambos. Já essa conexão entre ação do representante (decisão política tomada, política pública formulada etc) e interesse do representado, é a responsividade. Esses dois conceitos não são necessariamente interdependentes. Um ditador político pode ser responsivo sem estar sujeito a nenhum mecanismo de responsabilização ( accountability). Contudo, em regimes democráticos, o cidadão não pode contar com a sorte de ter um governante responsivo a seus interesses e, por isso, deve ter o mecanismo da accountability como um meio de garantir o ideal normativo da responsividade. (entendida como a conexão entre a decisão do representante e o interesse do representado) das políticas. Para todos os autores analisados, a accountability é influenciada pelo tipo de desenho institucional e, portanto, é também seu reflexo.

Accountability, aqui, é entendida em sua dimensão vertical. Para Shugart, Moreno e Crisp (2003), a idéia de accountability só pode ser pensada em sua dimensão vertical, já que pressupõe a relação entre um principal (eleitor) e um agente (eleito). Não existiria accountability horizontal, simplesmente, por não haver nenhum tipo de hierarquia nesse tipo de relação. Seria mera conseqüência da qualidade da accountability vertical. A teoria do principal-agente leva isso em conta, pois o "principal" é o ator político hierarquicamente relevante do qual parte a delegação de autoridade (accountability como delegação). No nível horizontal, haveria uma relação de troca, mas não de hierarquia.

Guillermo O´Donnell, que desenvolveu o importante conceito de accountability horizontal, define-o como "the existence of state agencies that are legally enabled and empowered and factually willing and able to take actions that span from routine oversight to minimal sanctions or impeachment in relation to actions or omissions by other agents or agencies of the state that may be qualified as unlawful"22 22 "A existência de agências estatais que são legalmente habilitadas, autorizadas e factualmente inclinadas e aptas a tomar ações que vão da supervisão de rotina à sanção mínima ou ao impeachment, no que se refere a ações ou omissões por outros agentes ou agências do Estado eventualmente qualificadas como ilegais" (trad. do revisor). (O'DONNELL, 1999, p. 38)

Todavia, Shugart, Moreno e Crisp discordam de O´Donnell em relação à dimensão horizontal da accountability ao afirmarem que o máximo que existiria seriam mecanismos de "trocas horizontais". O dilema enfrentado é que "agentes" no mesmo nível de horizontalidade não estabelecem uma relação de accountability entre eles porque apenas quem possui a autoridade de um "principal" pode estabelecer uma relação dessa. Por isso, a relação entre agências horizontais não seria uma relação de accountability.

Para Shugart, Moreno e Crisp (2003), desenhos institucionais parlamentaristas tenderiam a ser mais concentradores por não dispersarem o poder entre duas instâncias: poder Legislativo e poder Executivo (ou até mesmo três instâncias, quando houver bicameralismo), facilitando o mecanismo de sanção e responsabilização da accountability. Já o presidencialismo, por dispersar o poder de decisão num número maior de instituições e atores políticos, dificultaria a accountability na medida em que dificultaria o vínculo claro entre a decisão tomada pelo "agente" e a vontade do "principal".

No parlamentarismo, pelo fato de o poder estar mais concentrado, existe um principal (eleitor) para um agente (governo). Essa linearidade entre principal e agente facilita a accountability (que é entendida como um ato de delegação) porque facilita a identificação e punição do agente caso ele desvie-se da vontade de seu principal. Já no presidencialismo, existe um principal (eleitor) para dois ou mais agentes. Esse fato dispersa a responsabilidade do agente, dificultando a identificação, por parte do eleitor, do responsável pela ação que ele deseja punir. Nesse sentido, sistemas políticos parlamentaristas tenderiam a facilitar a accountability. Essas diferenças institucionais, para Shugart, Moreno e Crisp, alterarão a capacidade dos sistemas de governo serem responsivos e permitirem uma eficiente responsabilização dos representantes políticos.

David Samuels (2007) também desenvolve seu argumento em torno da idéia de que a separação de poderes (existente no debate sobre tipos de regimes políticos) desempenha um papel importante no desenhos dos incentivos que os políticos possuem. Na mesma linha de Shugart, Moreno e Crisp (2003), ele indica que a separação de poderes afeta o processo de formulação de políticas e dos resultados políticos. Porém, tais autores caminham por perspectivas e focos diferentes em suas análises. Samuels trabalha com a idéia central da separação de poderes, especificamente, o presidencialismo, o parlamentarismo e o semi-presidencialismo (que seria uma forma híbrida entre os dois regimes "puros"). A mais relevante característica institucional das democracias modernas seria os poderes Executivo e Legislativo estarem fundidos ou separados.

Partindo do trade-off entre "decisividade" e "resolutividade" (COX & MCCUBBINS, 2001), Samuels argumenta que, no presidencialismo, tende a existir menor decisividade e maior resolutividade. Ou seja, por mais concentrados que sejam os poderes que o Presidente tenha, isso ainda é insuficiente para superar a inércia madisoniana imposta pela separação de poderes. Contudo, Samuels muda o foco da análise em relação à visão de Powell (2007) e Lijphart (2003) - que acreditam que a visão proporcional da democracia vai ser superior na medida em que possibilita melhor congruência, em termos de políticas públicas, entre interesses dos cidadãos e ações do governo - porque acredita que a distinção entre as visões majoritária e proporcional de democracia não é o ponto central para comparar regimes democráticos. Para ele, o presidencialismo e o semi-presidencialismo podem combinar ambas as visões.

Contrapondo-se a Shugart, Moreno e Crisp (2003), a Ackerman (2000) e a diversos outros autores que acreditam que regimes presidencialistas seriam menos propícios para o estabelecimento de mecanismos de accountability, Samuels afirma que "under many common circumstances stronger electoral accountability linkages may exist in presidential and semipresidential systems than in parliamentary systems. This finding questions the criticism that presidentialism generally permits relatively less accountability than other forms of democracy"23 23 "Sob muitas circunstâncias comuns, ligações eleitorais de accountability podem ser mais fortes em sistemas presidenciais e semi-presidenciais do que em sistemas parlamentares. Essa descoberta questiona a crítica de que o presidencialismo permite relativamente menos accountability do que outras formas de democracia" (trad. do revisor). (SAMUELS, 2007, p. 721; itálico no original).

Isso porque, no presidencialismo, o eleitor vota direto no Presidente. Porém, reconhecerá que, sob o presidencialismo, poderá ocorrer alta accountability e controle sobre o poder Executivo e baixa sobre o poder Legislativo.

Já Cox e McCubbins (2001), centram sua análise no trade-off nomeado por eles entre "decisividade" versus "resolutividade". A "decisividade" expressaria a capacidade de um sistema político eficientemente tomar decisões. Seria maior em sistemas majoritários. Já a "resolutividade" expressaria a sustentabilidade da política, a capacidade da política ser mantida (o oposto de volatilidade), e teria como característica uma maior inclusão de atores no processo de tomada de decisão. Para os autores, sistemas majoritários possuem maior capacidade de decidir. Já sistemas proporcionais, por terem muitos atores com poder de veto, reduzem seu nível de "decisividade". A patologia de sistemas decisivos seria a instabilidade política, e a de sistemas resolutos seria a paralisia decisória (MELO, 2007).

Para Cox e McCubbins, em sistemas presidencialistas-proporcionais, existe menor accountability. Isso os contrapõe ao pensamento de Powell, Lijphart e Samuels, para os quais sistemas proporcionalistas não perdem para os majoritários em relação à sua capacidade de accountability. Vemos que o foco de Cox e McCubbins também é a dimensão vertical de accountability. Os autores analisam basicamente quatro conceitos encontrados em duas relações: "decisividade" versus "resolutividade"e orientação privada versus orientação pública (da política). Nessa segunda relação, o foco de interesse é se existe ou não captura do Estado pelo interesse privado e comportamentos rentistas. Para eles, quanto maior o número de atores com poder de veto, mais orientada por um viés privado será a política, e vice-versa. Quando o interesse privado começa a influenciar as decisões políticas, isso afeta negativamente a responsividade.

Podemos dizer que Cox e McCubbins, ao identificarem, na ampliação do número de jogadores de veto, uma ameaça à qualidade da democracia (medida para eles a partir de valores majoritaristas, como a decisividade, entre outros), estão na contramão do pensamento madisoniano, que vê como positivo o auto-equilíbrio imposto pela interação de diversas instituições políticas. Em relação ao primeiro trade-off (decisividade versus resolutividade), o desafio é: como resolver esse dilema? A partir de qual critério24 24 Apesar de o foco analítico de Lijphart serem as instituições, sua resposta pode encontrar ressonância na dimensão cultural de cada Estado. Se existir uma realidade cultural mais heterogênea, seria mais propício a construção de sistemas proporcionalistas e consensuais. Caso a realidade cultural seja mais homogênea, poderia haver mais espaço para a construção de um sistema majoritário ? Cox e McCubbins privilegiam a capacidade de tomar decisões como critério central para o bom funcionamento dos regimes democráticos.

Por sua vez, Bruce Ackerman (2000) analisa o fenômeno da separação de poderes, criticando o modo norte-americano de separação de poderes. A partir de uma perspectiva comparativa, ele elogia o modelo de parlamentarismo "limitado" ("constrained parliamentarianism"), superior ao presidencialismo americano. Nesse modelo, alguns fatores limitadores do poder seriam: os referendos periódicos, um sistema judiciário independente e a democracia participativa, além de um tribunal constitucional para defender direitos humanos fundamentais.

O argumento central de Ackerman é que esse modelo de "parlamentarismo com limites" oferece o melhor arcabouço institucional para o desenvolvimento de três princípios que incentivam a doutrina moderna de separação de poderes: a) o princípio democrático; b) o do profissionalismo e c) o da proteção de direitos fundamentais. No "parlamentarismo limitado", o parlamento é limitadamente soberano porque seus poderes legislativos são limitados pelas seguintes características institucionais: uma constituição escrita e um tribunal superior. Outra característica institucional seria o fato de existir, mesmo num sistema bi-cameral, a preponderância de uma das casas legislativas. O autor chama isso de "oneand-a-half solution".

Ackerman também identifica, no presidencialismo, algumas limitações, como o "separacionismo", que dificulta a responsividade, e a difícil identificação da autoridade responsável pela ação política (pressuposto necessário para a accountability). As conseqüências dessas características do presidencialismo criam um limite para o estabelecimento de uma accountability efetiva. Nesse ponto, o pensamento de Ackerman aproxima-se do de Shugart, Moreno e Crisp (2003) e distancia-se do de Samuels (2007).

Mudando o foco de análise, Powell (2005) valorizará a dimensão da responsividade em uma democracia. Para ele, existe responsividade democrática quando o procedimento democrático conduz o governo a implementar as políticas que os cidadãos desejam. Nesse sentido, se um processo de accountability (foco institucional) for eficiente, ele conduzirá à responsividade democrática (foco normativo) na medida em que ligar os resultados políticos produzidos com os interesses dos cidadãos. A responsividade democrática, como um dos elementos de avaliação da qualidade democrática, pode ser comparada a uma corrente com elos vinculados de forma causal, sendo que uma falha em qualquer um desses elos afeta todo o processo. Tais elos são momentos da vida democrática e conduzem a ações e decisões políticas. Todos esses elos estão envolvidos em contextos institucionais que podem facilitar a efetividade da accountability política.

O primeiro elo, a estruturação das escolhas sociais, surge das preferências dos cidadãos e conduzirá ao comportamento de voto dos eleitores. As características institucionais desse elo, propícias ao desenvolvimento de accountability vertical, são: partidos ou coalizões que sejam organizados nacionalmente, estabilidade partidária e opções factíveis de alternativas entre os concorrentes durante as eleições.

O segundo elo, a agregação institucional de preferências, vincula a dimensão do comportamento eleitoral dos eleitores e o processo de seleção dos formuladores de políticas públicas, ou seja, o processo de constituição do governo. Entre os desenhos institucionais majoritários e proporcionalistas, os primeiros conseguiriam converter as preferências dos cidadãos expressas nos votos em governos com grande poder de formulação e implementação de políticas. Já os segundos favoreceriam uma maior inclusão das preferências eleitorais nas instituições. Para Powell, segundo Melo (2007, p. 19), para que haja accountability é fundamental: a) a capacidade, do eleitor, de identificar governos futuros ("identificabilidade") e b) que o partido implemente as políticas anunciadas em seu programa de governo. De acordo com Melo (2007), essa capacidade de identificar responsáveis seria mais presente em modelos majoritários, porém, os modelos proporcionais apresentariam uma capacidade maior de garantir a congruência da representação do que os modelos majoritários.

O terceiro elo, formulação de políticas, vincula a formação do governo e os resultados políticos gerados. Algumas dificuldades institucionais em relação a esse elo referem-se à origem multidimensional das alternativas para as políticas públicas, ao impacto de condições externas e à dificuldade de conciliação entre preferências de curto e de longo prazo.

Andrew Arato (2002) também reflete sobre a correlação entre desenho institucional e accountability. Mesmo partindo da teoria democrática deliberativa (que acredita na existência de uma vontade geral, acessível racionalmente mediante a persuasão e deliberação), Arato perceberá as limitações institucionais para o seu alcance. Segundo ele, não existem garantias institucionais para que os interesses públicos sejam, de fato, alcançados.

Perceberá que a accountability política é um dos instrumentos possíveis para reduzir-se a distância entre eleitos e eleitores. Apesar de importante, ela não é o único princípio importante para um regime de democracia representativa. No nível institucional, ela deve ser complementada por instituições de (a) deliberação (b) constitucionalismo e (c) representatividade descritiva, sendo que uma das pré-condições mais importantes para que a accountability funcione é uma sociedade civil forte. Entretanto, outros instrumentos sociológicos de vinculação entre eleitor e eleitos (deliberação, identificação, similitude25 25 Identificação e similitude são tipos de vínculo típicos da idéia de representação pictórica de Hannah Pitkin (1967). etc) não possuem nenhuma ferramenta legal que impeça o afastamento do representante do interesse de seu representado. Somente a dimensão da accountability instrumentaliza o eleitor com o poder de sanção e abre a possibilidade para que o eleito seja responsabilizado, punido ou mesmo recompensado26 26 Segundo Manin, Przeworski e Stokes (1999), essa segunda função do voto, ou avaliação retrospectiva, cria incentivos negativos (não ser reeleito) ou positivos (ser reeleito) para o político alinhar-se com os interesses de seus eleitores. Para tanto, o pressuposto implícito é que haja a possibilidade de reeleição. .

Arato aproxima-se de Shugart, Moreno e Crisp (2003) e Ackerman (2000) ao perceber que a capacidade de identificar o responsável pela decisão política é um pressuposto necessário para que haja accountability. Também para ele, sistemas que concentram a autoridade de tomada de decisão (modelos majoritários-parlamentaristas) tendem a ser mais propícios para a dimensão de accountability do que sistemas que dispersam o poder de tomada de decisão (modelos proporcionalistas-consensuais-presidencialistas)27 27 Para Melo (1999), existe um pressuposto normativo implícito na literatura, que privilegia o viés majoritário. Segundo ele, a idéia de accountability (como responsabilização) também pode ser avaliada indiretamente, em termos de congruência representacional e grau de desvio do eleitor mediano, o que é mais bem expresso a partir de sistemas proporcionalistas. . Pelo mesmo motivo, a accountability seria dificultada em governos de coalizão, em que não fica claro quem são os responsáveis pelas decisões e resultados políticos.

Para Arato, outras características que favorecem a accountability seriam: prazos eleitorais curtos (com facilidade para dissolver a legislatura), possibilidade ilimitada de reeleição, financiamento público de campanhas eleitorais e existência de uma oposição leal e de uma sociedade civil forte. A dimensão participativa28 28 Alguns limites do viés "participacionista" presente na literatura sobre a sociedade civil são: a) o fato de o governante ter capacidade de manipulação por ter o poder de agenda (que define quando e o que levará para ser decidido em referendo ou plebiscito, por exemplo) e b) a auto-seleção, característica que faz que aqueles que acabem participando sejam aqueles que possuem mais interesse e mais pré-disposição para a participação, o que privilegia os atores sociais que já gostam de participar de coletividades em detrimento daqueles que preferem não participar. Outros limites importantes para uma participação política ativa são os custos de participação (principalmente para os setores assalariados que possuem pouco tempo livre) e a assimetria informacional entre os diversos atores que adentram na arena "participativa". da sociedade civil ativa é muito importante para o autor, pois o regime de accountability não pode ser puro e precisa de alguma dimensão de democracia deliberativa para que funcione. A sociedade civil acaba cumprindo um papel de intermediação entre representantes e representados (capacitando os eleitores, repassando informações etc).

IV. CONCLUSÕES

O artigo buscou explicitar argumentações teóricas acerca da crítica pós-schumpeteriana de agregação de preferências (primeira parte) e da relação existente entre desenho institucional e accountability (segunda parte).

Constatamos, na primeira parte, que o debate pós-schumpeteriano sobre os limites teóricos e empíricos para a agregação de preferências individuais reforçou a tese de Schumpeter sobre a inexistência do "bem comum", além de abrir caminho para um avanço do conceito de accountability e de teorias minimalistas na teoria democrática. Apesar de todos os limites encontrados, o método democrático e a regra da maioria seriam justificados por conseguirem promover mecanismos de controle do representado sobre o representante, enfim, mecanismos de accountability.

Na segunda parte, buscamos mostrar a correlação entre "desenho institucional e normatividade" a partir da análise da relação entre desenhos institucionais (majoritários: concentradores de poder; proporcionalistas: dispersores de poder) e a dimensão da accountability (sob o viés majoritário, um mecanismo que proporciona maior 'responsividade' e representatividade, ou seja, características normativas desejáveis). A discussão sobre a representatividade (discussão normativa) de um sistema político mostrou-se parte central do debate acerca dos pressupostos institucionais da accountability.

Verificamos, também, que a influência de Schumpeter no debate acerca da democracia e da teoria democrática evidencia-se na presença marcante de suas contribuições para as argumentações dos autores analisados ao decorrer de todo o artigo.

A reflexão de Schumpeter sobre a inexistência do "bem comum" e da "vontade geral" como elemento substancial da democracia embasou a teoria de autores como Riker e McGann acerca da impossibilidade de agregação de preferências individuais. Além disso, a concepção schumpeteriana de democracia como procedimento eleitoral competitivo permitiu a análise de diferentes desenhos institucionais sob o prisma dos (a) sistemas majoritários e (b) dos sistemas proporcionais. Essas diferenças (a e b) congregam boa parte dos indicadores29 29 Principalmente, no âmbito do debate sobre representação política, a dimensão de " accountability" para sistemas majoritários e de "congruência representacional" para sistemas proprocionalistas. para uma avaliação sobre "qualidade da democracia"

Percebemos que essas conclusões estão em consonância com a reflexão de Przeworski (1999), para o qual uma concepção minimalista de democracia não exclui a necessidade de pensarmos acerca do desenho institucional, pois a "qualidade democrática" importa para a sobrevivência da democracia.

Como hipótese de fundo desse artigo, utilizamos a percepção de que não existe ausência de normatividade na concepção minimalistaprocedimentalista-schumpeteriana de democracia. Buscamos evidenciar como o desenho institucional dos regimes democráticos influencia a formação de características da democracia, que podem ser entendidas como indicadores de qualidade democrática (ou seja, uma dimensão normativa da democracia).

Explicita-se, então, o vínculo existente entre a discussão institucional e a normativa e, com isso, esvazia-se (a) a crítica de que a concepção procedimentalista-minimalista de democracia seria ausente de valores normativos e (b) os argumentos de superioridade dessa perspectiva ancorados no pressuposto de que essa seria neutra em relação a valores.

A concepção minimalista-schumpeteriana da democracia como algo vazio de valores normativos não procede porque entender a democracia como um "procedimento" não pressupõe que ela não possa alcançar nenhum "fim" normativo. Além disso, a argumentação de alguns teóricos minimalistas que tentam sustentar sua superioridade analítica a partir de suposta neutralidade em relação a valores também não se sustenta porque o vínculo causal entre desenho institucional e características normativas de qualidade democrática evidencia a correlação existente entre as dimensões institucional (mesmo que mínima) e normativa.

Ou seja, a dimensão normativa está presente na perspectiva minimalista tanto como pressuposto do que ela considera critérios de qualidade democrática, quanto como possibilidade de alcançar-se fins normativos.

Recebido em 28 de maio de 2008.

Aprovado em 7 de agosto de 2008.

João Francisco Araújo Maria (joaoxico@hotmail.com) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)".

  • ACKERMAN, B. 2000. The New Separation of Powers. Harvard Law Review, v. 113, n. 3, p. 633-729. Disponível em : http://www.palermo.edu/derecho/eventos/pdf/Ackerman_The_New_Separation_of_Powers_ HLR.pdf Acesso em : 17.nov.2009.
  • ARATO, A. 2002. Representação, soberania popular e accountability. Lua Nova, São Paulo, n. 55-56, p. 85-103. Disponível em : http://www.scielo.br/pdf/ln/n55-56/a04n5556.pdf Acesso em : 17.nov.2009.
  • BOBBIO, N. 2000. Teoria geral da Política : a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro : Elsevier.
  • COX, G. W. & MCCUBBINS, M. D. 2001. The Institutional Determinants of Economic Policy Outcomes. In : HAGGARD, S. & MCCUBBINS, M. D. (eds.). Presidents, Parliaments, and Policy New York : Cambridge University.
  • EAGLETON, T. 1997. Ideologia : uma introdução. São Paulo : UNESP.
  • GEUSS, R. 1988. Teoria crítica : Habermas e a escola de Frankfurt. Campinas : Papirus.
  • IDEA 2005. Electoral System Design : the New International IDEA Handbook. Stockholm : IDEA.
  • KITSCHELT, H. 2000. Linkages Between Citizens and Politicians in Democratic Polities. Comparative Political Studies, v. 33, n. 6-7, p. 845-879.
  • LIJPHART, A. 1984. Democracies : Patterns of Majoritarian and Consensus Government in Twenty-One Countries. New Haven : Yale University.
  • ______. 2003. Modelos de democracia Rio de Janeiro : Civilização Brasileira.
  • MADISON, J.; HAMILTON, A. & JAY, J. 1982. The Federalist Papers New York : Bantam Books.
  • MANIN, B.; PRZEWORSKI, A. & STOKES, S. 1999. Introduction, Elections and Representation. In : MANIN, B.; PRZEWORSKI, A. & STOKES, S. Democracy, Accountability, and Representation New York : Cambridge University.
  • MANNHEIM, K. 1968. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro : J. Zahar.
  • MAY, K. 1952. A Set of Independent Necessary and Sufficient Conditions for Simple Majority. Econometrica, v. 20, n. 4, p. 680-684.
  • MCGANN, A. 2006. The Logic of Democracy, Reconciling Equality, Deliberation and Minority Protection Ann Harbor : Michigan University.
  • MELO, M. 2007. O viés majoritário na política comparada. Responsabilização, desenho institucional e qualidade democrática. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 22, n. 63, p. 11-29. Disponível em : http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v22n63/a03v2263.pdf Acesso em : 17.nov.2009.
  • MIGUEL, L. F. 2005. Impasses da accountability : dilemas e alternativas da representação política. Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, nov., p. 25-38. Disponível em : http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n25/31109.pdf Acesso em : 17.nov.2009.
  • O'DONNELL, G. 1999. Horizontal Accountability in New Democracies. In : SCHEDLER, A. DIAMOND, L. & PLATTNER, M. The Self Restraining State : Power and Accountability in New Democracies. Boulder, CO : Lynne Rienner.
  • POWELL, G. B. 2002. Elections as Instruments of Democracy. Princeton : Princeton University.
  • ______. 2005. The Chain of Responsiveness. In : DIAMOND, L. Assessing the Quality of Democracy Baltimore : The Johns Hopkins University.
  • ______. 2007. Aggregating and Representing Political Preferences. In : BOIX, C. & STOKES, S. (eds.). The Oxford Handbook of Comparative Politics Oxford : Oxford University.
  • PITKIN, H. 1967. The Concept of Representation Berkeley : University of California.
  • PRZEWORSKI, A. 1999. Minimalist Conception of Democracy : a Defense. In : SCHAPIRO, I. & HACKER-CORDÓN, C. (eds.). Democracy's Value Cambridge, U.K. : Cambridge University.
  • RAE, D. 1969. Decision-Rules and Individual Values in Constitutional Choice. The American Political Science Review, v. 63, n. 1, p. 40-56.
  • RIKER, W. 1983. Liberalism Against Populism : a Confrontation Between the Theory of Democracy and the Theory of Social Choice. San Francisco : W. H. Freeman.
  • SAMUELS, D. 2007. Separation of Powers. In : BOIX, C. & STOKES, S. (eds.). The Oxford Handbook of Comparative Politics Oxford : Oxford University.
  • SCHUMPETER, J. 1984. Capitalismo, Socialismo e Democracia Rio de Janeiro : J. Zahar.
  • SHUGART, M.; MORENO, E. & CRISP, B. 2003. The Accountability Deficit in Latin America. In : MAINWARING, S. & WELNA, C. (eds.). Democratic Accountability in Latin America Oxford : Oxford Scholarship.
  • STOPPINO, M. 2002. Verbete "Ideologia". In : BOBBIO, N. & MATTEUCCI, N. Dicionário de Política, v. 1. 12. ed. Brasília : UNB.
  • IEC, S. 1996. Introdução - O espectro da ideologia. In:IEC, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro : Contraponto.
  • 1
    A preocupação com o alcance do bem comum esteve muito vinculada, na literatura sobre a representação política, com o debate sobre mandato livre e vinculado. O foco teria mudado para a preocupação com a
    accountability. Segundo Miguel (2005, p. 28) o conceito de accountability "apresenta um modelo mais sofisticado e atraente das relações entre representantes e representados do que as visões antitéticas do "mandato livre' e "mandato imperativo'".
  • 2
    Porque o bem comum seria o bem de todos (iguais).
  • 3
    Riker criticará duramente os populistas, pois crê que só a partir da perspectiva liberal do voto é possível construir verdadeiramente uma sociedade democrática, dado que já foi provado (por esse paradoxo do voto) a impossibilidade de alcançar-se a
    volunté genérale.
  • 4
    Apenas conseguimos captar vontades e preferências individuais (antes de tentarmos agregar essas preferências individuais em "vontades coletivas"). Alguns teóricos refletirão, inclusive, acerca da impossibilidade de identificação da preferência individual, pois o que o indivíduo expressa como preferência seria uma preferência "distorcida" de sua "real" preferência. Nessa linha está a reflexão marxiana acerca da ideologia como falsa-consciência; teorias sobre o inconsciente influenciadas pelo pensamento freudiano e tentativas de síntese do pensamento de Marx e Freud encontradas na teoria crítica da escola de Frankfurt. Para a discussão acerca do conceito de ideologia,
    vide Mannheim (1968), Geuss (1988), • i•ec (1996), Eagleton (1997), Stoppino (2002).
  • 5
    Interessante notar que a idéia de
    accountability vertical, nessa perspectiva, só é possível se pensada em termos de um indivíduo (agente) e um indivíduo (principal). Caso haja um agente para vários principais (grupos sociais), não conseguiremos medir essa ligação de controle porque, quando há mais de duas pessoas, existe a impossibilidade de agregação de preferências.
  • 6
    O que faz que os políticos tentem minimizar os efeitos da intransitividade das decisões coletivas, reduzindo o número de escolhas (geralmente a duas).
  • 7
    Uma decisão racional deve ser entendida como aquela na qual as preferências são: completas, ordenadas e transitivas.
  • 8
    "A decisão por maioria é uma típica decisão cujo resultado da soma é zero, uma decisão na qual há quem ganhe e quem perde [...]. Diferentemente, o resultado de um compromisso, cuja forma jurídica típica é o contrato, é geralmente um resultado cuja soma é positiva" (BOBBIO, 2000, p. 440).
  • 9
    Para Przeworski, as decisões produzidas em uma democracia, em geral, não podem ser esperadas como decisões racionais, mas isso não é uma deficiência do método (tomar decisões coletivas por meio do voto), mas da estrutura básica dos interesses.
  • 10
    As eleições e o voto não são mecanismos suficientes (apesar de necessários) para efetivar a representatividade, porque, entre outros fatores, (i) os eleitores não são bem informados, (ii) eles têm que punir diversas ações diferentes de seus representantes com apenas um instrumento (o voto) e (iii) eles não são homogêneos.
  • 11
    Eleições e voto não garantem igualdade, pelo fato de uma igualdade perfeita só poder ser alcançada mediante o custo de redução total da produção. Os cidadãos, antecipando isso, votam por taxas que permitam a manutenção de certo grau de desigualdade.
  • 12
    Para teóricos minimalistas pós-schumpeterianos, como Przeworski, a democracia deve ser entendida como procedimento e não um regime dotado de substância normativa.
  • 13
    O voto é entendido, nessa perspectiva, como instrumento de
    accountability, responsabilização e sanção.
  • 14
    Um dos grandes méritos de Lijphart (2003) foi selecionar, em sua análise empírica, instituições que agregam um poder explicativo central. As instituições centrais seriam: 1) tipo de composição de gabinetes, 2) tipo de relação entre executivo e legislativo, 3) sistema bi ou multi-partidário, 4) sistemas eleitorais (majoritários x proporcionais), 5) sistema de grupos de interesse, 6) governo unitário ou federado, 7) legislatura uni ou bi-cameral, 8) flexibilidade ou rigidez constitucional, 9) ausência ou presença de revisão judicial da constitucionalidade e 10) dependência ou autonomia do banco central.
  • 15
    É importante perceber que, ao longo deste artigo, sempre que nos referirmos a sistemas, regimes ou modelos majoritários e proporcionalistas, estaremos nos referindo a desenhos institucionais democráticos que, em seu conjunto, são concentradores (majoritários) ou dispersadores (proporcionais) de poder. Não estaremos nos referindo somente aos sistemas e métodos eleitorais. Para um compêndio dos principais sistemas e métodos eleitorais
    vide "IDEA Handbook (2005)".
  • 16
    Para Melo (2007), o debate acerca dos efeitos dos arranjos institucionais sobre a
    accountability foi beneficiada pelas contribuições a) dos modelos de principal-agente e b) das análises a partir de pontos de veto (
    veto players/ veto points).
  • 17
    Melo (2007) ressalta que a dimensão da
    accountability está enraizada no ideal normativo majoritário mais do que no proporcionalista. A redução do debate sobre qualidade de democracia à dimensão da
    accountability seria uma evidência da força do viés majoritário na literatura comparada.
  • 18
    Maioria simples ou absoluta.
  • 19
    "
    First Past the Post é a forma mais simples de um sistema político pluralista/maiorista. O candidato vencedor é aquele que ganha mais votos do que qualquer outro candidato, ainda que isso não seja a maioria absoluta dos votos válidos" (trad. do revisor).
  • 20
    O incentivo positivo constitui-se na reeleição do representante, e, o negativo, em sua sanção, ao não receber o voto do eleitor para ser reeleito.
  • 21
    Accountability e responsividade são conceitos diferentes. O primeiro pode ser entendido como o mecanismo que garante ao eleitor (principal) a capacidade de responsabilizar os representantes (agentes) por seus atos políticos e garante-lhe o poder de punição (voto). Isso faz que o representante seja incentivado/obrigado a "prestar contas" de suas ações para o eleitor, promovendo uma conexão entre ambos. Já essa conexão entre ação do representante (decisão política tomada, política pública formulada etc) e interesse do representado, é a responsividade. Esses dois conceitos não são necessariamente interdependentes. Um ditador político pode ser responsivo sem estar sujeito a nenhum mecanismo de responsabilização (
    accountability). Contudo, em regimes democráticos, o cidadão não pode contar com a sorte de ter um governante responsivo a seus interesses e, por isso, deve ter o
    mecanismo da accountability como um meio de garantir o ideal normativo da responsividade.
  • 22
    "A existência de agências estatais que são legalmente habilitadas, autorizadas e factualmente inclinadas e aptas a tomar ações que vão da supervisão de rotina à sanção mínima ou ao
    impeachment, no que se refere a ações ou omissões por outros agentes ou agências do Estado eventualmente qualificadas como ilegais" (trad. do revisor).
  • 23
    "Sob muitas circunstâncias comuns, ligações eleitorais de
    accountability podem ser mais fortes em sistemas presidenciais e semi-presidenciais do que em sistemas parlamentares. Essa descoberta questiona a crítica de que o presidencialismo permite relativamente menos
    accountability do que outras formas de democracia" (trad. do revisor).
  • 24
    Apesar de o foco analítico de Lijphart serem as instituições, sua resposta pode encontrar ressonância na dimensão cultural de cada Estado. Se existir uma realidade cultural mais heterogênea, seria mais propício a construção de sistemas proporcionalistas e consensuais. Caso a realidade cultural seja mais homogênea, poderia haver mais espaço para a construção de um sistema majoritário
  • 25
    Identificação e similitude são tipos de vínculo típicos da idéia de representação pictórica de Hannah Pitkin (1967).
  • 26
    Segundo Manin, Przeworski e Stokes (1999), essa segunda função do voto, ou avaliação retrospectiva, cria incentivos negativos (não ser reeleito) ou positivos (ser reeleito) para o político alinhar-se com os interesses de seus eleitores. Para tanto, o pressuposto implícito é que haja a possibilidade de reeleição.
  • 27
    Para Melo (1999), existe um pressuposto normativo implícito na literatura, que privilegia o viés majoritário. Segundo ele, a idéia de
    accountability (como responsabilização) também pode ser avaliada indiretamente, em termos de congruência representacional e grau de desvio do eleitor mediano, o que é mais bem expresso a partir de sistemas proporcionalistas.
  • 28
    Alguns limites do viés "participacionista" presente na literatura sobre a sociedade civil são: a) o fato de o governante ter capacidade de manipulação por ter o poder de agenda (que define quando e o que levará para ser decidido em referendo ou plebiscito, por exemplo) e b) a auto-seleção, característica que faz que aqueles que acabem participando sejam aqueles que possuem mais interesse e mais pré-disposição para a participação, o que privilegia os atores sociais que já gostam de participar de coletividades em detrimento daqueles que preferem não participar. Outros limites importantes para uma participação política ativa são os custos de participação (principalmente para os setores assalariados que possuem pouco tempo livre) e a assimetria informacional entre os diversos atores que adentram na arena "participativa".
  • 29
    Principalmente, no âmbito do debate sobre representação política, a dimensão de "
    accountability" para sistemas majoritários e de "congruência representacional" para sistemas proprocionalistas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Aceito
      07 Ago 2008
    • Recebido
      28 Maio 2008
    Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
    E-mail: editoriarsp@gmail.com