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Considerações acerca da noção de razão pública no debate Rawls-Habermas

Des considérations autour de la notion de raison publique dans le débat Rawls-Habermas

Considerations on the notion of public reason in the Rawls-Habermas debate

Resumos

Uma das diferenças principais entre o liberalismo político e a teoria da ação comunicativa repousa na fundamentação oferecida por seus formuladores da neutralidade de procedimento para alcançar princípios que devam reger as práticas e instituições políticas diante da pluralidade das doutrinas abrangentes em sociedades marcadas por uma grande heterogeneidade social e cultural. Tal distinção na fundamentação aparece com clareza na noção de razão pública, tema central do famoso debate no qual Rawls lança mão da idéia de overllaping consensus para explicitar uma concepção política da justiça que possa ser aceita pelas diversas doutrinas abrangentes de uma sociedade democrática bem-ordenada. Já o procedimento ideal de Habermas é o da deliberação, que pressupõe uma associação que se julga capaz de regular de um modo imparcial as condições de convivência numa sociedade, fazendo uso, para isso, de uma racionalidade procedimental para a justificação moral. Trata-se assim, aqui, de elucidar e debater duas fundamentações distintas (neutralidade de objetivo e princípio racionalmente justificável) da noção de razão pública.

Rawls; Habermas; pluralismo; democracia; deliberação; razão pública


Une des principales différences entre le libéralisme politique et la théorie de l'action communicative repose sur la base théorique offerte par leurs "formulateurs" de la neutralité de procédure, pour atteindre des principes qui doivent régir les pratiques et les institutions politiques devant la pluralité des vastes doctrines dans des sociétés marquées par une grande hétérogénéité sociale et culturelle. cette distinction dans la base théorique apparaît clairement avec la notion de raison publique, principal sujet dans le célèbre débat où Rawls ulitise l'idée de overlapping consensus pour donner des details sur une conception politique de la justice qui puisse être acceptée par les nombreuses et vastes doctrines d'une société démocratique bien ordonnée. Toutefois, la procédure idéale de Habermas, c'est celle de la délibération, qui présuppose une association qui se croit capable de diriger de façon impartiale les conditions des relations dans une société, en utilisant, pour cela, une rationalité procédurale pour la justificative morale. Il s'agit donc, ici, d'élucider et débattre deux bases théoriques distinguées (la neutralité d'objectif et le principe rationnellement justifiable), de la notion de raison publique.

Rawls; Habermas; pluralisme; démocratie; délibération; raison publique


One of the major differences between political liberalism and the theory of communicative action lies in the fundamentation offered by those who have formulated them regarding the neutrality of the procedures to be used in reaching the principles that should guide institutional practices and policies, in the face of the plurality of doctrines in societies marked by great social and cultural heterogeneity. These distinct bases appear quite clearly in the notion of public reason, a central theme of the famous debate in which Rawls advances his idea of "overlapping consensus" in order to produce a political conception of justice acceptable to the different doctrines that co-existe within an ordered democratic society. In turn, Habermas' ideal procedure is deliberation, which presumes associative forms that are capable of impartial regulation of social conditions of conviviality, and for these purposes makes use of a procedural rationality for moral justification. Thus, our purpose here is to elucidate and debate two distinct bases (objective neutrality and rationally justifiable principle) for the notion of public reason.

Rawls; Habermas; Pluralism; Democracy; Deliberation; Public Reason


DOSSIÊ "TEORIA POLÍTICA ENTRE NORMATIVIDADE E HISTÓRIA"

Considerações acerca da noção de razão pública no debate Rawls-Habermas1 1 A versão inicial deste artigo foi apresentada em forma de paper no 34º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em Caxambu, entre 25 e 29 de outubro de 2010. Agradecemos a Denílson Werle a leitura atenta e os profícuos comentários feitos ao texto na ocasião. Este trabalho vincula-se ao Projeto de Pesquisa "Direitos humanos universais e Estados nacionais: fundamentos históricos e problemas teóricos II", financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido junto ao Grupo "Estudos em Teoria Política" (GETEPOL-CNPq).

Considerations on the notion of public reason in the Rawls-Habermas debate

Des considérations autour de la notion de raison publique dans le débat Rawls-Habermas

Raquel Kritsch; André Luiz da Silva

RESUMO

Uma das diferenças principais entre o liberalismo político e a teoria da ação comunicativa repousa na fundamentação oferecida por seus formuladores da neutralidade de procedimento para alcançar princípios que devam reger as práticas e instituições políticas diante da pluralidade das doutrinas abrangentes em sociedades marcadas por uma grande heterogeneidade social e cultural. Tal distinção na fundamentação aparece com clareza na noção de razão pública, tema central do famoso debate no qual Rawls lança mão da idéia de overllaping consensus para explicitar uma concepção política da justiça que possa ser aceita pelas diversas doutrinas abrangentes de uma sociedade democrática bem-ordenada. Já o procedimento ideal de Habermas é o da deliberação, que pressupõe uma associação que se julga capaz de regular de um modo imparcial as condições de convivência numa sociedade, fazendo uso, para isso, de uma racionalidade procedimental para a justificação moral. Trata-se assim, aqui, de elucidar e debater duas fundamentações distintas (neutralidade de objetivo e princípio racionalmente justificável) da noção de razão pública.

Palavras-chave: Rawls; Habermas; pluralismo; democracia; deliberação; razão pública.

ABSTRACT

One of the major differences between political liberalism and the theory of communicative action lies in the fundamentation offered by those who have formulated them regarding the neutrality of the procedures to be used in reaching the principles that should guide institutional practices and policies, in the face of the plurality of doctrines in societies marked by great social and cultural heterogeneity. These distinct bases appear quite clearly in the notion of public reason, a central theme of the famous debate in which Rawls advances his idea of "overlapping consensus" in order to produce a political conception of justice acceptable to the different doctrines that co-existe within an ordered democratic society. In turn, Habermas' ideal procedure is deliberation, which presumes associative forms that are capable of impartial regulation of social conditions of conviviality, and for these purposes makes use of a procedural rationality for moral justification. Thus, our purpose here is to elucidate and debate two distinct bases (objective neutrality and rationally justifiable principle) for the notion of public reason.

Keywords: Rawls; Habermas; Pluralism; Democracy; Deliberation; Public Reason.

RESUME

Une des principales différences entre le libéralisme politique et la théorie de l'action communicative repose sur la base théorique offerte par leurs "formulateurs" de la neutralité de procédure, pour atteindre des principes qui doivent régir les pratiques et les institutions politiques devant la pluralité des vastes doctrines dans des sociétés marquées par une grande hétérogénéité sociale et culturelle. cette distinction dans la base théorique apparaît clairement avec la notion de raison publique, principal sujet dans le célèbre débat où Rawls ulitise l'idée de overlapping consensus pour donner des details sur une conception politique de la justice qui puisse être acceptée par les nombreuses et vastes doctrines d'une société démocratique bien ordonnée. Toutefois, la procédure idéale de Habermas, c'est celle de la délibération, qui présuppose une association qui se croit capable de diriger de façon impartiale les conditions des relations dans une société, en utilisant, pour cela, une rationalité procédurale pour la justificative morale. Il s'agit donc, ici, d'élucider et débattre deux bases théoriques distinguées (la neutralité d'objectif et le principe rationnellement justifiable), de la notion de raison publique.

Mots-clés: Rawls; Habermas; pluralisme; démocratie; délibération; raison publique.

I. INTRODUÇÃO

Em 1995, John Rawls publicou Reply to Habermas, em resposta à leitura que o filósofo alemão Jürgen Habermas havia feito do liberalismo político em Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John Rawls' Political Liberalism (1995), texto no qual Habermas critica a fundamentação oferecida por Rawls para a neutralidade de objetivo em seu modelo procedimental. Apesar das diferenças marcantes entre ambos, é possível dizer que os dois autores marcam o debate da teoria política contemporânea que deseja tratar o tema da democracia, pois é central para ambos a exigência de uma racionalidade pública indispensável ao processo democrático.

Para levar a cabo essa tarefa, Rawls e Habermas vão procurar resgatar aspectos da concepção kantiana de razão prática, a fim de sustentar a necessidade de uma autonomia intrínseca à publicidade e à cultura política nas sociedades atuais. O resultado destes kantismos é a própria concepção de democracia, que marca a teoria política contemporânea. Trata-se de uma concepção de razão crítica mais adepta aos modelos normativos mais profundos do que à mera convenção, que buscam encontrar os caminhos para a coexistência da pluralidade atual, evitando tanto o paternalismo quanto o utilitarismo. Estamos diante, portanto, de duas concepções de ética deontológica para a construção de modelos que tenham por base a autonomia.

O objetivo deste artigo é, assim, elucidar duas fundamentações distintas - neutralidade de objetivo e princípio racionalmente justificável - da noção de razão pública, com base no debate travado entre os dois autores na década de 1990, buscando debatê-las a partir dos textos que caracterizam as bases teóricas para a argumentação de cada um dos autores. Isso porque as dificuldades de compreender os contrapontos propostos por essas duas complexas teorias tornam-se menos árduas à luz do entendimento daquilo que é central na teoria de cada um.

Para tanto, este artigo inicia apontando a defesa de Rawls de uma explicação que se limite ao político, em contraposição à concepção de Habermas que o americano caracteriza como abrangente (II); segue apontando como Rawls conecta seus três tipos de justificação com dois tipos de consenso (III); continua com a elucidação da resposta de Rawls às acusações feitas por Habermas de que os direitos liberais dos modernos tinham características a priori que rebaixariam o processo democrático a um status inferior e de que a autonomia política ficaria no nível da posição original e não se desdobraria numa situação não hipotética (IV); trata também da resposta de Rawls à objeção de que a justiça como equidade fosse substantiva e não procedimental (V); procura mostrar porque Habermas, com sua defesa de uma política pós-metafísica, não pode aceitar as respostas de Rawls (VI); elucida ainda a concepção de Habermas de que seja contra-intuitivo que uma concepção pública de justiça deva obter sua autoridade moral de razões não públicas (VII); como conclusão, o artigo resgata os principais aspectos do debate com intuito de explicitar como cada autor defende um uso público da razão, ou, no caso de Rawls, uma aplicação da razão pública (VIII e IX).

II. A RAZÃO PÚBLICA E O LIMITE AO POLÍTICO: UMA PRIMEIRA RESPOSTA DE RAWLS ÀS CRÍTICAS DE HABERMAS

Depois de ler as duras críticas de Jürgen Habermas à fundamentação de um dos elementos centrais de sua teoria da justiça, a noção de neutralidade de procedimento (neutrality of aim), John Rawls inicia sua réplica ao pensador alemão apontando duas diferenças principais entre ambos: a primeira consiste em dizer que a posição de Habermas é abrangente, enquanto a sua constituiria uma explicação que se limita ao político. Esta diferença é, segundo Rawls, a mais fundamental, pois coloca as bases e os limites da segunda diferença, que se refere aos mecanismos de representação, à situação discursiva ideal e à posição original.

Para o americano, o liberalismo político não se baseia em nenhuma fundamentação fora do domínio político. A justiça como eqüidade, diz Rawls, produz uma concepção política liberal de justiça para um regime democrático que pode ser endossada por todas as doutrinas abrangentes razoáveis existentes em uma democracia por ela regulada. O liberalismo político não diz respeito a qualquer doutrina religiosa, metafísica ou moral; e assim tem de ser: segundo ele, a filosofia política deve ser capaz de provar seus argumentos sem invocar quaisquer doutrinas abrangentes2 2 "A filosofia política procede à parte de todas essas doutrinas, e se apresenta em seus próprios termos como independente [ freestanding]" (RAWLS, 1996, p. 623). .

Segundo Rawls, são três os aspectos que caracterizam o liberalismo político como uma concepção tão somente política de justiça: ele se aplica, em primeiro lugar, à estrutura básica da sociedade; pode ser formulado independentemente de qualquer doutrina abrangente específica; e suas idéias fundamentais são familiares a partir da cultura política de uma sociedade democrática e de suas tradições de interpretação da constituição e das leis básicas. Já a posição de Habermas, diferentemente, segundo Rawls, está assentada numa doutrina abrangente, e o objetivo da teoria da ação comunicativa é fornecer uma explicação geral do significado, referência e verdade ou validade tanto para a razão teórica quanto para as várias formas de razão prática; ou seja, ela apresenta ao mesmo tempo uma defesa da razão teórica e da razão prática. Além disso, prossegue Rawls, Habermas critica as visões metafísicas e religiosas, as quais vê como inúteis e sem mérito em vista de sua análise filosófica dos pressupostos do discurso racional e da ação comunicativa, o que apareceria com clareza em Facticidade e validade: "A teoria do discurso tenta reconstruir esse auto-entendimento (o de uma consciência moral universalista e das instituições liberais do Estado democrático) de um modo que autoriza seu significado normativo intrínseco e sua lógica a resistir tanto a reduções científicas como a assimilações estéticas. [...] Depois de um século que mais do que qualquer outro nos ensinou o horror da desrazão existente, os últimos vestígios de uma confiança essencialista na razão são destruídos. Todavia a modernidade, agora consciente de suas contingências, depende mais do que nunca de uma razão procedimental. Ou seja, de uma razão que se coloque sob julgamento. A crítica da razão é sua própria obra: esse duplo significado kantiano deve-se à percepção (insight) radicalmente anti-platônica de que não há nenhuma realidade superior nem inferior à qual poderíamos apelar - nós que já nos encontramos situados em nossas formas lingüisticamente estruturadas de vida" (HABERMAS, 1998, p. 80).

Para Rawls, uma diferença fundamental entre esta compreensão de Habermas e o liberalismo político está no fato de que este último não vai além de uma concepção política independente, deixando aos cidadãos e às associações da sociedade civil a tarefa de tornar tal concepção política compatível com suas doutrinas abrangentes, as quais, enquanto forem politicamente razoáveis, não serão, de forma alguma, negadas ou questionadas pelo liberalismo político. Para Rawls, o fato de Habermas assumir uma posição diferente sobre esse ponto básico explica-se por sua adesão a uma visão abrangente, o que fica evidente quando, por exemplo, o alemão rejeita o que chama de "idéia platônica essencialista de razão" e afirma que ela deva ser substituída por uma razão procedimental que se coloca sob julgamento e é, ao mesmo tempo, o juiz de sua própria crítica. Numa nota, Rawls diz que "negar certas doutrinas metafísicas é afirmar outra doutrina do mesmo tipo" (RAWLS, 1996, p. 664).

Esses comentários referem-se aos dois últimos parágrafos de Reconciliation through the Public Use of Reason, nos quais Habermas chamava a atenção para a idéia de que sua teoria procedimental é, ao mesmo tempo, mais e menos modesta do que a de Rawls. Mais modesta porque deixa as questões de substância para serem decididas pelo resultado de discussões livres e reais, nas quais se engajam, diferentemente das criaturas artificiais da posição original, participantes livres e racionais. E menos modesta porque não utiliza o mesmo método de esquiva (method of avoidance) do colega americano. Naquele texto, Habermas propunha limitar a filosofia moral à elucidação do ponto de vista moral e ao procedimento de legitimação democrática, isto é, à análise das condições dos discursos e negociações racionais.

Para Habermas, como se pode ler nos últimos parágrafos do texto, o liberalismo político assumiria uma tarefa mais ambiciosa por esperar formular uma concepção política de justiça para a estrutura básica de uma democracia envolvendo concepções substantivas fundamentais que levantam questões maiores, as quais só o discurso verdadeiro de participantes reais poderia decidir. Já a tarefa mais modesta do liberalismo político estaria no fato de que, segundo o filósofo alemão, ele pretende ser somente uma concepção política. No entanto, essa tarefa mais modesta poderia ser negada, pois, segundo Habermas, embora Rawls afirme que seu liberalismo político pretende ser apenas uma concepção política de justiça, a concepção de pessoa do liberalismo político iria além da filosofia política, de modo que a concepção rawlsiana de justiça política não seria de fato independente, tal como reivindica o americano.

Rawls, no entanto, nega que o construtivismo político envolva as questões filosóficas da racionalidade e da verdade, expressando uma concepção de razão a priori e metafísica. Segundo o autor, no liberalismo político, a concepção filosófica de pessoa é substituída pela concepção política dos cidadãos como livres e iguais - não seria necessário, em seu modelo, dizer como os homens são, e sim como estão. A tarefa do construtivismo político é, portanto, conectar os princípios de justiça com a concepção de cidadãos razoáveis e racionais.

Rawls esclarece ainda que a posição original constitui um dispositivo de representação limitado ao político, que responde à pergunta sobre quais são os princípios mais razoáveis de justiça política para uma democracia constitucional cujos cidadãos são vistos como livres e iguais, razoáveis e racionais; logo, não caberia usar o modelo para fazer apontamentos valorativos. Já a teoria da ação comunicativa oferece uma explicação da verdade e da validade dos julgamentos da razão teórica e da razão prática quando produz o dispositivo analítico da situação de discurso ideal. Se todas as condições requeridas forem realizadas por todos os participantes ativos, argumenta o americano, o consenso racional entre eles serviria como uma garantia para a verdade ou validade.

Quanto à segunda diferença, Rawls propõe as seguintes questões para pensar a distinção fundamental entre as duas teorias: de que ponto de vista devem ser discutidos os dois dispositivos de representação? E de que ponto de vista dá-se o debate entre eles? Para Rawls, deve-se atentar para o lugar onde estamos e de onde falamos; e a resposta que ele aponta é a de que todas as discussões se dão do ponto de vista de cidadãos inseridos na cultura da sociedade civil, que Habermas chama de esfera pública. Neste lugar, os cidadãos discutem a formulação da justiça como eqüidade; debatem, por exemplo, os detalhes da construção da posição original e os princípios selecionados. Assim também são avaliadas as afirmações do discurso ideal e da concepção procedimental das instituições democráticas. Toda essa cultura de fundo contém doutrinas abrangentes de todos os tipos que são debatidas umas contra as outras sempre sem conclusão; neste sentido, ela não é uma cultura do publicamente político, mas da vida cotidiana. Esse ponto de vista inclui todos os cidadãos: o especialista não tem mais autoridade do que outros cidadãos; todos recorrem à autoridade da razão humana presente nos membros da sociedade.3 3 Assim, o argumento no liberalismo político se limita ao político, o que não ocorre na ética do discurso, onde, segundo Rawls, o argumento se ocupa não apenas da normatividade, mas também de valores.

A justiça como eqüidade, ao se dirigir a esta audiência de cidadãos na sociedade civil, expõe várias concepções políticas fundamentais - sociedade como sistema de cooperação, cidadãos livres e iguais e sociedade bem-ordenada - e as combina em uma concepção política de justiça razoável para a estrutura básica de uma democracia constitucional. O objetivo primário é ser entendido pela audiência na sociedade civil; e o critério geral do razoável é o equilíbrio reflexivo geral e amplo. Já na teoria de Habermas o teste de verdade ou de validade moral é a aceitação inteiramente racional na situação de discurso ideal. Rawls assevera que o equilíbrio reflexivo assemelha-se ao teste do discurso ideal, no sentido de que é um ponto que nunca se pode alcançar em definitivo: é possível aproximar-se dele quando, por meio da discussão, os princípios e julgamentos pareçam mais razoáveis e sejam considerados mais bem-fundamentados do que eram antes.

III. A CONCEPÇÃO INDEPENDENTE (FREESTANDING) DO CONSENSO SOBREPOSTO E A NEUTRALIDADE DO RAZOÁVEL: AS BASES DO ARGUMENTO RAWLSIANO

No que se refere aos temas acima, na segunda seção de seu texto contra Rawls, Habermas havia levantado duas questões. Primeiro, se as doutrinas relacionadas ao consenso reforçam e aprofundam mais a justificação de uma concepção independente (freestanding) ou se são apenas uma condição da estabilidade social4 4 Rawls (1995, p. 89), interpretando o filósofo alemão, acredita que, na verdade, Habermas pergunta: "Qual é a influência das doutrinas dentro de um consenso sobreposto sobre a justificação da concepção política, uma vez que os cidadãos vejam essa concepção como razoável e independente?". . Segundo, como o liberalismo político usa o termo "razoável": se ele expressa a validade de julgamentos políticos e morais ou simplesmente uma atitude reflexiva de tolerância esclarecida.

Segundo Rawls, as duas questões levantadas pelo alemão estão intimamente relacionadas: a resposta a ambas está no modo como o liberalismo político especifica três tipos diferentes de justificação e dois tipos de consenso, e depois os conecta com as idéias de estabilidade e de legitimidade. Os três tipos de justificação são: I) justificação pro tanto da concepção política. Nesta, só se leva em conta valores políticos, de modo que sozinhos eles dêem uma resposta razoável por meio da razão pública no que toca aos princípios constitucionais e à justiça básica5 5 Como veremos, Habermas acusará um problema importante neste tipo de justificação presente na concepção rawlsiana de razão pública: para o filósofo alemão, Rawls não compreendeu que o entendimento sobre a concepção de justiça depende de que os cidadãos assumam a mesma perspectiva. ; II) justificação plena dessa concepção por uma pessoa individual na sociedade. Nesta, o cidadão aceita a concepção política que pode ser justificada de algum modo em sua doutrina abrangente como verdadeira ou razoável; III) justificação pública da concepção política pela sociedade política. Esta ocorre quando todos os membros razoáveis da sociedade política fazem uma justificação da concepção política partilhada, embutindo-a em suas várias visões abrangentes razoáveis. Os cidadãos levam em conta uns aos outros como portadores de doutrinas abrangentes razoáveis, sendo que essa consideração mútua molda a qualidade moral da cultura pública da sociedade política.

Rawls passa então a distinguir os dois tipos de consenso. Uma idéia de consenso vem da política cotidiana, com o objetivo de formar um acordo ou reunir interesses, o que é feito pela habilidade do político. Outra idéia diferente de consenso no liberalismo político ("consenso sobreposto razoável") é a de que, primeiro, a concepção política de justiça é elaborada como uma visão independente, quer dizer, sem apelar a doutrinas abrangentes. Ela não põe obstáculos para que as várias doutrinas razoáveis endossem a concepção política; ou seja, não propõe algo com que nem todas as doutrinas razoáveis poderiam concordar e, desse modo, ela pode ser sustentada pelas doutrinas abrangentes razoáveis. Rawls (1996, p. 93) afirma ainda que, se a concepção política cumpre essas condições, espera-se que ela tenha capacidade de moldar, de dar forma a essas doutrinas abrangentes em direção a si própria.

Segundo Rawls, numa sociedade democrática, mostrar que a estabilidade (pelas razões corretas) é possível também faz parte da justificação pública, pois os cidadãos, quando podem ver a possibilidade de um consenso sobreposto a respeito da concepção política, podem também verificar se há razões suficientes para propor a justiça como eqüidade, sem rejeitar seus compromissos com suas doutrinas abrangentes - ponto que, para Rawls, a doutrina abrangente de Habermas viola6 6 Cabe lembrar a exposição em dois níveis que Rawls faz da justiça como eqüidade: "In the first stage justice as fairness should be presented as a free-standing political conception that articulates the very great values applicable to the special domain of the political, as marked out by the basic structure of society. The second stage consists of an account of the stability of justice as fairness, that is, its capacity to generate its own support, in view of the content of its principles and ideals as formulated in the first stage. In this second stage the idea of an overlapping consensus is introduced to explain how, given the plurality of conflicting comprehensive religious, philosophical, and moral doctrines always found in a democratic society - the kind of society that justice as fairness itself enjoins - free institutions may gain the allegiance needed to endure over time" (RALWS, 1989, p. 474). ["No primeiro estágio, a justiça como eqüidade deve ser apresentada como uma concepção política independente que articula os próprios grandes valores aplicáveis ao domínio especial do político, conforme delimitado pela estrutura básica da sociedade. O segundo estágio consiste em uma avaliação da estabilidade da justiça como eqüidade, ou seja, sua capacidade de gerar seu próprio apoio, tendo em vista o conteúdo de seus princípios e ideais conforme formulados no primeiro estágio. Nesse segundo estágio a idéia de um consenso sobreposto é introduzida para explicar como, dada a pluralidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes e conflitantes sempre encontrada em uma sociedade democrática - o tipo de sociedade que a justiça como eqüidade impõe-se -, as instituições livres podem obter o assentimento necessário para perdurar ao longo do tempo" (nota dos revisores).] .

As condições para a legitimidade democrática são preenchidas, no liberalismo político, explica Rawls, quando se pode afirmar uma concepção de justiça como base das razões compartilhadas pelos cidadãos, supondo que todos também possam afirmar esta mesma base. A partir desse consenso razoável, pode-se atingir a base mais profunda e mais razoável de unidade social democrática moderna, o que produz estabilidade por meio das razões corretas7 7 Rawls aponta três razões para justificar sua defesa do consenso sobreposto razoável como a melhor base explicativa da unidade social nas democracias atuais: em primeiro lugar, porque a estrutura básica da sociedade é efetivamente regulada pela concepção política mais razoável de justiça; em segundo lugar, porque essa concepção política de justiça é endossada por um consenso sobreposto constituído por todas as doutrinas abrangentes razoáveis na sociedade, e estas estão em maioria duradoura em relação àquelas que rejeitam essa concepção; em terceiro lugar, porque as discussões políticas públicas, quando estão em jogo princípios constitucionais e questões de justiça básica, são sempre, ou quase sempre, decididas razoavelmente com base nas razões especificadas pela concepção política mais razoável de justiça, ou por uma família razoável dessas concepções. . Segundo Rawls, essa base de unidade social é a mais razoável, pois a concepção política de justiça é a mais razoável e é endossada por todas as doutrinas abrangentes. Não obstante, essa base de unidade social é também a mais profunda, pois as doutrinas abrangentes, que endossam essa concepção política, representam aquilo que os cidadãos consideram as suas condições mais profundas. Dessa maneira, tem-se a estabilidade por razões corretas, que não dependem de um equilíbrio de forças em circunstâncias contingentes e possivelmente flutuantes, de modo que a estabilidade seja alcançada em conseqüência da correta aplicação da razão pública.

Rawls aponta também para a necessidade do conhecimento público de um consenso sobreposto razoável, pois assim os cidadãos podem embutir a concepção política em suas doutrinas abrangentes, de modo que possa ser por todos levada a cabo a justificação pública da concepção política de justiça. Espera-se então que os cidadãos julguem que os valores políticos devam receber maior prioridade do que quaisquer valores não-políticos que possam conflitar com eles.

Para Rawls, não é irrealista esperar por isso porque, primeiro, aqueles que expressam uma doutrina abrangente, numa sociedade continuamente livre, perguntam-se em que termos políticos eles estão prontos a viver com outras doutrinas desse tipo; e, segundo, porque cidadãos razoáveis entendem que essa idéia aplica-se à estrutura geral da autoridade política: eles sabem que, na vida política, raramente pode-se esperar a unanimidade sobre uma questão básica, e por isso uma constituição democrática deve incluir procedimentos de aprovação por maioria absoluta ou relativa para tomada de decisões. Segundo Rawls, os cidadãos reconhecem a distinção entre aceitar como justa e legítima uma constituição com seus procedimentos para eleições e maioria, e aceitar como legítimos, mesmo quando não-justos, estatutos ou decisões em uma questão de política particular8 8 Rawls dá o exemplo dos quacres, que não vão à guerra mas não pensam que a possibilidade de um povo apoiar a ida à guerra seja razão suficiente para opor-se ao governo democrático. Os valores políticos podem ser primordiais na sustentação do próprio sistema constitucional; essa sustentação pode ser dada mesmo por doutrinas religiosas, ainda que decisões particulares possam ser contestadas pela desobediência civil ou recusadas por objeções de consciência. .

Respondida a primeira pergunta de Habermas - se a idéia de um consenso sobreposto contribui para a justificação da concepção política ou se ela simplesmente expõe uma condição necessária da estabilidade social -, Rawls passa a discutir, a partir da idéia de justificação pública, a segunda pergunta: o liberalismo político usa o termo "razoável" para expressar a verdade ou validade de julgamentos morais, ou simplesmente para expressar uma atitude reflexiva em relação à tolerância? A resposta de Rawls é que o liberalismo político não usa o conceito de "verdade moral" aplicado aos seus próprios julgamentos políticos. A idéia do razoável, que expressa também uma atitude reflexiva em relação à tolerância, é, segundo o americano, suficiente, e o uso do conceito de verdade é deixado às doutrinas abrangentes. Passemos então aos termos do segundo grande debate.

IV. LIBERDADE DOS ANTIGOS E LIBERDADE DOS MODERNOS NO MODELO DE RAWLS: O DEBATE EM TORNO DA AUTONOMIA

Em Reconciliation through the Public Use of Reason, pode-se ler que Habermas sustentou suas objeções, entre outras coisas, a partir da idéia de que Rawls derivaria as duas classes de direitos e liberdades, conhecidas como "liberdade dos antigos" e "liberdade dos modernos", da mesma raiz. Isso se evidenciaria, segundo Habermas, no fato de que os dois tipos de liberdade aparecem no primeiro princípio de justiça. O que Habermas pensa, escreve Rawls em resposta, é que, pelo fato de as duas liberdades terem a mesma raiz, as liberdades dos modernos não poderiam ser impostas como restrições externas ao processo político de auto-determinação dos cidadãos9 9 Habermas (1998, p. 67) afirma que há uma "fronteira rígida entre a identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. Segundo Rawls, essa fronteira é estabelecida pelos direitos liberais básicos que restringem a auto-legislação democrática, e com ela a esfera do político, desde o início, ou seja, antes de qualquer formação de vontade política (HABERMAS,1998, p. 67). .

A leitura de Habermas entende que há dois estágios da concepção política de justiça como eqüidade: um na posição original para escolha dos princípios; e outro na aplicação desses princípios às condições reais da vida política. Por isso, Habermas sustenta que, no modelo de Rawls, os direitos liberais dos modernos têm características a priori que rebaixariam o processo democrático a um status inferior. A autonomia política ficaria, segundo esta raciocínio de Habermas, no nível da posição original e não se desdobraria numa situação não-hipotética. "Pois quanto mais alto é levantado o véu de ignorância e quanto mais os próprios cidadãos de Rawls assumem carne e ossos reais, mais profundamente eles se vêem sujeitos a princípios e normas que foram antecipados na teoria e já foram institucionalizados fora de seu controle" (HABERMAS, 1996, p. 66).

Rawls discute dois pontos dessa passagem. Primeiro, diz que a seqüência de quatro estágios não descreve nem um processo político real, nem um processo puramente teórico, mas constitui um quadro de pensamento que deve ser usado na aplicação de princípios, esboçando que tipos de norma e de informação deverão orientar os nossos julgamentos políticos da justiça, dependendo do tema e do contexto10 10 Os estágios são: I) posição original, na qual são selecionados os princípios de justiça; II) convenção constitucional, ocasião em que são selecionadas as regras constitucionais à luz dos princípios de justiça; III) legisladores, momento no qual são promulgadas leis conforme a constituição autoriza; IV) juízes, estágio em que são interpretadas a constituição e as leis (cf. RAWLS, 1971, p. 211). . Quando os cidadãos, em cargos políticos ou na sociedade civil, usam essa estrutura, propõe Rawls, eles não estão sujeitos a princípios de um filósofo político, os quais foram institucionalizados fora de seu controle. Muito pelo contrário: as instituições desse tipo são obras de gerações passadas e são avaliadas quando os cidadãos envelhecem e agem da mesma forma que as outras gerações. A concepção de justiça não pode ser fixada de uma vez por todas, pois ela, como qualquer concepção, está sempre sujeita a ser verificada - e, se necessário, reformulada - por julgamentos reflexivos ponderados.

O outro aspecto da objeção de Habermas formula uma pergunta sobre o significado da autonomia política e como ela realiza-se: "Desse modo, a teoria priva os cidadãos de muitas percepções (insights) que eles teriam de assimilar novamente a cada geração. Da perspectiva da teoria da justiça, o ato de fundar a constituição democrática não pode ser repetido sob as condições constitucionais de uma sociedade justa já constituída, e o processo de realização do sistema de direitos básicos não pode ser assegurado em bases permanentes. Não é possível aos cidadãos experimentar esse processo como aberto e incompleto, como as circunstâncias históricas cambiantes não obstante exigem. Eles não podem reavivar as brasas democráticas radicais da posição original na vida cívica de sua sociedade, pois de sua perspectiva todos os discursos essenciais de legitimação já ocorreram na teoria; e eles encontram os resultados da teoria já sedimentados na constituição. Porque os cidadãos não podem conceber a constituição como um projeto, o uso público da razão não tem realmente o significado de um exercício presente de autonomia política, mas meramente promove a preservação não-violenta da estabilidade política" (idem, p. 67).

A essa crítica do alemão Rawls responde que, no liberalismo político, a autonomia é entendida como autonomia política, e não como autonomia moral. É certo que, em Uma teoria da Justiça, Rawls fazia menção ao ideal kantiano de pessoa livre e igual entendida como fim em si mesmo (cf. §40); mas a valorização da autonomia, inicialmente entendida como princípio moral, passa, posteriormente, a ser entendida, em Liberalismo político, como ideal estritamente político. Isso acontece a partir da (re) formulação daquele procedimento construtivista por meio do qual Rawls distingue o construtivismo moral kantiano do seu construtivismo político, bem como a autonomia racional da autonomia plena.

Esta segunda forma de uso do conceito de autonomia refere-se à vida dos cidadãos, que não são guiados por qualquer princípio de justiça anterior ao processo de escolha dos princípios com os quais concordariam no contexto de uma sociedade bem-ordenada, mas são movidos por seu senso de justiça - um uso do conceito de autonomia que ocorreria na situação de ignorância da posição original. A autonomia plena constituiria um valor político (e não um valor moral) por não estar baseada em uma doutrina abrangente, ainda que possa ser endossada por todas as doutrinas abrangentes razoáveis. A autonomia plena é especificada em termos de várias instituições e práticas políticas, além de se expressar em certas virtudes políticas dos cidadãos, em seu pensamento e conduta - discussões, deliberações e decisões -, na realização de um regime constitucional.

A partir dessa observação, Rawls pergunta, citando Habermas, por que os cidadãos não podem "reavivar as brasas democráticas radicais da posição original na vida cívica"? E o americano responde que a seqüência dos quatro estágios demonstra justamente que os princípios são continuamente discutidos pelos cidadãos. O ideal de uma constituição justa é sempre algo pelo qual se trabalha11 11 Rawls diz que, sobre essas questões, Habermas parece concordar e cita uma passagem de Facticidade e validade: "A justificação da desobediência civil repousa num entendimento dinâmico da constituição como um projeto inacabado. Dessa perspectiva de longo prazo, o Estado constitucional democrático não representa uma estrutura acabada, mas uma realização delicada e acima de tudo falível e revisável, cujo propósito é realizar novamente o sistema de direitos em circunstâncias cambiantes, ou seja, interpretar melhor o sistema de direitos, institucionalizá-lo mais apropriadamente, e formular seus conteúdos mais radicalmente. Essa é a perspectiva dos cidadãos que estão ativamente envolvidos na realização do sistema de direitos e que querem superar a tensão entre facticidade e validade social, conscientes dos diferentes contextos" (HABERMAS, 1998, p. 107). .

Em Idea of Public Reason Revisited (RAWLS, 1997), Rawls também expôs sua concepção a respeito destes conceitos e, como fruto de seu debate com Habermas, explicitou melhor sua noção de democracia, agora marcada pela necessidade da deliberação. Vê-se neste texto que por "razão pública" Rawls entende o resultado do debate entre cidadãos de uma sociedade democrática, possível e necessário mesmo para os princípios constitucionais, sendo que, em seu modelo ideal, "a democracia constitucional bem-ordenada é entendida também como uma democracia deliberativa" (idem, p. 579). Os cidadãos debatem questões de políticas públicas e revêem, na discussão com outros cidadãos, suas opiniões políticas, de modo que o resultado da deliberação não seja expressão de algum interesse particular.

A idéia que Rawls passa a defender agora, chegando mais perto de Habermas, é a de que uma sociedade democrática, marcada pelo fato do pluralismo, depende da deliberação dos cidadãos, que devem oferecer boas razões na defesa de seus pontos de vista sobre políticas fundamentais, fazendo que apareça aquilo que é comum nas doutrinas irreconciliáveis, isto é, uma idéia de razão pública12 12 Nos termos de Rawls: "Central to the idea of public reason is that it neither criticizes nor attacks any comprehensive doctrine, religious or nonreligious, except insofar as that doctrine is incompatible with the essentials of public reason and a democratic polity. The basic requirement is that a reasonable doctrine accepts a constitutional democratic regime and its companion idea of legitimate law. While democratic societies will differ in the specific doctrines that are influential and active within them - as they differ in the western democracies of Europe, the United States, Israel, and India - finding a suitable idea of public reason is a concern that faces them all" (RAWLS, 1997, p. 574). ["Central para a idéia de razão pública é que ela nem critica nem ataca qualquer doutrina abrangente, religiosa ou não-religiosa, exceto na medida em que alguma doutrina seja incompatível com as essências da razão pública e da estrutura política democrática. O requisito básico é que tais doutrinas aceitam o regime democrático constitucional e a idéia correlata de Direito legítimo. Enquanto as sociedades democráticas diferirão nas doutrinas específicas que são influentes e ativas em seus interiores - como elas diferem nas democracias ocidentais da Europa, dos Estados Unidos, de Israel e da Índia -, encontrar uma idéia adequada de razão pública é uma preocupação com que se defrontam todas elas" (N. R.).] .

Segundo Rawls, a justiça como eqüidade concorda com a idéia habermasiana de que um regime justo seja um projeto, pois os cidadãos ganham plena autonomia política quando vivem sob uma constituição razoavelmente justa que assegura sua liberdade e igualdade, quando compreendem e endossam essa constituição e suas leis bem como quando as ajustam de acordo com circunstâncias sociais diferentes. Rawls acrescenta ainda que, sempre que a constituição e as leis sejam de vários modos injustas e imperfeitas, os cidadãos podem lutar para tornarem-se mais autônomos. Assim, a concepção política de justiça pode ser justificada publicamente, mas nunca de maneira definitiva.

Outro ponto importante levantado por Habermas para criticar a concepção de autonomia do colega americano reside no estatuto das normas jurídicas: segundo Habermas (1998, p. 69), o direito moderno constitui o status de pessoa jurídica mediante liberdades subjetivas de ação reclamáveis juridicamente e que podem ser utilizadas segundo as preferências de cada um. Para ele, o ordenamento jurídico legítimo tem de poder ser acatado por razões morais; e a legitimidade da legislação só pode emergir de um procedimento democrático que assegure a autonomia política dos cidadãos. "La relación dialéctica entre la autonomía privada y la autonomía pública se ve ahora con claridad por el hecho de que el estatus de semejante ciudadano democrático dotado de competencias para elaborar leyes sólo se puede institucionalizar con ayuda del derecho coercitivo. Pero como este derecho se dirige a personas que sin derechos privados subjetivos no podrían asumir en absoluto el estatus de personas jurídicas, la autonomía privada y la autonomía pública de los ciudadanos se presuponen recíprocamente. Como ya se ha dicho, estos dos elementos se entrecruzan ya en el concepto de derecho positivo y obligatorio: no hay ningún derecho sin libertades subjetivas de acción reclamables jurídicamente que garanticen la autonomía privada de las personas jurídicas individuales; y no hay ningún derecho legítimo sin la legislación democrática común de ciudadanos legitimados para participar como libres e iguales en dicho proceso. Cuando se explica el concepto de derecho de este modo es fácil ver que la sustancia normativa de los derechos de libertad está ya contenida en el médium que al mismo tiempo resulta indispensable para la institucionalización jurídica del uso público de la razón de ciudadanos soberanos. El objeto central de análisis ulteriores lo constituyen, pues, los presupuestos de la comunicación y los procedimientos de la formación discursiva de la opinión y la voluntad en los que se manifiesta el uso público de la razón" (HABERMAS, 1998, p. 70).

Em Facticidade e validade, especificamente nos capítulos III e IV, está o argumento central daquilo que Habermas chamou de relação dialética entre autonomia pública e privada. Este argumento parte da idéia habermasiana de que, ao longo da história da filosofia política, nem escritores liberais nem escritores "republicanos" compreenderam que há uma relação interna entre as duas autonomias, e que, na tradição filosófica, as duas autonomias estão marcadas por uma competição sem resultado.

Para Habermas, diferentemente, as duas liberdades são co-originárias e de igual peso: não há prioridade de uma sobre a outra. São liberdades que se pressupõem mutuamente, de modo que, se temos uma das formas de autonomia, teremos de ter também a outra. Habermas (1997, p. 301; 2001, p. 147) não põe em questão a idéia de que os direitos humanos podem ser justificados como direitos morais: seu ponto é que, uma vez que pertençam ao direito positivo, os direitos humanos não podem ser impostos por um agente externo na legislação de um regime democrático. Esta legislação deve ser fruto da autonomia política que, não obstante, ainda que plena, não pode violar legitimamente aqueles direitos.

Contra a acusação de Habermas, Rawls: I) nega que o liberalismo da justiça como eqüidade deixe a autonomia política e a autonomia privada em uma competição sem resultado; II) defende que o liberalismo não enfrenta aquele suposto dilema; III) sustenta que, já no liberalismo da justiça como eqüidade, a autonomia pública e a autonomia privada são co-originárias e de igual peso.

Em relação ao ponto I, a pergunta que Rawls dirige a Habermas diz respeito à ênfase que o filósofo alemão dá ao político. Pois, se os dois tipos de autonomia são co-originárias e de igual peso, por que a relação entre as duas formas de autonomia depende do conteúdo normativo do modo de exercer a autonomia política?

O liberalismo político, diferentemente, argumenta Rawls, resolve isso pela seguinte idéia: ainda que as liberdades da autonomia privada possam ser fundadas na e estar conectadas com a autonomia política, no liberalismo político aquelas liberdades não se baseiam somente nesta relação. A liberdade dos modernos é encaixada, no quadro teórico da justiça como eqüidade, na segunda faculdade moral da pessoa política. "[...] La segunda facultad moral y los dos intereses de orden superior asociados a ella expresan independientemente en el sistema de libertades básicas las protecciones y libertades de las personas en tanto que miembros de la sociedad civil con su vida social, cultural y espiritual. Esta parte de la sociedad contiene instituciones y asociaciones de todas clases, organizaciones culturales y sociedades científicas, universidades y iglesias, medios de comunicación de un tipo o otro, y todo ello sin fin. El valor y la valía de estas actividades a los ojos de los ciudadanos que las realizan constituyen al menos una base suficiente y realmente vital para los derechos de la autonomía privada" (RAWLS, 1998, p. 127).

Uma democracia política, como Habermas (1994, p. 165) também admite, depende da sustentação de um pano de fundo (background) cultural liberal, algo que no liberalismo político ocorre quando cidadãos razoáveis vêem que as instituições da democracia política à qual pertencem apóiam suas concepções de bem assentadas em suas doutrinas abrangentes. Desse modo, vê-se que na justiça como eqüidade as duas liberdades aparecem de um modo reciprocamente assegurado; pois, "si la relación interna de las libertades políticas diera una derivación teórico-discursiva suficiente para las libertades cívicas, ello no evitaría que éstas ultimas tuvieran otra justificación igualmente suficiente" (RAWLS, 1998, p. 128). O americano aponta em Habermas uma ênfase no político e a considera plausível somente se a idéia aristotélica da realização humana na política fosse verdadeira: para Rawls, comprometer-se com a vida política pode ser aceitável apenas como concepção abrangente de algum cidadão razoável.

No que respeita ao item II, segundo Rawls, ao contrário do que quer Habermas, a justiça como eqüidade também tem uma construção em duas etapas: a posição original e a seqüência dos quatro estágios. Neste ponto, a justiça como eqüidade, como o faz também a teoria do discurso (cf. RAWLS, 1994, Postscriptum III, p. 8), incumbe aos cidadãos a tarefa de disciplinar o poder do Estado. "En la justicia como equidad adoptamos en la teoría e en la consiguiente práctica una constitución, en la que, como he dicho, podemos introducir o no las libertades básicas, sujetando de ese modo la legislación parlamentaria a ciertas constricciones constitucionales como uno de los modos de disciplinar y regular el presupuesto poder estatal. Este poder se presupone en la justicia como equidad porque desde de el comienzo (parte I) estamos tratando con principios e ideales para la estructura básica de la sociedad e sus principales instituciones políticas y sociales, dando por supuesto que ya existen en alguna forma" (RAWLS, 1998, p. 121).

É preciso entender aqui que Rawls compreende, a partir do contexto, a concepção habermasiana dos direitos liberais como direitos contra o Estado, em forma de direitos incorporados a uma constituição - por exemplo, a Bill of Rights. A interpretação de Rawls é a de que, neste primeiro passo, Habermas não está discutindo os direitos individuais que inicialmente as pessoas cedem umas às outras; e o paralelismo com a justiça como eqüidade estaria no fato de que os direitos básicos abarcados pelo primeiro princípio de justiça são, desse modo, originários. As liberdades básicas destes princípios seriam encontradas a partir do conhecimento do funcionamento das instituições sociais, como razões para incorporar aqueles direitos numa constituição redigida em uma assembléia constitucional, de modo que as liberdades básicas são originárias, mas as limitações à legislação não o são.

Assim, Rawls nega que o liberalismo político deixe a autonomia política e a autonomia privada em uma competição sem resultado, e diz que o dilema é verdadeiro porque as duas posições são corretas: "Una dice: ninguna ley moral puede ser impuesta externamente sobre un pueblo soberano democrático; y la otra dice: el pueblo soberano no puede en justicia, pero si puede legítimamente, promulgar ley alguna que viole esos derechos. Estas afirmaciones simplemente expresan el peligro que representa todo gobierno para la justicia política, sea democrático o de otro tipo, puesto que no hay institución humana - política o social, judicial o eclesiástica - que pueda garantizar que siempre se aprobarán leyes legítimas (o justas) y que los derechos justos serán siempre respetados. A esto hay que añadir que, ciertamente, no se podrá poner nunca en cuestión que puede ocurrir que una persona en solitario tenga razón al decir que la ley y el gobierno están equivocados y son injustos. Y para explicar este hecho no se necesita ninguna doctrina especial acerca de la cooriginariedad y el igual peso de las dos formas de autonomía. Es duro de creer que ninguno de los grandes escritores liberales y republicanos cívicos comprendió esto. Ello tiene que ver con la vieja cuestión de cómo es mejor unir el poder con la ley para alcanzar la justicia" (idem, p. 123-124).

Outro paralelo, apontado por Rawls, entre a justiça como eqüidade e a idéia de que a autonomia privada e a autonomia pública são co-originárias e de igual peso é que no liberalismo político as duas formas de autonomia estão internamente conectadas, no sentido de que a fonte de seu sistema de direitos e liberdades básicas remonta à idéia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação social e de representantes racionais de cidadãos que elegem os termos da cooperação sujeitos a condições razoáveis. Quando os cidadãos se comprometem com essa cooperação, mostram-se suas duas faculdades morais - de detentores de uma concepção de bem e de senso de justiça - com três interesses de ordem superior que lhes permite tal sociedade13 13 Assim, segundo Rawls (1998, p. 125), o liberalismo político conecta as liberdades básicas em um sistema plenamente adequado de ambos os tipos de liberdade, e aponta essa conexão em seis passos, oferecendo uma visão própria da convergência entre os dois tipos de liberdades (cf. RAWLS, 1993a, p. 292-297). .

No tocante ao item III, à pergunta feita por Habermas (1998, p. 69) sobre que direitos pessoas livres e iguais têm de aceitar mutuamente se querem regular suas vidas em comum mediante o direito positivo e obrigatório, Ralws responde inquirindo: "¿No es esta afirmación paralela a, aunque por supuesto no es lo mismo que, lo que está aconteciendo en la sociedad civil cuando los ciudadanos discuten y aceptan (por aquellos que lo hacen) los méritos de la posición original y los principios presuntamente elegidos ahí? ¿No están eligiendo las partes, en tanto que representantes de los ciudadanos, principios de justicia para concretar el esquema de libertades (básicas) que mejor protege y promociona los intereses fundamentales de los ciudadanos y que se conceden mutuamente?" (idem, p. 119-120).

Para Rawls, é nesse sentido que também na justiça como eqüidade as liberdades dos antigos e as dos modernos são co-originárias, de igual peso e sem prioridade de uma sobre a outra; para ele, as duas formas de liberdades se dão conjuntamente no primeiro princípio de justiça e são co-originárias porque estão enraizadas em uma ou nas duas faculdades morais, que não são hierarquizadas mas constituem aspectos essenciais da concepção política de pessoa.

V. O PROBLEMA DA JUSTIÇA COMO PROCEDIMENTO EM RAWLS

Por fim, em sua Réplica a Habermas (1995), Rawls passa a responder à objeção de que a justiça como eqüidade é substantiva, e não procedimental. Segundo Habermas (1998, p. 70), a teoria do discurso seria mais modesta do que a teoria da justiça como eqüidade porque está limitada aos aspectos procedimentais do uso público da razão e desenvolve o sistema de direitos a partir da idéia de sua institucionalização jurídica. Para ele, a teoria do discurso pode, assim, deixar mais perguntas abertas porque confia mais no processo de uma formação racional da opinião e da vontade.

Já o liberalismo político, ao contrário, provoca Habermas, não pode desenvolver uma teoria tão independente, já que no "construtivismo político" encontramos uma disputa em torno dos conceitos de racionalidade e verdade; além disso, seu conceito de pessoa, segundo o alemão, também põe fim às fronteiras da filosofia política.

Diante de tal ataque, Rawls (1998, p. 29) afirma pretender uma defesa do liberalismo, admitindo que qualquer concepção liberal tem de ser substantiva, e que não vê porque a concepção de Habermas não o seja também, ainda que os elementos substantivos possam diferir. Segundo ele, a distinção entre justiça procedimental e justiça substantiva deve ser tomada como a distinção entre a justiça de um procedimento e a justiça de um resultado: ambos os valores, diz Rawls, caminham juntos, pois a justiça procedimental depende da justiça de resultados, que é sempre substantiva; assim, permite-se que os procedimentos eqüitativos tenham valores intrínsecos.

Para Ralws, a justiça procedimental está de acordo com e depende da justiça substantiva. Segundo o americano, mesmo opiniões democráticas pluralistas que insistem em alguma forma de democracia da regra da maioria, contra a democracia constitucional com seus mecanismos institucionais - separação de poderes, decisão por maioria em certos temas, uma carta de direitos, revisão judicial -, têm de ver a regra da maioria como um procedimento eqüitativo, concentrado em instituições políticas públicas para resolver conflitos políticos e sociais. Certas características do procedimento, enfatiza Rawls, são definitivas da democracia - direito a voto, regra da maioria, liberdade de expressão política, direito a ser candidato e a ter cargos públicos.

Com isso, o estadunidense quer mostrar que o debate entre os que defendem a regra da maioria e os que defendem a constitucionalidade se concentra localizado na defesa de direitos e liberdades que não são parte do procedimento reconhecido de governo, por exemplo, a liberdade de expressão não-política e a liberdade de pensamento religioso, filosófico e moral, assim como a liberdade de consciência e o livre exercício da religião. O problema é saber se a regra da maioria, dada sua definição, proporciona um procedimento eqüitativo e protege estes outros direitos e liberdades, para além dessa concordância; ao que responde que os que apóiam a regra da maioria deverão defendê-la como substancialmente justa ao passo que os constitucionalistas deverão sustentá-la como parte de um procedimento justo. "Lo significativo es que tanto mayoritaristas como constitucionalistas pueden estar de acuerdo en que el debate se desplaza hacia la cuestión de si la democracia de la mayoría es justa en sus resultados, o sustancialmente justa. Los mayoritaristas no afirman que la democracia sea puramente procedimental: saben que no pueden defenderla frente a los constitucionalistas sin sostener que no sólo es justa en sus resultados sino que los mecanismos constitucionales son innecesarios y harían, si cabe, que estos resultados fueran peores. La disputa gira sobre cuestiones fundamentales acerca de cómo funcionan en efecto las instituciones políticas y se basea en nuestro inexacto conocimiento de estas cosas" (RAWLS, 1998, p. 132).

A partir disso, Rawls pergunta se Habermas pode dizer que seu ponto de vista é apenas procedimental. Ainda que a idéia da teoria discursiva seja concebida como restrita a uma análise do ponto de vista moral e procedimental democrático de legitimação, e que questões substanciais sejam deixadas ao resultado das discussões entre os cidadãos (cf. HABERMAS, 1998, p. 71), para o americano, isto não significa que o argumento habermasiano possa evitar depender de um conteúdo substantivo.

Segundo Ralws, o resultado do procedimento ideal de Habermas é certamente substantivo (cf. RAWLS, 1998, p. 133): se o procedimento ideal resulta, na teoria do discurso, de uma concepção de democracia que realiza as condições ideais do discurso, e que por isso traz resultados razoáveis, alguns valores que se relacionam com juízos substantivos estão pressupostos e são necessários para fazer com que os resultados sejam justos ou razoáveis. Estes valores, imparcialidade e igualdade, o caráter aberto das informações, a ausência de coerção e a unanimidade, parecem ser valores do procedimento; mas seus resultados serão substantivos, já que se referem à situação em que os interesses generalizáveis dos cidadãos estão satisfeitos. Para Rawls, não é possível que a legitimidade procedimental possa apoiar-se sobre si mesma, sem alguma justiça substantiva.

Em Habermas (1994, Postscriptum III, p. 3-4), os resultados da razão pública, que funcionam mediante procedimentos democráticos, são sempre razoáveis; enquanto para Rawls uma idéia de razoabilidade acarreta uma concepção substantiva.

Assim, Rawls aponta que Habermas reconhece não poder ser a teoria do discurso meramente formal: de acordo com o americano, o alemão teria afirmado que sua concepção era mais modesta do que a dele, e que deixaria mais questões abertas porque confiaria mais no processo de formação racional da opinião e da vontade; mas não disse que sua concepção deixaria todas as questões substantivas abertas à discussão.

Assim, Rawls entende que, para Habermas, a diferença entre justiça procedimental e justiça substantiva é apenas uma questão de grau14 14 Essa parece também ser a interpretação de Kenneth Baynes, no capítulo 9 da renomada coletânea inglesa dedicada a Habermas (BAYNES, 1997). . As questões que cada concepção deixa para discussão são tratadas como questões de mais e de menos: a definição da justiça procedimental seria, desse modo, dada na comparação. No entanto, Rawls menciona um modo em que se pode considerar que a concepção de Habermas se limita aos aspectos procedimentais do uso público da razão: ele aponta para o fato de que, em Habermas, há um uso mais regular da idéia de legitimidade do que da idéia de justiça. Como escreve Rawls, "Supongamos que perseguimos establecer instituciones políticas de tal modo que sean legítimas, y las decisiones políticas tomadas así como las leyes aprobadas que las siguen sean también legítimas. Esto coloca en el centro la idea de legitimidad, no la de justicia" (RAWLS, 1998, p. 135).

Tal raciocínio demonstra que, para Rawls, o legítimo e o justo são conceitos diferentes. Legitimidade sempre faz referência à procedência de uma decisão e, segundo ele (idem, p. 136), permite certa indeterminação acerca da bondade do governo dos soberanos e de até que ponto pode ser tolerado. Assim também um governo democrático pode ser legítimo quando está de acordo com uma larga tradição que remete à aceitação da constituição pelo povo, mas pode, posteriormente, ser julgado injusto em suas leis e políticas. Em primeiro lugar, as decisões e leis democráticas são legítimas não porque são justas, mas porque são aprovadas de maneira legítima, de acordo com um procedimento democrático legitimamente aceito. Por isso, é crucial que a constituição que especifica o procedimento seja suficientemente justa. Para Rawls, não pode haver uma instituição humana perfeitamente justa: uma instituição pode não ser justa e, mesmo assim, ser legítima. "Un procedimiento legítimo da lugar a leyes legítimas y políticas hechas de acuerdo con el. Y los procedimientos legítimos pueden ser consuetudinarios, establecidos desde mucho tiempo atrás y aceptados como tales. Ni los procedimientos ni las leyes precisan ser justos según un estricto estándar de justicia, si bien, lo que también es verdad, no pueden ser excesivamente injustos. En algún punto, la injusticia de los resultados de un procedimiento democrático legítimo corrompe su legitimidad y eso trae la injusticia de la constitución política misma. Pero antes de alcanzar este punto, los resultados de un procedimiento legítimo son legítimos cualesquiera que ellos sean. Esto nos da legitimidad democrática puramente procedimental y la distingue de la justicia, incluso aceptando que la justicia no está concretada procedimentalmente. La legitimidad permite un cierto grado de injusticia que la justicia no permite" (idem, p. 137).

Para Rawls, o papel da legitimidade nas instituições democráticas é autorizar um procedimento apropriado para tomar decisões quando os conflitos e desacordos na vida política tornam impossível a unanimidade; desse modo, um procedimento legítimo é aquele que todos podem aceitar razoavelmente como livres e iguais quando têm de tomar decisões coletivas e não há acordo. Nesse sentido, o que Rawls quer dizer é que a teoria de Habermas não é substantiva por pretender legitimidade ao invés de justiça; e esse seria o modo possível pelo qual a concepção de Habermas se limita aos aspectos procedimentais do uso público da razão.

No entanto, essa idéia de legitimidade procedimental só funcionará, segundo Rawls, em uma sociedade bem-ordenada razoável, já que, com instituições democráticas bem-organizadas e decentes, os cidadãos, razoáveis e racionais, aprovariam, quase sempre, leis e políticas legítimas, nem sempre justas. Mas, se a sociedade deixasse de estar bem-ordenada, a legitimidade se debilitaria gradualmente, pois a legitimidade das promulgações legislativas depende da justiça da constituição (escrita ou não); e, quanto mais ela se desviar da justiça, mais provável é a injustiça do resultado, de modo que, para Rawls (1998, p. 138), as leis não podem ser demasiado injustas se hão de ser legítimas.

VI. JUSTIÇA, RAZÃO PRÁTICA E CONSENSO SOBREPOSTO SEGUNDO A POLÍTICA PÓS-METAFÍSICA: A TRÉPLICA DE HABERMAS

Os procedimentos políticos constitucionais podem ser, em condições normais, diz-nos Rawls, puramente procedimentais com respeito à legitimidade. Nenhum procedimento político humano pode ser perfeito, e por isso não pode dizer respeito ao seu conteúdo substantivo: isso sempre dependerá dos juízos de justiça substantivos. Para Rawls, portanto, a manutenção da legitimidade é dependente, em certa medida, da justiça política. Parece certo que Habermas por-se-ia de acordo com esta concepção de Rawls, já que, contra Weber, entende que a legitimidade não pode ser apenas a aquiescência de instituições políticas e sociais por parte de um povo, dependendo sua aceitação da legitimação (HABERMAS, 1987c, p. 178); mas também é fato que discordaria dos argumentos utilizados pelo americano para chegar a esta conclusão.

Para responder a tais questões, Habermas publicou, em 1996, um segundo texto, que compõe a terceira parte do famoso debate teuto-estadunidense, intitulado Vernünftig versus Wahr - oder die Moral der Weltbilder (Racional versus verdadeiro - ou a moral das visões de mundo). Nele, Habermas aborda a união da expressão "político" com uma interpretação da neutralidade, expondo a idéia de que Rawls faz uso da expressão "independente" (freestanding) com uma ulterior pretensão teórica. Para Habermas, Rawls parece supor que uma teoria independente no campo do político ocupa também um lugar semelhante no campo da filosofia e evita todas as questões da metafísica, deixando a filosofia como está. "Es difícil esperar que Rawls pueda explicar algo como el estatus epistémico de una concepción de la justicia independiente sin tener que adoptar una posición frente a cuestiones filosóficas que, ciertamente, no caen dentro de la categoría de lo 'metafísico' pero que, no obstante, ven más allá de la esfera de lo 'político'" (HABERMAS, 1998, p. 149).

Habermas concorda com a idéia da necessidade de uma reconciliação das diferentes doutrinas abrangentes a ser fomentada por um consenso político e não metafísico. No entanto, argumenta Habermas (ibidem), não se segue daí que a teoria política possa mover-se completamente no campo do político e permanecer à margem das controvérsias filosóficas, que não cessam. Para Habermas, os debates filosóficos podem escapar à esfera do político em diferentes direções: a filosofia, em sua concepção, busca a verdade, e não necessariamente mantém uma relação interna com o "metafísico" no sentido do liberalismo político. Uma concepção de justiça independente, explica o alemão, tem um status epistêmico em um sentido político inócuo: um debate político sobre razão e verdade não necessariamente trata de questões e controvérsias metafísicas. Para Habermas, portanto, existe uma dependência entre o razoável e o verdadeiro, entre o político e o metafísico.

Segundo ele, não é evidente que para a razoabilidade de uma concepção política só possam ter peso as razões publicamente defendidas e independentes dos atores: razões públicas e dependentes de atores deveriam bastar para a pretensão de verdade moral. Os tipos de justificação oferecidos por Rawls - justificação pro tanto da concepção política, justificação plena dessa concepção por uma pessoa individual na sociedade e justificação pública da concepção política pela sociedade política - estão equivocados, explica Habermas, pois para a formação de um consenso sobreposto não se pode esperar dos cidadãos a disposição de adotar um ponto de vista moral independente das perspectivas das distintas concepções de mundo de cada um.

Nesse sentido, pode-se dizer que o razoável é muito débil para caracterizar a validade de uma concepção de justiça reconhecida intersubjetivamente; o bem é definido de modo suficientemente forte, mas, nesse caso, argumenta o alemão, se solapa o razoável prático com o moralmente justo. O que Habermas quer mostrar com este debate é que Rawls não pode deixar de aceitar o peso pleno das exigências da razão prática que geram as concepções racionais do mundo.

Para o alemão, pode-se enxergar na práxis cotidiana a pressuposição recíproca da capacidade de juízo moral que exige uma explicação de caráter racional - no caso de Habermas, o princípio do discurso (D), que, como diria Kant (2005, p. 8), mais precisa ser esclarecido do que ensinado. O fato de que prosseguem disputas morais diz algo sobre a infra-estrutura da vida social, transpassada por pretensões de validade: a integração social é dependente de uma ação orientada ao entendimento. Para Habermas, o conteúdo cognitivo dos enunciados normativos deve recorrer a um tipo de razão prática que não se limita a uma razão instrumental, como ocorre, na concepção de Habermas, em Hobbes.

A leitura de Habermas no que toca à construção da posição original de Rawls estabelece uma analogia com a razão prática kantiana, que determina a perspectiva para o juízo imparcial de normas e princípios: a posição original, assim como o imperativo categórico, tem, nesta leitura, o objetivo de possibilitar um acordo sobre o entendimento a respeito das intuições sobre o igual respeito e a responsabilidade solidária para todos. Logo, para Habermas, se os princípios e normas selecionados deste modo aspiram a um reconhecimento geral, ao acordo corretamente alcançado deve-se poder conferir um sentido epistêmico; isto é, as razões que se colocam na disputa devem ter um peso epistêmico e expressar não apenas o que seja racional fazer para uma determinada pessoa com suas preferências dadas.

Em Habermas, a possibilidade de compreender o papel epistêmico dessas deliberações práticas está em sua descrição de como os interesses pessoais, que entram na deliberação como motivos racionais, mudam seu papel e significado no curso da argumentação15 15 "Llamo argumentación al tipo de habla en que los participantes tematizan las pretensiones de validez que se han vuelto dudosas y tratan de desempeñarlas o de recusarlas por medio de argumentos. Una argumentación contiene razones que están conectadas de forma sistemática con la pretensión de validez de la manifestación y emisión problematizadas. La fuerza de una argumentación se mide en un contexto dado por la pertinencia de las razones. Esta se pone de manifesto, entre otras cosas, en si la argumentación es capaz de convencer a los participantes en un discurso, esto es, en si es capaz de motivarlos a la aceptación de la pretensión de validez en litigio. Sobre este trasfondo podemos juzgar también la racionalidad de un sujeito capaz de lenguaje y de acción según sea su comportamiento, llegado el caso, como participante en una argumentación: 'Cualquiera que participe en una argumentación demuestra su racionalidad o su falta de ella por la forma en que actúa y responde a las razones que se le ofrecen en pro o en contra de lo que está en litigio. Si se muestra abierto a los argumentos, o bien reconecerá la fuerza de esas razones, o tratará de replicarlas, y en ambos casos se está enfrentando a ellas de forma racional. Pero si se muestra sordo a los argumentos, o ignorará las razones en contra, o las replicará con aserciones dogmáticas. Y ni en uno ni en otro caso estará enfrentándose racionalmente a las cuestiones'. A la susceptibilidad de fundamentación de las emisiones o manifestaciones racionales responde, por parte de las personas que se comportan racionalmente, la disponibilidad a exponerse a la crítica y, en caso necesario, a participar formalmente en argumentaciones" (HABERMAS, 1981, t. I, p. 37). . Para o resultado nos discursos práticos contam apenas os interesses que se apresentam como valores intersubjetivamente reconhecidos e que são candidatos a serem admitidos no conteúdo semântico de normas válidas. Somente orientações de valor que podem ser aceitas com boas razões por todos os participantes e afetados pela conversão em norma de uma dada matéria que precise de regulação passam deste ponto.

Um interesse pode ser descrito como orientação de valor quando é intersubjetivamente compartilhado em situações semelhantes. Mas para que seja considerado do ponto de vista moral, o interesse tem de ser desvinculado da perspectiva da primeira pessoa. Aquilo que se traduz em um vocabulário intersubjetivamente compartilhado pode adotar o papel epistêmico de um argumento, que, após o teste da universalização, torna-se a descrição de um valor destinado à regulação da matéria a que corresponde e que parece ser aceitável para todos os participantes em geral.

Dessa forma, se a deliberação prática pode ser entendida como uma forma de argumentação distinta da escolha racional, a teoria da argumentação é um caminho pragmático para elaborar uma concepção de razão prática que se diferencia tanto da razão instrumental quanto da razão teórica. Importante para Habermas é que as proposições normativas possam conservar seu sentido cognitivo sem ser assimiladas a proposições assertóicas nem ser reduzidas à racionalidade instrumental.

Para o alemão, na teoria da justiça, criou-se a tarefa de esclarecer o ponto de vista moral com ajuda da posição original, e sua construção se alimenta de uma razão prática que se incorpora nas duas faculdades superiores da pessoa moral. No entanto, na reelaboração do construtivismo kantiano empreendida por Rawls (cf. RAWLS, 1980), a razão perde sua posição forte: a razão prática, como mostra Habermas (1998, p. 156), priva-se ao mesmo tempo de seu núcleo e rebaixa-se a uma racionalidade desvalorizada que cai na dependência de verdades morais fundadas em outra parte. Assim, a validez moral da concepção de justiça não se fundamenta em uma razão prática universal e vinculante, mas na convergência de concepções de mundo razoáveis que se sobrepõem o suficiente em suas partes morais. Para Habermas, a idéia do consenso sobreposto tem como conseqüência o enfraquecimento da pretensão de razão da concepção kantiana da justiça.

Assim, para o alemão, a teoria do discurso tem maior alcance explicativo do que o liberalismo político, pois resolve o problema do modo imparcial da reconciliação e afirma uma razão prática universal e vinculante. Se Rawls sustenta que se alcança um consenso sobreposto quando todos os membros razoáveis da sociedade política operam uma justificação da concepção política partilhada, embutindo-a em suas várias visões abrangentes razoáveis - justificação pública da concepção política pela sociedade política -, Habermas (1998, p. 157) entende que a divisão do trabalho entre o político e o metafísico tem o resultado de que o conteúdo, no qual pode haver uma reconciliação pela coincidência, separa-se das correspondentes razões pelas quais os indivíduos o aceitam como verdadeiro.

Essa (re)construção parte então de dois pontos de vista: no cidadão, reúne-se o ponto de vista do participante e o ponto de vista do observador. Tal observador é aquele que pode descrever os processos na esfera política: por exemplo, descrever como se alcançar um consenso sobreposto. Eles podem ter conhecimento de que se alcança o consenso como conseqüência da sobreposição bem-sucedida dos componentes morais das diferentes concepções de mundo, que traz consigo a estabilidade da coletividade. No entanto, e esta seria uma diferença fundamental nos dois modelos, os cidadãos, na posição de observadores, no modelo de Rawls, não podem introduzir-se reciprocamente em outras concepções de mundo e compreender o conteúdo de verdade dessas concepções a partir de seus pontos de vista internos. "Confinados en las fronteras de los discursos fácticos, a los observadores está vedada una toma de posición ante lo que los participantes creyentes o convencidos consideran verdadero, justo y valioso desde la perspectiva de la primera persona. Tan pronto como los ciudadanos quieren expresarse sobre verdades morales o en general sobre 'concepciones acerca de lo que es valioso en la vida humana' [...], tienen que pasar a la de su propia concepción del mundo inscrita en la correspondiente perspectiva del participante. Pues los enunciados morales de los juicios de valor sólo se pueden fundamentar desde el contexto denso de interpretaciones comprehensivas del mundo. Las razones morales en favor de una concepción presuntamente común de la justicia son por definición razones no públicas" (idem, p. 158).

A partir de seus pontos de vista, de seus sistemas de interpretação, da justiça como eqüidade, os cidadãos só podem se convencer da verdade de uma concepção de justiça. Essa concepção se mostra idônea como base comum para uma justificação pública de princípios constitucionais, explica Habermas, porque encontra a justificação não-pública para o acordo fundamentador. A razoabilidade do conteúdo do consenso sobreposto depende da convergência no resultado das mais distintas razões não-públicas, de modo que, das premissas das diferentes concepções, resulte um acordo nas conseqüências. Assim, entende o alemão, é decisivo para a estrutura da teoria que os participantes possam observar esta convergência meramente como um feito social - e aqui Habermas (1998, p. 91) cita Rawls: "the express contents of these doctrines have no normative role in public justification"16 16 "O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem papel normativo na justificação pública" (N. R.). . Habermas demonstra que, nesse estágio, Rawls não concede aos cidadãos uma terceira perspectiva, que inclua o ponto de vista do observador e o do participante.

Segundo Habermas, antes que se estabeleça o consenso sobreposto não há nenhuma perspectiva pública, compartilhada inter-subjetivamente, disponível aos cidadãos para uma formação imparcial do juízo desde sua origem; falta a perspectiva moral segundo a qual os cidadãos podem desenvolver e justificar uma concepção política em uma deliberação pública comum. Aqui se nota que Habermas estabelece uma clara diferença quanto ao que os dois autores entendem por "razão pública". Pois, para Habermas, o que o americano chama de uso público da razão pressupõe a plataforma comum de um consenso que já foi alcançado. E, para justificar sua compreensão, Habermas (1998, p. 92) novamente cita Rawls: "only when there is a reasonable overlapping consensus can political society's political conception of justice be publicly [...] justified"17 17 "Somente quando há um consenso sobreposto razoável é que a concepção de justiça da sociedade política pode ser publicamente [...] justificada" (N. R.). .

VII. O CERNE FILOSÓFICO DE HABERMAS: RAZOÁVEL VERSUS VERDADEIRO

Pode-se notar aqui uma grande diferença. Para Habermas, a divisão do trabalho entre o político e o metafísico reflete a relação de complementaridade entre o agnosticismo público e a confissão privada, entre o poder neutro de um Estado cego às colorações confessionais e a força iluminadora de concepções de mundo que competem pela verdade. As verdades morais, que ainda se encontram incrustadas em cosmovisões religiosas ou metafísicas, esclarece Habermas (1998, p. 159), compartilham essa pretensão de verdade forte, apesar do fato de que, ao mesmo tempo, o pluralismo aponte que as doutrinas públicas já não são mais suscetíveis de justificação pública.

Tal divisão do trabalho libera a filosofia da tarefa de criar um substituto para a fundamentação metafísica das verdades morais. Mas, para Habermas, o metafísico permanece, ainda que eliminado da agenda pública, como a base de validade última do moralmente justo e do eticamente bom. Além disso, esta divisão priva o político de uma fonte de validade própria. Assim, Habermas argumenta que, se a idéia do consenso sobreposto rawlsiano conserva a conexão interna da justiça política com os componentes morais das concepções de mundo unicamente com a condição de que essa conexão seja inteligível para a moral das cosmovisões, isso quer dizer que essas concepções continuam publicamente inacessíveis18 18 Aqui, Habermas lembra outra passagem de Rawls: "It is up to each comprehensive doctrine to say how its idea of the reasonable connects with its concept of truth" (RAWLS, 1993a, p. 94). . Na visão de Habermas, o consenso sobreposto apóia-se nos componentes morais em cada caso distinto que um cidadão considera em conjunto verdadeiros; mas ninguém pode saber, do ponto de vista do observador, qual das concepções de mundo é efetivamente verdadeira.

"Rawls se concentra como Hobbes en las cuestiones de la justicia política y toma en préstamo de la tradición hobbesiana la idea de que tiene que alimentar la apetecida conciliación de las razones privadas, no públicas. De modo distinto a como ocurre en Hobbes, en Rawls la aceptabilidad racional de una propuesta que obtenga aprobación se apoya en la sustancia moral de concepciones del mundo diferentes, pero convergentes a este respecto - y no en las preferências de distintas personas que se complementan mutuamente - Rawls comparte con la tradición kantiana la fundamentacón de la justicia política. Las razones moralmente convincentes soportan - más allá de un modus vivendi - un consenso. Pero estas razones no pueden ser examinadas públicamente por todos porque el uso público de la razón se orienta a una plataforma que tiene que construirse a la luz de razones no públicas. El consenso entrecruzado descansa, como compromiso, en las distintas razones respectivas de las partes participantes; pero a diferencia de un compromiso estas razones son de naturaleza moral" (idem, p. 160).

Diante disso, Habermas propõe uma terceira perspectiva para o razoável. Para ele, se a aceitação de uma concepção independente da justiça é nutrida por verdades metafísicas que a completam, tal concepção tem de abarcar uma razoabilidade que acrescente o aspecto do reconhecimento público para aquelas verdades idiossincrásicas e reciprocamente opacas. Do ponto de vista da validade, não há uma correlação entre a concepção pública de justiça que compartilha uma visão fraca de razoabilidade e as doutrinas públicas que têm uma pretensão forte à verdade. Logo, para o alemão, é contra-intuitivo que uma concepção pública de justiça deva obter sua autoridade moral de razões não-públicas. Habermas não abre mão de uma autoridade moral para a justificação de sua concepção pública de justiça, na qual tudo o que tem validade tem de poder ser justificado publicamente; mesmo que o compromisso alcançado pelas partes dê-se por razões distintas, as mesmas razões são necessárias para que os participantes em uma argumentação alcancem um acordo racionalmente motivado.

Para Habermas (1998, p. 61), mesmo fora da esfera política, as argumentações já exigem, de certo modo, um uso público da razão. Utiliza-se como tema para discursos racionais somente aquilo que na vida cotidiana serve como recurso para a força vinculante dos atos de fala, quer dizer, as pretensões de validade que reclamam reconhecimento intersubjetivo e que, no caso de serem problematizadas, prometem uma justificação pública. O mesmo deve acontecer com as pretensões de validade normativas, sustenta o alemão, pois as confrontações políticas são de natureza mista, e quanto mais trata-se de princípios constitucionais e da justiça que lhes subjazem, mais assemelham-se aos discursos morais.

O problema que Habermas detecta aqui é o de que os cidadãos não podem considerar algo como razoável se não puderem adotar um terceiro ponto de vista junto ao do observador e ao do participante. Cabe, então, a pergunta: pode haver um consenso que seja apropriado para os cidadãos de uma coletividade política como fundamento de um uso público da razão a partir da pluralidade de cosmovisões cujo caráter não-público é reconhecido reciprocamente? Para Habermas, mesmo o consenso sobreposto de Rawls não pode abrir mão dessa terceira perspectiva, a partir da qual os cidadãos deliberam coletiva e publicamente para saber o que é, na mesma medida, interesse de cada um.

O filósofo alemão concorda com Rawls a respeito do fato de que a perspectiva do partidário de uma comunidade de crenças é diferente daquela de um participante de discursos públicos; e a respeito de que uma mesma fundamentação não pode servir para justificar tanto a existência de um indivíduo insubstituível que deseja esclarecer-se a partir da primeira pessoa do singular sobre como deve conduzir sua vida quanto a consciência falível da formação política da opinião e da vontade dos cidadãos participantes.

No entanto, interpela Habermas, Rawls imagina o processo de entendimento de uma concepção comum de justiça não de maneira que os cidadãos adotem coletivamente a mesma perspectiva; essa concepção "razoável" tem então que se encaixar no contexto das correspondentes visões de mundo consideradas "verdadeiras". Por isso, Habermas (1998, p. 163) pergunta: a circunstância de que a verdade não-pública das doutrinas religiosas ou metafísicas tem prioridade frente à razoabilidade de uma concepção política, não termina por afetar o sentido universalista de "razoável"? Segundo ele, os enunciados válidos obtêm reconhecimento universal exatamente porque podem ser justificados publicamente.

O termo "razoável" de Rawls, de acordo com Habermas, refere-se então, em primeiro lugar, à atitude de pessoas que estão dispostas: I) a um entendimento acerca de condições eqüitativas de cooperação social entre cidadãos livres e iguais; II) a observar tais condições; III) que estão em situação de reconhecer os ônus da prova e as obrigações da argumentação assumindo suas conseqüências. Ser razoável é ser tolerante; a crença implica essa ação. Por isso, Habermas diz que Rawls não pode dispor de uma perspectiva metafísica, já que o "razoável" rawlsiano só pode surgir após o consenso sobreposto. Para o filósofo alemão, o ponto de vista moral não implica atitudes "razoáveis", e tampouco é possibilitado por concepções de mundo "razoáveis". Segundo Habermas, "Rawls parece no poder sino recurrir al menos extraoficialmente a esta 'tercera' perspectiva también 'en aquel caso fundamental de la justificación pública'. Uno tiene la impresión de que Rawls se encuentra dividido entre su estrategia originaria, seguida en la Teoría de la Justicia, y todavía fuertemente apegada a Kant, y la alternativa desarrollada más tarde que se toma en serio el hecho del pluralismo. También aquí asume el filósofo todavía la perspectiva de juicio imparcial; pero este, digamos, punto de vista profesional, no encuentra ningún equivalente en un punto de vista moral que los ciudadanos pudieran compartir desde el origen" (idem, p. 164).

Para o filósofo alemão, as três classes de justificação do consenso sobreposto - justificação pro tanto, plena e pública - não podem ser identificadas com concepções "razoáveis" de mundo se não está disponível uma razão prática independente das várias concepções de mundo. Para que se possa apontar quais concepções de mundo são razoáveis, são necessárias decisões normativas que teriam de poder ser independentes de qualquer fundo metafísico.

O lugar onde há uma concepção de justiça Rawls denomina de "the place among citizens in civil society - the viewpoint of you and me"19 19 "O lugar entre cidadãos na sociedade civil - o ponto de vista seu e meu" (N. R.). , e é aí que cada cidadão parte do contexto de sua própria concepção de mundo para formar a justificação daquela concepção de justiça. Diante disso, Habermas (1998, p. 165) sustenta que, para a reflexão normativa, em Rawls, somente a perspectiva do participante está disponível. Segundo Habermas, uma pessoa razoável - filósofo ou não - guiar-se-á por seu senso de justiça para desenvolver uma concepção da justiça independente, a qual ele espera que seja aceita por todas as pessoas razoáveis quando assumem o papel de cidadãos presumivelmente livres e iguais. Desse modo, o primeiro passo de reconstrução exige a abstração das doutrinas abrangentes. "Con objetivo de lograr aquella 'pro tanto justification' los ciudadanos pueden pasar a considerar doctrinas filosóficas bien pensadas, pero diferentes. Tales teorías ofrecen un hilo conductor para el paso exigido en la abstracción. Por ejemplo se ofrece la 'posición original' como esquema para dicho test de universalización. Los principios que pasan el test parecen ser aceptables para todos" (idem, p. 165).

Nota-se que Habermas advoga não ser possível manejar o teste de universalização sem partir de pressupostos da própria compreensão anterior: o teste de universalização exige que todo cidadão razoável faça a abstração das diferentes concepções de mundo; mas esta operação de universalização tem de ser levada a cabo no contexto da própria concepção de mundo. Esse teste, então, filtra todos os elementos que a partir da perspectiva de cada um são inadequados para serem aceitos por todas as pessoas razoáveis. Assim, para o alemão, o terceiro passo é análogo ao imperativo categórico, no sentido de dizer o que não é "político" para esta concepção. Habermas sustenta que Rawls precisa desse passo porque não se pode saber se houve êxito quando ocorre a abstração de todo contexto abrangente. Quando as convicções normativas de cada um sujeitam-se às restrições da posição original, só se leva em conta os demais cidadãos na última etapa - the stage of wide and reflective equilibrium (o estágio de equilíbrio amplo e reflexivo).

Habermas entende esse passo como uma radicalização do teste de universalização, que até então só havia sido levado a cabo de modo incompleto. Para ele, só a aplicação recursiva do procedimento conduz ao resultado esperado. Mas, nesse ponto, são equivocadas as duas expressões que o americano usa nesse contexto, pública e compartilhada, acusa o alemão referindo-se à explicitação de Rawls de que "a justificação pública dá-se quando todos os membros razoáveis da sociedade política levam a cabo uma justificação da concepção política compartilhada incorporando-a em suas diferentes concepções abrangentes razoáveis" (RAWLS, 1998, p. 91). A crítica de Habermas parece precisa ao afirmar que o consenso sobreposto é resultado do controle realizado simultaneamente por todos, mas cada um em particular e para si, da concepção proposta, com o objetivo de comprovar se esta se adéqua à sua própria concepção de mundo20 20 Nas palavras de Rawls: "Los contenidos explícitos de estas doctrinas no tienen ningún papel normativo en la justificación pública; los ciudadanos no atieden al contenido de las doctrinas de los demás [...]. Más bien tienen en cuenta y dan cierto peso sólo al hecho - la existencia - del consenso entrecruzado mismo" (RAWLS, 1998, p. 91). . Cada qual tem de aceitar a mesma concepção, mas por suas razões próprias, não-públicas, enquanto se assegura a tomada de posição afirmativa de todos os demais.

Para expressar com clareza a dificuldade dessa posição de Rawls, Habermas cita a leitura de Rainer Forst (a quem talvez deva a maior parte de sua compreensão da obra do americano), que sustenta descansar o consenso sobreposto rawlsiano sobre "o uso privado da razão com propósitos político-públicos" (FORST, 1994, p. 159). O problema detectado por Habermas aqui é o de que, neste desenho para as três classes de justificação oferecido por Rawls, falta uma perspectiva de juízo imparcial e um uso público da razão em sentido estrito: um uso que não seja possibilitado apenas pelo consenso sobreposto, mas que seja praticado desde a entrada.

Para Habermas, não é verossímil que os cidadãos "razoáveis" tenham alcançado um consenso sobreposto de fato se eles só podem convencer-se da validade de seus conceitos de justiça no contexto de suas respectivas concepções de mundo. As possibilidades de atingir-se um consenso sobreposto dependem do fato de que sejam permitidas revisões na última etapa de justificação, o que obrigaria à reconsideração da concepção. O desacordo que desperta tais adaptações, elucida o alemão, diz respeito em primeira linha às diferenças na compreensão do político não antecipadas por Rawls no primeiro passo.

Seguindo Rawls, Habermas distingue, então, três classes de diferenças de opinião, as que: I) referem-se à definição do campo das questões públicas; II) referem-se à hierarquia e à ponderação razoável dos valores políticos; a última, e mais importante, III) refere-se à prioridade dos valores políticos frente aos valores não-políticos. Quanto à classe I, Habermas utiliza o exemplo das diferenças de interpretações possíveis para o princípio de separação entre Estado e igreja. Segundo o autor, os distintos entendimentos dizem respeito à extensão e ao âmbito do político e conduzem a diferentes recomendações normativas.

Para tratar da classe II, Habermas dá o exemplo da possibilidade de diferentes opiniões sobre o valor intrínseco ou meramente instrumental da participação dos cidadãos nos casos em que os direitos à participação política têm que ser pesados frente às liberdades negativas. Tais casos de disputa resolvem-se ante os tribunais: em última instância, ante o tribunal constitucional; portanto, sobre a base de uma concepção de justiça já aceita. Os conflitos não podem alcançar um ponto tão profundo que as diferenças de opinião cheguem a pôr em questão o consenso político básico, insiste o alemão, sob pena de solaparem até mesmo o consenso sobreposto.

Habermas está supondo aqui que a maioria destes pontos de vista conflituosos poderia ser resolvida consensualmente, por meio de revisões da interpretação dominante da constituição; e tais adaptações confirmam que, naquela última etapa de justificação, os cidadãos poderiam aprender uns com os outros. Mesmo que só de maneira indireta, propõe o deliberativista, o veto dos demais pode ocasionar a compreensão de que as concepções de justiça projetadas no começo ainda não eram suficientemente descentradas.

A outra classe de conflitos, a classe III, encontra-se na definição do que se poderia esperar das doutrinas razoáveis, daquilo que Rawls caracteriza como o razoável. Pode-se ver aí o conflito entre os valores políticos e não-políticos, por exemplo, quando partidários da proibição do aborto afirmam que suas convicções religiosas acerca do valor da inviolabilidade da vida são mais importantes do que qualquer valor político em nome do qual os outros cidadãos exigem seu assentimento. Segundo Habermas, Rawls não discute a fundo o conflito no plano da prioridade dos valores políticos: "Rawls presupone, esto es, que el principio del uso público de la razón por parte de los ciudadanos exige una traducción de sus concepciones ético-existenciales al lenguaje de la justicia política. Pero con las próprias premissas de Rawls la 'razón pública' de los ciudadanos puede imponer estas constricciones sólo cuando ya se há conseguido un consenso político básico" (HABERMAS, 1998, p. 169).

A dificuldade em relação à posição de Rawls repousa, para Habermas, no fato de que durante a formação do overlapping consensus não há nada que equivalha à autoridade neutra de um tribunal constitucional - que, além do mais, só entende a linguagem do direito. Não há, nesse estágio, a possibilidade de reclamar a prioridade do justo sobre o bem, já que esta primazia pressupõe a prioridade dos valores políticos frente aos não-políticos. Para Rawls, o significado do primado do justo é o de que as doutrinas abrangentes são admissíveis somente se a adesão a elas estiver de acordo com a concepção política de justiça (RAWLS, 1993a, p. 176). O problema está no fato de que a prioridade conferida por Rawls aos valores políticos não se segue o da razoabilidade das pessoas e de suas convicções: como constata Habermas, Rawls não vai além de dizer que os valores políticos são "valores muito fortes" (idem, p. 155). Em outras passagens, Rawls limita-se à "esperança" de que essa primazia seja reconhecida pelos partidários de concepções de mundo razoáveis21 21 "In this case (when an overlapping consensus is achieved) citizens embed their shared political conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then we hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that political values are normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values may conflict with them" (RALWS,1998, p. 97; grifo no original). ["Nesse caso (quando um consenso sobreposto é alcançado), os cidadãos incorporam sua concepção política compartilhada em suas doutrinas abrangentes razoáveis. Então, esperamos que os cidadãos julgarão (a partir de suas perspectivas abrangentes) que os valores políticos são normalmente (embora nem sempre) anteriores a, ou mais importantes que, elas, quaisquer que sejam os valores não-políticos que possam entrar em conflito com elas" (N. R.).] .

A conseqüência desse raciocínio é que os conflitos do terceiro tipo ficam na dependência de que a tolerância dos cidadãos razoáveis e a razoabilidade de suas concepções de mundo exijam uma percepção harmônica do político e da primazia dos valores políticos. A acusação de Habermas é a de que esta esperança na razoabilidade tem de ser imposta às concepções de mundo em competição. Para o alemão, a exigência da imparcialidade da razão prática não é encontrada no conceito rawlsiano do razoável. "En la actitud de las personas 'razonables' que quieren tratar-se mutuamente de modo equitativo, a pesar de saber que no coinciden en sus concepciones religiosas o metafísicas, el punto de vista moral colectivo está en todos tan ausente como en la reflexividad y la renuncia a la violencia de las concepciones del mundo 'razonables'. Una exigencia de la razón práctica que tiene que doblegarse ante concepciones del mundo, si es que el consenso entrecruzado ha de ser posible, sólo se pude justificar evidentemente por la fuerza de una autoridad epistémica independiente de las concepciones del mundo mismas" (HABERMAS, 1998, p. 171).

Para Habermas, portanto, deve haver uma independência da razão prática frente à moral das concepções de mundo; somente a partir daí é que se pode tornar publicamente acessível a relação interna entre o verdadeiro e o razoável. A prioridade dos valores políticos não pode, para ele, ser legitimada por uma razão prática que primeiro define quais concepções de mundo valem como razoáveis, pois isso equivaleria, ao final, a não respeitar verdadeiramente o fato do pluralismo.

VIII. DAS FRONTEIRAS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: O NÚCLEO DA DISPUTA RAWLS-HABERMAS

A partir do debate Rawls-Habermas, cujas linhas mestras procuramos sintetizar aqui, pode-se afirmar que a fundamentação metafísica clássica é, na visão de Habermas, ultrapassada, e, na de Rawls, necessariamente dispensável. Em Habermas, é preciso ater-se à construção intersubjetiva, à constituição lingüística dos cidadãos de uma democracia contemporânea, à sua idéia de esfera pública. Já em Rawls deve-se atentar para suas concepções de racionalidade e razoabilidade da pessoa política, indispensáveis em seu modelo que encontra uma razão pública.

Mas é possível entender melhor o que advoga cada um quando se aponta a principal diferença entre as duas racionalidades públicas no debate acerca do overlapping consensus de Rawls: este ponto permite compreender a preocupação dos dois autores com a construção intersubjetiva do problemático mundo social. A teoria política da justiça de Rawls apropria-se do procedimento construtivista kantiano, para, por meio do overlapping consensus, construir uma concepção política da justiça aceita pelas diversas doutrinas abrangentes de uma sociedade democrática bem-ordenada. Entretanto, a acusação habermasiana - de que Rawls limita a racionalidade pública e estreita a filosofia, dada sua formulação nos termos da explicitação de uma cultura política - permite-nos entender, mais do que a teoria rawlsiana, a relevância de uma priorização do conceito de racionalidade pública por parte de Habermas, para quem a noção parece ter um sentido mais forte do que aquele atribuído por Rawls.

Isso é importante porque Habermas percebe que há aí uma ambigüidade: o overlapping consensus é o resultado de um controle realizado por todos, mas depende de que cada um adéqüe a concepção de justiça à sua própria doutrina abrangente, de modo que o não-público constitui o critério de aceitação. Retomando Rainer Forst (1994, p. 159), o consenso sobreposto descansa sobre "o uso privado da razão com propósitos político-públicos". Essa parece ser a diferença fundamental entre as duas racionalidades: em Rawls, não se trata de um uso público da razão em sentido estrito.

A racionalidade defendida por Habermas, que articula a primazia dos valores políticos e se impõe às diversas doutrinas abrangentes, deve ser aceita, e não apenas desenvolvida a partir de uma perspectiva imparcial. Habermas precisa de uma perspectiva mais profunda do que aquela do participante: em seu modelo, a palavra final não é dada pelo cidadão razoável, mas pelo cidadão que argumenta por meio de uma perspectiva intersubjetiva. Para ele, a racionalidade pública depende das próprias condições do discurso, que não conduz à adequação ao consenso - como sugerem certas leituras apressadas de alguns de seus comentadores -, e, sim, obriga a uma perspectiva imparcial anterior. A terceira perspectiva proposta por Habermas é a que se encontra nas condições ideais do discurso, as quais institucionalizam o modo de formação do conteúdo da razão pública.

A diferença em relação a Rawls é que este parte da perspectiva do participante situado em uma cultura política determinada para submeter os cidadãos a uma concepção de justiça; mas esta concepção não pode ser construída: ela deve ser encontrada. Para Rawls, tal concepção de justiça poderia ser encontrada na proposta do equilíbrio reflexivo, ficando então, de certo modo, dependente das doutrinas abrangentes. Para Habermas, apenas a formação institucionalizada das condições da linguagem poderia apresentar-se como independente das doutrinas substantivas. A ética do discurso, em sua complexidade, procura construir o momento ideal desse ponto de vista que se dá na representação do procedimento ideal para um acordo razoável. A teoria habermasiana da ação demonstra que as intuições morais básicas têm fundamentos mais profundos do que apenas as particularidades de uma tradição ou de uma sociedade bem-ordenada.

A tarefa da teoria moral habermasiana é, portanto, reconstruir - articular, refinar, elaborar - reflexivamente a intuição acerca dos pressupostos normativos da interação social dos atores sociais de uma determinada sociedade. Tais intuições morais básicas reconstruídas são adquiridas no próprio processo de socialização; são, portanto, interdependentes e devem ser justificadas como normas por meio da liberdade de cada participante de responder às razões oferecidas para sua justificação. Desse modo, torna-se possível ler a obra de Habermas como a exploração dos empecilhos e das precondições institucionais e culturais na execução de discursos práticos. Todo o exame histórico e sociológico de Habermas (1981) leva-o à idéia de que a justificação deve passar pelas razões aceitáveis na deliberação de cidadãos livres e iguais em uma democracia constitucional.

Pode-se dizer assim que a versão habermasiana de uma estrutura básica da sociedade consiste na institucionalização da autonomia política, que se traduz em institucionalização do uso público da razão. A concepção procedimental da democracia deliberativa constitui o ponto de referência normativo de Habermas, que leva em conta o fato do pluralismo e, ainda assim, pode propor um modo de se alcançar acordos razoáveis que envolvam discursos práticos sobre a melhor maneira de se alcançar fins determinados, discursos éticos sobre o bem (valores e identidades) e discursos morais sobre a justiça. A concepção normativa da democracia deliberativa habermasiana propõe assegurar decisões práticas que contenham discursos éticos e morais, sob condições que garantam que os resultados serão sempre aqueles com os quais todos poderiam concordar.

A democracia deliberativa, nessa perspectiva, descentraliza o poder político; e porque possibilita diversos e distintos modos de detectar, definir e discutir os problemas sociais, ela é a base mesma para o auto-governo e para a autonomia política. Em Habermas, o uso público da razão e a autonomia política envolvem a idéia de que a constituição seja sempre um projeto inacabado, sujeito ao exercício da autonomia política. O uso público da razão constitui um ideal de reflexão e abertura que faz com que se adote um ponto de vista a partir do qual os princípios políticos fundamentais também sejam vistos dessa maneira, como reflexivos e abertos. O reconstrutivismo habermasiano limita-se às condições e pressuposições da deliberação democrática, e deixa qualquer concepção substantiva para ser resolvida a partir do ideal de uso público da razão. Por isso, Habermas pode dizer que sua teoria tem um foco exclusivo nos aspectos procedimentais do uso público da razão e deriva o sistema de direitos de sua institucionalização legal. Com isso, ele pode deixar mais questões abertas ao processo racional de formação da opinião e da vontade.

Já Rawls propõe uma distinção que diferencia muito sua concepção da habermasiana, de modo que seja possível dizer que, sob o ponto de vista de Habermas, em Rawls não há de fato um uso público da razão. Na lição VI de Political Liberalism, Rawls (1993a, p. 262) faz uma distinção entre os usos público e não-público da razão: o uso público está ligado às funções governamentais (debates parlamentares, pronunciamentos, atos administrativos, trabalhos do judiciário) e também a partidos e campanhas políticas bem como ao próprio ato de votar. Por outro lado, a razão não-pública liga-se ao âmbito não-governamental (igrejas, universidades, associações da sociedade civil etc.). No entanto, não se trata de uma razão estritamente privada: sua natureza é social e ela pode dedicar-se aos mesmos problemas políticos com os quais se ocupa a razão pública (idem, p. 270).

A razão pública, de acordo com o aparato conceitual de Rawls (idem, p. 298), tem certas fronteiras que restringem tanto sua forma quanto seu conteúdo: ela é limitada à discussão pública de questões políticas fundamentais (fundamentos constitucionais e justiça básica); seu debate restringe-se ao âmbito da concepção política de justiça e aos valores políticos encontrados no consenso sobreposto. Por isso, as razões oferecidas na discussão pública de problemas políticos fundamentais devem ser aquelas que todos possam endossar em vista da concepção política de justiça compartilhada: ficam fora desse âmbito razões exclusivas, que tenham fundamento unicamente em alguma doutrina abrangente. Segundo Rawls, as razões explicitamente oferecidas nos termos de doutrinas abrangentes nunca devem ser introduzidas na razão pública.

Essa visão de razão pública é acompanhada por um ideal de cidadania que internaliza aqueles limites e faz com que os cidadãos apelem somente para uma concepção pública de justiça, e não para a verdade como um todo. Os cidadãos procederão deste modo, dadas as duas características do princípio de legitimidade liberal proposto por Rawls: a primeira diz respeito à relação entre pessoas no interior da estrutura básica da sociedade na qual nasceram e onde normalmente passam toda a sua vida; a segunda refere-se ao poder político, que, numa democracia, é sempre um poder coercitivo: constitui o poder do público, isto é, de cidadãos livres e iguais enquanto corpo coletivo.

Assim, segundo Rawls (idem, p. 266), no liberalismo político, o princípio liberal da legitimidade reza que o exercício do poder político é próprio e, por isso, justificável somente quando é exercido de acordo com uma constituição cujos elementos essenciais pode-se razoavelmente esperar que todos os cidadãos endossem, à luz de princípios e ideais aceitáveis para eles, enquanto razoáveis e racionais. Rawls chama a atenção para a idéia de que, se o exercício do poder político deve ser legítimo, o ideal de cidadania impõe um dever moral (não-legal): o dever de civilidade, isto é, de ser capaz de, no tocante a questões fundamentais, explicar aos outros de que maneira os princípios e políticas que se defende e nos quais se vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão pública. Tal dever também implica a disposição de ouvir os outros e certa equanimidade para decidir quando é razoável que se façam ajustes para conciliar os próprios pontos de vista com os de outros. Segundo Rawls (idem, p. 267), procurar satisfazer a condição de civilidade é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós: entender como se comportar enquanto cidadão democrático inclui apreender um ideal de razão pública.

Desse modo, para Rawls, é essa união do dever de civilidade com os grandes valores do político que produz o ideal de cidadãos governando a si mesmos - um ideal que também é sustentado pelas próprias doutrinas abrangentes que pessoas razoáveis sustentam. Os cidadãos defendem o ideal da razão pública não em conseqüência de uma barganha política, como em um modus vivendi, mas em virtude de suas próprias doutrinas razoáveis. Ser razoável, nesse sentido, significa não apelar para uma verdade completa, mas demonstrar como uma idéia pode ser defendida com base em valores políticos compartilhados.

IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dessas duas concepções de razão pública e autonomia aqui explicitadas, pode-se dizer que Habermas rejeita a fundamentação oferecida por Rawls a ambas, com base no argumento de que sua crítica política e social visa a direitos básicos, princípios e valores de um modo que desafia os acordos e entendimentos existentes: o modelo habermasiano, diferentemente, põe na mesa uma proposta que permite que os cidadãos vejam as questões fundamentais sob um novo ponto de vista. Pode-se afirmar, assim, com alguma segurança, que, com a teoria da ação comunicativa, Habermas propõe um ideal de razão prática que tem expressão num uso público da razão capaz de ir muito além do que aquilo que o consenso sobreposto pode estabelecer.

No modelo de Rawls, apenas em espaços não-governamentais da vida social (na background culture) é que os cidadãos são normativamente livres para discutir questões de justiça básica à luz de quaisquer considerações que acreditam ser relevantes. Para o pensador político, não importa quem discute ou o que se discute, mas onde se discute. No entanto, se o ideal de cidadania impõe um dever que é moral, e não legal, temos de atentar para a idéia de que a distinção entre os âmbitos do discurso oficial e do discurso não-oficial não é estabelecida por uma barreira institucional: trata-se do dever moral de civilidade contido no ideal de cidadania que recai, portanto, sobre os indivíduos, que devem fazer essa distinção. Por isso Rawls afirma que, diante da tentação de falar uma verdade completa num fórum público, devemos perguntar como nosso argumento poderia ser apresentado sob a forma de uma opinião do supremo tribunal, já que no fórum público não entram argumentos pautados exclusivamente em alguma doutrina abrangente.

Esse é o motivo pelo qual, para Rawls, a idéia de razão pública explicita, no nível mais profundo, os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos, e a relação destes entre si. Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a própria idéia de razão pública. Para eles, a relação política pode ser de amizade ou inimizade para com os membros de uma comunidade religiosa ou secular particular, ou pode ser uma luta implacável para conquistar o mundo para a verdade inteira. O liberalismo político não cativa os que pensam dessa maneira: o zelo de incorporar a verdade inteira na política é incompatível com uma idéia de razão pública que faça parte da cidadania democrática.

Já o procedimento da democracia deliberativa de Habermas entende a autonomia política como auto-legislação por meio do uso público da razão: a legitimidade de normas legais está conectada com o resultado que todos poderiam concordar numa deliberação pública que leve igualmente em consideração as necessidades, vozes e interesses de cada envolvido. O consenso racionalmente motivado deve compreender as dimensões ética, moral e pragmática do discurso. Sob essa base, Habermas pode criticar as limitações da razão pública expostas por Rawls e sustentar que o americano não levava em conta a idéia de que a alternativa de um procedimentalismo conseqüentemente aplicado resolveria o problema da tutela filosófica dos cidadãos.

Segundo Habermas (1998, p. 173), uma teoria que se limita a esclarecer as implicações da institucionalização jurídica de procedimentos de auto-legislação democrática não prejulga os resultados que os cidadãos mesmos têm de alcançar em cada um destes marcos institucionais configurados por tais procedimentos. Uma razão prática que se encarne em processos, e não em conteúdos, não desempenha qualquer papel paternalista quando se lhe restitui uma autoridade pós-metafísica, independente de concepções de mundo, como aparece com clareza no debate em torno do secularismo na política22 22 Assim, por exemplo, em Entre naturalismo e religião, Habermas (2007, p. 286ss.) aborda a temática do uso de argumentos religiosos na esfera pública a partir das críticas à posição rawlsiana. Habermas afirma que o dever que Rawls impõe aos cidadãos religiosos de recorrerem apenas a argumentos da razão pública para fundamentarem suas pretensões no espaço político é uma exigência inadequada. Primeiro, porque a separação rawlsiana caracteriza, de certo modo, uma imposição para as pessoas que têm sua religião como concepção de vida boa e que devem abster-se do uso político de argumentos tidos como privados. Segundo, porque as tradições religiosas têm relevância na convivência humana, de modo que o discurso religioso sobre questões políticas deveria ser visto, também por isso, como argumentação sobre conteúdos de verdade que podem ser traduzidos para uma linguagem pública. O Estado não deve estabelecer que as concepções religiosas não devam ser manifestadas no espaço público: segundo ele, não há como saber se a proibição de tais manifestações não estaria privando, ao mesmo tempo, a sociedade de recursos importantes para a criação de sentido. . Fechar a esfera política a argumentos religiosos seria possivelmente desperdiçar novas oportunidades de percepção e aprendizado moral. Uma argumentação de tipo liberal contra uma posição tradicionalmente entendida como republicana - movimento teórico que não deixa de carregar certa ironia do ponto de vista ideológico.

Recebido em 15 de novembro de 2010.

Aprovado em 25 de fevereiro de 2011.

Raquel Kritsch (kritsch@uel.br) é Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

André Silva (andre_slv@hotmail.com) é Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP).

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  • WHITE, S. (ed.). 1997. The Cambridge Companion to Habermas Cambridge: Cambridge.
  • 1
    A versão inicial deste artigo foi apresentada em forma de paper no 34º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em Caxambu, entre 25 e 29 de outubro de 2010. Agradecemos a Denílson Werle a leitura atenta e os profícuos comentários feitos ao texto na ocasião. Este trabalho vincula-se ao Projeto de Pesquisa "Direitos humanos universais e Estados nacionais: fundamentos históricos e problemas teóricos II", financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido junto ao Grupo "Estudos em Teoria Política" (GETEPOL-CNPq).
  • 2
    "A filosofia política procede à parte de todas essas doutrinas, e se apresenta em seus próprios termos como independente [
    freestanding]" (RAWLS, 1996, p. 623).
  • 3
    Assim, o argumento no liberalismo político se limita ao político, o que não ocorre na ética do discurso, onde, segundo Rawls, o argumento se ocupa não apenas da normatividade, mas também de valores.
  • 4
    Rawls (1995, p. 89), interpretando o filósofo alemão, acredita que, na verdade, Habermas pergunta: "Qual é a influência das doutrinas dentro de um consenso sobreposto sobre a justificação da concepção política, uma vez que os cidadãos vejam essa concepção como razoável e independente?".
  • 5
    Como veremos, Habermas acusará um problema importante neste tipo de justificação presente na concepção rawlsiana de razão pública: para o filósofo alemão, Rawls não compreendeu que o entendimento sobre a concepção de justiça depende de que os cidadãos assumam a mesma perspectiva.
  • 6
    Cabe lembrar a exposição em dois níveis que Rawls faz da justiça como eqüidade: "In the first stage justice as fairness should be presented as a free-standing political conception that articulates the very great values applicable to the special domain of the political, as marked out by the basic structure of society. The second stage consists of an account of the stability of justice as fairness, that is, its capacity to generate its own support, in view of the content of its principles and ideals as formulated in the first stage. In this second stage the idea of an overlapping consensus is introduced to explain how, given the plurality of conflicting comprehensive religious, philosophical, and moral doctrines always found in a democratic society - the kind of society that justice as fairness itself enjoins - free institutions may gain the allegiance needed to endure over time" (RALWS, 1989, p. 474). ["No primeiro estágio, a justiça como eqüidade deve ser apresentada como uma concepção política independente que articula os próprios grandes valores aplicáveis ao domínio especial do político, conforme delimitado pela estrutura básica da sociedade. O segundo estágio consiste em uma avaliação da estabilidade da justiça como eqüidade, ou seja, sua capacidade de gerar seu próprio apoio, tendo em vista o conteúdo de seus princípios e ideais conforme formulados no primeiro estágio. Nesse segundo estágio a idéia de um consenso sobreposto é introduzida para explicar como, dada a pluralidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes e conflitantes sempre encontrada em uma sociedade democrática - o tipo de sociedade que a justiça como eqüidade impõe-se -, as instituições livres podem obter o assentimento necessário para perdurar ao longo do tempo" (nota dos revisores).]
  • 7
    Rawls aponta três razões para justificar sua defesa do consenso sobreposto razoável como a melhor base explicativa da unidade social nas democracias atuais: em primeiro lugar, porque a estrutura básica da sociedade é efetivamente regulada pela concepção política mais razoável de justiça; em segundo lugar, porque essa concepção política de justiça é endossada por um consenso sobreposto constituído por todas as doutrinas abrangentes razoáveis na sociedade, e estas estão em maioria duradoura em relação àquelas que rejeitam essa concepção; em terceiro lugar, porque as discussões políticas públicas, quando estão em jogo princípios constitucionais e questões de justiça básica, são sempre, ou quase sempre, decididas razoavelmente com base nas razões especificadas pela concepção política mais razoável de justiça, ou por uma família razoável dessas concepções.
  • 8
    Rawls dá o exemplo dos quacres, que não vão à guerra mas não pensam que a possibilidade de um povo apoiar a ida à guerra seja razão suficiente para opor-se ao governo democrático. Os valores políticos podem ser primordiais na sustentação do próprio sistema constitucional; essa sustentação pode ser dada mesmo por doutrinas religiosas, ainda que decisões particulares possam ser contestadas pela desobediência civil ou recusadas por objeções de consciência.
  • 9
    Habermas (1998, p. 67) afirma que há uma "fronteira rígida entre a identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. Segundo Rawls, essa fronteira é estabelecida pelos direitos liberais básicos que restringem a auto-legislação democrática, e com ela a esfera do político, desde o início, ou seja, antes de qualquer formação de vontade política (HABERMAS,1998, p. 67).
  • 10
    Os estágios são: I) posição original, na qual são selecionados os princípios de justiça; II) convenção constitucional, ocasião em que são selecionadas as regras constitucionais à luz dos princípios de justiça; III) legisladores, momento no qual são promulgadas leis conforme a constituição autoriza; IV) juízes, estágio em que são interpretadas a constituição e as leis (cf. RAWLS, 1971, p. 211).
  • 11
    Rawls diz que, sobre essas questões, Habermas parece concordar e cita uma passagem de
    Facticidade e validade: "A justificação da desobediência civil repousa num entendimento dinâmico da constituição como um projeto inacabado. Dessa perspectiva de longo prazo, o Estado constitucional democrático não representa uma estrutura acabada, mas uma realização delicada e acima de tudo falível e revisável, cujo propósito é realizar novamente o sistema de direitos em circunstâncias cambiantes, ou seja, interpretar melhor o sistema de direitos, institucionalizá-lo mais apropriadamente, e formular seus conteúdos mais radicalmente. Essa é a perspectiva dos cidadãos que estão ativamente envolvidos na realização do sistema de direitos e que querem superar a tensão entre facticidade e validade social, conscientes dos diferentes contextos" (HABERMAS, 1998, p. 107).
  • 12
    Nos termos de Rawls: "Central to the idea of public reason is that it neither criticizes nor attacks any comprehensive doctrine, religious or nonreligious, except insofar as that doctrine is incompatible with the essentials of public reason and a democratic polity. The basic requirement is that a reasonable doctrine accepts a constitutional democratic regime and its companion idea of legitimate law. While democratic societies will differ in the specific doctrines that are influential and active within them - as they differ in the western democracies of Europe, the United States, Israel, and India - finding a suitable idea of public reason is a concern that faces them all" (RAWLS, 1997, p. 574). ["Central para a idéia de razão pública é que ela nem critica nem ataca qualquer doutrina abrangente, religiosa ou não-religiosa, exceto na medida em que alguma doutrina seja incompatível com as essências da razão pública e da estrutura política democrática. O requisito básico é que tais doutrinas aceitam o regime democrático constitucional e a idéia correlata de Direito legítimo. Enquanto as sociedades democráticas diferirão nas doutrinas específicas que são influentes e ativas em seus interiores - como elas diferem nas democracias ocidentais da Europa, dos Estados Unidos, de Israel e da Índia -, encontrar uma idéia adequada de razão pública é uma preocupação com que se defrontam todas elas" (N. R.).]
  • 13
    Assim, segundo Rawls (1998, p. 125), o liberalismo político conecta as liberdades básicas em um sistema plenamente adequado de ambos os tipos de liberdade, e aponta essa conexão em seis passos, oferecendo uma visão própria da convergência entre os dois tipos de liberdades (cf. RAWLS, 1993a, p. 292-297).
  • 14
    Essa parece também ser a interpretação de Kenneth Baynes, no capítulo 9 da renomada coletânea inglesa dedicada a Habermas (BAYNES, 1997).
  • 15
    "Llamo argumentación al tipo de habla en que los participantes tematizan las pretensiones de validez que se han vuelto dudosas y tratan de desempeñarlas o de recusarlas por medio de argumentos. Una argumentación contiene razones que están conectadas de forma sistemática con la pretensión de validez de la manifestación y emisión problematizadas. La fuerza de una argumentación se mide en un contexto dado por la pertinencia de las razones. Esta se pone de manifesto, entre otras cosas, en si la argumentación es capaz de convencer a los participantes en un discurso, esto es, en si es capaz de motivarlos a la aceptación de la pretensión de validez en litigio. Sobre este trasfondo podemos juzgar también la racionalidad de un sujeito capaz de lenguaje y de acción según sea su comportamiento, llegado el caso, como participante en una argumentación: 'Cualquiera que participe en una argumentación demuestra su racionalidad o su falta de ella por la forma en que actúa y responde a las razones que se le ofrecen en pro o en contra de lo que está en litigio. Si se muestra abierto a los argumentos, o bien reconecerá la fuerza de esas razones, o tratará de replicarlas, y en ambos casos se está enfrentando a ellas de forma racional. Pero si se muestra sordo a los argumentos, o ignorará las razones en contra, o las replicará con aserciones dogmáticas. Y ni en uno ni en otro caso estará enfrentándose racionalmente a las cuestiones'. A la susceptibilidad de fundamentación de las emisiones o manifestaciones racionales responde, por parte de las personas que se comportan racionalmente, la disponibilidad a exponerse a la crítica y, en caso necesario, a participar formalmente en argumentaciones" (HABERMAS, 1981, t. I, p. 37).
  • 16
    "O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem papel normativo na justificação pública" (N. R.).
  • 17
    "Somente quando há um consenso sobreposto razoável é que a concepção de justiça da sociedade política pode ser publicamente [...] justificada" (N. R.).
  • 18
    Aqui, Habermas lembra outra passagem de Rawls: "It is up to each comprehensive doctrine to say how its idea of the reasonable connects with its concept of truth" (RAWLS, 1993a, p. 94).
  • 19
    "O lugar entre cidadãos na sociedade civil - o ponto de vista seu e meu" (N. R.).
  • 20
    Nas palavras de Rawls: "Los contenidos explícitos de estas doctrinas no tienen ningún papel normativo en la justificación pública; los ciudadanos no atieden al contenido de las doctrinas de los demás [...]. Más bien tienen en cuenta y dan cierto peso sólo al hecho - la existencia - del consenso entrecruzado mismo" (RAWLS, 1998, p. 91).
  • 21
    "In this case (when an overlapping consensus is achieved) citizens embed their shared political conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then we
    hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that political values are normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values may conflict with them" (RALWS,1998, p. 97; grifo no original). ["Nesse caso (quando um consenso sobreposto é alcançado), os cidadãos incorporam sua concepção política compartilhada em suas doutrinas abrangentes razoáveis. Então,
    esperamos que os cidadãos julgarão (a partir de suas perspectivas abrangentes) que os valores políticos são normalmente (embora nem sempre) anteriores a, ou mais importantes que, elas, quaisquer que sejam os valores não-políticos que possam entrar em conflito com elas" (N. R.).]
  • 22
    Assim, por exemplo, em
    Entre naturalismo e religião, Habermas (2007, p. 286ss.) aborda a temática do uso de argumentos religiosos na esfera pública a partir das críticas à posição rawlsiana. Habermas afirma que o dever que Rawls impõe aos cidadãos religiosos de recorrerem apenas a argumentos da razão pública para fundamentarem suas pretensões no espaço político é uma exigência inadequada. Primeiro, porque a separação rawlsiana caracteriza, de certo modo, uma imposição para as pessoas que têm sua religião como concepção de vida boa e que devem abster-se do uso político de argumentos tidos como privados. Segundo, porque as tradições religiosas têm relevância na convivência humana, de modo que o discurso religioso sobre questões políticas deveria ser visto, também por isso, como argumentação sobre conteúdos de verdade que podem ser traduzidos para uma linguagem pública. O Estado não deve estabelecer que as concepções religiosas não devam ser manifestadas no espaço público: segundo ele, não há como saber se a proibição de tais manifestações não estaria privando, ao mesmo tempo, a sociedade de recursos importantes para a criação de sentido.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Nov 2010
    • Aceito
      25 Fev 2011
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