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Max Weber: democracia parlamentar ou plebiscitária?

Max Weber: de la democratie parlementaire ou plebiscitaire?

Max Weber: parliamentary or plebiscitary democracy?

Resumos

Em seus últimos escritos políticos, Weber debateu com intensidade os desafios colocados para a Alemanha naquele momento histórico. Acompanhando o final do II Império e os primeiros passos da República de Weimar, o autor transitou da preferência por um modelo parlamentar de democracia para sua variante plebiscitária. O presente trabalho retoma essa discussão e busca situá-la no contexto da evolução política do pensamento de Weber. Ao mesmo tempo, busca-se reconstruir a argumentação weberiana destacando o papel que a temática das instituições, da democracia e da racionalidade ocupam em sua avaliação dos modelos parlamentar e plebiscitário da democracia. Na parte final, o esquema anterior é retomado para sugerir uma agenda teórica que evidencie as possibilidades e atualidade das problemáticas contidas na sociologia política que emerge dos escritos político-conjunturais de Weber.

Weber; democracia; parlamentarismo; presidencialismo; instituições; racionalidade


En ses derniers écrits politiques, Weber a examiné avec intensité les défis de l'Allemagne à ce moment historique. En accompagnant la fin du II Empire et les premiers pas de la République de Weimar, l'auteur a passé de la préférence pour un modèle parlementaire de démocratie à sa variante plébiscitaire. Le présent travail reprend cette discussion et cherche à la situer dans le contexte de l'évolution politique de la logique de Weber. Au même temps, on cherche à reconstruire l'argumentation "weberienne", en mettant l'accent sur le rôle que la thématique des institutions, de la démocratie et de la rationalité occupe dans son évaluation des modèles parlementaire et plébiscitaire de la démocratie. Dans la partie finale, le schéma précédent est repris pour suggérer un agenda théorique qui rend évidentes les possibilités et l'actualité des problématiques, contenues dans la sociologie politique qui émerge des écrits politiques et conjoncturels de Weber.

Max Weber; démocratie; parlementarisme; présidentialisme; institutions; rationalité


In his last political writings, Weber engaged in intense debate around the challenges that Germany faced at that particular historical moment. Focusing on the end of the Second Empire and the first steps taken by the Weimar Republic, the author examined the preference for a parliamentary model of democracy over its plebiscitary variety. The present paper revisits this discussion up and seeks to situate it within the context of the political evolution of Weber's thought. At the same time, it seeks to reconstruct Weber's argument, highlighting the role that the theme of institutions, democracy and rationality play in his evaluation of parliamentary and plebiscitary models of democracy. Finally, we return to the earlier issues to suggest a theoretical agenda that demonstrates the possibilities and current relevance of the problems contained in the political sociology that emerges from Weber's political-conjunctural writings.

Max Weber; democracy; parliamentarism; presidentialism; institutions; rationality


ARTIGOS

Max Weber: democracia parlamentar ou plebiscitária?1 1 Este trabalho é fruto de pesquisa (em andamento) realizada com auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Bolsa de Produtividade em Pesquisa). Uma versão anterior do mesmo foi apresentada no Seminário Nacional de Ciência Política da Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRGS), realizado de 3 a 5 de setembro de 2005.

Max Weber: parliamentary or plebiscitary democracy?

Max Weber: de la democratie parlementaire ou plebiscitaire?

Carlos Eduardo Sell

RESUMO

Em seus últimos escritos políticos, Weber debateu com intensidade os desafios colocados para a Alemanha naquele momento histórico. Acompanhando o final do II Império e os primeiros passos da República de Weimar, o autor transitou da preferência por um modelo parlamentar de democracia para sua variante plebiscitária. O presente trabalho retoma essa discussão e busca situá-la no contexto da evolução política do pensamento de Weber. Ao mesmo tempo, busca-se reconstruir a argumentação weberiana destacando o papel que a temática das instituições, da democracia e da racionalidade ocupam em sua avaliação dos modelos parlamentar e plebiscitário da democracia. Na parte final, o esquema anterior é retomado para sugerir uma agenda teórica que evidencie as possibilidades e atualidade das problemáticas contidas na sociologia política que emerge dos escritos político-conjunturais de Weber.

Palavras-chave: Weber; democracia; parlamentarismo; presidencialismo; instituições; racionalidade.

ABSTRACT

In his last political writings, Weber engaged in intense debate around the challenges that Germany faced at that particular historical moment. Focusing on the end of the Second Empire and the first steps taken by the Weimar Republic, the author examined the preference for a parliamentary model of democracy over its plebiscitary variety. The present paper revisits this discussion up and seeks to situate it within the context of the political evolution of Weber's thought. At the same time, it seeks to reconstruct Weber's argument, highlighting the role that the theme of institutions, democracy and rationality play in his evaluation of parliamentary and plebiscitary models of democracy. Finally, we return to the earlier issues to suggest a theoretical agenda that demonstrates the possibilities and current relevance of the problems contained in the political sociology that emerges from Weber's political-conjunctural writings.

Keywords:Max Weber; democracy; parliamentarism; presidentialism; institutions; rationality.

RESUME

En ses derniers écrits politiques, Weber a examiné avec intensité les défis de l'Allemagne à ce moment historique. En accompagnant la fin du II Empire et les premiers pas de la République de Weimar, l'auteur a passé de la préférence pour un modèle parlementaire de démocratie à sa variante plébiscitaire. Le présent travail reprend cette discussion et cherche à la situer dans le contexte de l'évolution politique de la logique de Weber. Au même temps, on cherche à reconstruire l'argumentation "weberienne", en mettant l'accent sur le rôle que la thématique des institutions, de la démocratie et de la rationalité occupe dans son évaluation des modèles parlementaire et plébiscitaire de la démocratie. Dans la partie finale, le schéma précédent est repris pour suggérer un agenda théorique qui rend évidentes les possibilités et l'actualité des problématiques, contenues dans la sociologie politique qui émerge des écrits politiques et conjoncturels de Weber.

Mots-cles: Max Weber; démocratie; parlementarisme; présidentialisme; institutions; rationalité.

I. INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre os rumos do Estado alemão no final do II Império e nos primeiros anos da República de Weimar, Weber apresentou uma significativa mudança de avaliação política. Enquanto o Weber de 1917, de Parlamento e governo na Alemanha reordenada (WEBER, 1980), apresenta um renovado Parlamento como a dimensão fundamental da democracia moderna, o Weber de 1919, de O Presidente do Reich (WEBER, 2004b), não tem dúvida em afirmar que "é necessário absolutamente que o futuro Presidente do Reich seja eleito pelo povo" (WEBER, 2004a, p. 503). De um lado, um Weber "parlamentarista" e, ao final, uma visão enfaticamente "presidencialista"? Qual o significado e o alcance dessa redefinição? Longe de ser secundária, a abrupta modificação de Weber desencadeou importantes polêmicas nas quais estavam implicadas não apenas a questão em si mesma, mas todo o conjunto de seu pensamento. Esses debates, de forma geral, estão associados a duas questões inter-relacionadas.

O primeiro concerne à evolução teórica de Weber. Nesse caso, a controvérsia tem a ver com a descontinuidade dos escritos político-conjunturais desse pensador que recobrem, essencialmente, dois momentos. No primeiro, que vai de 1892 a 1897, destaca-se sua aula inaugural em Freiburg, intitulada O Estado nacional e a política econômica. O segundo período inicia-se após a retomada de seus trabalhos (depois de um longo período de crise) no ano de 1903. Nesse período vemos Weber particularmente interessado com os rumos dos acontecimentos políticos na Rússia2 2 Esses textos (WEBER, 2004b) já se encontram disponíveis em português, com excelente introdução crítica de Tragtenberg, de quem não se pode deixar de indicar também o estudo Burocracia e ideologia (TRAGTEN-BERG, 1992). . Nesse mesmo estágio devem ser colocados os escritos que recobrem o final do II Império e os primeiros anos da República de Weimar. No contexto de reorganização política que a Alemanha vive, Weber insere-se de forma intensa no debate político, resultando daí inúmeros textos, dentre os quais merece destaque, pelo seu alcance sociológico, o escrito Parlamento e governo na Alemanha reordenada.

Dada a diversidade de períodos e de preocupações factuais que assolaram a mente de Weber, emerge a pergunta sobre a unidade do conjunto. Há um fio condutor que perpassa seus textos e reflexões políticas ou, de fato, haveria rupturas marcantes entre seus escritos? Os analistas (BENDIX, 1986; ELIAESON, 2000) tendem a concordar com a idéia de que o quadro de referência que Weber possuía da vida política alemã já está dado em sua aula inaugural (de 1895) e que seus escritos posteriores introduzem nuances, mas não uma ruptura, nessa leitura. A partir dessa visão, o tema central da obra política weberiana seria "o problema da liderança" (BAER, 1988). A preocupação contínua de Weber teria sido avaliar o legado e a herança negativa de Bismarck diante de uma Alemanha que necessitava urgentemente de mecanismos para refazer suas possibilidades de condução política do aparelho estatal. Tal tese, por sinal, extrapola o âmbito das avaliações conjunturais de Weber, na medida em que se conecta também com o propósito de sua sociologia histórico-comparada e de sua avaliação da vida moderna. Ou seja, o problema da liderança pode ser lido em chave sociológica, pois refere-se à dicotomia burocratização e carisma, ou entre a jaula de ferro capitalista e de seus últimos homens e a emergência de novos profetas.

Ligada a essa questão encontra-se o debate a respeito da orientação político-ideológica de Weber. Nesse caso, os estudiosos debatem-se com a dificuldade de estabelecer qual a relação existente entre os elementos nacionalistas de seu pensamento e sua adesão aos ideais liberais. Para um determinado grupo de autores (MAYER, 1985; MOMMSEN, 1990), Weber representa uma forma de "liberalismo imperfeito", limitado pela preocupação em afirmar o poder imperialista da Alemanha. A postura weberiana seria um reflexo da ambigüidade das forças liberais alemãs que, em nome do perigo socialista, teriam aderido ao projeto conservador de Bismarck. Posições mais recentes (BEETHAM, 1991; 1989; GIDDENS, 1988; WARREN, 1988; HENNIS, 1996), contudo, procuram realçar, com veemência, o caráter genuíno da visão liberal de Weber. Dentre eles, Bellamy (1994) identifica em Weber um liberalismo sociológico cujo eixo era a reflexão sobre a plausibilidade de realização dos valores liberais de autonomia e autodeterminação diante de um capitalismo que parecia negar essa possibilidade.

Levando em consideração esse amplo e complexo quadro, esse artigo focaliza a transição weberiana da opção parlamentarista para a visão presidencialista. A pretensão não é de apresentar um novo marco hermenêutico da obra política weberiana, mas de reconstruir sistematicamente o conteúdo da discussão encetada por Weber sobre o perfil político da Alemanha a partir de três temas nucleares: instituições, democracia e racionalidade. Nessa direção, o trabalho está organizado da seguinte forma. O primeiro tópico possui uma função introdutória e situa as preocupações de Weber em seus trabalhos iniciais. A reflexão de Weber sobre a democracia parlamentar e a democracia plebiscitária ocupam a segunda e a terceira partes do texto. Na conclusão, argumento sobre a atualidade e validade da reflexão weberiana na agenda de uma sociologia política da democracia.

II. O PROBLEMA DA LIDERANÇA

De fato, quem iniciar a leitura de O Estado nacional e a política econômica não deixa de surpreender-se com o acentuado nacionalismo weberiano. Ipsis verbis: "Assim, a política econômica de um Estado alemão, assim como o critério de valor do teórico econômico alemão, somente podem ser alemães" (WEBER, 1991, p. 68). Mais à frente, no mesmo tom, ele dirá: "não é a paz e a felicidade que devemos legar aos vindouros mas sim a eterna luta pela manutenção do nosso modo de ser nacional" (idem, p. 69; grifos no original). O tom realista de seu discurso é acentuado ainda mais uma vez, ao afirmar que "[...] nesse Estado nacional o critério de valor definitivo que vale também para o ponto de vista da política econômica é para nós a 'razão de Estado'" (ibidem; grifos no original), para arrematar dizendo: "O que queremos exprimir, ao falar de razão de Estado, é a reivindicação de que o interesse de poder econômico e político de nossa nação e do seu portador, o Estado Nacional alemão, seja a instância final e decisiva para as questões da política econômica alemã" (ibidem).

É a partir desses critérios de valor que Weber investiga, na continuidade do texto, o problema da direção política do Estado. O que ele constata é que "[...] o poder econômico e a vocação para a direção política da nação nem sempre coincidem" (idem, p.72). Tal frase refere-se ao fato de que o Estado prussiano tinha como base social o estamento dos Junkers prussianos, camada social que Weber não hesitou em chamar de decadente. Sua análise desloca-se, então, para o exame dos outros principais grupos políticos de poder capazes de fazer frente ao estamento agrário: a burguesia e o proletariado. O diagnóstico que ele elaborou sobre essa situação é conhecido: "O ameaçador da nossa situação, no entanto, é que as classes burguesas parecem fenecer, enquanto portadoras dos interesses de poder nacionais e que ainda não há sinais de que as classes trabalhadoras estejam começando a adquirir maturidade para tomarem o seu lugar" (idem, p. 77).

Após os anos de crise que assolaram Weber entre os anos de 1897 a 1902, ele volta a interessar-se por problemas políticos e acompanha com imenso interesse os fatos ligados a revolução constitucionalista de 1905, ocorrida na Rússia.

Mas, a pergunta que guia suas análises recebe uma nova coloração. Em A situação da democracia burguesa na Rússia (WEBER, 2004b), ele ridiculariza aqueles que temem um excesso de democracia e de individualismo e exaltam valores conservadores como autoridade, nobreza e hierarquia. Agora mais claramente vinculado a uma cosmovisão liberal, Weber entende que os valores do individualismo e dos direitos humanos foram fruto de uma combinação contingente que ocorreu somente na Europa Ocidental. Ele era pessimista quanto à plausibilidade dessa mesma constelação diante dos rumos do capitalismo contemporâneo: "É ridículo no mais alto grau imaginar de qualquer afinidade eletiva entre a "democracia" ou "a liberdade" (em qualquer sentido que essas palavras possam ter) e o alto capitalismo de nossos dias - fase 'inevitável' do nosso desenvolvimento econômico, o qual predomina nos Estados Unidos e agora está sendo importado pela Rússia" (idem, p. 103).

Daí que sua reflexão foi buscar na análise dos grupos sociais e políticos da Rússia quem seriam os possíveis veículos e portadores de um projeto liberal. Weber examina em seqüência os zemtstvos, os cadetes (Partido Constitucional Democrata), a burguesia, as forças operárias (e seu populismo romântico!) e ainda o campesinato. Sua conclusão mais uma vez é pessimista, pois ele não vê em nenhuma das classes sociais economicamente acedentes um vínculo com o ideário liberal.

Comparando a reflexão de Weber sobre a política econômica do Estado Alemão (feita antes de sua crise) e sobre a democracia na Rússia podemos identificar pontos de continuidade e de ruptura. A continuidade é dada pelo tipo de abordagem existente. Em sua reflexão sobre a Rússia, Weber repete o esquema de "análise de classes" estabelecido em "O Estado nacional". A marca dessa análise é a tese de que a maturidade para a liderança política não são reflexos nem frutos diretos da posição econômica das classes sociais. Ela depende da educação política dos grupos sociais e de suas cosmovisões políticas. A análise de Weber é eminentemente sociológica e coloca como variável chave para entender a correlação entre grupos econômicos e liderança política o fator aprendizado político, ou seja, a visão cognitiva e valorativa das forças sociais em luta (SCAFF, 1973). Mas, além disso, há um evidente ponto de ruptura, dado pela valoração que informa a teorização de Weber que, nesse segundo momento, é realizada com muito maior acento a partir de premissas liberais. Em suas análises subsequentes, Weber continuará a pensar a luz desses valores políticos, mas sua abordagem sofrerá uma importante mudança de perspectiva, imposta sobremaneira pelas exigências da conjuntura política, como passo a mostrar doravante.

III. DEMOCRACIA PARLAMENTAR

No contexto da derrota da Alemanha na I Guerra Mundial e queda da monarquia prussiana, a necessidade de reorganização da estrutura política do Estado alemão vai envolver diretamente Weber, resultando em dos períodos mais produtivos em termos de sua obra política. Para apresentar a reflexão weberiana a esse respeito, tomarei como ponto de partida o texto Parlamento e governo na Alemanha reordenada. Escrito na forma de artigos entre abril e junho de 1917, esse texto sempre mereceu destaque não apenas pelas reflexões que levanta a respeito da conjuntura alemã, mas especialmente pela forma em que Weber conecta sua avaliação do quadro político germânico com suas teses sociológicas de longo alcance. Buscarei reconstruir o argumento weberiano levando em consideração três temáticas que articulam sua reflexão: o papel das instituições, a concepção de democracia e a problemática da racionalidade.

Do ponto de vista institucional, o centro da discussão weberiana é o papel do Parlamento. Tal discussão é encetada por Weber tendo em vista o problema da liderança política, desenvolvido pelo autor em dois níveis inter-relacionados: conjuntural e histórico-estrutural. Em sua acepção conjuntural, ele refere-se àquele momento histórico e aos seus desafios imediatos. Trata-se do tema da "herança de Bismarck", problema que Weber já vinha discutindo desde 1895. Em O Estado nacional e a política econômica, ele já afirmava que "durante um quarto de século esteve à frente da Alemanha o último e o a maior dos Junker" (WEBER, 1991, p. 74). Em 1917, o legado de Bismarck é novamente retomado e Weber avalia que o chanceler alemão tinha deixado para trás uma nação sem qualquer sofisticação política: "Principalmente, Bismarck deixou atrás de si uma nação sem qualquer vontade política própria, acostumada que estava à idéia de que o grande estadista ao leme tomaria as decisões políticas necessárias" (WEBER, 1980, p. 14).

No entanto, para além da conjuntura política, Weber eleva a questão da liderança a problema histórico-sociológico e passa a pensá-lo sob o registro da "burocratização". De acordo com essa tese, a burocratização era um fenômeno que ia além do Estado, perpassando as empresas (ou seja, o capitalismo), os partidos políticos, as igrejas e as demais instituições sociais. Ele concluía, assim, que "Em um Estado moderno, necessária e invariavelmente a burocracia realmente governa, pois o poder não é exercido por discursos parlamentares nem por proclamações monárquicas, mas através da rotina da administração" (idem, p. 16). A burocratização não apenas alcança todos os aspectos da vida social, mas também possui uma continuidade histórica, na medida em que perpassa as mais diversas civilizações. A burocracia moderna, contudo, distingue-se qualitativamente das demais formas históricas de burocracia, pois, "em contraste com estas formas mais velhas, a burocracia moderna tem uma característica que torna sua natureza (de) à 'prova de fuga', muito mais explícita: especialização e treinamento racionais" (idem, p. 24). A partir desse diagnóstico, Weber perguntava-se: 1) como, diante desse quadro, preservar os resquícios de liberdade; 2) que forças poderiam conter e controlar a força das camadas burocráticas; 3) como, na situação alemã, substituir a liderança dos funcionários pela liderança de líderes políticos?

É a partir desse amplo contexto que Weber avalia o papel do Parlamento. Seu argumento consiste em afirmar que somente o Parlamento, por suas características intrínsecas, poderia funcionar como um freio ao poder da burocracia e como mecanismo de seleção de verdadeiros líderes políticos. Em nível mais específico, ele pondera que o Parlamento deveria transitar da política negativa (de representação de interesses e fiscalização do poder Executivo) para uma política positiva, ou propositiva, desde que esse órgão tivesse uma participação efetiva na condução do governo. Daí que Weber vá concentrar sua polêmica contra o artigo 9º da Constituição vigente naquele momento, pois este impedia a participação de parlamentares nos ministérios. O resultado, avalia Weber, é um Parlamento esvaziado de importância e composto de meros diletantes. Na visão weberiana, somente um Parlamento com responsabilidade governativa satisfaria aos dois grandes desafios necessários para sobrepujar a tendência para a burocratização, a saber: (1) a preponderância do político sobre o burocrático, (2) por meio da seleção de políticos com vocação para a liderança política. Nos termos do próprio Weber: "a luta é então conduzida por homens que tem fortes instintos de poder político e qualidades altamente desenvolvidas de liderança política, e conseqüentemente, a possibilidade de assumir as posições mais elevadas" (idem, p. 31).

A temática institucional do Parlamento não é discutida por Weber apenas em relação à questão da liderança. Weber coloca-a em confronto com o processo de democratização da vida política alemã. É nesse contexto que o autor desenvolve suas principais reflexões sobre a democracia, segunda das variáveis que atravessa a argumentação de Weber. A correlação Parlamento-democracia é articulada de forma relacional, levando em consideração os dois lados da questão, ou seja, tomando a democracia como variável independente para mostrar seu impacto sobre o Parlamento e, no sentido inverso, tomando a variável Parlamento para indicar seu reflexo sobre a democracia.

Passemos, pois, ao primeiro vetor, nos termos de Weber, ao "[...] relacionamento entre parlamentarização e sufrágio democrático" (idem, p. 66). A complexa cadeia de raciocínios de Weber envolve os seguintes passos. Em primeiro lugar, ele mostra que a extensão do sufrágio eleitoral provoca a erosão dos partidos de notáveis e o aparecimento dos modernos partidos de massas. Nesses partidos, por sua vez, os líderes políticos não são mais escolhidos no seio dos dignitários políticos. A burocratização da atividade política tem como resultado o surgimento dos políticos profissionais. A conclusão é que a ampliação das franquias eleitorais profissionaliza a vida partidária e mesmo a atuação dos políticos.

Mas não é apenas ad intra que os efeitos democráticos fazem-se sentir nas estruturas políticas. Eles produzem impacto principalmente sobre a relação entre os organismos políticos e a sociedade. Weber entende que, diante da expansão do sufrágio eleitoral, a demagogia política passa a ser um componente central da vida política. Como ele mesmo afirma, "democratização e demagogia andam juntas" (idem, p. 74), independentemente da forma de Estado, constituição ou governo. É nesse sentido que ele caracteriza a democracia moderna como uma democracia essencialmente plebiscitária. Em "Parlamento e governo", Weber apontou para esse fenômeno chamando a atenção para o "modo cesarista de seleção". Em seus termos: "Em essência, isso significa uma mudança em direção ao modo cesarista de seleção. Na verdade, toda democracia propende nesta direção. Afinal de contas, a técnica especificamente cesarista é o plebiscito" (idem, p. 75; sem grifos no original).

A tese consiste em que o principal efeito da extensão da participação eleitoral democrática sobre o Parlamento é que ele modifica o mecanismo de seleção de líderes políticos na direção de um elemento que Weber considerava "irracional": a vontade das massas. A tese é forte, e merece uma transcrição literal: "O perigo político da democracia de massas para o Estado jaz primeiramente na possibilidade de elementos emocionais virem a predominar na política. A 'massa' como tal (independentemente das camadas sociais que a compõem em qualquer exemplo particular) só é capaz de pensar a curto prazo. Pois, como toda experiência mostra, ela está sempre exposta a influências diretas puramente emocionais e irracionais" (idem, p. 82).

Dado esse cenário, o desafio é dotar a democracia de elementos de correção racional dos impulsos emocionais das massas. Neste caso, já estamos diante de uma outra relação causal, ou seja, aquela que busca pensar o impacto do Parlamento sobre a democracia, e não o contrário, como vínhamos fazendo até agora. Entendida a partir desse ângulo, não é difícil perceber que Weber trabalha com a hipótese de que o Parlamento representa a possibilidade de condução racional da política. Contra as tendências irracionalistas da democracia plebiscitária, Weber contrapõe a racionalidade da democracia parlamentar. Citando expressamente o modelo britânico, ele destaca diversos componentes chaves no modelo parlamentar que, mais uma vez, é mister citar: "Em face do representante cesarista efetivo das massas, o Parlamento da Inglaterra protege: 1) a continuidade e, 2) a supervisão da posição de poder desse representante; 3) a preservação dos direitos civis, 4) um campo de provas político apropriado para cortejar a confiança das massas; 5) a eliminação pacífica do ditador cesarista uma vez que este tenha perdido a confiança das massas" (idem, p. 76).

Assim, do tema da democracia somos conduzidos automaticamente ao tema da racionalidade, a terceira variável a organizar o discurso político weberiano. Ora, ao olharmos o texto Parlamento e Governo de maneira retrospectiva, revela-se, não por acaso, uma complexa trama em que burocracia e carisma ou racionalidade e irracionalidade ocupam papéis diferentes no que concerne ao papel do Parlamento em relação ao Estado (problema da liderança) ou em relação ao sufrágio eleitoral (problema da democracia). No âmbito da democracia, o Parlamento funciona como um corretivo racional dos impulsos emocionais das massas. Mas, no nível do Estado, o papel orientador do Parlamento como encarnação de líderes políticos carismáticos deveria sobrepujar o papel racionalizador da burocracia. O centro de gravidade de toda discussão é o Parlamento, confrontado com a dúplice e ambígua tarefa de direcionar racionalmente os impulsos emocionais do campo social e, ao mesmo tempo, impulsionar os procedimentos formais da racionalidade burocrática com o ímpeto emocional da liderança política. Uma difícil dialética para a qual Weber parecia não ter encontrado a solução definitiva.

IV. DEMOCRACIA PLEBISCITÁRIA

As oscilações de Weber ficam ainda mais claras se tomamos os textos publicados por ele ao longo do ano de 1919. Já no contexto da redação da Constituição de Weimar, escritos como A forma futura do Estado Alemão e, especialmente, O Presidente do Reich (WEBER, 2004a), mostram que Weber reavaliou sua posição a respeito do papel do Parlamento no contexto da vida democrática. Como sabemos, nesses últimos textos, Weber abandona o modelo parlamentarista e advoga o reforço de elementos cesaristas como resolução dos desafios colocados à Alemanha naquele momento histórico. Com base nesse novo ponto de vista, ele rejeita a idéia de que o Presidente deva ser indicado pelo Parlamento: "um Presidente do Reich eleito pelo Parlamento em função de constelações e de coalizões precisas entre os partidos é um homem politicamente morto se estas constelações vierem a mudar" (idem, p. 506). O modelo proposto por Weber prevê, então, a eleição popular e o reforço do poder presidencial: "Um Presidente eleito pelo povo enquanto chefe do Executivo e da atribuição de cargos administrativos dispondo (eventualmente) de um veto suspensivo, do direito de dissolver o Parlamento e de consultar o povo é a segura garantia de uma verdadeira democracia (idem, p. 506-507).

Na continuidade, tomando como base o texto O Presidente do Reich (idem) exponho a nova posição de Weber tomando em consideração as mesmas variáveis teóricas utilizadas acima.

Relembremos que a discussão institucional de Weber tem como cerne o Parlamento e envolve como seu tema básico a questão da liderança, sendo que esta desdobra-se de acordo com duas preocupações básicas: garantir a preponderância do político sobre o burocrático e a seleção de líderes políticos capazes. Mas, ao voltar a esses temas, em 1919, vemos que a reflexão weberiana é enriquecida por um novo eixo de avaliação: a unidade e a universalidade. Nesses termos, Weber deixou de acreditar no Parlamento como mecanismo eficiente de direção política efetiva porque entendeu que este acentuava a fragmentação e dispersão política do Estado. Dois fatores adicionais são apresentados por Weber nessa direção. O primeiro envolve a adoção do sistema de representação proporcional. Seu resultado seria a composição de um Parlamento essencialmente corporativo, representando interesses seccionais e setoriais. No dizer de Weber, o sistema proporcional engendra representantes "[...] munidos de um mandato imperativo em proveito de grupos que tem interesses econômicos a defender" (WEBER, 2004b, p. 505). A mesma tendência seria reforçada pelo caráter federalista da organização política alemã, seja por conta de sua estrutura partidária, seja por conta do poder dos governadores dos entes federativos (particularmente da Prússia). De novo, o Parlamento ver-se-ia preso à representação de interesses de minorias em conflito: "nós ignoramos se o desenvolvimento de partidos puramente regionais não continuará a progredir" (ibidem). A opção presidencialista, ao contrário, reforçaria a unidade e a visão universalista de condução política na esfera administrativa. Nas palavras de Weber, "só um Presidente do Reich se apoiando sobre milhões de votos pode ter a autoridade que lhe permite engajar a socialização" (idem, p. 503). Por socialização, explica Weber, leia-se administração, entenda-se ela apenas no sentido de medidas financeiras inevitáveis ou mesmo como transformação completa da economia (qual seja, as opções políticas de direita e esquerda que estavam disponíveis naquele momento histórico). Ele entende, pois, que a nova Constituição "[...] deve suprimir os obstáculos para tornar possível todas as tarefas imagináveis que possam se apresentar a administração" (idem, p. 504). Ele cita como exemplo negativo a inoperância da organização política da França "[...] que não poderia jamais aportar a administração esta unidade sem a qual a reconstrução de nossa economia é impossível" (ibidem; sem grifo no original). E, de outro lado, afirma; "o particularismo reclama alguém que seja o vetor da idéia de unidade do Reich" (idem, p. 505). A eleição direta também seria um contrapeso às tendências regionalistas da organização partidária, pois tal "[...] movimento eleitoral será uma barreira à proliferação em uma só direção de tais tendências, porque os partidos serão, então, obrigados a se organizar e a entrar em acordo sobre a feição unitária em todo Reich, da mesma maneira que o Presidente do Reich eleito pelo povo face ao Bundesrat [Parlamento], tal é inevitável, um contrapeso na direção da unidade do Reich" (ibidem; sem grifos no original).

Ambos argumentos deixam claro que a preponderância do político em relação ao burocrático é transferida por Weber do Parlamento para a figura do Presidente eleito, na medida em que sua base popular dar-lhe-ia a força necessária para impor sua vontade aos quadros burocráticos e tarefas administrativas, sobrepujando as tendências particularistas e centrípetas da estrutura parlamentar alemã. Agora é o Presidente e não mais o Parlamento a força capaz de impor o político (carisma) sobre a administração (burocracia).

Tal mudança de postura foi acompanha também de uma reavaliação da capacidade parlamentar de seleção de dirigentes: "Só a eleição pelo povo de um Presidente do Reich dá a ocasião e a possibilidade de uma seleção de chefes políticos de se fazer, permitindo assim uma reorganização de partidos que colocará fim ao sistema atual [...] de notáveis e suas práticas" (idem, p. 504). O atual sistema preservava a continuidade de políticos de carreira e afastava os melhores quadros para o domínio da economia. Nesse contexto, ele conclui, "só a eleição pelo povo do mais alto funcionário do Reich pode criar um novo apelo" (ibidem).

Note-se, mais uma vez, que o problema da liderança continua sendo a tônica das discussões de Weber, mas a ele são agregados novos critérios de avaliação. Weber continua na busca de líderes carismáticos capazes de imporem-se diante do aparato administrativo, mas seu recrutamento e seleção, bem como sua capacidade diretiva, provêm da força que lhes advém do apoio popular. Nessa direção, o modelo presidencialista é superior ao parlamentarista, pois este acentua as tendências centrípetas do sistema, enquanto o primeiro oferece a possibilidade de uma visão universalista e unitária das tarefas políticas do Estado.

Também podemos notar importantes deslocamentos de Weber em relação a sua concepção de democracia. Partindo do pressuposto de que, em toda parte, o sufrágio indireto estava sendo suprimido, ele vê como um fato absolutamente necessário um Estado "[...] repousando sem contestação possível sobre a vontade do povo todo inteiro e sem que intermediários possam aí se interpor" (idem, p. 503). Mais a frente ele dirá ainda que "[...] a ditadura das massas da qual tanto se falou exige justamente um 'ditador', um homem que as massas, elas mesmas, escolheram e no qual elas confiam e ao qual se submetem enquanto possuem sua confiança" (idem, p. 504) para, ao final, arrematar dizendo: "[...] a palavra mestre da democracia [é] o direito de escolher diretamente um chefe" (idem, p. 506).

Comparada com sua visão anterior da democracia, a nova composição weberiana apresenta, de fato, uma diferenciação qualitativa importante. Afinal, se antes sua reflexão pautava-se pela defesa da democracia parlamentar diante dos elementos cesaristas da democracia moderna, agora é a democracia plebiscitária que configura a aposta política weberiana. Em seu novo esquema, o Parlamento continua a ter um papel de salvaguarda e contenção das liberdades e dos limites do poder político: "como sempre, é preciso restringir o poder do Presidente eleito pelo povo, velando para que ele não possa intervir na máquina do Reich a não ser em situações de crise momentânea insolúveis" (idem, p. 505-506). Mesmo assim, assevera Weber, "devemos dar-lhe [ao Presidente] por meio do sufrágio popular um assento sólido que lhe seja próprio" (idem, p. 506).

Ocorre, portanto, que o fluxo de poder que se origina na vontade do povo e tinha o Parlamento como elemento de racionalização é pensado de outra forma. A vontade popular é transferida diretamente à figura do Presidente, funcionando o Parlamento apenas, no limite, como guardião dos excessos, mas não mais da racionalidade do fluxo político. Em termos conceituais, a novidade da formulação weberiana não está na constatação de um fator plebiscitário próprio à democracia. A noção de democracia plebiscitária já tinha sido apresentada em "Parlamento e governo", pois, de acordo com a argumentação de Weber, o elemento cesarista e plebiscitário é fator inerente da democracia. A novidade, nesse caso, parece-me residir em outro plano. Primeiro, no abandono do tipo ideal "democracia parlamentar" como elemento de correção da democracia plebiscitária e, em segundo lugar, na clara defesa normativa (em seus resultados) do segundo modelo de democracia.

Nesse contexto, a difícil dialética entre a racionalidade e a irracionalidade continua permeando a apreciação weberiana. No entanto, o objetivo da mesma não é mais limitar os fluxos emocionais da democracia plebiscitária pela mediação racionalizadora da democracia parlamentar. A racionalidade do sistema é transferida para a figura do Presidente e a democracia plebiscitária, de tom antes completamente negativo, ganha contornos positivos. Essa mudança valorativa, contudo, não envolve uma redefinição da tese da emotividade da vontade popular. O que ocorre é uma reavaliação do mecanismo capaz de conferir racionalidade à participação das massas derivada de sua incorporação à democracia mediante a expansão do sufrágio eleitoral. Mas, como entender o sentido dessa mudança?

Para explicitar essa transformação, podemos recorrer a outro texto de Weber. Em Economia e sociedade, não por acaso, em tópico que trata da dominação carismática, Weber detém-se sobre a "reinterpretação antiautoritária do carisma". Ele explica, então, que a figura do líder de partido eleito popularmente no Estado moderno representa um tipo transitório flutuante entre a dominação carismática e a racional-legal: "o tipo transitório mais importante é a dominação plebiscitária" (WEBER, 1994, p. 176). Em seguida, ele trata explicitamente da "democracia plebiscitária", que é assim definida: " o tipo mais importante da democracia de líderes - em seu sentido genuíno, é uma espécie de dominação carismática oculta sob a forma de uma legitimidade derivada da vontade dos dominados e que só persiste em virtude desta" (ibidem). Na sequência, ele lembra que o elemento característico da democracia com líderes é seu caráter emocional e é justamente nesse aspecto que "[...] estão os limites da racionalidade desse tipo de administração nos tempos modernos, racionalidade que, mesmo nos Estados Unidos, nem sempre correspondeu às esperanças" (idem, p. 177).

O detalhe a observar é que Weber fala em limites, mas não em impossibilidade. Pois, logo à frente (ibidem), ao tratar da relação entre a democracia plebiscitária com a economia, Weber menciona o potencial racional desse tipo de democracia. O trecho é assaz importante, e o transcrevo integralmente: "A redefinição do carisma como antiautoritário conduz, em regra, ao caminho da racionalidade. O dominador plebiscitário procurará geralmente apoiar-se em um quadro de funcionários que opere com rapidez e sem atritos. Quanto aos dominados, tentará vinculá-los a seu carisma, como 'ratificado', ou por meio de honra e glória militar ou promovendo seu bem-estar material - em certas circunstâncias, pela combinação de ambas as coisas" (ibidem).

A partir desse elemento torna-se inteligível a guinada weberiana em direção à democracia plebiscitária. Weber não nega, mais uma vez, a possibilidade de que "os poderes plebiscitários podem ter efeitos enfraquecedores para a racionalidade (formal) da economia" (idem, p. 178). Mas, tome-se nota, a democracia plebiscitária, vista antes como meramente irracional e emocional possui, nessa nova visão, possibilidades racionais que antes não haviam sido destacadas. As indicações de Weber nesse sentido também são bastante claras. A racionalidade da democracia plebiscitária repousa na capacidade de seu líder de dominar o quadro administrativo e, por outro lado, de sua capacidade de vincular os dominados ao seu carisma. Weber, mais uma vez, pensa as duas pontas do processo político (sociedade e Estado) e conecta o papel racionalizador do líder político tanto à sua base popular quanto à sua relação com o governo (quadro administrativo). É por essa razão, podemos supor, que Weber faz a aposta na direção de uma democracia plebiscitária e no reforço da figura do Presidente do Reich.

V. CONCLUSÕES

As posições de Weber sobre a conjuntura política alemã e sua visão da democracia provocaram alguns dos mais duros debates entre os especialistas no autor (PFAFF, 2002). De fato, seus críticos mais acerbos (particularmente o trabalho de Mommsen (1990)) chamaram a atenção para a ênfase exagerada de Weber na figura do líder, seu apoio ao artigo 48 da Constituição de Weimar (que fortalecia o poder do Presidente) e a conexão desses elementos com a ascensão dos movimentos totalitários ao longo da década de 1930. Em resposta a essa leitura, a adesão de Weber a princípios liberais e sua distância em relação aos fatos posteriores também foi lembrada (LÖEWENSTEIN, 1966). Não obstante o valor histórico-exegético implicado nesse debate (que este artigo não pretende esgotar), esta parte final procura ir além do marco interpretativo para sugerir, de forma indicativa, a atualidade das questões levantadas por Weber em seus últimos escritos. Para tanto, retomo o esquema de conceitos dos quais me utilizei na apresentação do debate weberiano da democracia.

A temática institucional confere uma excepcional atualidade ao pensamento weberiano, especialmente se levarmos em conta a centralidade que o tema das instituições adquiriu nos marcos da discussão política contemporânea. Ainda que a aproximação entre Weber e as teorias neo-institucionalistas (HALL & TAYLOR, 2003) não nos permita converter Weber na fonte privilegiada dessa abordagem; a dimensão institucional da vida política recebeu uma acentuada atenção da parte do Weber tardio. Esse aspecto, até agora pouco explorado, permite-nos uma agenda de discussões teórico-empíricas que contemplam, a meu ver, três ordens de questões. A primeira tem a ver com o critério que guia a análise institucional de Weber, critério esse que nos remete ao problema da liderança ou, para buscar uma formulação atual, a produção da governabilidade (capacidade de formulação e implementação de uma agenda de políticas). À luz desse critério emerge a questão do próprio desenho institucional proposto por Weber (seja ele o modelo parlamentar ou plebiscitário) e o modo como ele concebia a capacidade das organizações de processar os objetivos políticos que naquele momento ele julgou prioritários. Por fim, caberia destacar também o estatuto teórico-sociológico que Weber confere ao tema das instituições sociais e políticas. Embora saibamos que Weber não concebia as instituições em um vácuo teórico ou mesmo como variáveis ontologicamente determinantes da vida política, pouco se esclareceu sobre o modo como ele pensou as organizações políticas como variáveis independentes de análise, as múltiplas relações que ele estabeleceu entre os elementos que compõem a estrutura política e, na ordem inversa, a relação de causalidade dos elementos sociais, históricos e culturais sobre o nível organizacional.

Embora Weber seja considerado autor consagrado nos marcos dos compêndios das teorias contemporâneas da democracia (HELD, 1987), sua usual apresentação como precursor (ou fundador, como se queira) de uma versão elitista da democracia (elitismo democrático) tende muito mais a obscurecer do que esclarecer as intenções de seus escritos. Assim, apresentado na versão acabada que lhe teria sido dada por Joseph Schumpeter, sugere-se que o núcleo da visão weberiana da democracia seria a demonstração da impossibilidade de formas de democracia direta, posto que calcado em uma versão realista e não normativa da democracia e no diagnóstico da irracionalidade das massas e da complexidade burocrática do Estado contemporâneo (AVRITZER, 1996; BREUER, 1998). Ainda que essa seja uma formulação que possa ser considerada global e formalmente correta, ela tende a ignorar a historicidade do pensamento weberiano e menospreza as sutilezas e oscilações de suas reflexões, como se propôs a mostrar este artigo. Mais importante do que isso, essa formulação parece deslocar o ponto mais saliente das preocupações de Weber cujo eixo, de fato, tinha muito mais a ver com as características e o futuro do regime representativo em gestação na Alemanha do que com a crítica da democracia direta. É nesse ponto, portanto, que uma suas contribuições analíticas devem ser buscadas. Nessa direção, Weber não só examinou o impacto da democratização nas instituições e no comportamento político, como também pensou a democracia tanto em sua capacidade de produção de condições de governabilidade (produção de liderança) quanto na sua dimensão de accountability horizontal (o papel de salvaguarda das liberdades do Parlamento). Além disso, Weber apresentou uma descrição sobre as formas modelares da democracia contemporânea (os tipos parlamentar e plebiscitário) que merecem um confronto com os outros parâmetros teóricos de reflexão sobre os tipos de democracia realmente existentes (penso, por exemplo, nos modelos de democracia de Liphardt (2003), possibilitando-nos pensar as tipologias (marcos teóricos) e topologias (os regimes políticos do ponto de sua vista de sua concretude histórica) de nossas poliarquias contemporâneas.

O tema da racionalidade presente em Weber permite-nos, por sua vez, um duplo desdobramento. No plano formal, a problemática da racionalização e do desencantamento do mundo é apresentada pelos mais atuais especialistas no autor como a chave de seu pensamento (SCHLUCHTER, 1986). Logo, tomar o tema da racionalidade como foco conduz-nos à conexão da sociologia política de Weber com sua sociologia global, evitando o confinamento de suas reflexões de conjuntura nos marcos estritos de uma reflexão política per se. Esse ganho, por sua vez, transborda os limites do meramente hermenêutico, indicando-nos a possibilidade de pensar o político em chave sociológica ou o social na sua conexão com o político, e vice-versa. Assim compreendida, a discussão weberiana apresenta-nos um modelo de Sociologia Política (mais do que em uma Ciência Política isonomicamente concebida) que, em última instância, representa também uma sociologia da modernidade. Do ponto de vista substantivo, o tema da racionalidade e de suas múltiplas formas já está mais do que presente na Ciência Política (teoria da escolha racional, etc.) e na Sociologia contemporânea (racionalidade instrumental e comunicativa de Habermas, por exemplo), dispensando-nos da necessidade de argumentar sobre a validade de um autor que tem nessa dimensão seu próprio eixo de análise. Saliento apenas que a ênfase na racionalidade tende a esquecer seu contraponto (a irracionalidade), tema que, weberianamente pensado, aparece tanto nas suas possibilidades (carisma) quanto nos seus limites (a emotividade das massas). Mais um bom tópico a recuperar, portanto.

Nessas múltiplas acepções, a problemática das instituições, da democracia e da racionalidade, muito mais do que uma grade de leitura do pensamento político weberiano, indicam possibilidades de uma agenda de problemas teóricos que nos convida ao sempre renovado exercício de pensar, seja com ou contra, a partir de Weber. Um motivo a mais para retomarmos sua leitura.

Recebido em 5 de novembro de 2008.

Aprovado em 10 de março de 2009.

Carlos Eduardo Sell (sell@cfh.ufsc.br) é Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da mesma instituição.

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  • 1
    Este trabalho é fruto de pesquisa (em andamento) realizada com auxílio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Bolsa de Produtividade em Pesquisa). Uma versão anterior do mesmo foi apresentada no Seminário Nacional de Ciência Política da Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRGS), realizado de 3 a 5 de setembro de 2005.
  • 2
    Esses textos (WEBER, 2004b) já se encontram disponíveis em português, com excelente introdução crítica de Tragtenberg, de quem não se pode deixar de indicar também o estudo
    Burocracia e ideologia (TRAGTEN-BERG, 1992).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Recebido
      05 Nov 2008
    • Aceito
      10 Mar 2009
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