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Apresentação

DOSSIÊ "CRIME, SEGURANÇA E INSTITUIÇÕES ESTATAIS: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS"

Ao organizarmos o dossiê "Crime, segurança e instituições estatais: problemas e perspectivas" neste número da Revista de Sociologia e Política, buscamos - tanto no momento da convocatória pública quanto em relação aos autores convidados - produzir uma discussão que apresentasse reflexões originais e críticas sobre o tema, mesmo sem perder de vista sua urgência política. Ou seja, de maneira deliberada, evitamos as interpretações que atualmente compõem o mainstream interpretativo na área (para empregar expressão do próprio mundo do espetáculo).

Assim, a preocupação central levou a um distanciamento tanto das leituras formalistas e/ou normativas, que orientam sua perspectiva ao que deveriam fazer as instituições - e especificamente as agências do sistema penal -, quanto das leituras voltadas exclusivamente para a assim chamada questão social e que consideram o crime como exclusivamente relacionado à pobreza e à desigualdade.

Convencidos, desse modo, de que temas urgentes não são sinônimos de formulações apressadas e pouco rigorosas, priorizamos trabalhos que problematizassem a questão da criminalidade. Já no título do dossiê fica evidente que, ao menos a partir de nossa perspectiva, a questão criminal deve ser pensada conjuntamente com o papel desempenhado pelas instituições estatais e os complexos e polissêmicos significados da noção de "segurança". São as relações que se estabelecem entre as dimensões da criminalidade e da segurança, bem como os modos pelos quais tais dimensões são pensadas e processadas pelas instituições estatais que em grande medida, definem nosso objeto de interesse. Já há bastante tempo, Emile Durkheim afirmava que o crime e a punição eram "fatos sociais", fenômenos normais, já que encontrados em todas as sociedades, em contraposição a muitos de seus contemporâneos, que definiam o crime como um fato patológico e natural e a pena como remédio passível de elaboração puramente "científica". Na atualidade, autores como David Garland retomam a trilha iniciada por Durkheim para defender a necessidade de uma Sociologia da Punição, capaz de restituir à punição legal a sua complexidade, já que a resposta punitiva não diz respeito apenas ao criminoso e às instituições repressivas, mas envolve toda a sociedade, sendo moldada pelas mais diversas forças sociais. Assim, diversas pautas culturais e diferentes conjunturas históricas, políticas e econômicas permitiram estabelecer, para determinados sociedades, quais atos são considerados crimes e quais condutas são permitidas, do mesmo modo que quais graus de insegurança e formas de repressão são toleráveis. Diferentes arranjos sociais são construídos, ao envolver formas de controle e sanção dos crimes, como afirma Michel Misse; esses arranjos são organizados em torno de acordos e consensos parciais, que dão lugar a ações públicas e legitimam políticas que, de acordo com o cenário em que tenham lugar, podem possibilitar a expansão ou a limitação do poder de polícia do Estado sobre a sociedade.

Nesses termos, é possível afirmar que criminalidade e segurança são um constructo, ou seja, são práticas e processos sociais que, em uma situação concreta e em uma temporalidade específica, são pensadas de determinada forma. Diversos grupos sociais, com maior ou menor poder, bem como as instituições sociais, com suas ideologias, atuam de modo a administrar e gerir as questões envolvidas. Daí a importância de, no momento de analisar a criminalidade, indagar igualmente como pensam e atuam as instituições.

Está claro para nós que os mundos da criminalidade, da justiça, das burocracias estatais - especialmente das que compõem o sistema penal - não são externos nem estranhos às sociedades que os produzem e apóiam e das quais fazem parte, resultados que passam igualmente a moldar a própria sociedade. Também não são mundos homogêneos: são diversos, desiguais, segmentados e atravessados por disputas, enfrentamentos, hierarquias e divergências.

Tendo em vista tal perspectiva, procuramos justamente reunir trabalhos que buscam problematizar a questão criminal, em contraposição às concepções fetichizadas encontradas tanto dispersas na vida social como na própria produção acadêmica. Um dos caminhos trilhados consistiu em convocar autores que, ao analisarem a questão criminal, discutem a pluralidade de fenômenos aí englobados, bem como as diversas formas locais de sua gestão; as diversas lógicas que incidem nas formas de mediação e negociação dos pares legal-ilegal, lícito-ilícito; as formas locais pelas quais se expressa a relação entre crime, registros estatais e temores ou medos sociais.

Todos esses fenômenos, em sua diversidade, dão conta das formas de produção, administração, medição, leitura e experimentação daquilo que é naturalizado como crime e que preferimos chamar de "criminalidade", ao buscar enfatizar o aspecto social da questão. Tal abordagem abre a possibilidade de pensar-se sobre a violência como um valor com usos sociais variados, de pensá-la não de modo homogêneo, mas como diferentes práticas e, ao mesmo tempo, indagar acerca das ideologias, usos e costumes das instituições estatais vinculadas ao campo de controle do crime, em sentido mais estrito, assim como suas ligações com o poder político. Enfim, permite questionar as dinâmicas conflitivas que envolvem a criminalidade e seu controle em nossa sociedade. Tal foi o eixo principal de nossa convocatória - e os autores que contribuem para este dossiê desenvolvem seus questionamento a partir de variados campos de investigação.

Michel Misse abre o dossiê com a discussão acerca das relações que podem ser estabelecidas entre o "crime organizado" e o "crime comum" no Rio de Janeiro. Busca, assim, elementos para analisar o quanto a compreensão do chamado "crime organizado" pode ajudar a explicar as lógicas de atuação presentes no crime comum ou, em direção contrária, se subestima-se ou superestima-se essa relação na contemporaneidade. O autor emprega a noção de "mercadorias políticas" à luz destes três mercados ilegais: o "jogo do bicho", os "comandos" e as "milícias" - os três tipos de organização criminosa tratados no artigo são empreendimentos que se definem, primeiramente, como mercados ilegais. Essas mercadorias ilegais exploradas - jogo, drogas, armas e proteção - possuem diferentes propriedades como capital. No entanto, essas organizações dependem, para reproduzirem-se, de um segundo tipo de mercadoria: aquela que protege quem controla territórios, quem negocia armas, quem anota apostas nas ruas: trata-se de uma mercadoria que depende de um cálculo efetivo de poder e de correlação de forças para poder adquirir características econômicas; trata-se de "mercadorias políticas".

Na mesma linha, Carolina Grillo, Frederico Policarpo e Marcos Veríssimo fazem uma análise dos efeitos da nova Lei de Drogas (Lei n. 11 343/2006) sobre a repressão legal ao consumo de substâncias ilícitas e o processamento formal dos casos encaminhados ao sistema de justiça criminal no Rio de Janeiro. O artigo traz à tona as práticas e os arranjos dos atores envolvidos com o controle social ou legal do uso de drogas e elucida as dinâmicas das negociações envolvidas no processo de incriminação dos usuários na "dura" e no "desenrolo" em meio às mudanças e aos deslocamentos trazidos pelo novo diploma legal. A pesquisa de campo dos autores sugere ainda que a atual legislação sobre drogas intensificou práticas policiais arbitrárias e a transformação dos registros de ocorrência naquilo que Misse conceituou como "mercadorias políticas".

Ana Paula Mendes e María Victoria Pita, por sua vez, fazem uma etnografia da produção de estatísticas oficiais em matéria de criminalidade ao descrever o processo que leva à produção de dados de segurança pública. Mendes e Pita problematizam o contexto de uso das estatísticas, pois os dados "oficiais" resultam de modalidades particulares (institucional-legais) de como tratar, codificar, dividir, hierarquizar determinados registros sobre a criminalidade. As autoras tiveram por objeto os dados comparativos sobre mortes violentas provenientes de fontes policiais para os casos de homicídios nas regiões metropolitanas de Buenos Aires e do Rio de Janeiro. Os registros resultam de disputas de um saber-poder que institui uma relação entre luta e verdade(s) por meio da relação de dominação que a estatalidade exerce como "linguagem oficial".

Gabriel Kessler aborda a questão da extensão do sentimento de insegurança no caso Argentino, tocando em um ponto crucial: as taxas de temor e de medo do crime são freqüentemente o dobro das taxas de crimes. O que repõe a seguinte questão: por que os grupos menos vitimados são freqüentemente os grupos mais temerosos? De uma perspectiva qualitativa e quantitativa, o autor primeiramente problematiza o sentimento de insegurança argentino em perspectiva comparada com outros países latino-americanos, para, em um segundo momento, inseri-lo em suas dinâmicas e conseqüências sociais específicas. Kessler analisa, no caso argentino, por meio dos relatos e das práticas sociais, tanto a produção do sentimento de insegurança quanto a gestão da insegurança. O autor chama a atenção, no caso em estudo, para opiniões 'nativas' com relação à insegurança, sobre as nuances e para uma fracassada oposição binária entre democráticos e punitivos, assinalando ainda que o que ocorrerá nesse campo não dependerá tanto da evolução das taxas de delito mas fundamentalmente das "respostas que o poder político, a academia e os meios de comunicação possam dar; da forma como a vida urbana reconfigura-se e das imagens e juízos sobre os distintos grupos aceitos no espaço público".

Fabia Berlatto discute os discursos da "segurança pública" formulados e difundidos pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Paraná, considerando-os como um dispositivo de controle social perverso. O uso do adjetivo "perverso" refere-se a um tipo de controle social que, em vez de primar pelo bem-estar social, investe ao mesmo tempo na defesa retórica dos direitos humanos, na exaltação de critérios técnico-científicos de "guerra" ao crime, bem como nas ações práticas de combate legal da pobreza. Tais práticas discursivas mobilizam duas doxas diferentes, direcionadas a públicos diferentes: os chamados "formadores de opinião" e o público eleitoral. A adesão a essas doxas está ligada a um jogo cujas regras são dadas pelas lutas no campo político, em um processo que faz parte não só de um mecanismo de manutenção do monopólio do uso legítimo da força física e simbólica pelo Estado, mas também da luta político-eleitoral daqueles agentes do Estado que formulam e pronunciam esse novo discurso da segurança pública. Esses discursos políticos encontram-se em um ponto específico: identificam, para todos os fins, crime e marginalidade social como rituais de degradação da categoria social dos pobres.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo revisita a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu sobre o campo jurídico distinguindo esse campo do campo judicial. Azevedo define o "campo judicial" como um subcampo que opera no interior do campo jurídico, ou seja, é uma instituição de um monopólio de profissionais que dominam a produção e a comercialização dos serviços jurídicos (em virtude da competência jurídica e social ou do poder específico) para constituir o objeto jurídico-judicial e transformar uma realidade social em realidade jurídico-judicial. Em seguida, são analisadas as diferentes linhas interpretativas da atuação dos mecanismos institucionais de administração de conflitos no Brasil, tendo em vista ressaltar a existência de lógicas distintas de administração estatal de conflitos que correspondem às hierarquias de rituais, pessoas e tipos de conflito. Azevedo, portanto, problematiza a força do Direito e a violência das formas jurídicas considerando a seguinte questão: a histórica utilização do sistema jurídico como mecanismo de produção e reprodução de hierarquias e desigualdades sociais pode, de modo reverso, traduzir demandas sociais em demandas jurídicas, reduzindo o espaço da pura e simples discricionariedade.

José Nóbrega, Jorge Zaverucha e Enivaldo Rocha argumentam que as taxas de homicidio são um importante indicador para a avaliação do nível da democracia no Brasil contemporâneo. Segundo os autores, o Index of Democracy (da revista inglesa The Economist) negligencia as taxas de homicidios na avaliação das liberdades civis em um dado país. No artigo, os autores utilizam os dados referentes às mortes por agressão com ênfase na região Nordeste e, especialmente, no estado de Pernambuco. O objetivo dos autores é analisar a qualidade da democracia brasileira tendo como um de seus critérios avaliativos o indicador de homicídio: a variável dependente é a qualidade da democracia e a variável independente, as taxas de morte por agressão em Pernambuco. O resultado da análise infere que as taxas altas de homicídios são um óbice à consolidação da democracia no Brasil.

"Mas quem vigiará os vigias?" é o tema do artigo de Cleber da Silva Lopes. A pergunta do satirista romano Juvenal busca sintetizar o dilema político do artigo: como é exercido o controle estatal sobre as organizações e sobre os agentes de segurança privada em sociedades democráticas? Lopes discute o crescimento do policiamento executado pelas empresas de segurança privada, por organizações e agentes informais no Brasil, apontando os dilemas do controle público contemporâneo sobre a segurança privada em vista dos riscos potenciais que esses serviços representam para os direitos civis e para a ordem democrática, na atualidade. A análise revela que a política regulatória empreendida pela Polícia Federal, entre 1996 e 2006, promoveu uma regulação maior em alguns desses temas (como no caso dos requisitos para empresas e vigilantes atuarem e, principalmente, no que se refere ao treinamento), embora outras áreas permaneçam desreguladas (como no caso das armas de fogo, por exemplo).

Por último, o ensaio bibliográfico de Joaquín Gómez discute criticamente três etnografias que abordam a experiência da delinqüência na sociedade contemporânea: na Argentina, o trabalho de Daniel Míguez; no Brasil os trabalhos de Alba Zaluar e Marcos Alvito. Os trabalhos são analisados sob a perspectiva de uma relação frutífera (embora não explícita) entre esses autores e Michel Foucault. O autor articula as reflexões sobre o "macro" e o "micro" de modo que esse imbricamento capte o modo como essas "histórias menores" articulam-se no campo social. No ensaio, Gómez quer tanto evitar um conceito transcendente, que substancializa sujeitos "políticos", como também não condenar a abordagem etnográfica a um giro fenomenológico pós-moderno, que rejeita qualquer forma de segmentação social. Portanto, a proposta metodológica do ensaio é produzir um conhecimento social sobre as mudanças no tecido urbano dos bairros estigmatizados dentro de um processo conflitivo e múltiplo, no qual coexistem estratégias, saberes e lógicas muito diversas - locais e supralocais - que entram em jogo dando lugar a novas figuras sociais.

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Em passagem anterior fizemos uma crítica às concepções fetichizadas acerca da questão criminal. Um fetiche é um objeto, uma coisa ou um talismã que se constitui como valioso em si mesmo, ao obscurecer todas as relações e processos dos quais é o resultado. Torna-se, ao mesmo tempo, um objeto sagrado e misterioso - sustentado na crença - e que por isso concentra um grande poder. É nesse sentido que a criminalidade (e concomitantemente a noção de segurança, que a acompanha no encantamento) converteu-se em fetiche ou em um "dispositivo de segurança", nos termos de Foucault. Estabelece-se, ademais, um incessante jogo de espelhos, já que demonizar a criminalidade reforça o poder do próprio fetiche. Buscamos aqui, ao escolher o conjunto de artigos anteriormente arrolados, questionar tal crença, descobrir, para além dos conceitos reificados, as relações sociais, as práticas cotidianas. Enfim, iluminar os processos e representações sociais colocadas em jogo nessa complexa dimensão da vida social. Por fim, gostaríamos de registrar o nosso agradecimento aos editores da Revista de Sociologia e Política, em especial a Paulo Roberto Neves Costa e a Adriano Codato pelo convite à organização deste dossiê temático. Esperamos que ele seja uma contribuição positiva ao debate contemporâneo sobre criminalidade, segurança e instituições estatais.

Recebido em 2 de agosto de 2010.

Aprovado em 25 de agosto de 2010.

Maria Victoria Pita (mariavictoriapita@yahoo.com.ar) é Doutora em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e Professora da mesma instituição.

Marcos César Alvarez (mcalvarez@usp.br) é Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da mesma instituição.

Marcelo da Silveira Campos (marcelocampos@usp.br) é Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

  • Apresentação

    Maria Victoria Pita; Marcos César Alvarez; Marcelo da Silveira Campos
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2011
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