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Apresentação

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DOSSIÊ "RELAÇÕES INTERNACIONAIS: NOVOS CENÁRIOS E AGENDAS"

Apresentação

Alexsandro Eugenio Pereira ; Danielly Silva Ramos Becard; Gustavo Biscaia de Lacerda

Ao final da primeira década do século XXI, diversos pesquisadores, com os olhos ora voltados para os fatos essenciais do século que se findou, ora absorvidos pelo alvorecer do novo tempo, passaram a perguntar-se: como se configura o atual cenário internacional? Como estudar e refletir sobre o novo período em curso?

Até a última década do século XX, o sistema internacional esteve, em grande medida, marcado pela globalização, fenômeno que fez que o mundo comportasse-se como um conjunto único de atividades interconectadas e transpondo fronteiras locais.

A liderança dos Estados Unidos, com o esfacelamento da ex-União das Repúblicas Soviéticas (URSS) e o fim da Guerra Fria, em 1991, revelava-se inconteste, sob a força de suas armas e de seu discurso democrático-liberal. Naquele momento, o "Consenso de Washington" convidava todos os países a seguir unidos, sob os auspícios da única superpotência restante.

A América Latina, em particular, parecia curvar-se diante do novo contexto, seja ao incorporar as receitas neoliberalizantes às suas políticas internas e externas, seja ao adaptar seus projetos regionais à abertura internacional em curso.

Passados os dez primeiros anos do novo milênio, um novo cenário deixa entrever seus contornos, já bem distintos daqueles que marcaram a era que o originou. Por um lado, a globalização do novo século já não se mostra tão benigna quanto anunciada, tendo gerado uma acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas. Por outro lado, mesmo que a globalização tenha avançado nos aspectos econômico, tecnológico, cultural e lingüístico, os estados territoriais, do ponto de vista político-militar, ainda se mantêm como mais importantes, se não as únicas, autoridades efetivas.

Apesar de os Estados Unidos serem ainda a maior potência militar do globo, nada indica a possibilidade que esse país, ou qualquer outra potência, estabeleça um controle duradouro sobre o mundo, seja devido à enormidade e à complexidade do mundo, seja devido à falta de convenções com força suficiente para fazerem-se respeitar. Por sua vez, o fim do sistema das superpotências pareceu remover diversos entraves à intervenção internacional, aumentando o risco de guerra entre países (HOBSBAWM, 2007, p. 29).

Ao mesmo tempo, a globalização veio acompanhada de fragmentação, alimentada pela multiplicação do número de estados e de atores privados no cenário internacional. Há diversas razões para tanto, dentre as quais: a desintegração da União Soviética e dos regimes comunistas no Bálcãs, que provocou uma enorme ampliação no número de estados soberanos, e o desenvolvimento de novas tecnologias de transporte, informação e comunicação, que permitiu tanto o aumento dos fluxos financeiros e comerciais quanto de emigrantes de longo prazo, sob riscos de aumento da xenofobia.

Se, por um lado, o número de guerras interestatais tornou-se decrescente desde a década de 1960 até os dias atuais, por outro lado o número de conflitos internos continuou a subir. Ademais, no início do século XXI, as operações armadas deixaram de estar essencialmente sob o controle de governos, passando para as mãos da população civil, a qual nem sempre age com características e objetivos comuns (idem, p. 23).

Nesse contexto, a inserção internacional dos países da América Latina, em particular, mostra-se cada vez mais distinta. É importante observar, por exemplo, que o processo simultâneo de globalização e fragmentação do sistema internacional criou brechas para o surgimento de potências emergentes, ao mesmo tempo em que oportunidades e constrangimentos sistêmicos fizeram que diferenças se aprofundassem entre países da América Latina, condicionando sua participação no sistema global.

A partir de tais elementos, as relações intra e inter-regionais latino-americanas transformaram-se sobremaneira. Novas categorias de integração regional foram propostas, a exemplo da Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra America (ALBA) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Na dificuldade de fazerem-se avançar processos de integração tradicionais, estes foram complementados por diferentes mecanismos de cooperação "bi" e multilaterais. Em reação às assimetrias geradas pela globalização, foram propostas políticas mais desenvolvimentistas e menos liberais em processos de integração.

Apesar do surgimento de alternativas integracionistas latino-americanas, manteve-se persistente a falta de complementaridade nos processos de integração. Constatou-se, ademais, que determinadas forças internas dificultavam a integração regional. Por sua vez, a forte, apesar de decrescente, influência norte-americana na região, sobretudo sob o avanço da integração de livre comércio das Américas (North American Free Trade Agreement (NAFTA)), fez que o subcontinente sul-americano fosse eleito como área preferencial de integração, sobretudo sob o ponto de vista brasileiro, em detrimento do espaço latino-americano (SARAIVA, 2010).

Assim, no decorrer de duas décadas, o Brasil despontou-se como forte candidato a líder da região sul-americana. A construção da liderança brasileira dar-se-ia de diferentes formas, sob impulsos tanto internos quanto externos (BURGES, 2008).

Com o tempo, a aceitação interna da liderança brasileira, inclusive a de pagar o preço da liderança, tornando-se o Brasil o paymaster da integração, aumentou. E, apesar do crescente desequilíbrio entre os países da região e da cada vez mais incerta parceria estratégica entre Brasil e Argentina, a liderança brasileira foi-se firmando. Para tanto, colaborou o papel reduzido dos Estados Unidos na América do Sul, sob falta de agenda clara e efetiva para a região (SARAIVA, 2010).

Perante o novo contexto do século XXI, pergunta-se uma vez mais: como estudar as relações internacionais? Como compreender a região e a política da região sul-americana, sob novos desafios? Quais ferramentas teóricas permitem compreender não apenas o comportamento dos estados, mas também de novos e antigos atores internacionais, sob influência dos mais diversos valores, idéias e identidades?

Em tempos de "pós-neoliberalismo", percebe-se que as tradicionais teorias das Relações Internacionais, baseadas no estudo da infra-estrutura de poder e na superestrutura da ordem, são consideradas por demais limitadas para compreender-se o novo contexto em gestação. Por sua vez, evidencia-se não haver ainda uma teoria da mudança global, capaz de lidar com transformações simultâneas, mas nem sempre convergentes, que estão em curso no sistema internacional (idem).

Nesse sentido, estudos inovadores - capazes de incorporar em suas tradicionais análises variáveis que se tornaram fundamentais para a lógica atual de funcionamento dos sistemas "intra" e interestatais, ademais de transnacionais - demonstraram ser a ferramenta mais adequada para compreender-se o cenário do novo século.

Em tais estudos, percebe-se, por exemplo, que a dinâmica endógena tornou-se elemento fundamental para compreender-se a crescente diferenciação entre os estados. Destarte, se, no plano interno, um número crescente de estados optou pela democracia como modo de organização, em especial na América do Sul, no plano externo observou-se o surgimento de comportamentos internacionais cada vez mais heterogêneos (idem). A formação de networks, graças ao rápido e crescente desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação, colaborou com a formação desse novo panorama, ao permitir o aparecimento de diferentes formas de interação social, para além das fronteiras políticas criadas pelos estados soberanos.

Nesse contexto, um dos debates que permanecem como sendo dos mais importantes para as teorias de Relações Internacionais diz respeito à efetividade das instituições internacionais. De um lado desse debate situam-se os autores realistas, como Susan Strange, para os quais as instituições são meros "pedaços de papel" a serviço dos estados mais poderosos (JACKSON & SORENSEN, 2007, p. 166). De outro lado, encontram-se autores liberais que não aceitam o ceticismo exacerbado da perspectiva realista e sustentam que as instituições são relevantes1 1 Ao tratar dos regimes, S. Krasner (1983) expõe a discussão teórica a respeito da relevância dos regimes internacionais. A posição mais otimista é representada por Oran Young (1983; 2000), que considera os regimes internacionais uma característica inerente às relações internacionais, nas quais comportamentos padronizados durante um período de tempo podem gerar um regime internacional. . Em uma posição intermediária, situam-se os autores institucionalistas neoliberais, como Robert Keohane (1984). Eles afirmam que os papéis desempenhados pelas instituições são condicionados e limitados pelo comportamento e pelos interesses dos estados. Para eles, em certas condições nas quais ocorre o fracasso da ação individual para realizar um ótimo de Pareto, os regimes e as instituições internacionais podem ter um impacto significativo até mesmo em um mundo anárquico.

Esse debate não está superado, embora as transformações recentes nas Relações Internacionais tornem a discussão muito mais complexa em comparação com a forma como ela apareceu, por exemplo, no primeiro grande debate das teorias de relações internacionais no período entre as duas grandes guerras mundiais. O cenário atual é outro e impulsiona a necessidade tanto de reformas nas instituições existentes como de uma redefinição de seus papéis. A necessidade de reformá-las é quase consensual nos meios acadêmicos e políticos, pois, para muitos, elas são anacrônicas e apresentam dificuldades para desempenhar suas funções na atualidade. Isso ocorre menos pela força dos estados e pela ingerência que podem exercer no comportamento delas e mais pela adequação urgente das instituições a uma nova realidade que impõe demandas distintas daquelas que originaram a maior parte das principais instituições internacionais atuais.

Essas dificuldades são aumentadas pelo desenvolvimento de novos atores, processos e interações entre estados e suas sociedades nacionais, observados a partir dos anos 1970. Novas abordagens teóricas são estimuladas para compreender a importância desses atores e processos. O chamado debate pós-positivista reflete a insatisfação dos autores com relação à vertente teórica dominante das Relações Internacionais (o realismo) e a dificuldade dessa vertente em compreender a complexidade dos fenômenos internacionais a partir da década de 1970.

Nesse momento, tornou-se relevante examinar o avanço do processo de transnacionalização que, segundo Mônica Herz (1988), criou vínculos entre as sociedades nas mais diversas dimensões. Esse processo, examinado por Robert Keohane e Joseph Nye Jr. (1983) e por outros autores2 2 Sobre esse ponto, conferir, também, Aron (1987), Herz (1988), Kaiser (1990), Villa (1999) e Keohane e Nye Jr. (2001), dentre outros. Luciano Tomassini sistematiza as transformações do sistema internacional em cinco pontos básicos: "As relações internacionais são protagonizadas por um número crescente de centros de poder; 2) cuja atuação externa tende a satisfazer uma gama de objetivos muito mais ampla do que no passado, não apenas através do Estado, mas também da sociedade civil organizada; 3) desenvolvem-se em torno de uma agenda mais complexa e menos hierarquizada; 4) são manejados por novos e múltiplos agentes, distintos do Estado; 5) põem em jogo recursos de poder não tradicionais em uma variedade de arenas muito mais numerosas, dinâmicas e mais amplas do que antes" (Tomassini apud HERZ, 1988, p. 71). , colocou em evidência uma nova configuração de poder no sistema internacional cuja mudança mais significativa refere-se à perda de controle estatal sobre inúmeros processos que transcendem as fronteiras nacionais.

Esse novo cenário reforçou o otimismo expresso por Robert Keohane e Joseph Nye Jr. (2001) em seu Power and Interdependence, de 1977. O livro pode ser interpretado como uma tentativa de demonstrar que existiriam, na cena internacional, condições favoráveis ao desenvolvimento de novos regimes e instituições internacionais (e ampliação dos já existentes). Esse cenário é marcado: (i) pela existência de canais múltiplos de interação entre sociedades nacionais com a conseqüente perda da centralidade dos estados como atores unitários das relações internacionais, dando margem ao ingresso de novos atores que rivalizam com o ator estatal; (ii) pela multiplicidade de temas e pela ausência de uma hierarquia entre eles na agenda internacional; (iii) pela redefinição do papel da força militar na resolução de inúmeras questões dessa agenda (idem, cap. 2). Em um cenário dessa natureza, os estados precisariam buscar a cooperação para encontrar soluções para problemas comuns. Ao mesmo tempo, isso não significa aceitar o argumento idealista da viabilidade de construção de um governo mundial capaz de impor limites severos ao comportamento dos estados. Significa reconhecer, apenas, condições favoráveis para o desenvolvimento da cooperação.

Nos anos seguintes, o otimismo de Power and Interdependence foi substituído por um reconhecimento dos limites impostos pelos próprios estados à atuação de regimes e instituições internacionais. Mesmo fragilizados e operando em um sistema internacional policêntrico (nos termos formulados por Eduardo Viola (apud VILLA, 2001, p. 66-67)), no qual prevalece uma "redistribuição da autoridade" (nos termos de Paul Kennedy3 3 "O principal agente autônomo nas questões políticas e internacionais nos últimos séculos [o Estado] parece não apenas estar perdendo o controle e a integridade, mas parece ser também o tipo errado de unidade para enfrentar circunstâncias mais novas. Para alguns problemas é uma unidade demasiado grande para operar com eficiência, para outros é pequeno demais. Em conseqüência há pressões para uma 'redistribuição de autoridade' tanto para cima como para baixo, criando estruturas que poderão responder melhor às forças de mudança de hoje e de amanhã" (Kennedy apud VILLA, 2001, p. 69; grifo no original). ), os estados reúnem, ainda, condições para impor limites ao papel das instituições. As questões de fundo que nortearam o velho debate das teorias de Relações Internacionais permanecem: são os regimes e as instituições capazes de impor constrangimentos efetivos ao comportamento dos estados? Ou regimes e organizações são "pedaços de papel" a serviço dos interesses estatais dominantes? As instituições são efetivas? Os estados continuam ditando até onde elas podem ir? Ou eles estão limitados não apenas pela nova configuração de poder do sistema internacional, mas também pela necessidade de buscar, na atuação das instituições, meios que possibilitem a resolução de temas que demandam, necessariamente, a cooperação?

A resposta a essas questões continuará ocupando os esforços acadêmicos de muitos analistas no presente. Transformações na natureza do ator estatal e na sua capacidade de conduzir temas da agenda internacional não podem ser ignoradas nos estudos sobre as instituições internacionais na atualidade. É possível adiantar que essas transformações podem determinar: (i) a capacidade estatal de impor limites às instituições e (ii) a dinâmica e a operação das instituições em um cenário internacional redefinido. Hoje, responder essas questões tornou-se muito mais premente do que foi no passado. Porém, as questões e o debate estão colocados em um contexto muito mais complexo e muito diferente, por exemplo, do período posterior à II Guerra Mundial e até o início dos anos 1970, quando instituições econômicas internacionais encontraram condições favoráveis para sua atuação fundamentadas na hegemonia estadunidense.

Pela importância do tema, os estudos sobre regimes e instituições merecem ocupar um espaço cada vez maior na agenda de pesquisa das relações internacionais contemporâneas.

Nesse sentido, o presente dossiê, publicado pela Revista de Sociologia e Política, reúne contribuições importantes que nos permitem avançar um pouco mais na análise das Relações Internacionais, em geral, e das instituições, em particular, tratando dos seus limites e constrangimentos, de sua operação e dinâmica na nova configuração do sistema internacional após os anos 1970. É o caso, por exemplo, do estudo do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), de Rossana Reis Rocha e Júlia Bertino Moreira, no qual elas revelam a dificuldade de operação de uma das mais importantes instituições internacionais da área de direitos humanos. As autoras mostram que o Acnur opera em um terreno frágil, no qual precisa conciliar questões humanitárias e políticas. Essa tarefa não é fácil, tendo em vista a dinâmica dos interesses dos Estados e como essa dinâmica interfere na funcionalidade do Acnur. Rocha e Moreira concluem, em determinado momento do artigo, que essa dinâmica sobrepõe-se, mesmo, ao papel da organização política supranacional que trata da questão dos refugiados. A forma pela qual essa questão foi institucionalizada no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe como resultado o fortalecimento da dimensão política em detrimento da humanitária. Portanto, as questões humanitárias, envolvidas no estabelecimento de convenções e de protocolos internacionais de refugiados, tornam-se subordinadas aos interesses políticos dos estados.

Outra constatação fundamental do estudo empreendido pelas autoras diz respeito à dependência financeira das instituições de refugiados, que obtêm seu financiamento por meio das doações dos estados. Tal dependência coloca em discussão a autonomia da atuação da agência da ONU encarregada dos refugiados. Embora circunscrita à análise dessa agência, as conclusões do artigo de Rossana Reis Rocha e Júlia Bertino Ribeiro levantam um problema que pode ser estendido para outras organizações intergovernamentais. Diferentemente das organizações não-governamentais (ONGs), que possuem fontes diversas de financiamento e que, por vezes, evitam recorrer aos estados, organizações intergovernamentais não sobrevivem e não podem desempenhar suas funções sem o apoio financeiro proveniente dos países-membros da ONU. Dessa forma, é relevante a exposição das divergências analíticas apresentadas no artigo a respeito da perda ou não de autonomia dessas organizações em função da dependência financeira estatal.

Em outra análise pertinente a respeito das instituições internacionais, Marcelo de Almeida Medeiros, Natália Leitão, Henrique Sérgio Cavalcanti, Maria Eduarda Paiva e Rodrigo Santiago examinam a questão da representação no âmbito de dois órgãos do Mercosul: o Parlamento do Mercosul (Parlasul) e o Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR). O artigo suscita questões fundamentais relacionadas ao processo de constituição das instituições internacionais regionais. Em outras palavras, a questão fundamental pode ser apresentada da seguinte forma: os parâmetros adotados para avaliar-se o caráter democrático das instituições políticas nacionais aplicam-se na análise das organizações internacionais regionais? Essas organizações são orientadas e constituídas de acordo com regras democráticas similares às que funcionam no interior dos estados? Ou seu processo de constituição possui uma lógica e uma especificidade próprias? Tais questões são relevantes, pois referem-se à criação de arranjos institucionais no plano supranacional, em que não existem mecanismos adequados para fortalecer o processo decisório supra-estatal. O resultado seria o surgimento de instituições com capacidade limitada e mesmo frágil para impor decisões ao conjunto dos estados participantes de um processo de integração regional. Essa constatação aparece no artigo dos autores ao identificar diferenças importantes entre a operação das instituições internacionais e das nacionais. As primeiras tentam produzir decisões para uma "circunscrição maior e mais complexa que a do Estado" sem condições de operar com efetiva capacidade decisória, já que os estados reservam, para si, a maior parcela dessa capacidade. Ao mesmo tempo, as instituições internacionais sofrem com o problema da sua legitimidade perante os cidadãos cujos anseios pretendem ou tentam representar. Outro problema fundamental é o debate teórico em torno do déficit democrático das instituições supranacionais. No artigo, os autores apresentam as divergências teóricas com relação a esse problema. Medeiros et alii citam Andrew Moravcsik, que por sua vez sustenta a inexistência desse déficit e defende que sejam considerados outros parâmetros para avaliar se aquelas instituições são democráticas. Esses parâmetros não poderiam ser idênticos aos que são adotados para examinar as instituições políticas que operam no plano interno dos estados.

A suposta inexistência do déficit democrático foi sustentada com base na análise de instituições supranacionais mais maduras como o Parlamento Europeu, constituído no final dos anos 1970 e no bojo de um processo integracionista mais longevo que o do Mercosul. Porém, os problemas levantados pelo exame das instituições supranacionais européias são relevantes para a análise das instituições do Mercosul. Marcelo de Almeida Medeiros et alii observam que, até o momento, as instituições mercosulinas apresentaram baixa participação cidadã e baixa legitimidade, mas necessitam lidar com desafios semelhantes impostos pelos cidadãos às suas instituições políticas nacionais, tais como a necessidade de maior celeridade na tomada de decisões. Medeiros et alii sugerem que a legitimidade das organizações regionais internacionais ocorreria em dois níveis. Um deles envolve a diminuição do déficit democrático por meio do estabelecimento de mecanismos de controle dos cidadãos. No final do artigo, os autores concluem que o baixo poder decisório e a forma como os representantes nacionais são designados para o FCCR e para o Parlasul comprometem a eficácia dessas instituições, relegadas a uma função meramente consultiva, limitando de maneira significativa a sua influência sobre o processo decisório do Mercosul.

Outra contribuição importante, inserida no dossiê, provém do artigo de Feliciano de Sá Guimarães e Gabriel Cepaluni, no qual eles pretendem expor a discussão teórica a respeito da possibilidade de uma concepção de justiça internacional baseada em John Rawls. Com esse propósito, os autores examinaram a abordagem rawlsiana de justiça internacional e confrontaram-na com as contribuições dos teóricos normativos Charles Beitz e Thomas W. Pogge, "discípulos" de John Rawls.

Para Guimarães e Cepaluni, a análise de J. Rawls sobre a origem da pobreza e das desigualdades econômicas entre as nações responsabiliza o nível doméstico e considera que nele estariam as causas da miséria e da fome. Contrariando a perspectiva de J. Rawls, T. W. Pogge e C. Beitz deslocam as causas da pobreza do nível doméstico para a sociedade internacional. Além disso, sustentam que as instituições econômicas internacionais são responsáveis pela manutenção das condições que impedem a superação das desigualdades e da pobreza, pois não estão organizadas e orientadas para favorecer os interesses das populações mais pobres dos países subdesenvolvidos.

Pogge e Beitz (citados no artigo) defendem a necessidade de criação de mecanismos a partir dos quais seriam minimizados os efeitos da pobreza, tendo como objetivo precípuo a eliminação da pobreza extrema. Nessa direção, reformas morais e "densas" nas instituições econômicas internacionais poderiam torná-las mais efetivas como instrumentos capazes de contribuir para a superação da pobreza extrema. No final do artigo, Guimarães e Cepaluni apresentam o que seria a pergunta mais difícil de responder em uma eventual implantação prática das sugestões de Pogge e Beitz: como viabilizar a construção de um "arcabouço institucional internacional que transfira recursos sem violar as culturas locais"?

Em outro artigo do dossiê, Simone Diniz e Cláudio Ribeiro trazem uma importante discussão, na sua seção inicial, a respeito da relação entre as instituições democráticas e a formulação da política externa. Diniz e Ribeiro não estão abordando a atuação de instituições internacionais, conforme é possível observar nos artigos anteriores comentados aqui. Seu propósito é discutir o impacto de variáveis domésticas sobre a formulação da política internacional do Estado. Nesse sentido, os autores examinam o possível impacto do poder Legislativo federal no exercício da sua função de controle sobre a ação da Presidência da República nas questões relativas à política externa brasileira. Em um plano mais geral, os autores pretendem discutir o papel da democracia e suas implicações sobre a formulação da política internacional. É outra possibilidade de pesquisa que consideramos pertinente, pois está baseada na rejeição do pressuposto realista clássico da separação entre a política interna e o comportamento político internacional dos estados. Tal separação mostra-se infrutífera nos estudos atuais de política externa, razão pela qual é salutar louvar o esforço de Simone Diniz e Cláudio Ribeiro em destacar a pertinência das conexões entre variáveis domésticas e suas implicações para o comportamento estatal no plano internacional.

O dossiê encerra-se com uma análise relevante de história contemporânea na qual Carlos Federico Domínguez Ávila explora, de maneira descritiva e analítica, os acontecimentos que resultaram na queda do muro de Berlim. Ao mesmo tempo, o artigo destaca as conseqüências desse evento fundamental, indicando as implicações da reunificação alemã sobre a forma como Berlim colocou-se no contexto desse processo de reunificação.

Em síntese, com a reunião dos artigos deste dossiê, estamos certos de que a Revista de Sociologia e Política contribui para o desenvolvimento da agenda atual e complexa de pesquisa da área de Relações Internacionais.

Recebido em 2 de agosto de 2010.

Aprovado em 25 de agosto de 2010.

Alexsandro Eugenio Pereira (alexsep@uol.com.br) é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade Federal do Paraná (NEPRI-UFPR) e professor da mesma instituição.

Danielly Silva Ramos Becard (daniellyr@yahoo.com) é Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da mesma instituição.

Gustavo Biscaia de Lacerda (GustavoBiscaia@yahoo.com.br) é Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Editor-Executivo da Revista de Sociologia e Política.

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  • 1
    Ao tratar dos regimes, S. Krasner (1983) expõe a discussão teórica a respeito da relevância dos regimes internacionais. A posição mais otimista é representada por Oran Young (1983; 2000), que considera os regimes internacionais uma característica inerente às relações internacionais, nas quais comportamentos padronizados durante um período de tempo podem gerar um regime internacional.
  • 2
    Sobre esse ponto, conferir, também, Aron (1987), Herz (1988), Kaiser (1990), Villa (1999) e Keohane e Nye Jr. (2001), dentre outros. Luciano Tomassini sistematiza as transformações do sistema internacional em cinco pontos básicos: "As relações internacionais são protagonizadas por um número crescente de centros de poder; 2) cuja atuação externa tende a satisfazer uma gama de objetivos muito mais ampla do que no passado, não apenas através do Estado, mas também da sociedade civil organizada; 3) desenvolvem-se em torno de uma agenda mais complexa e menos hierarquizada; 4) são manejados por novos e múltiplos agentes, distintos do Estado; 5) põem em jogo recursos de poder não tradicionais em uma variedade de arenas muito mais numerosas, dinâmicas e mais amplas do que antes" (Tomassini
    apud HERZ, 1988, p. 71).
  • 3
    "O principal agente autônomo nas questões políticas e internacionais nos últimos séculos [o Estado] parece não apenas estar perdendo o controle e a integridade, mas parece ser também o tipo
    errado de unidade para enfrentar circunstâncias mais novas. Para alguns problemas é uma unidade demasiado grande para operar com eficiência, para outros é pequeno demais. Em conseqüência há pressões para uma 'redistribuição de autoridade' tanto para cima como para baixo, criando estruturas que poderão responder melhor às forças de mudança de hoje e de amanhã" (Kennedy
    apud VILLA, 2001, p. 69; grifo no original).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010
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