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A crise da potência inteligente: os EUA e a grande estratégia de acomodação no governo Obama

Resumos

Os objetivos do artigo são explicar (i) a adoção da grande estratégia de acomodação, pelos Estados Unidos da América (EUA), durante a administração de Barack Obama, para lidar com as principais ameaças a tal Estado no nível internacional e (ii) examinar os efeitos da crise econômico-financeira internacional iniciada em 2008 sobre a atuação internacional dos EUA. Foi desenvolvido, a partir da perspectiva analítica de Joseph S. Nye Jr. acerca do conceito de "poder inteligente", um estudo qualitativo no qual se buscou sustentar três argumentos centrais: (i) a adoção da grande estratégia de acomodação mostrou-se relacionada ao conceito de "poder inteligente" que informa as posições da administração Obama; (ii) a crise não provocou um desafio fundamental à posição predominante dos EUA no sistema internacional, mas confirmou a necessidade de reajuste da grande estratégia de tal Estado na direção da acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA; (iii) o reajuste da grande estratégia norte-americana não atingiu plenamente os resultados almejados por tal administração em face da cooperação limitada por parte de outras grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA. As principais conclusões apontam que os EUA podem reforçar sua posição de "potência inteligente" se investirem mais em bens públicos globais, oferecendo o que povos e governos ao redor do mundo desejam, mas não conseguem sozinhos. Ao complementarem seu poder militar e econômico com um investimento maior em seu poder brando, os EUA poderiam reconstruir a estrutura necessária para lidar com desafios globais.

EUA; Barack Obama; poder inteligente; grande estratégia; crise econômicofinanceira


The purposes of this article are to explain the adoption of U.S. grand strategy of accomodation during the Barack Obama’s administration to deal with major threats to such state at the international level and examine the effects of the international financial and economic crisis that began in the late 2000s on the international role of the U.S.. Based on the analytical perspective of Joseph S. Nye Jr. about the concept of "smart power", this qualitative study presents three core arguments: 1) the adoption of a grand strategy of accommodation was related to the concept of "smart power" that informs the positions of Obama administration, 2) the crisis has not led to a fundamental challenge to the predominant position of the U.S. in the international system, but confirmed the need for adjustment of U.S. grand strategy toward the accommodation of interests of major powers, emerging economies and hostile states, 3) the adjustment of the U.S. grand strategy did not fully achieve the desired results in the light of the limited cooperation by other great powers, emerging economies and hostile states to the U.S.. The main findings indicate that the U.S. can reinforce its "smart power" if it invests more in global public goods and offers what the peoples and governments around the world want but can not have by themselves. If it complements its military and economic power with a greater investment in its soft power, the U.S. can rebuild the structure needed to deal with global challenges.

United States; Barack Obama; smart power; grand strategy; economic and financial crisis


(dvieira@espm.br) Doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor do curso de Graduação em Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-RJ)

RESUMO

Os objetivos do artigo são explicar (i) a adoção da grande estratégia de acomodação, pelos Estados Unidos da América (EUA), durante a administração de Barack Obama, para lidar com as principais ameaças a tal Estado no nível internacional e (ii) examinar os efeitos da crise econômico-financeira internacional iniciada em 2008 sobre a atuação internacional dos EUA. Foi desenvolvido, a partir da perspectiva analítica de Joseph S. Nye Jr. acerca do conceito de "poder inteligente", um estudo qualitativo no qual se buscou sustentar três argumentos centrais: (i) a adoção da grande estratégia de acomodação mostrou-se relacionada ao conceito de "poder inteligente" que informa as posições da administração Obama; (ii) a crise não provocou um desafio fundamental à posição predominante dos EUA no sistema internacional, mas confirmou a necessidade de reajuste da grande estratégia de tal Estado na direção da acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA; (iii) o reajuste da grande estratégia norte-americana não atingiu plenamente os resultados almejados por tal administração em face da cooperação limitada por parte de outras grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA. As principais conclusões apontam que os EUA podem reforçar sua posição de "potência inteligente" se investirem mais em bens públicos globais, oferecendo o que povos e governos ao redor do mundo desejam, mas não conseguem sozinhos. Ao complementarem seu poder militar e econômico com um investimento maior em seu poder brando, os EUA poderiam reconstruir a estrutura necessária para lidar com desafios globais.

Palavras-chave: EUA; Barack Obama; poder inteligente; grande estratégia; crise econômicofinanceira

ABSTRACT

The purposes of this article are to explain the adoption of U.S. grand strategy of accomodation during the Barack Obama’s administration to deal with major threats to such state at the international level and examine the effects of the international financial and economic crisis that began in the late 2000s on the international role of the U.S.. Based on the analytical perspective of Joseph S. Nye Jr. about the concept of "smart power", this qualitative study presents three core arguments: 1) the adoption of a grand strategy of accommodation was related to the concept of "smart power" that informs the positions of Obama administration, 2) the crisis has not led to a fundamental challenge to the predominant position of the U.S. in the international system, but confirmed the need for adjustment of U.S. grand strategy toward the accommodation of interests of major powers, emerging economies and hostile states, 3) the adjustment of the U.S. grand strategy did not fully achieve the desired results in the light of the limited cooperation by other great powers, emerging economies and hostile states to the U.S.. The main findings indicate that the U.S. can reinforce its "smart power" if it invests more in global public goods and offers what the peoples and governments around the world want but can not have by themselves. If it complements its military and economic power with a greater investment in its soft power, the U.S. can rebuild the structure needed to deal with global challenges.

Keywords: United States; Barack Obama; smart power; grand strategy; economic and financial crisis.

I. Introdução1 1 Gostaria de agradecer as críticas e as sugestões oferecidas durante a elaboração deste artigo pelos demais integrantes do grupo de pesquisa "Conflito e Cooperação na Sociedade Internacional", da ESPM-RJ: Fernando Padovani, Gian Carlos Moreira Ferreira e Suellen Mayara Péres de Oliveira. Agradece-se também aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política por suas contribuições.

O presidente norte-americano Barack Obama - cujo primeiro mandato teve início em 2009 - prometeu (i) colocar um fim nas guerras do Afeganistão e do Iraque; (ii) oferecer a cooperação ao Irã; (iii) "reiniciar" as relações com a Rússia a fim de caminhar na direção de um mundo livre de armas nucleares; (iv) conquistar a cooperação chinesa em questões regionais e globais e (v) trazer a paz para o Oriente Médio (Loy 2011, pp. 23-24). Entretanto, ficou gradativamente evidente a tensão entre a retórica de Obama, com sua aspiração a mudanças fundamentais, de um lado, e sua forma pragmática de governar e sua precaução política, de outro. Muitos compromissos assumidos por Obama foram interpretados por críticos nas esferas doméstica e internacional como sinais de fraqueza, e sua inabilidade de produzir resultados claros no curto prazo, tomada como uma indicação de incompetência. A crise econômico-financeira iniciada na segunda metade da década de 2000 complicou as ações da administração Obama, trazendo desafios como a limitação de recursos disponíveis a uma atuação internacional mais autônoma, como se verá mais adiante.

Defende-se, neste artigo, que a administração Obama teve uma atuação internacional baseada na acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA. Argumenta-se, com base em Indyk, Lieberthal e O’Hanlon (2012), que Obama tentou definir uma nova ordem liberal global com os EUA na liderança, mas partilhando mais responsabilidades e custos com outros Estados quando possível ou necessário. O presidente obteve sucessos, como o enfraquecimento da rede terrorista Al Qaeda, a assinatura do Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Novo START) com a Rússia, a imposição de novas sanções pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas ao Irã e a retirada das tropas norte-americanas do Iraque. Entretanto, houve pouco progresso na resolução do conflito entre Israel e Palestina, no combate à mudança do clima, na solução de atritos nas relações entre EUA e Paquistão e na cooperação com o Irã e a Coreia do Norte com relação às questões nucleares (idem).

Os objetivos do artigo são explicar a adoção da grande estratégia de acomodação pelos EUA durante a administração de Barack Obama para lidar com as principais ameaças a tal Estado no nível internacional e examinar os efeitos da crise econômico-financeira internacional iniciada na segunda metade da década de 2000 sobre a atuação internacional dos EUA. Será desenvolvido, a partir da perspectiva analítica de Joseph S. Nye Jr. (2009) acerca do conceito de "poder inteligente" ("smart power"), um estudo qualitativo no qual se pretende sustentar os seguintes argumentos: (i) a adoção de uma grande estratégia de acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis pelos EUA está relacionada ao conceito de "poder inteligente" que informa as posições da administração Obama; (ii) a crise não trouxe um desafio fundamental à posição predominante dos EUA no sistema internacional, mas confirmou a necessidade de reajuste da grande estratégia dos EUA na direção da acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA; (iii) reajuste da grande estratégia norte-americana não atingiu plenamente os resultados almejados pela administração Obama em face da cooperação limitada por parte de outras grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA.

Na próxima seção, serão discutidos os conceitos de "grande estratégia" e de "poder inteligente", que orienta a atuação internacional dos EUA durante a administração Obama. Na seção seguinte, será examinado o impacto da crise econômico-financeira iniciada na segunda metade da década de 2000 sobre a grande estratégia norte-americana. Por último, serão indicados os pilares da atuação internacional dos EUA na administração Obama. Antes de tecer as conclusões, serão apresentados os resultados da atuação internacional norte-americana durante a administração Obama e as reações dos principais atores do sistema internacional às ações dos EUA.

II. Grande estratégia e 'poder inteligente'

Kagan (2007) argumenta que a predominância norte-americana nas principais categorias do poder persiste como característica central do sistema internacional. A economia norte-americana, enorme e produtiva, permanece no centro do sistema econômico internacional, e os princípios democráticos defendidos por tal Estado são partilhados por mais de cem Estados ao redor do planeta. Ademais, as forças militares norte-americanas são as maiores e mais capazes de projetar força em teatros de operação distantes. Nem mesmo a hostilidade sino-russa à predominância norte-americana produziu um esforço concertado de equilíbrio de poder em nível global, ainda que China e Rússia partilhem o objetivo de checagem da predominância norte-americana. Ademais, tais Estados não poderiam contrabalançar os EUA sem a ajuda da Europa, do Japão ou de outros Estados democráticos avançados. Estes últimos atores, contudo, pouco provavelmente se engajariam em tais esforços por conta da cooperação avançada com os EUA em múltiplas esferas. Todavia, a predominância norte-americana não é sinônimo de onipotência. Nem sempre os EUA podem impor sua vontade sobre os outros ou serão bem sucedidos em todas as suas empreitadas. Também é possível afirmar, segundo o autor, que as falhas dos EUA em sua atuação internacional não necessariamente minam sua predominância se as condições internacionais fundamentais continuarem a sustentá-la. Na visão de Kagan (idem), enquanto (i) os EUA se mantiverem como o centro da economia internacional e o poder militar predominante; (ii) sua população apoiar tal predominância e (iii) desafiantes em potencial inspirarem mais medo do que solidariedade em seus vizinhos, a configuração de poder no sistema internacional deverá ser mantida.

Em face da posição dos EUA no sistema internacional contemporâneo, muito se discute sobre as respostas adequadas às ameaças a seus interesses e os princípios que deveriam guiar a atuação internacional dessa potência. Há especialistas que buscam examinar a necessidade, o conteúdo e as consequências de uma "grande estratégia", conceito que em geral está relacionado à gestão dos recursos políticos, militares e econômicos de um Estado para responder a ameaças. Ela envolve a especificação de certos objetivos ou fins nacionais e identifica os instrumentos pelos quais os objetivos podem ser buscados. Tais instrumentos podem ser compromissos diplomáticos, intervenção militar, ajuda internacional e sanções econômicas, por exemplo. Qualquer estratégia viável deve garantir que meios e fins estejam bem correlacionados e os compromissos não excedam as capacidades (Dueck 2011, p. 14). Ao examinar a grande estratégia dos EUA no período após o fim da Guerra Fria, Mastanduno (1997, p. 51) argumenta que, na esfera da segurança, havia uma tendência dominante em preservar sua posição no sistema internacional ao engajar e oferecer garantias às outras grandes potências. Na dimensão econômica, por sua vez, havia um esforço para a mobilização para a competição econômica nacional contra outras grandes potências. Ao analisar a grande estratégia norte-americana após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Ikenberry (2001, pp. 25-29) argumenta que a administração de George W. Bush reafirmou aspectos básicos da ordem multilateral econômica e de segurança e da posição de liderança dos EUA nessa ordem. Porém, era claro que diversos membros da administraçao Bush demonstravam um ceticismo profundo acerca da atuação dos EUA em uma ordem internacional baseada em regras e sua preferência pelo unilateralismo e pelo engajamento seletivo. Os EUA adotaram, assim, uma grande estratégia unilateral que resistia a envolvimentos em compromissos regionais ou multilaterais que fossem considerados marginais a suas necessidades de segurança no período posterior ao 11 de setembro. Porém, Ikenberry (idem) reconhece que haveria pressões e incentivos para que a administração Bush movesse-se na direção do multilateralismo no contexto da luta contra o terrorismo. Segundo o autor, a administração Bush precisaria redescobrir duas barganhas que os EUA fizeram com o mundo. A barganha realista trocava o apoio dos EUA na esfera da segurança e o acesso a mercados e tecnologia pelo apoio diplomático e logístico necessário para que os EUA buscassem seus objetivos geopolíticos. A barganha liberal baseava-se na obtenção de cooperação com outros Estados a partir da oferta de autorrestrições ao exercício de seu poder e do maior comprometimento com tais Estados.

Argumenta-se, de acordo com Dueck (2011, pp. 13-18), que a grande estratégia dos EUA, durante a administração Obama, baseou-se em uma perspectiva de acomodação. Obama acreditava que as rivalidades internacionais poderiam ser acomodadas pelo exemplo norte-americano e por sua própria liderança pessoal. Cabe examinar mais a fundo como tal perspectiva de acomodação foi definida. Com a proposta de "refazer a América", Obama alcançou reformas liberais ou progressivas em inúmeras áreas da política doméstica como saúde pública e regulação financeira, o que teve inúmeras implicações para a grande estratégia norte-americana. Os recursos deveriam ser transferidos, em termos relativos, dos gastos com segurança nacional para os gastos econômicos e sociais domésticos, e, particularmente diante do quadro de crise econômico-financeira iniciada na segunda metade da década de 2000, era preciso potencialmente evitar novos compromissos internacionais custosos. Os argumentos políticos domésticos foram complementados com a adoção de uma perspectiva de acomodação de interesses, visões e desejos de adversários ou rivais potenciais no exterior. Simultaneamente, Obama demonstrou que poderia ser mais ofensivo ao fazer cálculos em relação a inimigos já existentes, como ficou claro na caça a Osama bin Laden e no uso de ataques com veículos aéreos não-tripulados contra suspeitos de envolvimento em atividades terroristas no Paquistão. A categoria de atores cujos valores e interesses centrais eram irreconciliáveis com os dos EUA era pequena na visão da administração Obama, e raramente tais ameaças pareciam chegar ao nível de atores estatais. Dessa forma, a suposição central parecia ser a de que virtualmente qualquer Estado poderia ser engajado de forma bem sucedida, independentemente do tipo de regime. Assim, a grande estratégia não seria desenvolvida por meio da promoção arrojada da democracia ou da interdependência econômica no exterior, mas da acomodação mútua de interesses. Ademais, Obama sinalizava que, quando se tratava da atuação internacional dos EUA, o papel do presidente era crucial na definição de escolhas e prioridades, as quais envolviam tradeoffs políticos domésticos. Ele estava determinado a manter em suas próprias mãos as principais decisões acerca da atuação internacional dos EUA e tomá-las com cuidado, demonstrando sua confiança na habilidade de pessoalmente analisar, articular e gerir os vários estágios do processo de formulação da decisão (idem, pp. 13-18).

Sustenta-se, neste artigo, que a grande estratégia de acomodação adotada pelos EUA durante a administração Obama está relacionada à noção de "poder inteligente", que informou as posições dessa administração e que se tornou o centro de sua atuação internacional. Tal expressão foi popularizada por Hillary Clinton (2009) em sua audiência de confirmação perante o Senado como secretária de Estado na administração Obama. Segundo ela, o conceito referia-se ao conjunto completo de ferramentas à disposição dos EUA - diplomáticas, econômicas, militares, políticas, jurídicas e culturais - e à seleção da ferramenta ou da combinação de ferramentas adequadas para cada situação. Nye Jr. (2009), um dos especialistas que cunhou o conceito de poder inteligente" e primeiramente o desenvolveu nos círculos acadêmicos, aponta que poder é a habilidade de afetar o comportamento de outros atores a fim de alcançar o que se deseja. Enquanto o poder bruto ("hard power") refere-se à habilidade de se obterem resultados preferidos pela coerção e/ou intimidação a partir de recursos militares e/ou econômicos, o poder brando ("soft power") refere-se à habilidade de se obterem resultados preferidos pela atração ideológica e cultural e/ou persuasão. O "poder inteligente" denota a habilidade de combinação de recursos de poder bruto e poder brando dependendo de quais deles seriam mais decisivos em uma dada situação. Nye Jr. (idem) diz ter desenvolvido o conceito em 2003 a fim de responder à percepção equivocada de que o poder brando sozinho poderia produzir uma atuação internacional mais bem-sucedida. Segundo a "Comission on Smart Power" do Center for Strategic and International Studies (2012, p. 7) - presidida pelo próprio Nye Jr. e por Richard L. Armitage -, a expressão "poder inteligente" refere-se à combinação de estratégias que confiam em recursos de poder bruto com as de poder brando, em uma perspectiva que destaca a necessidade de um aparato militar forte, investindo pesadamente também em alianças, parcerias e instituições de todos os níveis, a fim de expandir a influência norte-americana e estabelecer a legitimidade das ações dos EUA. De acordo com tal comissão (idem, p. 1), os EUA podem buscar um poder mais inteligente a partir do investimento em bens globais e da complementação de seu poder militar e econômico com investimentos maiores no poder brando. Entre as áreas críticas nas quais os EUA poderiam focar, destacam-se (i) o revigoramento de alianças, parcerias e instituições; (ii) a ampliação do papel do desenvolvimento em sua atuação internacional, a fim de alinhar seus interesses com as aspirações de povos ao redor do mundo; (iii) o incentivo à diplomacia pública; (iv) o engajamento contínuo com a economia global e a integração econômica a fim de ampliar os benefícios do livre comércio dentro e fora dos EUA; e (v) o desenvolvimento de tecnologia e inovação para que se desenvolvessem saídas inovadoras diante de desafios como a garantia de segurança energética e a mudança do clima. Para Crocker, Hampson e Aall (2012), o poder inteligente envolve o uso estratégico da persuasão, da construção de capacidades e da projeção de poder e influência de forma a reduzir custos e conquistar legitimidade político-social, essencialmente por meio do engajamento da força militar com as diversas formas de diplomacia.

Na aplicação de uma estratégia baseada no poder inteligente, Nye Jr. (2009) ressalta que a inteligência contextual deve começar com um entendimento não só das forças, mas dos limites ao poder dos EUA. Ainda que os EUA sejam a única superpotência, tal predominância não constitui onipotência, como já apontava Kagan (2007). Porém, de forma mais complexa que esse autor, Nye Jr. (2009) aponta que a política mundial é um jogo de xadrez de três dimensões: no nível mais elevado, o poder militar entre os Estados é unipolar; no nível intermediário das relações econômicas interestatais, o mundo era multipolar; no nível mais baixo das relações transnacionais - que envolve questões como mudança do clima, drogas ilícitas, pandemias e terrorismo -, o poder está coaticamente distribuído e difuso entre atores não-estatais. O poder militar é apenas uma parte de qualquer resposta a novas ameaças, o que torna necessária a cooperação entre os governos e as instituições internacionais. Mesmo na esfera militar, os EUA mostram-se menos capazes de, por exemplo, controlar populações nacionalistas em áreas ocupadas (idem). Nye Jr. (2011) reconhece que o poder inteligente não é facilmente colocado em prática. A diplomacia e a ajuda internacional em geral recebem poucas verbas e são negligenciadas em parte por causa das dificuldades de demonstração de seus impactos no curto prazo. As recompensas de programas de ajuda são sentidas em décadas, não em semanas ou meses. As instituições norte-americanas responsáveis pela atuação internacional dos EUA mostram-se fraturadas e compartimentalizadas, e não há um processo adequado de interação entre agências para o desenvolvimento e o financiamento de uma estratégia que tenha no seu centro o poder inteligente. Muitos instrumentos oficiais de poder brando - diplomacia pública e programas de ajuda para o desenvolvimento, por exemplo - estão espalhados pelo governo, e não há uma perspectiva que consiga integrá-los. Além disso, o orçamento norte-americano precisaria ser revisto a fim de que os programas não militares de atuação internacional recebessem mais verbas. Todavia, a necessidade de recursos apresenta um desafio ainda maior à implementação do poder inteligente diante da crise econômico-financeira iniciada na segunda metade da década de 2000. Os efeitos de tal crise sobre a grande estratégia dos EUA serão mais explorados na próxima seção.

III. A crise econômico-financeira e as limitações à grande estratégia dos EUA

A atuação internacional dos EUA foi afetada, direta e indiretamente, pelo desenrolar da crise econômico-financeira internacional, iniciada na segunda metade da década de 2000, a partir da quebra de instituições norte-americanas que concediam empréstimos hipotecários de alto risco. Tal quebra arrastou bancos para uma situação de insolvência, repercutindo sobre as bolsas de valores ao redor do mundo. A crise do crédito hipotecário provocou uma crise de confiança geral no sistema financeiro e a falta de liquidez bancária. Essa crise foi amortecida porque governos puderam absorver o inchaço de crédito. Isso, todavia, não eliminou totalmente o problema: ele foi transferido dos balanços das empresas e das famílias para os desses governos. O desdobramento da crise foi a insolvência de inúmeros Estados desenvolvidos. O grande acúmulo da dívida governamental fez estourar a capacidade de endividamento de tais Estados e causou uma enorme turbulência ao provocar o receio de que eles não pudessem honrar seus compromissos. Quando a crise intensificou-se, os investidores exigiram taxas muito mais altas para emprestar dinheiro. A indisciplina fiscal e o descontrole das contas públicas em Estados da zona do euro, em particular na Grécia, arrastaram a União Europeia para uma crise sem precedentes. Títulos soberanos de diversos Estados da zona do euro foram rebaixados pelas agências de risco, e a moeda comum caiu ao nível mais baixo em anos (Fraga 2010).

O colapso financeiro tornou a gestão da crise uma das prioridades da administração Obama. O presidente teve de determinar quais instituições deveria salvar e tomar medidas para evitar a queda da economia e estimular o crescimento. As implicações para a atuação internacional dos EUA durante a administração Obama deram-se com a criação de ações coletivas rápidas com outras economias, em especial com o trabalho com os membros do G8 e do G20, no qual as potências emergentes estão representadas. Foi evitado o risco de que cada Estado agisse por conta própria, a fim de proteger sua economia à custa dos outros, o que demonstrou um alto nível de colaboração visando a atingir interesses compartilhados. Entretanto, o papel dos EUA na precipitação da crise, por meio da popularização de instrumentos financeiros dúbios, teve impacto sobre o modelo de desregulação de mercados, déficits reduzidos e comércio liberalizado (Indyk, Lieberthal & O’Hanlon 2012).

A predominância dos EUA nas principais categorias do poder persistiu como característica central do sistema internacional, mas a crise confirmou a necessidade de ajustes na grande estratégia norte-americana, em especial no setor de defesa. Conforme foi destacado pela administração Obama em 2012, os gastos com defesa cairiam em face da necessidade de pôr ordem na situação fiscal norte-americana e renovar sua força econômica. Novas operações de estabilização como as ocorridas na Era Bush não seriam mais possíveis, e um efeito seria a redução gradativa da presença de forças norte-americanas na Europa. Segundo o governo norte-americano, os Estados europeus eram mais produtores do que consumidores de segurança. Alguns dos principais desafios com os quais as grandes potências da Europa Ocidental deparar-se-iam seriam as pressões dos EUA para que a União Europeia tivesse uma maior contribuição na segurança internacional e europeia. Ademais, apresentava-se como desafio para os EUA o crescimento da força de Estados emergentes, em especial dos membros do BRICS, agrupamento que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Nugent 2010, pp. 448-451). Ainda que se questione a coesão entre as posições dos membros do agrupamento, tais Estados apoiaram uma ordem mundial multipolar e igualitária, a reforma da Organização das Nações Unidas (ONU) e as aspirações de Estados emergentes a um papel maior na organização e em outros fóruns e organismos multilaterais onde os EUA e as grandes potências da Europa Ocidental também têm influência considerável.

Obama apontou que a melhoria da situação doméstica seria fundamental para qualquer estratégia de longo prazo. Ele destacou que a prosperidade norte-americana oferecia uma fundação para seu poder e que os EUA tinham fracassado na consideração da conexão entre a segurança nacional e a economia. Ademais, os EUA tinham se expandido demais em locais equivocados e empreendido uma guerra contra o terrorismo no Oriente Médio enquanto negligenciaram outras partes do globo. Em face disso, Obama convocou outros Estados - rivais ou aliados - a auxiliarem na preservação da ordem global. Por exemplo, tentou reiniciar as relações com a Rússia, desenvolver o diálogo econômico e estratégico com a China e abraçar o G20 como o principal fórum econômico internacional. Em vez de agressivamente buscarem a democracia, os EUA poderiam adotar uma postura mais reservada e liderar colocando-se como exemplo a ser seguido (Drezner 2011). Como aponta Loy (2011, pp. 24-25), Obama pareceu aceitar a realidade de que os EUA tinham uma habilidade mais limitada de influenciar eventos mundiais, apesar de sua predominância. A natureza das ameaças mudou, e a força militar - ainda que predominante - não permitiria aos EUA definir a ordem internacional exclusivamente de acordo com seus interesses. Uma série de desafios, como a mudança do clima ou o terrorismo internacional, requeria o aumento da colaboração e da cooperação, não a adoção de posturas unilaterais. As maiores força e assertividade de potências emergentes como a China, a Índia ou o Brasil poderiam ser tratadas como oportunidades, não necessariamente como ameaças (ibidem).

A administração Obama acreditou que uma posição mais flexível na atuação internacional daria aos EUA um maior poder de barganha política, mas tal mudança nem sempre trouxe os resultados esperados. Drezner (2011) aponta que a barganha no G20 ou no Conselho de Segurança da ONU não se tornou mais fácil e que o poder brando não poderia alcançar muitos resultados na falta da determinação de usar o poder bruto se necessário. Ademais, alguns Estados como a China, a Rússia e outros Estados emergentes não se viam como aliados incondicionais dos EUA. Até mesmo aliados mais tradicionais viram a suposta modéstia da administração Obama como uma máscara para que o peso de oferta de bens públicos globais mudasse dos EUA para o resto do mundo. Segundo o autor, em resposta a tais desenvolvimentos após seus primeiros 18 meses, a administração Obama manteve o foco no restabelecimento da força norte-americana no nível doméstico e adotou gradativamente uma posição mais assertiva no nível internacional. Em resposta às provocações internacionais, os EUA sinalizaram que eles ainda poderiam mobilizar aliados e responder a ameaças ascendentes. Os EUA estreitaram suas relações econômicas e de segurança com a maioria dos vizinhos da China na Ásia-Pacífico, pressionando o governo chinês a repensar os benefícios de uma estratégia mais assertiva. Ao demonstrar sua determinação para impedir o surgimento de novas ameaças, os EUA garantiram aos seus aliados que não se retrairiam em uma postura isolacionista (idem).

Apesar da adoção de uma posição gradualmente mais assertiva pela administração Obama no nível internacional, Traub (2012, p. 23) argumenta que o multilateralismo era entendido por essa administração como uma das formas de ampliar a força norte-americana. A tentativa de melhoria das relações com aliados tradicionais na Europa Ocidental e na ONU, abaladas desde o governo de George W. Bush, ajudou os EUA a construírem, em nível multilateral, respostas ao Irã e à Coreia do Norte, enquanto a determinação do presidente em partilhar liderança no Conselho de Segurança da ONU levou a resoluções importantes, como a que autorizou o uso da força pela OTAN na Líbia. Após a apresentação das linhas gerais da grande estratégia de acomodação baseada no conceito de "poder inteligente" e do reconhecimento das limitações dessa grande estratégia - em especial diante da crise econômico-financeira iniciada na segunda metade da década de 2000 -, cumpre examinar mais especificamente os pilares da atuação internacional dos EUA na administração Obama.

IV. Os pilares da atuação internacional dos EUA na administração de Barack Obama

De acordo com Indyk, Lieberthal & O’Hanlon (2012), a atuação internacional dos EUA imaginada pela administração Obama baseava-se em três pilares: a melhoria da relação com a China; o fortalecimento da cooperação entre os EUA e os Estados do Oriente Médio; e o revigoramento do progresso nos campos da não-proliferação e do desarmamento nucleares. Quanto ao primeiro pilar, a equipe de Obama aceitou que a importância relativa da China no mundo era crescente e que os EUA não tinham mais a mesma margem de manobra do passado. Assim, um dos principais objetivos da administração Obama foi tornar a China um ator mais responsável na ordem internacional, que aceitasse os objetivos e as regras básicas do sistema e contribuísse para seu sucesso. Contudo, várias lideranças chinesas ainda viam seu Estado como um Estado em desenvolvimento cuja obrigação era primeiramente conquistar o crescimento econômico, não ter responsabilidades globais. Durante o governo Obama, os EUA mantiveram-se preocupados com a possibilidade de que a China procurasse utilizar seu poder militar e econômico crescente na Ásia a fim de buscar vantagens diplomáticas e de segurança à custa dos EUA. Ademais, a administração Obama mostrou-se consciente de que a maior parte dos Estados na Ásia desejava que os EUA ajudassem a contrabalançar as pressões chinesas, mas não ao custo de fazer que tivessem de escolher entre as duas potências (idem). No que dizia respeito a temas como a mudança do clima, os EUA ofereceram a realização de cortes significativos nas emissões de carbono, na expectativa de que tal posição conduzisse a concessões semelhantes por outros Estados como a China (Dueck 2011, p. 16). Observa-se, assim, a adoção de uma grande estratégia de acomodação na direção da China, estratégia que tinha em seu centro o conceito de poder inteligente. Em um primeiro momento, Obama enfatizou mais os recursos de poder brando, mas não dispensou os elementos de poder bruto, gradativamente sinalizados em face de posturas chinesas mais assertivas.

Nos assuntos relacionados ao Oriente Médio, Obama buscou dar continuidade ao combate ao terrorismo, mas não abraçou a noção de uma "guerra global contra o terror" como a administração de George W. Bush. Em vez disso, ele procurou gradativamente colocar fim à guerra no Iraque enquanto focou mais o combate às operações da al Qaeda no Afeganistão, Paquistão e outros locais a fim de eliminar a ameaça dessa organização aos EUA e ao mundo. A expectativa de Obama era a de que uma série de ações significativas dos EUA e dos seus aliados ajudaria a facilitar esforços transnacionais de contraterrorismo, enquanto minasse o apoio no mundo islâmico a grupos extremistas (idem, pp. 16-17). Loy (2011, p. 26) aponta que a estratégia de Obama para combater o terrorismo era clara: um aparato de inteligência melhorado, uma cooperação intensificada com aliados acerca desse tema, relações preemptivas com comunidades muçulmanas a fim de impedir ações terroristas e um foco no impedimento da aquisição de armas de destruição em massa por terroristas. Observa-se que o presidente buscou também aplicar recursos de poder bruto que fazem parte de uma grande estratégia baseada na noção de poder inteligente. Como argumentei acima, Obama enfatizou que poderia ser mais ofensivo ao fazer cálculos em relação a inimigos já existentes, mas, no âmbito da grande estratégia de acomodação, a categoria de atores cujos valores e interesses centrais eram irreconciliáveis com os dos EUA era pequena, e raramente tais ameaças pareciam chegar ao nível de atores estatais.

No Iraque, Obama buscou conciliar suas posições na época da primeira campanha presidencial com as realidades com as quais se deparou. Assim, tornou mais lenta a retirada das tropas norte-americanas e trouxe-as de volta aos EUA no fim de 2011, de acordo com o cronograma definido por Bush e pelo primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki em 2008 (Indyk, Lieberthal & O’Hanlon 2012). Obama buscou preservar o compromisso de transferência de um esforço militar liderado pelas tropas norte-americanas para um esforço civil liderado pelos diplomatas norte-americanos no Iraque. No Afeganistão e no Paquistão, ele apontou o objetivo de desmantelar e derrotar a al Qaeda e impedir o crescimento de sua capacidade de ameaçar os EUA e seus aliados no futuro. Para esses últimos objetivos, mobilizou recursos militares e civis, mas limitou concomitantemente a exposição norte-americana ao não enfatizar tais objetivos e lançar iniciativas políticas paralelas (Loy 2011, p. 25; pp. 29-30).

Ao insistir no congelamento completo da atividade de assentamento israelense nos territórios ocupados, Obama fez com que o presidente da Autoridade Nacional Palestina Mahmoud Abbas afastasse-se da mesa de negociação - uma vez que Abbas não poderia aceitar menos do que os EUA haviam exigido de Israel, assim prejudicando a credibilidade dos EUA como mediador do conflito (Indyk, Lieberthal & O’Hanlon 2012). O acúmulo de ressentimentos no mundo árabe quanto ao papel dos EUA na questão árabe-israelense aliou-se às críticas ao apoio dos EUA a governos autoritários e corruptos no Oriente Médio. Diante dos levantes populares no contexto da Primavera Árabe - particularmente no Egito - a administração Obama verificou a necessidade de responder às aspirações democráticas de grande parte da população. Alguns especialistas criticaram a resposta dos EUA e a classificaram como tépida no apoio aos protestos (Loy 2011, pp. 27-28). Obama colocou-se ao lado de demandas populares por liberdade e democracia no mundo árabe e ajudou a derrubar governos no Egito, na Líbia e no Iêmen, enquanto procurou proteger os interesses dos EUA no Golfo Pérsico. No Egito, o apoio de Obama à preservação do papel dos militares foi importante na conquista de um rápido começo do processo de transição, mas a aposta na atuação das Forças Armadas egípcias como parceiras da democracia não surtiu o efeito esperado, em especial quanto à proteção dos direitos das minorias. No caso da Líbia, ao repetidamente defender a derrubada de Muamar Kadafi quando a resolução do Conselho de Segurança da ONU que justificava a intervenção militar da OTAN não previa isso, Obama confirmou as acusações russas e chinesas de que o Ocidente distorcera as intenções das resoluções da ONU a fim de atender a seus próprios interesses (Indyk, Lieberthal & O’Hanlon 2012).

Ao assumir a presidência, Obama mostrou-se determinado a buscar a paz e a segurança em um mundo sem armas nucleares, como ele colocara em Praga em abril de 2009. A Rússia seria essencial nesse esforço, de forma que o presidente buscou "reiniciar" as relações com tal Estado a fim de eliminar os atritos causados pela expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia e pela determinação de Bush de desdobrar um sistema de defesas antimísseis na República Tcheca e na Polônia. O Novo START, assinado com o presidente russo Dmitry Medvedev em março de 2010 para a redução dos arsenais nucleares norte-americanos e russos, foi uma manifestação da nova parceria, destinada a definir um exemplo para o resto do mundo (idem). Obama buscou dar um novo início às relações dos EUA com a Rússia, que, no momento inicial de seu governo, estavam em seu ponto mais crítico desde o fim da Guerra Fria. Assim, por mais de um ano e meio desde seu discurso em Praga, Obama procurou trabalhar para obter um novo tratado acerca da redução de armas nucleares com a Rússia. Tanto a negociação como a ratificação do Novo START foram difíceis, mas a entrada do tratado em vigor permitiu a Obama realizar três objetivos principais: a promoção da estabilidade estratégica na relação entre as duas potências nuclearmente armadas ao reduzir suas armas estratégicas; o renascimento e o aprimoramento de um sistema rigoroso de verificação como o do START I e a reinserção da redução de armas nucleares na agenda internacional (Loy 2011, pp. 25-26).

Já o Irã e a Coreia do Norte estavam no centro da questão da proliferação nuclear. Obama buscou primeiramente engajar o Irã, mas, quando esses esforços trouxeram poucos frutos, passou a pressionar Teerã. Como parte da agenda de não-proliferação, Obama procurou garantir que aqueles que quebrassem as regras nessa área enfrentariam consequências crescentes. Os esforços iniciais de Obama para engajar o Irã conferiram a ele uma maior credibilidade quando buscou apoio mais amplo para sanções. Assim, pode-se compreender a aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, em junho de 2010, que estipulava sanções mais duras contra o Irã. As tentativas de alterar o comportamento da Coreia do Norte tiveram alguns benefícios: por meio da articulação clara das consequências do desenvolvimento contínuo de tecnologia nuclear e de mísseis com o desdobramento de recursos militares dos EUA no Nordeste da Ásia, a administração ampliou os incentivos à China para que ela tentasse limitar a Coreia do Norte e fortaleceu sua cooperação com a Coreia do Sul e o Japão. Por meio de intensos esforços diplomáticos, Obama conseguiu persuadir a China e a Rússia a cooperar com os EUA para ampliar os custos dos comportamentos recalcitrantes da Coreia do Norte (Indyk, Lieberthal & O’Hanlon 2012). Obama veio oferecendo uma série de propostas de acomodação, como a intensificação dos esforços para a ratificação do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT, na sigla em inglês), a negociação do Novo START e o apoio ao objetivo de eliminação das armas nucleares na expectativa de provocar esforços similares na direção do desarmamento nuclear em Estados como a Coreia do Norte. Cumpre lembrar que concessões foram feitas pelos EUA. Se uma prioridade norte-americana em relação ao Irã era maior transparência com relação ao programa nuclear de tal Estado, então as preocupações relacionadas à manutenção da democracia no Irã não poderiam atrapalhar os esforços na direção de um acordo com o regime iraniano. Se uma prioridade norte-americana na relação com a Rússia era assegurar a ajuda desse Estado no campo da não-proliferação nuclear, Obama limitaria as posições contrárias às russas em relação a questões como o relacionamento da Rússia com a Geórgia, as defesas antimísseis e os direitos humanos (Dueck 2011, p. 16). Cumpre agora examinar os principais resultados da atuação internacional dos EUA com base nessa grande estratégia de acomodação e as reações dos demais atores no nível internacional a tal estratégia.

V. Os resultados da atuação internacional dos EUA na administração de Barack Obama e as reações dos demais atores

Grande parte dos resultados desejados pela administração Obama na implementação da grande estratégia de acomodação dos EUA - em cujo centro estava o conceito de "poder inteligente" - não foi atingida pela cooperação limitada por parte de governos estrangeiros. No que diz respeito à mudança do clima, por exemplo, a administração ofereceu reduções significativas nas emissões de carbono, mas a resposta chinesa foi essencialmente uma recusa a realizar quaisquer reduções comparáveis, em termos absolutos. No âmbito da não-proliferação e do desarmamento nucleares, a administração buscou acomodar a Rússia na expectativa de também atingir sucesso em relação ao Irã. Com muitas de suas demandas atendidas no Novo START e a inclusão de um entendimento informal sobre as defesas antimísseis no tratado, a Rússia respondeu ao auxiliar a aprovação de sanções contra o Irã na ONU. Entretanto, tais sanções mostraram pouco resultado no que diz respeito à conquista de mais transparência por parte do regime iraniano quanto ao seu programa nuclear. Os elementos de acomodação na perspectiva inicial acerca do contraterrorismo adotada pela administração Obama tiveram um destino semelhante (Dueck 2011, pp. 19-20). Concessões no nível doméstico surtiram efeitos positivos para a agenda da administração Obama, mas muitas vezes ficaram aquém dos resultados esperados pela administração. Por exemplo, embora a ratificação do Novo START tenha sido finalmente obtida, grande parte dos senadores republicanos votou contra o tratado, mesmo com o compromisso da administração Obama de ampliar os gastos com a modernização das armas nucleares e as defesas antimísseis em resposta às demandas republicanas. O caminho difícil para a ratificação do Novo START alimentou preocupações entre os membros da administração Obama de que os planos para a ratificação do CTBT - rejeitado pelo Senado em 1999 - poderiam fracassar. Tal resultado poderia complicar os esforços da administração Obama para fortalecer o compromisso internacional com o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP). A ratificação do Novo START, embora tivesse sido um feito importante, não sinalizou o fim das divisões partidárias sobre as políticas externa e de segurança nacional (Skidmore 2012, p. 50).

No caso de governos hostis aos EUA, a grande estratégia de acomodação não teve completamente os efeitos esperados. Por exemplo, quanto à Cuba, Obama começou a eliminar algumas sanções econômicas a fim de conquistar concessões por parte da família Castro, como a liberalização política ou a atenuação da hostilidade com os EUA. Nenhuma grande concessão foi feita, como também ocorreu no caso do Irã. Tanto a Venezuela sob o governo de Hugo Chávez como a Coreia do Norte sob as administrações de Kim Jong Il e Kim Jong Un mantiveram-se hostis e provocadoras aos EUA. No que diz respeito a regimes que combinavam rivalidade e cooperação com os EUA - entre os quais se podem citar China e Rússia - é possível indicar que eles continuavam a ver os EUA sob a administração Obama como uma ameaça estratégica à sua posição e à sua integridade, mas buscavam a cooperação com os EUA em algumas áreas como comércio e controle de armas. A China e a Rússia mostraram-se mais interessadas nas concessões de Obama a seus interesses e prioridades, não na trajetória pessoal do presidente ou nas visões da administração norte-americana para uma ordem internacional liberal. Em casos em que Obama ofereceu a acomodação, mas foi contra interesses nacionais vitais das duas potências, elas simplesmente declinaram a oferta de qualquer acomodação recíproca e proporcional. Nenhuma das duas, por exemplo, mostrou a intenção de acabar com seus arsenais nucleares, e ambas pareceram encorajadas pelas implicações das retiradas estratégicas dos EUA sob a administração Obama, uma vez que isso as deixaria em uma posição mais forte nas suas próprias vizinhanças (Dueck 2011, pp. 21-24). De forma mais ampla, é possível observar que Estados da América Latina, da Ásia e da África vieram questionando cada vez mais as assimetrias político-econômicas nas principais instituições internacionais e pressionando por cada vez mais ações dos EUA para a solução da crise iniciada na segunda metade da década de 2000. O caso do BRICS é emblemático disso. Os membros do agrupamento trouxeram em suas cúpulas temas variados que tocam em pontos importantes para os EUA e seus aliados na Europa Ocidental, como a gestão da crise econômica global; a reforma das instituições de governança econômica e financeira e meios de combate ao protecionismo (Lehne 2012). A postura de acomodação adotada por Obama não reduziu o teor das críticas dos membros do agrupamento com relação às posições dos EUA nesses temas.

Nos aliados genuínos dos EUA - como o Reino Unido ou o Japão - a popularidade de Obama em comparação à de George W. Bush foi maior, mas isso não se traduziu em concessões políticas significativas por parte dos governos. Aliados europeus dos EUA não se mostraram mais entusiasmados em cooperar com a administração Obama do que em relação à administração norte-americana anterior, nem alteraram suas preferências centrais de atuação internacional em resposta à popularidade de Obama. Obama impôs um tom distante em relação a aliados tradicionais dos EUA, como o Reino Unido, e pareceu esperar que aliados como Israel, Polônia e Geórgia alinhassem-se com sua grande estratégia de acomodação em relação a adversários (Dueck 2011, pp. 21-24). Embora o Reino Unido continue empenhando-se mais do que a França e a Alemanha em construir melhores relações com os EUA, a crise de tais grandes potências da Europa Ocidental tornou ainda mais evidentes os benefícios da cooperação com os EUA. Os EUA têm um grande mercado doméstico, do qual depende grande parte dos Estados europeus, e armas nucleares, que tornariam a guerra entre grandes potências altamente custosa. As assimetrias de poder parecem menos desestabilizadoras e ameaçadoras pelo fato de os EUA participarem de tantas instituições, sendo do interesse dos EUA tornar seu poder mais legítimo, expansivo e durável (Hurrell 1995, pp. 31-36; Ikenberry 2003; Lehne 2012).

VI. Conclusões

Os objetivos do artigo foram explicar a grande estratégia de acomodação adotada pelos EUA na administração de Barack Obama para lidar com as principais ameaças a tal potência no nível internacional e examinar os efeitos da crise econômico-financeira internacional iniciada na segunda metade da década de 2000 sobre a atuação internacional dos EUA. Os principais argumentos confirmados na pesquisa apontam que a adoção da grande estratégia de acomodação mostrou-se relacionada à noção de "poder inteligente" que informa as posições da administração Obama e que a crise não provocou um desafio fundamental à posição predominante dos EUA no sistema internacional, mas confirmou a necessidade de reajuste da grande estratégia de tal Estado na direção da acomodação dos interesses de grandes potências, economias emergentes e Estados hostis à grande potência. Entretanto, o reajuste da grande estratégia norte-americana não atingiu plenamente os resultados almejados por tal administraçao, em face da cooperação limitada por parte de outras grandes potências, economias emergentes e Estados hostis aos EUA.

É possível, a partir da reflexão sobre os argumentos desenvolvidos neste estudo, apontar algumas mudanças necessárias ao melhor funcionamento da grande estratégia de acomodação adotada pelos EUA na administração Obama. Na dimensão internacional, a administração Obama deveria construir uma versão da barganha institucional para o período posterior à Guerra Fria que, no passado, produziu apoio para a construção de instituições internacionais. Na dimensão doméstica, o presidente deve construir um novo consenso baseado no entendimento compartilhado do papel positivo que as instituições internacionais podem ter na conquista dos interesses nacionais de longo prazo dos EUA. Obama apontou sua preferência pela diplomacia, termo que, em geral, apareceu conectado com a necessidade de negociar diretamente com adversários como o Irã, a Coreia do Norte ou Cuba e foi apresentado como uma alternativa ao uso das ameaças militares e a força. Ademais, o presidente frequentemente invocou a necessidade de os EUA trabalhar com parceiros no exterior a fim de buscar soluções para problemas comuns, mas em poucas vezes Obama colocou isso no contexto de acordos ou instituições formais. A perspectiva informal para a cooperação internacional reduz os custos de perda de autonomia associados a acordos vinculantes e evita os custos políticos de buscar-se o apoio do Congresso para novos compromissos. Entretanto, embora seja importante construir coalizões informais como primeiros passos para acordos e instituições mais formais, o multilateralismo ad hoc não é substituto do multilateralismo mais robusto (Skidmore 2012, pp. 44-47). Uma maior ênfase nessa forma mais robusta de multilateralismo poderia ser dada ao longo do segundo mandato de Obama.

Os EUA deveriam também desenvolver uma estrutura jurídica para o uso das capacidades de poder inteligente, o que exige a definição de um conceito mais claro de ameaças assimétricas. Ademais, a inabilidade de promoção das perspectivas de poder inteligente por conta de falhas organizacionais nas próprias agências configuram-se como um obstáculo, o que exige a promoção da coordenação e da acessibilidade aos recursos de poder bruto e brando, bem como uma campanha estratégica de comunicação voltada para a educação sobre os valores democráticos e a discussão sobre a natureza das ameaças. Em face da crise econômico-financeira iniciada em 2008, a necessidade de recursos apresenta mais um obstáculo à implementação do poder, de forma que o orçamento norte-americano precisaria ser revisto a fim de que os programas não militares de atuação internacional recebam mais verbas (Caci 2009). Os EUA podem reforçar sua posição de "potência inteligente" se investirem mais em bens públicos globais, oferecendo o que povos e governos ao redor do mundo desejam, mas não conseguem isoladamente. Ao complementarem seu poder militar e econômico com um investimento maior em seu poder brando, os EUA poderiam reconstruir a estrutura política necessária para lidar com desafios globais.

Outras fontes

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  • A crise da potência inteligente: os EUA e a grande estratégia de acomodação no governo Obama

    Diego Santos Vieira de Jesus
  • 1
    Gostaria de agradecer as críticas e as sugestões oferecidas durante a elaboração deste artigo pelos demais integrantes do grupo de pesquisa "Conflito e Cooperação na Sociedade Internacional", da ESPM-RJ: Fernando Padovani, Gian Carlos Moreira Ferreira e Suellen Mayara Péres de Oliveira. Agradece-se também aos pareceristas anônimos da
    Revista de Sociologia e Política por suas contribuições.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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