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Apresentação

DOSSIÊ "TEORIA POLÍTICA ENTRE NORMATIVIDADE E HISTÓRIA"

Apresentação

Gustavo Biscaia de Lacerda

I Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sociólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Editor-Executivo da Revista de Sociologia e Política e-mail: GustavoBiscaia@yahoo.com.br

O ano de 2011 pode ser assinalado por duas efemérides importantes e referenciais para a Teoria Política: o 55º aniversário da "morte" da Teoria Política, em 1956, e o 40º aniversário de seu "ressurgimento", em 1971. A primeira data foi marcada pela famosa observação de Peter Laslett de que, após as pesadas críticas feitas por David Easton e pelos cientistas políticos comportamentalistas às práticas então correntes da Teoria Política, para todos os efeitos práticos ela estava "morta" (LASLETT, 1956, p. vii). Já a segunda data corresponde à publicação do justamente agora clássico livro de John Rawls, Uma teoria da Justiça (RAWLS, 1981).

O lapso de 15 anos entre as duas datas teria sido ocupado pelo desenvolvimento de pesquisas empíricas, com teorias bem menos ambiciosas e, de modo geral, orientadas por uma forma específica da teoria dos sistemas, conforme exposto por David Easton (1953); já em termos metodológicos, esse período teria sido dominado pelo "positivismo", o que reafirmaria a vocação estritamente "empírica" (ou, em termos pejorativos, "empiricista") das investigações sobre a realidade política no período. Em contraposição, o livro de Rawls corresponderia à retomada das grandes elaborações teóricas, com um teor marcadamente normativo, originando toda uma nova linha de reflexão sobre a realidade sociopolítica; metodologicamente, essa retomada consistiria na afirmação de questões valorativas e em especulações menos preocupadas com a empiria.

A tese da morte da Teoria Política apresenta alguns elementos verdadeiros e outros nem tanto. Por um lado, realmente a chamada "revolução comportamentalista" ofereceu um seriíssimo desafio às especulações teórico-políticas e a muito da prática então usual no que se chamava de "Teoria Política". A partir da divisão institucional estadunidense, a "Teoria Política" correspondia a exegeses de livros considerados "clássicos" (segundo critérios mais ou menos tradicionais (cf. LEVIN, 1973, p. 462-436)). Face a isso, David Easton fez uma dupla crítica: por um lado, em termos práticos, esse gênero de reflexão não permitiria compreender-se de maneira adequada a realidade contemporânea, sendo, portanto, politicamente ocioso; por outro lado, do ponto de vista metodológico, novas possibilidades de pesquisa eram possíveis, saindo-se da especulação de caráter mais filosófico e dirigindo-se para o exame sistemático das práticas políticas concretas.

A afirmação do comportamentalismo foi grande e importante (embora, como indiquem alguns autores - como Adcock (2007) -, haja alguns exageros nisso), mas a idéia de morte da Teoria Política é largamente errônea. Em primeiro lugar, porque essa concepção concentrou-se apenas no mundo anglossaxônico, isto é, na Inglaterra e nos Estados Unidos: para ficarmos apenas na Europa Ocidental, a tese da morte da Teoria Política deixa de lado o que se produziu na França, na Alemanha e na Itália - pense-se por exemplo nas elaborações de Raymond Aron, Jean-Paul Sartre, da Escola de Frankfurt e dos marxistas de modo geral -, para não considerar outros países e civilizações1 1 No caso latino-americano, podemos incluir sem dúvida as teses cepalinas e dependentistas, com Celso Furtado ocupando um lugar importante aí. . Em segundo lugar, mesmo nos ambientes estadunidenses e britânicos havia uma grande e variada produção, com nomes como Isaiah Berlin, Michael Oakshott, Leo Strauss, Hannah Arendt - e mesmo Karl Popper e Friedrich Hayek. Nesse sentido, como observa Vincent (2004, p. 91-95), a tese da morte da Teoria Política é estritamente paroquialista, própria de setores da academia estadunidense, e que foi absorvida e é largamente repetida sem maiores críticas até hoje por pensadores tão sérios quanto Brian Barry e Phillip Pettit.

O paroquialismo refere-se à estrutura organizacional da academia dos Estados Unidos. Até meados dos anos 1980, pelo menos, a "Teoria Política" era entendida pelo menos de três maneiras diversas: a "histórica", a "normativa" e a "empírica". Enquanto a teoria "empírica" corresponderia às elaborações feitas pelos cientistas políticos, isto é, por adeptos do comportamentalismo, a teoria "normativa" corresponderia às especulações de caráter mais filosófico, ou melhor, ao gênero de reflexão que, referindo-se à vida política, não são passíveis de aferição empírica e em que também se evidencia o aspecto valorativo. A teoria "histórica", por fim, seria aquela que faria a história das idéias, ou seja, em vez de adotar uma estratégia historicista para compreender a realidade política, insistiria na exegese das obras de alguns autores denominados "clássicos" (Platão, Maquiavel, os contratualistas, Marx, Stuart Mill).

Sem sombra de dúvida, essas divisões têm que ser mais didáticas e operacionais que substantivas: uma boa teoria normativa tem que levar em consideração não apenas investigações empíricas como também a história das idéias - e reciprocamente. Entretanto, em alguns ambientes estadunidenses, essas divisões corresponderiam a três compartimentos, separados entre si e ciosos de sua separação: nesse sentido, o comentário de David Easton não deixou de ser também a afirmação do particularismo de uma especialização sobre as demais especializações.

Em termos metodológicos, costuma-se afirmar que o comportamentalismo é tributário do "positivismo", em sua ênfase no empirismo, na separação entre fato e valor, na rejeição da "metafísica"; o grande nome da Filosofia da Ciência que se associa usualmente a essas perspectivas seria Karl Popper. Essas observações também são problemáticas. Não que o comportamentalismo não buscasse o empirismo, o controle da subjetividade (ou, de modo mais amplo, a neutralidade científica) e a rejeição das especulações teóricas: o problema está em associar essas perspectivas a uma determinada forma de pensar que é genericamente chamada de "positivismo". Senão, vejamos.

O "positivismo" a que usualmente se faz referência é o conjunto de idéias, em si bastante heteróclito, do Círculo de Viena, de que fizeram parte Hans Hann, Moritz Schlick, Kurt Gödel, Otto Neurath e Rudolph Carnap, além de inúmeros outros. Dele procurou aproximar-se também Karl Popper, embora jamais tenha efetivamente participado e sua principal obra - A lógica da descoberta científica (POPPER, 2000) - apresente-se em oposição frontal a algumas das propostas do Círculo de Viena, em particular das de Carnap.

Também conhecido como "Empirismo Lógico", o Círculo de Viena rejeitava a teologia e a metafísica, afirmando que somente a ciência tem sentido. O que diferencia a ciência das outras formas de conhecimento - o chamado "critério de demarcação" - é a correspondência entre uma afirmação qualquer e a realidade empírica: os enunciados que não forem passíveis de terem essa correspondência estabelecida não são científicos, não são verdadeiros e, nesse sentido, não têm "sentido". O nome "Empirismo Lógico", dessa forma, é bastante apropriado para um conjunto de pensadores que se preocupava com o exame das relações lógicas da linguagem e a busca de sua vinculação empírica.

A separação entre fato e valor pode ser deduzida dessas proposições, embora não seja correto extrair daí que esses pensadores fossem alheios às preocupações sociais ou que não objetivassem aplicar os resultados de suas investigações em objetivos políticos: Otto Neurath, por exemplo, foi Ministro da Economia da república socialista proclamada na Alemanha em 1919.

Ora, enquanto é possível com razoável correção aproximar a proposta metodológica do comportamentalismo do Círculo de Viena, o mesmo não é possível de fazer no que se refere ao "positivismo" de modo, haja vista que por essa expressão compreende-se também as idéias sociológicas, filosóficas e morais de Augusto Comte - a maior parte das quais se opunha às do Empirismo L ógico2 2 Procuramos desenvolver esses aspectos em Lacerda (2009). .

Justapor Augusto Comte, Karl Popper e Rudolph Carnap sob o mesmo título de "positivistas" é produzir uma séria confusão terminológica. Essa confusão é tão mais estranha quanto se considera que ela ocorre na área de Teoria Política, isto é, entre aqueles que - supostamente - estão acostumados a diferenciar as várias correntes teóricas, ao mesmo tempo que têm que tomar grande cuidado com a elaboração conceitual. Ainda assim, teóricos importantes ativamente desempenharam papéis importantes nessa confusão, como é o caso de Theodor Adorno, na famosa "Disputa do Positivismo na Sociologia alemã" (cf. ADORNO, 1976).

Mesmo com os problemas apontados acima a respeito da tese da "morte da Teoria Política", a chamada "retomada da Teoria Política", devida à publicação do livro de Rawls em 1971, não deixou de ter um aspecto de vingança dos "teóricos" contra os "empiricistas". Naquele momento - início dos anos 1970 -, duas conjunturas confluíam para dar força a essa retomada: as críticas ao "positivismo" na Filosofia da Ciência e a crise por que passava a sociedade estadunidense (e, de maneira mais ampla, a crise de valores que atravessava o mundo) (BALL, 2004).

No que se refere à Filosofia da Ciência, as obras de Paul Feyerabend e, especialmente, a de Thomas Kuhn sugeriam que o conhecimento científico não avança de maneira "linear" nem de modo independente dos contextos históricos específicos; além disso, a idéia de uma única forma de conhecer a realidade era seriamente posta em questão pelo relativismo implícito nos modelos dos "paradigmas" e do "combate ao método". Acima de tudo, a incapacidade de estabelecer sempre e totalmente correspondências entre os enunciados teóricos e as verificações empíricas; a necessidade de formulações teóricas prévias às pesquisas empíricas e, por último mas não menos importante, a possibilidade de inúmeras teorias serem possíveis a partir dos mesmos dados, puseram em xeque a idéia da correspondência estrita entre enunciados e observações.

A crise de valores por que passou o Ocidente entre as décadas de 1960 e 1970 - representada pela forte discordância dos jovens com as instituições então vigentes, com a Guerra Fria, com a Guerra do Vietnã; pela busca de novas formas de sociabilidade e por novos movimentos políticos e sociais - pôs em questão a legitimidade das instituições sociais. Ora, uma das tarefas fundamentais da Teoria Política é, precisamente, a elaboração dos fundamentos da legitimidade. Obra de grande valor por si só, o livro de Rawls surgiu em um momento em que a especulação normativa política era possível e necessária.

Convém notarmos, todavia, que a disputa entre a Ciência Política empírica, conforme defendida por David Easton, e a Teoria Política, de caráter normativo e elaborada por autores na linha de Rawls ou I. Berlin, tem um outro elemento. No início do século XX o físico e romancista C. B. Snow cunhou a expressão "duas culturas", para referir-se à distinção entre cultura científica e cultura literária: de um lado, o conhecimento das leis naturais, das regularidades, do desenvolvimento e da aplicação de raciocínios controlados e logicamente encadeados, submetidos à verificação empírica, mas sempre parciais e passíveis de crítica e revisão; do outro lado, a escrita de narrativas e de especulações em que a correspondência com a realidade não tem tanta importância, mas que são (ou podem ser) gerais, mais próximas da afetividade e da intuição e que aspiram a um caráter (mais) permanente. Enquanto a ciência é "materialista" e especializante - portanto, é analítica e imanente -, o que chamamos de "cultura literária" permite o desenvolvimento de perspectivas totalizantes, transcendentais e "espiritualmente" elevadas (o que incluiria a Filosofia, a Literatura e, dependendo de quem escreve, mesmo a Teologia)3 3 Para uma exposição histórica sobre as disputas entre as "duas culturas", especialmente no ambiente inglês, cf. Cohen (2001). .

A oposição entre as duas culturas pode ser aplicada com razoável proveito, em termos heurísticos, à Teoria Política, de modo a considerarmos a sua identidade. O objetivo da Teoria Política é elaborar modelos científicos ou produzir especulações sobre a realidade social? Pode-se com razão afirmar que a Teoria Política não integra nem as Ciências Naturais nem a Literatura (ou a Filosofia), devendo ser posta em uma categoria à parte: nesse sentido, Wolf Lepenies (1996) afirmou que as Ciências Sociais constituiriam uma terceira "cultura"4 4 Essa oposição pode ser aproximada da tradicional clivagem entre investigações nomotéticas e idiográficas. Entretanto, como se verá, suas diferenças são grandes o suficiente para evitarmos sobrepô-las. Sobre a distinção entre pesquisas nomotéticas e idiográficas, cf. Levine (1997, p. 180). . Ainda assim, a tensão permanece: poderíamos pensar em homólogos "teoricistas" opostos ao "empiricista" David Easton; um nome inicial seria Charles Taylor (1971), que criticava asperamente os empreendimentos "científicos" na investigação da vida política. Além disso, na Inglaterra dos anos 1950, a revolução comportamentalista liderada por David Easton sofreu grandes resistências, em favor do que se chamou de "abordagem tradicional", mais filosófica, menos rigorosa e até certo ponto diletante (KENNY, 2004); esse mesmo "tradicionalismo" foi eleito a metodologia específica da chamada Escola Inglesa de Relações Internacionais, cujos dois maiores expoentes são Martin Wight e Hedley Bull (cf. JACKSON & SORENSEN, 2007, cap. 8).

Para os críticos da abordagem científica, a neutralidade de valores e a padronização metodológica são incompatíveis com qualquer análise efetiva do ser humano, incluindo aí a realidade política. O caráter valorativo do homem, isto é, o fato de que todas as realidades que importam são realidades avaliadas normativa e moralmente (ou, em outra palavra, subjetivamente), impede a neutralidade face aos valores e a objetividade total. Mais: como cada momento tem suas próprias preocupações e avaliações morais, um conhecimento científico de caráter anistórico, ou melhor, supra-histórico, ao estilo "lei científica", é simplesmente impossível. Além disso, as avaliações específicas de cada momento interpretam diferentemente os conceitos e as organizações sociopolíticas, de tal maneira que conceitos estáveis e constantes igualmente não são possíveis. Desse modo, os procedimentos científicos também se mostram inadequados e os procedimentos "tradicionais" - interpretação de textos filosóficos, jurídicos, literários, teológicos, somada à sensibilidade pessoal para cada situação específica - assumem seu lugar.

Disso resultam duas perspectivas teóricometodológicas mais ou menos complementares: cada elaboração política é uma solução específica para um problema político específico de um momento específico (Robin Collingwood, seguido por Quentin Skinner (2002)); a metodologia própria à Ciência Política - e, por extensão, à Teoria Política - é interpretativa (Charles Taylor, Mark Bevir (2006)). Muito do que se produz na Teoria Política contemporaneamente segue uma dessas duas orientações, quando não ambas ao mesmo tempo; é fácil perceber que elas opõe-se aos procedimentos mais próximos da Ciência Política mais empírica, isto é, "científica".

A contraposição entre as duas modalidades de teorização - Ricardo Silva (2008) denomina-os de "estilos" - pode conduzir a extremos desnecessários. Enquanto uma ênfase excessiva na busca da cientificidade - especialmente caso definida de acordo com estritos parâmetros inspirados nas Ciências Naturais, em desatenção às particularidades das Ciências Humanas e da realidade humana - pode conduzir a uma cegueira a respeito do que é específico ao ser humano, das variações históricas e locais, do caráter normativo e político das categorias utilizadas (cf. FERES JR., 2000), a ênfase excessiva nos contextos e nas interpretações pode conduzir seja a um presentismo ou a um antiquarismo - que tiram o ser humano de sua historicidade e rompem os vínculos do presente com o passado - (cf. SILVA, 2006, p. 10-13), seja a um subjetivismo que com facilidade recai no ultra-relativismo ou no irracionalismo (cf. SOKAL & BRICMONT).

Em vez de contrapor as duas modalidades de teorização, consideramos mais útil e mais racional percebê-las como dois elementos de um contínuo, que vai do mais abstrato (teoria normativa) ao mais concreto (teoria empírica). Além disso, em termos metodológicos, o rigor científico, no estilo "positivista", de fato não se opõe, nem pode opor-se, aos instrumentos intelectuais mais subjetivos, nem vice-versa (embora, evidentemente, haja momentos mais apropriados para cada um deles agir). Normatividade e empirismo, cientificidade e avaliação moral são elementos que devem alimentar-se mutuamente: as pesquisas empíricas devem orientar-se pelas preocupações morais e, ao mesmo tempo, devem permitir formulações normativas mais de acordo com cada contexto e com a realidade humana; observações bem-feitas e bem controladas devem servir de instrumentos e guias para avaliações melhor embasadas e, portanto, mais responsáveis. Os graus intermediários entre os dois pólos são, por assim dizer, infinitos; o diálogo entre ambos esses pólos é (e deve ser) constante, por serem partes necessárias do empreendimento intelectual e prático humano.

Foi em parte nesse sentido que o fundador da Sociologia, Augusto Comte, comentou que a Ciência Social deveria unir "adequadamente" a teorização e a observação empírica, em um círculo virtuoso (cf. COMTE, 1995). Aliás, comentamos acima que a organização institucional da academia estadunidense impõe a demarcação da Teoria Política em três vertentes: a normativa, a empírica e a histórica. Se no esquema que propusemos de um contínuo é possível vincular - parece-nos que de maneira útil e coerente - as teorias normativa e empírica, a referência a Comte lembra uma forma de integrar no contínuo também a teoria histórica, ao considerar que a Ciência Social, bem como a teorização social de maneira mais ampla, é histórica em sua existência e que, ao mesmo tempo, é por meio da observação histórica que obtém os seus elementos empíricos: se o ser humano é um ser social, ele também é, necessariamente, um ser histórico. Desse modo, se o contínuo teoria normativa-teoria empírica pode ser representado por meio de uma linha que une as duas extremidades, pode-se dizer que essa linha é constituída pela própria historicidade humana.

Parece claro que essa "teoria política histórica" não corresponde ao que Levin (1973) entendia por essa expressão: não se trata aqui de fazer somente uma história das idéias em um sentido fraco, ou seja, uma enumeração de alguns vários pensadores importantes, seguida da sua exegese, mas de inserir a atividade teorizante no fluxo histórico como elemento integrante da realidade sociopolítica; essa atividade corresponde às necessidades de cada contexto, ao mesmo tempo que influencia os contextos posteriores e é influenciada pelos anteriores5 5 Aliás, esses são os sentidos indicados por Terence Ball em seu artigo intitulado "Political Theory Be Historical?" (BALL, 2006). .

Evidentemente, a concepção exposta de maneira sucinta acima é uma forma de compreender a teoria política, isto é, trata-se de uma metateoria; assim como ela foi proposta, inúmeras outras também são possíveis. Essa, em particular, oferece as vantagens de permitir uma visão unificada da Teoria Política, que seja ao mesmo tempo descritiva e normativa, sendo para isso ampla o suficiente para abarcar diversas formas de entender e praticar a teorização política, mas estabelecendo também alguns critérios limitativos a fim de evitar-se alguns desvios intelectuais.

* * *

Os artigos que compõem este dossiê apresentam de maneira ampla a produção nacional - e também um pouco da internacional - na Teoria Política, em suas vertentes mais historicistas e/ou normativas; sua composição reflete algumas características do que se produz nacionalmente na área. Em primeiro lugar, a preocupação em dialogar com as reflexões internacionais, algumas delas clássicas e outras extremamente contemporâneas. Todavia, essas categorias - "clássico" e "contemporâneo" - não nos devem causar desorientação, pois referem-se aos pensadores mobilizados para reflexão pelos autores dos artigos e não ao conteúdo das reflexões em si: dessa forma, surge a segunda característica, que é a preocupação com o presente, no sentido de que a Teoria Política desenvolvida no Brasil procura oferecer elementos para compreender a realidade sociopolítica nacional e mundial, mesmo que por via indireta. Em terceiro lugar, a leitura dos artigos evidencia o quanto as questões teóricas são tratadas de maneira próxima às "metodológicas", o que, na área de Teoria Política, muitas vezes confunde-se com as questões metateóricas.

O primeiro artigo é de Javier Amadeo, que faz um balanço de dois dos principais movimentos intelectuais dos últimos 40 anos e que contribuíram poderosamente para a renovação da Teoria Política; nos termos usados por Amadeo, trata-se da teoria normativa - representada no presente contexto pela obra de John Rawls - e da história do pensamento político - representada pela Escola de Cambridge e, em particular, por Quentin Skinner e John Pocock. Após examinar as contribuições e os limites de cada uma dessas abordagens, o autor observa que a atual pujança da Teoria Política pode conduzi-la à sua derrocada, em virtude da sua excessiva profissionalização - que significa, em termos institucionais, a especialização cada vez mais pronunciada dos debates - e de uma certa tendência a concentrar-se em aspectos metodológicos (e/ou metateóricos), abandonando-se os problemas substantivos (e, portanto, concretos).

Em seguida, Ricardo Silva aborda as relações possíveis entre os conceitos de "república" e "democracia". A referência do autor é a linha de investigação que, sob o nome de "republicanismo neo-romano", abriga pensadores como Quentin Skinner e Phillip Pettit. A questão específica é se o ideal neo-romano de república, calcado na idéia de não-dominação, é compatível com o ideal democrático, entendido este como o primado da vontade popular e a busca da maior participação popular possível nos negócios públicos. Para Silva, o republicanismo neo-romano enfrenta bem as eventuais críticas sofridas - como a do elitismo antidemocrático e a da despolitização -, adequando-se à realidade sociopolítica contemporânea ao evitar o despotismo da maioria e também garantir espaços de manifestação popular e de representação institucional.

Tema semelhante é abordado por Raul Magalhães, que aliás também recupera pensadores antigos - em particular Aristóteles e, mais ainda, Maquiavel. O autor examina como é que Aristóteles e Maquiavel relacionaram ordem e conflito sociopolítico, indicando em particular que as obras desses pensadores caracterizam-se por uma pronunciada ambigüidade: os conflitos são vistos negativamente - representam a possibilidade de ruptura da ordem e, portanto, da associação política -, mas também positivamente - como produtores de mudanças que conduzirão a ordenamentos melhores. Magalhães identifica em um pressuposto filosófico comum a ambos os autores a chave para compreender essa ambigüidade - a saber, a idéia de que o tempo é cíclico.

Raquel Kritsch e André Luiz da Silva abordam o debate realizado entre dois dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos, John Rawls e Jürgen Habermas, a propósito do conceito de "razão pública". O que está em questão são os fundamentos éticos e políticos para a tomada de decisões públicas, ou seja, as condições em que as decisões são aceitas pelo conjunto da sociedade como legítimas. Conforme indicam Kritsch e Silva, enquanto para Rawls as decisões devem ser aceitas porque são moralmente neutras, para Habermas é porque elas são racionalmente justificáveis que se tornam legítimas.

Na seqüência, Tiago Losso expõe o pensamento de Charles Taylor, especialmente em seus fundamentos filosóficos. O argumento de Losso indica que, a partir de uma concepção antinaturalista das Ciências Humanas - isto é, oposta, ou melhor, contrária às abordagens cientificizantes das Ciências Sociais -, Taylor elabora uma metodologia em que as intenções, as motivações subjetivas e as preocupações éticas têm centralidade analítica. Dessa forma, ele é um nome referencial para o que Losso chama de interpretative turne, de modo mais específico, para a abordagem interpretativista na Ciência Política.

Fechando o dossiê, traduzimos um artigo de Mark Bevir a respeito da genealogia da governança entre a modernidade e a pós-modernidade. Autor prolífico, Bevir tem publicado inúmeras investigações metodológicas, teóricas, filosóficas e empíricas nas últimas década, contribuindo significativamente para a renovação da História das Idéias e da Ciência Política. Também utilizando uma metodologia interpretativista, Bevir expõe em traços gerais as mudanças conceituais por que passaram a democracia, a governança e a accountability, de princípios do século XX aos dias atuais.

Como se vê, os artigos do presente dossiê, embora longe de esgotar a produção atual na área de Teoria Política, oferecem um panorama representativo do que melhor se faz. Agradecemos imensamente à Revista de Sociologia e Política a oportunidade de trazer a lume tais artigos e desejamos uma boa leitura a todos os interessados.

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Recebido em 2 de agosto de 2010.

Aprovado em 25 de agosto de 2010.

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  • 1
    No caso latino-americano, podemos incluir sem dúvida as teses cepalinas e dependentistas, com Celso Furtado ocupando um lugar importante aí.
  • 2
    Procuramos desenvolver esses aspectos em Lacerda (2009).
  • 3
    Para uma exposição histórica sobre as disputas entre as "duas culturas", especialmente no ambiente inglês, cf. Cohen (2001).
  • 4
    Essa oposição pode ser aproximada da tradicional clivagem entre investigações nomotéticas e idiográficas. Entretanto, como se verá, suas diferenças são grandes o suficiente para evitarmos sobrepô-las. Sobre a distinção entre pesquisas nomotéticas e idiográficas, cf. Levine (1997, p. 180).
  • 5
    Aliás, esses são os sentidos indicados por Terence Ball em seu artigo intitulado "Political Theory Be Historical?" (BALL, 2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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