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A “genética” dos modelos analíticos sobre burocracia: alcances e limites das opções ontológicas e epistemológicas dos projetos de pesquisa dos estudos organizacionais

Resumo

O presente artigo discute as correntes teóricas referenciadas acerca dos estudos sobre burocracia, à luz da adequabilidade do desenho de pesquisa adotado. Objetivou-se expor os elementos constitutivos das diferentes abordagens analíticas da dinâmica burocrática, através da identificação do perfil ontológico e epistemológico das teorias selecionadas, com vistas à redução das tensões entre problema/conhecimento inerente à pesquisa científica, como identificada por Popper. O estudo consistiu de um survey da literatura referenciada, onde adotou-se o método analítico-discursivo com vistas a responder a pergunta de pesquisa, a saber, qual o padrão ontológico e epistemológico mais adequado para ancorar os estudos organizacionais, e qual desenho de pesquisa melhor explica o funcionamento das burocracias? A partir da metodologia empreendida identificou-se, como principal achado do estudo, que as teorias de “quarta geração”, enquadradas na corrente analítica do realismo, mostram-se mais consistentes para explicar a dinâmica organizacional. Os resultados encontrados apontam para a quebra da dicotomia quali-quanti nos estudos organizacionais ao se ancorar as pesquisas sobre burocracia, no campo da Ciência Política, aos padrões ontológicos e epistemológicos das teorias denominadas de quarta geração. A constituição de um desenho de pesquisa “híbrido”, como a corrente analítica do realismo possibilita e na qual a pesquisa do tipo nested analysis se enquadra, acrescenta assim avanços teóricos significativos na explicação do funcionamento das instituições formais ao viabilizar o mapeamento de regularidades empíricas aliado a identificação de especificidades da dimensão subjetiva dos stakeholders.

burocracia; estudos organizacionais; desenhos de pesquisa; Realismo; nested analysis

This paper discusses the current theories about the referenced studies on bureaucracy, in the light of the appropriateness of research design adopted. Aimed to expose the constituent elements of different analytical approaches to the bureaucratic dynamics, by identifying the ontological and epistemological profile of selected theories, in order to reduce tensions between problem / knowledge inherent in scientific research, as identified by Popper. The study consisted of a survey of the literature referenced, where we adopted the discourse - analytical method in order to answer the research question, namely, what is the ontological and epistemological pattern most appropriate to anchor organizational studies, and what research design best explains the workings of bureaucracies? From the methodology undertaken was identified as the main finding of this study, that the theories of “fourth generation”, framed in current analytical realism, appear more consistent to explain the organizational dynamics. The results point to break the dichotomy qualitative and quantitative studies on the organizational to anchor research on bureaucracy, in the field of Political Science, standards ontological and epistemological theories called fourth generation. The results point to break the dichotomy qualitative and quantitative studies on the organizational to anchor research on bureaucracy, in the field of political science, standards ontological and epistemological theories called fourth generation. The nature a research design “hydride” as the current analytical realism and enables research in which the nested analysis fits, thus adds significant theoretical advances in explaining behavior formal institutions to enable the mapping of empirical regularities ally identifying specifics of the subjective dimension of stakeholders.

bureaucracy; organizational studies; research design; Realism; nested analysis


I. Introdução1 1 Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política por seus comentários.

Os cânones do pensamento científico parecem apontar para uma relação biunívoca entre a objetividade da ciência e a objetividade do pesquisador. O trabalho científico, sob tal prima, seria resultado da neutralidade do estudioso frente ao que está sendo pesquisado e aos paradigmas vigentes em sua área de investigação. Questionando tal relação, Popper (2004Popper, K. 2004. A lógica das ciências sociais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Universitário., p. 14–23) afirma que a objetividade científica se ancora apenas na tradição de crítica recíproca aos dogmas consolidados na comunidade de pesquisa, produzida pela tensão entre problema e ignorância. Assim, a postura do cientista social pode ser dotada do mesmo nível de objetividade da verificada no pesquisador das ciências naturais, tornando aquela tão ciência quanto esta.

Considerando tal abordagem como balizadora do empreendimento científico, cabe aos pesquisadores, para além de suas áreas de estudo, desvencilhar essas tensões oriundas da relação problema/conhecimento dotados de elementos ontológicos, epistemológicos e metodológicos capazes de eliminar, ou ao menos reduzir, a ignorância acerca dos problemas levantados por sua disciplina. Destarte, o delineamento do perfil ontológico e epistemológico a ser adotado no projeto de pesquisa consiste em etapa primordial do processo de “relaxamento” das tensões da ciência.

Destarte, voltando-se para a Ciência Política em geral, e para os estudos sobre burocracia em particular, cabe uma questão: qual o padrão ontológico e epistemológico mais adequado para ancorar os estudos organizacionais? Tentando responder a essa indagação, sob a óptica da tipologia dos desenhos de pesquisa elaborada por Marsh e Furlong (2002Marsh, D.; Furlong, P. 2002. A Skin not a Sweater: Ontology and Epistemology in Political Science. In: ______, eds. Theory and Methods in Political Science. New York: Palgrave MacMillan.), o presente trabalho destaca a delimitação do ceteris paribus em três tradições de pesquisa, associando-a a trajetória analítica dos estudos organizacionais em textos selecionados.

Com isso, busca-se identificar o projeto de pesquisa em que o problema da parcimônia estrutural ou o problema da subjetividade analítica - conceitos aqui definidos - seja de tal ordem que possibilite um aumento da capacidade explicativa da teoria. Para tanto, este trabalho está dividido em quatro seções, onde a primeira apresenta uma descrição da geometria variável dos projetos de pesquisa associados ao positivismo, interpretativismo e realismo, destacando a delimitação do ceteris paribus de cada uma dessas tradições de investigação. A segunda seção apresenta um breviário sobre a trajetória analítica dos estudos sobre burocracia, identificando “gerações” de teorias acerca do tema, enquanto a terceira seção descreve a linhagem das teorias organizacionais vis-à-vis a tradição de pesquisa a que se afiliam. Por fim, a quarta e última seção apresenta as considerações finais do trabalho em tela.

II. A geometria variável dos projetos de pesquisa e a delimitação do ceteris paribus: entre o problema da parcimônia estrutural e o problema da subjetividade analítica

A consolidação da prática investigativa concernentes à compreensão (explicação) do universo e das interações humanas conduz, inexoravelmente, ao questionamento: existe um formato único de projeto de pesquisa que possa caracterizar um trabalho científico? Ou ainda, como identificar, dentre os mais variados procedimentos analíticos, aqueles que podem ser alçados à categoria de “robustez científica”? Na busca para responder tais questionamentos, os perfis ontológicos e epistemológicos dos modelos teóricos se constituíram nas unidades analíticas a serem consideradas com vistas a tal categorização. De fato, é na definição dos aspectos referentes à ontologia e à epistemologia de um projeto de pesquisa que se define as variáveis que irão compor o ceteris paribus do modelo a ser formulado. Assim, a distinção das propriedades constitutivas de uma teoria, bem como seus postulados e o método empregado na pesquisa, passam a delimitar a fronteira entre os esquemas de análise adotados pelos estudiosos, tendo, em um primeiro momento, as ciências da natureza (e.g. Física, Biologia e Química) como padrão científico por excelência.

Em virtude da consolidação desse paradigma “naturalista”, parte dos pesquisadores do comportamento humano - e da política em particular - buscaram moldar suas interpretações dos fenômenos sociais ao arcabouço científico das ciências físicas visando maior rigor analítico-descritivo e capacidade preditiva da teoria formulada. Admitir a existência de uma dada realidade, que não se constitui em um construto social - portanto não está refém da capacidade cognitiva do pesquisador - e identificar regularidades empíricas nos processos sociais observados constitui premissas para a elaboração de uma epistemologia formalista e parametrizadora das relações humanas. A construção de modelos formais e a mensuração dos impactos e dos rebatimentos da causalidade entre as variáveis dependente e independente definem os contornos metodológicos do projeto positivista.

Com efeito, essa tradição de pesquisa objetiva a construção de teorias generalistas dos fatos sociais observáveis, tendo na coleta, tratamento, sistema-tização e aplicação de ferramentas estatísticas aos dados quantitativos selecionados o método para a identificação dos mecanismos causais entre as variáveis estudadas, subsidiando a modelagem formal da teoria. A preocupação pertinente com a “testabilidade” das hipóteses na vertente positivista orienta seus adeptos a subtrair de suas abordagens quaisquer variáveis de difícil parametrização, reduzindo a quantidade das variáveis explicativas do seu desenho de pesquisa. Neste ponto, ao considerar como dadas variáveis relevantes para a explicação do fenômeno em estudo, descaracterizando o uso da navalha de Ockham, a tradição positivista incorre no problema da parcimônia estrutural de suas teorias. Ou seja, ao restringir em excesso a quantidade de variáveis explicativas - aumentando a quantidade de variáveis classificadas como ceteris paribus - o arcabouço teórico torna-se carente de aderência à realidade concreta, haja vista a insuficiência de componentes constitutivos (estrutura) da teoria formulada.

Ademais, o desenvolvimento da pesquisa sobre o fenômeno social, e toda a miríade de subáreas dela derivada, esbarra na baixa adequação da morfologia das variáveis estudadas ao paradigma científico “naturalista”. As propriedades dos fenômenos estudados nas ciências humanas em geral, e na Ciência Política em particular, exigem ao menos uma adaptação dessas abordagens analíticas aos cânones ontológicos e epistemológicos naturalistas, ou mesmo outra concepção de premissas a serem adotadas em seus modelos teóricos. Afinal, o estudo de variáveis relativamente fluidas, e nem sempre tangíveis (observáveis), que em boa medida caracterizam a ação humana, comprometem a capacidade descritiva e preditiva de uma teorização formal.

O problema da parcimônia estrutural da teoria positiva faz que, no ceteris paribus do modelo formal, sejam incluídas variáveis independentes que podem reduzir o poder de explicação da própria teoria de contornos positivistas. Marsh e Furlong (idem), ao se debruçarem sobre os elementos ontológicos e epistemológicos na Ciência Política, descrevem um projeto de pesquisa que se constitui em antítese da abordagem positiva e que objetiva reduzir (eliminar) o que aqui se denominou de parcimônia estrutural da teoria.

O “paradigma naturalista” não se ajustaria às ciências sociais, exigindo, com isso, novas premissas de trabalho e uma nova metodologia para essa área do conhecimento. Para tanto, a abordagem interpretativista (interpretist) rompe com as rígidas premissas da tradição positiva, excluindo do ceteris paribus - e incluindo nas suas análises - variáveis consideradas fundamentais para uma maior compreensão e poder de interpretação do fenômeno social.

Destarte, “para os pesquisadores desta tradição investigativa os fenômenos sociais não existem independentes da nossa interpretação sobre eles, mas sim é a interpretação/entendimento desses fenômenos que afeta os resultados da pesquisa” (idem, p. 26). Neste aspecto, a abordagem interpretativista representa uma mudança de direção na concepção metodológica da análise das ciências humanas ao destacar os elementos de identificação dos grupos sociais e símbolos valorativos comunitários, como mecanismos descritivos e explicativos da conduta dos atores sociais. Com isso, as estruturas cognitivas do(s) indivíduo(s) são incorporadas ao arcabouço analítico, destacando a capacidade de apreender a realidade como condição para o estudo dos fenômenos humanos.

A subjetividade e particularidades, inerentes aos processos simbólicos e históricos, e ausentes nas abordagens da tradição positivista, tornam-se elementos estruturais do modelo analítico interpretativista. Os pesquisadores desta tradição afastam-se dos elementos ontológicos e epistemológicos dos autores de linhagem positivista e demarcam uma variante teórica pautada na hermenêutica do fenômeno social em análise, à luz de variáveis históricas, antropológicas e etnográficas.

O abandono dos princípios ontológicos e epistemológicos de corte positivo implica em um redirecionamento nos procedimentos metodológicos dos projetos de pesquisa interpretativistas. Considerando que o foco da análise desta tradição consiste em entender como os atores sociais compreendem seu mundo e os eventos nos quais estão inseridos, os instrumentos quantitativos tornam-se de pouca utilidade para esses pesquisadores. Assim, ferramentas qualitativas como entrevistas, grupos focais, análise de conteúdo, observação participante etc. passaram a constituir-se em instrumentos adequados para captar os mecanismos causais (explicativos) entre as variáveis.

Entretanto, se a parcimônia estrutural da teoria é um limitador da capacidade explicativa dos desenhos de pesquisa de tradição positiva, o problema da subjetividade analítica permeia a tradição interpretativista, impregnando, segundo seus críticos, as teorias dessa tradição com elementos valorativo e particularista. Essa subjetividade analítica consiste no julgamento subjetivo do pesquisador quanto ao objeto de estudo e na atomização do esforço de explicação causal2 2 O particularismo do objetivo de estudo na tradição inter-pretativa, segundo os críticos dessa corrente de pesquisa, inviabiliza a produção de teorias generalistas do fenômeno pesquisado (cf. Della Porta & Keating 2008, p. 26). , gerando antes narrativas fenomenológicas que teorias para compreensão de eventos sociais. Assim, como problema de construção teórica, ela equivale, mutatis mutandis, ao problema de parcimônia estrutural na tradição positivista. Ou seja, a subjetividade analítica e a parcimônia estrutural refletem, para além de outros aspectos, as fragilidades morfológicas desses projetos de pesquisa.

Se, por um lado, a seleção de variáveis explicativas pauta-se mais na capacidade de parametrizá-las que na aderência das mesmas ao real, como na tradição positiva, por outro, o subjetivismo narrativo e atomístico da tradição interpretativista compromete a própria objetividade científica. Depreende-se, portanto, que a polaridade dessas tradições de pesquisa conduz à redução do alcance das teorias sociais que nelas se filiam. Ao que parece um “caminho do meio” faz-se necessário para mitigar as fragilidades analíticas desses projetos investigativos, expandindo os alcances teóricos.

A categorização das tradições de pesquisa elaborada por Marsh e Furlong (idem), o “caminho do meio”, e a possibilidade de se mitigar o problema da parcimônia estrutural ou o problema da subjetividade analítica, encontram-se, ao que parece, na vertente denominada do realismo (Tabela 1). Os projetos de pesquisa que se enquadram nessa tradição incorporam elementos do positivismo, mas flexibilizam algumas premissas deste, possibilitando procedimentos metodológicos que contemplem análises qualitativas e variáveis nem sempre passíveis de parametrização. Isso reduz o problema da parcimônia estrutural aproximando os modelos teóricos de tradição realista do mundo concreto dos fenômenos sociais, mas, em princípio, sem elevar o grau de subjetividade analítica de suas abordagens teóricas.

Tabela 1
Esquema sinótico das tradições de pesquisa

Autores como Della Porta e Keating (2008Della Porta, D.; Keating, M. 2008. How Many Approaches in the Social Sciences? An epistemological introduction. In: ________, eds. Approaches and Methodologies in the Social Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press.), em outra categorização das dimensões ontológicas e epistemológicas das tradições de pesquisa, identificam, na vertente por eles denominadas de pós-positivismo e neopositivismo,o projeto que tende a mitigar as fragilidades das vertentes diametralmente opostas do positivismo clássico e da versão radical do interpretativismo, por eles denominada de humanismo. Assim, tanto o pós-positivismo quanto o neopositivismo, ao admitirem a existência de uma realidade externa ao pensamento humano, mas compreensível apenas de maneira imperfeita pelos atores sociais, consideram que alguns fenômenos são regidos por elementos probabilísticos e não por leis causais, dadas a incerteza da ação dos atores sociais (idem, p. 24).

Essas “versões relaxadas” do positivismo, embora não signifiquem uma ruptura total com o paradigma naturalista, traduz a busca por uma melhor delimitação do ceteris paribus através da admissão de graus de incerteza quanto à capacidade preditiva da teoria. Percebe-se com isso que o pós-positivismo e o neo-positivismo apresentam fortes semelhanças com a tradição realista categorizada por Furlong e Marsh (2002Marsh, D.; Furlong, P. 2002. A Skin not a Sweater: Ontology and Epistemology in Political Science. In: ______, eds. Theory and Methods in Political Science. New York: Palgrave MacMillan.)3 3 Della Porta e Keating (2008) desenvolveram uma categorização das dimensões ontológicas e epistemológicas das tradições de pesquisa em quatro linhas analíticas: (i) positivismo;(ii) pós-positivismo; (iii) interpetativismo e(iv) humanismo. Postas em um continuum, a rigidez das premissas vai sendo reduzida à medida que se desloca do positivismo para o humanismo. e que constituem um esforço de síntese analítica com vistas à eliminação das patologias advindas do problema de seleção das variáveis a serem excluídas do modelo teórico. Entretanto, observando a Tabela 1, percebe-se que, qualquer seja o projeto de pesquisa, fragilidades analíticas se fazem presentes em todos eles, mesmo que em graus variados. Até a tradição realista ou pós-positivista apresenta limitações em suas dimensões ontológicas e epistemológicas que produzem certa restrição à falseabilidade das teorias integrantes desta tradição.

III. Teorias sobre burocracia e o desenho dos projetos de pesquisa4 4 Os termos burocracia e organização(ões) são tratados como sinônimos ao longo do texto, referindo-se, ambos, a um sistema social formalizado.

III.1. O poder como objeto de estudo e o desafio de sua identificação

A multiplicidade das interações humana, derivadas do crescimento e sofisticação dos agrupamentos sociais, implicou o desenvolvimento das organizações burocráticas formais. O processo de definição e ampliação de uma estrutura racional-legal emergiu da necessidade de redução dos custos de transação das relações humanas, com vistas ao aumento da previsibilidade do comportamento individual e coletivo e, em particular, ao estabelecimento das relações de poder no interior de grupos sociais. Ou seja, embora um dos objetivos de uma estrutura burocrática consista na geração de cooperação entre os stakeholders, de fato, “as burocracias são instituições impostas pelos vencedores aos perdedores” (Moe 2006_______. 2006. Power and Political Institutions. In: I. Shapiro; S. Skowronek; D. Galvin, eds. Rethinking Political Institutions. New York: New York University Press., p. 43). Em outros termos, antes de serem estruturas de cooperação visando à superação de dilemas de ação coletiva, as burocracias consistem em uma estrutura de poder (dominação) entre atores sociais, onde o padrão cooperativo, em boa medida, está pautado na hierarquização das relações organizacionais. Assim, as organizações burocráticas resultam do conflito distributivo de poder travado entre e intra grupos na sociedade, tendo sua morfologia definida pelo grupo vencedor do embate. Todavia, o conflito de poder não termina com a definição da estrutura burocrática imposta pelos vencedores, mas continua com as tentativas dos vencidos de modificá-la ao seu favor, comprometendo com isto o nível de cooperação entre os atores5 5 Em boa medida isso explica as dificuldades na promoção de mudanças institucionais em determinadas estruturas burocráticas, fazendo que os dilemas de ação coletiva se configurem no vetor de insucesso de algumas iniciativas de reformas. Sobre isso ver o clássico trabalho de Pressman e Wildavsky (1973). .

Diante dessa dinâmica, o objeto de análise dos projetos de pesquisa voltados para a elaboração de modelos teóricos sobre burocracia passa, inevitavelmente, pelo delineamento das relações de poder. A formulação do que venha a ser poder e como mapear, ou identificar empiricamente o comportamento do conflito distributivo, seus rebatimentos e os mecanismos causais que desencadeiam o embate entre atores, consistem no diferencial desses projetos. Afinal, a natureza intangível do objeto relações de poder exige a escolha de uma unidade analítica indireta (i.e. uma proxy) que possibilite o rastreamento de sua dinâmica e evite que o modelo teórico elaborado não incorra nos problemas da parcimônia estrutural ou da subjetividade analítica, para não comprometer o poder de explicação da teoria.

As abordagens acerca do fenômeno burocrático têm se caracterizado pela opção dos pesquisadores em selecionar unidades de análise oriundas de três dimensões: (i) processo decisório; (ii) formação (controle) da agenda; (iii) formulação de preferências. A opção por uma dessas dimensões conduz ao perfil ontológico, epistemológico e a natureza do método a ser adotado na elaboração da pesquisa, porém, per se, não elimina o possível viés patológico da parcimônia estrutural ou da subjetividade analítica no modelo teórico formulado. Ao delinear o ceteris paribus do desenho de pesquisa, boa parte dos estudos sobre burocracia, para além das escolhas da dimensão de análise, consideram como dadas importantes variáveis explicativas do fenômeno em estudo, deixando em aberto algumas questões essenciais na explicação da dinâmica das organizações formais. Essas fendas analíticas deixam sem respostas pontos importantes para o aperfeiçoamento burocrático de projetos institucionais reais, contribuindo pouco para a superação de falhas recorrentes de performance organizacional. Em outros termos:

“Certamente, as diferentes teorias acerca das faces do poder têm debatido importantes. Implicações para o pensamento acerca do projeto institucional. Adeptos da primeira dimensão vão atentar principalmente para o processo decisório, enquanto os da segunda dimensão são susceptíveis às questões sobre a definição de agenda, e os da terceira dimensão para os fatores que podem reprimir as preferências que de outra forma seriam expressas. No entanto, mesmo dentro das limitações dessas opções ontológicas concorrentes acerca do poder, não se têm exposto as implicações institucionais de suas abordagens -como [grifo nosso] as decisões devem ser tomadas, como [idem] o poder de definição da agenda deve figurar nos debates sobre a reforma institucional, ou como [idem] devem ser tratadas adequadamente quando são identificadas”

(Shapiro 2003Shapiro, I. 2003. The State of Democratic Theory. Princeton: Princeton University Press., p. 37)6 6 As traduções de trechos em língua estrangeira são de responsabilidade do autor. .

Ao que parece, a limitação para explicar o fenômeno burocrático e, por conseguinte, subsidiar os programas de reformas institucionais voltados para a melhoria do desempenho organizacional, deve-se menos a aspectos conceituais acerca da definição de poder e mais a delimitação das variáveis a serem excluídas do modelo teórico formulado. O que será considerado como constante na análise e quais variáveis serão incorporados é o que separa, de uma opção inadequada, a adequação da escolha dos perfis ontológicos e epistemológicos do projeto de pesquisa. Dessa forma, torna-se importante analisar como os diferentes estudos sobre burocracia trataram o problema da delimitação do ceteris paribus - e, assim, o problema da parcimônia estrutural e da subjetividade analítica - em seus modelos, através de uma abordagem da evolução teórica do tema7 7 Chama-se a atenção do leitor que o termo evolução não é considerado aqui no sentido dado a ele por Spencer - de melhoria no tempo -, mas enquadra-se na concepção darwinista de transformação. .

III.2. Um breviário das “gerações” de modelos analíticos sobre burocracia

Esta subseção visa descrever, em linhas gerais, a trajetória dos estudos sobre burocracia, destacando os avanços e limites analíticos dos modelos explicativos, classificando-os em “gerações” de pesquisa, mas sem sequência cronológica. Dada à limitação de espaço, esta parte constitui uma seleção representativa de textos formadores da agenda de pesquisa em burocracia, sem, contudo, ser completa. Pretende-se destacar aspectos ontológicos e epistemológicos do percurso analítico dos estudos organizacionais, destacando, dentro dos limites aqui impostos, as variáveis explicativas desses modelos teóricos.

A primeira geração dos estudos organizacionais, estabelecida pela abordagem taylorista, pretendia explicar a dinâmica das organizações através de padrões mecanicistas, passíveis de controle e predição comportamental a exemplo da tradição ontológica e epistemológica da microeconomia clássica (cf. Mises 1944Mises, L.V. 1944 [1983]. Bureaucracy. Spring Mills: Libertarian Press.). As variáveis tempo e relações interpessoais foram ignoradas na análise, com o modelo focado no curto prazo do comportamento organizacional ou na invariabilidade temporal do comportamento humano no interior das organizações, e tendo os mecanismos causais ancorados nos procedimentos formais e parametrizáveis de funcionamento burocrático8 8 Obviamente que os modelos microeconômicos que inspiraram a análise atemporal do comportamento burocrático de primeira geração foram aqueles que antecederam o trabalho seminal de Alfredo Marshall, que incorporou a variável tempo no processo de decisão econômica (cf. Marshall 1920). Para um panorama da história do pensamento econômico cf. Feijó (2007). .

Em resposta a tal abordagem, a ruptura analítica surge na década de 1930 com o trabalho de Chester Barnard (1938)Barnard, I.C. 1938 [1979]. As funções do executivo. São Paulo: Editora Atlas. destacando os mecanismos informais de produção de cooperação no interior das organizações. Apesar do predomínio da premissa do comportamento racional no estudo de questões burocráticas à época, o trabalho de Barnard inaugurou uma segunda geração de pesquisas sobre burocracia, pautadas nos aspectos valorativos das relações humanas e nas limitações cognitivas dos stakeholders como variáveis explicativas da dinâmica organizacional. Esse novo paradigma obteve reforço com os trabalhos de Selznick (1943Selznick, P. 1943. An Approach to a Theory of Organization. American Sociological Review, 8, pp. 47–54.; 1949)_______. 1949 [1966]. Cooptação: um mecanismo para a estabilidade organizacional. In: E. Campos, ed. Sociologia da Burocracia. Textos Básicos de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores., Simon (1947)Simon, H.A. 1947 [1971]. Comportamento administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro. Editora da FGV., Simon e March (1957) e Cyert e March (1963)Cyert, R.; March, J. 1963. Behavioral Theory of the Firm. Englewood: Prentice Hall., que buscaram explicar o problema da cooperação e relações de poder (descentralização decisória) - visando o desempenho organizacional - à luz das preferências subjetivas e da racionalidade limitada dos atores no interior da organização9 9 O trabalho de Robert K. Merton (cf. Merton 1940), destacando as “disfuncionalidades” da organização burocrática também se encaixa nesta geração de estudos organizacionais, subsidiando significativamente o trabalho de Philip Selznick. . A lógica da otimização das ações como resultado de uma racionalidade absoluta dos atores, características das relações de mercado, fora substituída por premissas mais ajustadas à interação social emergente da dinâmica burocrática, aproximando os modelos analíticos do mundo real das organizações. A impessoalidade dos mercados não forma identidades no indivíduo, mas a organização, em razão das relações travadas em seu contexto, o faz, haja vista que se constituem em sistemas sociais (Prestes Motta & Bresser-Pereira 2004Prestes-Mota, F.C.; Bresser-Pereira, L.C. 2004. Introdução à organização burocrática. 2ª ed. São Paulo: Thomson Learning., p. 9–11).

A essa linha de investigação soma-se o trabalho de Michel Crozier (1964)Crozier, M. 1964 [1981]. O fenômeno burocrático. Brasília: Editora da UnB. acerca do enfraquecimento da estrutura hierárquica (relações de poder) de burocracias, decorrente do exercício de poder real por parte dos subordinados, originado do conhecimento especializado da função exercida na organização. Ao exercerem o controle de atividades críticas ao desempenho organizacional, funcionários subalternos subvertem a linha hierárquica apropriando-se do processo produtivo. Para Crozier, o controle, por parte de subordinados, de recursos escassos e sensíveis ao funcionamento da organização, redesenha a estrutura real de poder como resultado das identidades formadas entre eles no exercício de suas atribuições funcionais. Ou seja, uma dimensão subjetiva (laços de pertencimento), embora derivada de realidade concreta (especialização na função), transforma-se no mecanismo explicativo da dinâmica burocrática. Wilson (1989)Wilson, J.Q. 1989. Bureaucracy: What Government Agencies do and why they do it. New York: Basic Books., em certa medida, também recorre a essa cultura organizacional - i.e. fatores ambientais e coletivos - para explicar a dinâmica burocrática.

Linha investigativa que em certa medida se aproxima da abordagem de Crozier, embora sob um enfoque ainda mais sociológico, bem ao estilo analítico das teorias de primeira geração, é o trabalho de Luhmann (1976)Luhmann, N. 1976. A General Theory of Organized Social Systems. In: G. Hofstede; S. Kassem, eds. European Contributions to Organization Theory. Amsterdam: Van Gorcum.. Para esse autor, o sistema político-administrativo - no qual se insere as burocracias públicas e privadas - tem o poder como meio de comunicação e sua função é o gerenciamento das decisões coletivas. Esse processo gerencial, derivado do processo de autopoiese dos sistemas sociais (e.g. organizações), ocorre mediante a comunicação política com vistas à articulação de interesses, formação de consenso e a propagação de ideias, encontrando na transmissão da informação expressa para esse fim o mecanismo causal do funcionamento das organizações formais. Como Crozier, Luhmann atribui ao processo comunicacional (codificação) a explicação para o funcional da organização; contudo, diferentemente de Crozier, destaca o processo informativo expresso, e não déficits informacionais, como o fio condutor do funcionamento da organização. Portanto, para Luhmann, a dinâmica burocrática resulta de um processo de linguagem (comunicação) entre stakeholders em um ambiente de sistemas políticos complexos10 10 Uma exposição detalhada das conexões entre a abordagem neofuncionalista de Luhmann e os estudos organizacionais pode ser vista em Crubellate (2007). .

No começo da década de 1970 um instigante artigo classificou o processo decisório em organizações complexas - por extensão as relações de poder nela existentes - como uma “anarquia organizada”, já que os processos internos não são compreendidos pelas pessoas encarregadas de formulá-los e executá-los, desarticulando meios e fins da decisão organizacional. A tomada de decisão, portanto, passa ao largo de fundamentos de racionalidade, gerando tentativas e erros na ação organizacional e conduzindo a fragmentação de sua performance. Esse trabalho de Cohen, March e Olsen (1972)Cohen, M.D.; March, J.G.; Olsen, J.P. 1972. A Garbage Can Model of Organizational Choice. Administrative Science Quarterly, 17(1), pp. 1–25. constituiu-se no mais instigante estudo acerca da dinâmica burocrática à luz da racionalidade limitada nas últimas décadas11 11 Para uma abordagem das reformas gerenciais em organizações governamentais à luz do gabage can model, cf. Fittipaldi (2005). . Entretanto, a análise muito mais descritiva que formal dos “herdeiros de Barnard” consiste em uma limitação ontológica e epistemológica dos estudos organizacionais.

Ao não considerar a ação dos indivíduos - por extensão das organizações -como plenamente racional tornava-se difícil a modelagem de um comportamento dotado de alto nível de volatilidade e imprevisibilidade. Ou seja, “com o relaxamento das hipóteses de racionalidade e a adição de preferências altruístas ou sociais às funções individuais, o comportamento humano nas organizações torna-se cada vez mais indeterminado” (Fukuyama 2005Fukuyama, F. 2005. Construção de Estados: governo e organização mundial no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Rocco. , p. 110). Com isso, o contra-ataque dos defensores da racionalidade absoluta dos agentes sociais à abordagem sociológica dos estudos burocráticos de segunda geração não tardaria a ocorrer, inaugurando assim uma terceira geração de estudos sobre o tema.

Na década de 1960 dois trabalhos, Tullock (1965)Tullock, G. 1965. The Politics of Bureaucracy. Washington, D.C.: Public Affairs Press. e Downs (1967)Downs, A. 1967. Inside Bureaucracy. Boston: Little Brown & Company., produziram forte impacto sobre os estudos da burocracia ao incorporarem o cálculo estratégico, o autointeresse e o oportunismo ao comportamento motivacional dos atores, destacando seu impacto na performance organizacional. Para Tullock, o autointeresse do burocrata (utilitarismo), manifesto na busca por acessão funcional, restringe a possibilidade da existência de padrões cooperativos entre os gestores, explicando a ineficiência da burocracia no tempo. Por sua vez, Downs também incorporou a concepção de burocratas movidos por padrões utilitaristas que, ao agirem segundo o padrão taxonômico do burocrata down-siano (e.g. conservador, radicais, alpinista, leal e estadista) explica o crescimento da burocracia e a dinâmica da organização. O comportamento racional dos agentes produz ineficiência, crescimento excessivo da burocracia, fraca accountability, e captura - dentre outras disfunções -, tornando o desempenho organizacional deficitário (Moe 1987______. 1987. The Positive Theory of Public Bureaucracy. In: D.C. Mueller. Perspective of Public Choice: A Handbook. Cambridge, UK: Cambridge University Press., p. 457). Nesses trabalhos, a concepção da racionalidade absoluta foi resgatada - via noção de maximização de payoff -mediante sofisticação analítica importada de modelos microeconômicos neoclássicos, produzindo um diferencial metodológico expressivo em comparação aos trabalhos não formais da escola das relações e comportamentos humanos no que concerne a capacidade de predição da teoria.

Insere-se ainda nesta tradição de pesquisa racionalista o trabalho de Niskanen (1971)Niskanen, W.A. 1971. Bureaucracy and Representative Government. Chicago: Aldine-Atherton. para explicar o crescimento da burocracia via maximização de recursos orçamentários. A assimetria informacional existente entre as reais necessidades operacionais das burocracias públicas, conhecida apenas por seus integrantes, e a ignorância dos legisladores quando a estas, é o que explica a expansão temporal das burocracias governamentais. Essa assimetria, e seu uso estratégico (racional) em favor dos detentores de informações privilegiadas, constituem-se no mecanismo causal da dinâmica da burocracia pública.

O esforço analítico por uma teoria positiva da burocracia pública - teoria positiva das instituições (Moe 1984_______. 1984. The New Economics Organization. American Journal of Political Science, 28(4), pp. 739–777.; 1987______. 1987. The Positive Theory of Public Bureaucracy. In: D.C. Mueller. Perspective of Public Choice: A Handbook. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) - definiu a terceira geração de estudos organizacionais. Ancorados na construção de modelos teóricos formais para a explicação do dilema entre delegação (relações de poder) e eficiência burocrática tais abordagens, todavia, voltaram-se para a explicação da estabilidade institucional a partir dos resultados políticos. Vale ressaltar que a premissa da racionalidade limitada, embora eclipsada em um primeiro momento pela formalização da chamada “terceira geração” de estudos organizacionais, passou a ser incorporada por segmentos desta corrente analítica, originando a economia das organizações (economia institucional), com a subárea da economia dos custos de transação (ECT)12 12 O trabalho seminal de Coase (1937) acerca do papel dos contratos coordenados (instituições) como vetor explicativo da função produtiva, derivou estudos mais elaborados apenas a partir de Alchian e Demsetz (1972). Com este, a racionalidade limitada norteou os trabalhos de Williamson (1975), Arrow (1974; 1985), Tirole (1989) e North (1990; 1998). Cf. Barney e Hesterly (2004). .

Partindo da existência de um ambiente moldado pela racionalidade limitada, marcado pela incerteza e assimetria de informação, a ECT identifica a existência de custos de transação nos mecanismos de livre mercado, que corroem o desempenho organizacional via a especificidade dos ativos utilizados pelas firmas. Apenas a incorporação de uma estrutura hierarquizada (i.e. contrato, regras do jogo) poderia reduzir tais custos, recuperando a eficiência perdida. Assim, a instituição (contrato, regras do jogo) se converteu em variável explicativa do output organizacional, e ECT se voltou para as relações estratégicas internas - i.e. políticas - dos stakeholders sob um arranjo institucional vigente (Williamson 1985Williamson, O.E. 1985. The Economic Institutions of Capitalism. New York: Free Press.). Em paralelo, o modelo principal-agente (Bendor 1988Bendor, J. 1988. Formal Models of Bureaucracy. British Journal of Political Science, 18(3), pp. 353–396.) transformou-se no instrumento de modelagem das relações intra-organizacionais sob determinados contratos, sendo utilizado de forma recorrente para explicar os processos de captura, pelas instâncias burocráticas, dos recursos a elas delegados.

O foco na formulação de incentivos que possibilitem a geração de atitudes cooperativas passou a balizar os estudos derivados da terceira geração de pesquisas sobre burocracia, tendo o desenho institucional formal como variável explicativa para a performance burocrática. Destarte, e dentro do cânone da teoria da escolha pública, uma distinção de conceito entre a organização privada e a organização estatal emerge, evidenciando a particularidade da estrutura burocrática governamental (Moe 1990_______. 1990. Political Institutions: The Neglected Side of the Story. Journal of Law, Economics, and Organization, 6, pp. 213–253., p. 231).

Para Moe (idem, p. 290), as características inerentes à organização pública a conduzem, inevitavelmente, a um elevado padrão burocrático, porém, sem a racionalidade e eficiência que tal padrão alcançou na organização privada. Ou seja, mesmo considerando tal diferenciação, uma abordagem da burocracia pública à luz da nova economia organizacional conduz a conclusão da existência de uma “ineficiência congênita” das organizações públicas em razão da competição política que encontra na burocracia estatal uma arena privilegiada. Posição esta diametralmente oposta à de Wittman (1999)Wittman, D. 1999. O mito do fracasso da democracia: por que as instituições políticas são eficientes? Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil., que, mesmo dentro da fronteira analítica da escolha racional, identifica nos mecanismos democráticos formais (accountability) instrumentos auxiliadores da melhoria da performance da burocracia pública, resgatando, em certa medida, o mecanismo da voz de Hirschman (1970)Hirschman, A.O. 1970. Saída, voz e lealdade: reações ao declínio de firmas, organizações e estados. São Paulo: Editora Perspectiva., como restaurador do desempenho organizacional.

Todavia, algumas questões acerca do comportamento dos atores internos da organização não estavam devidamente explicadas pelas teorias oriundas da economia das organizações. Afinal, fatores como liderança, cultura organizacional, laços interpessoais, confiança, entre outros de natureza subjetiva, não parecem ser diretamente afetados pelo arranjo institucional formal da burocracia. Críticas aos cânones da racionalidade absoluta aplicados aos estudos burocráticos surgiram como resultado dos limites ontológicos e epistemológicos desses modelos teóricos.

O trabalho mais incisivo nesta linha crítica foi formulado por Miller (1999)Miller, G. 1999. Managerial Dilemmas: The Political Economy of hierarchy. Cambridge, UK: Cambridge University Press. que, mesmo baseado em premissas da escolha racional, ao destacar os limites das teorias de terceira geração dos estudos sobre burocracia, estabeleceu ligações analíticas com a versão sociológica da teoria organizacional. Ao diferenciar as ações estratégicas nos mercados e em estruturas hierarquizadas Miller destacou o papel das relações políticas para a explicação da dinâmica burocrática e seus efeitos sobre o output das organizações.

O autor identificou a existência dilemas gerenciais em dimensões verticais e horizontais - derivados da assimetria informacional favorável ao agente em detrimento do principal - que poderiam ser resolvidos mediante a ação política eficiente (papel da liderança) do gestor. Ou seja, para Miller apenas o arranjo institucional (hierarquias) não é capaz, per se, de resolver os dilemas gerenciais, sendo necessária uma ação política eficiente da liderança da organização nesse sentido. Em outros termos, “o problema [do dilema gerencial] pode ser solucionado apenas através de um conjunto de estratégias essencialmente políticas” (idem, p. 235; sem grifos no original). Com isso, o autor reconhece ao menos uma dimensão subjetiva (liderança) como importante vetor analítico do comportamento burocrático.

Seguindo a classificação aqui adotada, uma quarta geração de estudos organizacionais (institucionais) tem nos trabalhos de Putnam (1996)Putnam, R.D. 1996. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro. Edita da FGV. e Ostrom (1990)_______. 1990. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge, UK: Cambridge University Press. referências obrigatórias. Ao analisar a constituição dos governos regionais na Itália Putnam finca seu modelo analítico na trajetória histórica - e diferenciada - das regiões italianas, destacando o engajamento cívico como variável explicativa do desempenho institucional. Assim, as regiões com maior capital social possuem governos regionais com performance mais elevada, e com isso maior desenvolvimento econômico, do que aquelas com capital social baixo ou nulo. O detalhe do trabalho de Putnam consiste em explicar as razões para a existência de graus diferenciados de capital social entre as regiões estudadas. Para o autor, tal diferença consiste numa evolução temporal das comunidades cívicas que, por razões históricas específicas, desenvolve-se mais em uma região que na outra, condicionando o padrão performático das instituições emanantes dessas localidades. A cultura (path dependence), desta forma, emerge como variável explicativa.

Por sua vez, o trabalho de Ostrom consiste em uma crítica à explicação utilitarista dos problemas da ação coletiva levantados pelos modelos da tragédia dos comuns de Hardin (1968)Hardin, G. 1968. The Tragedy of Commons”. Science, 162, pp. 1243–1248., pelo jogo do dilema dos prisioneiros, pela lógica da ação coletiva olsoniana e o problema do free rider (Olson 1999Olson, M. 1999. A lógica da ação coletiva. São Paulo: Edusp.). Para Ostrom (1990_______. 1990. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge, UK: Cambridge University Press., pp. 182–183), os problemas de coordenação (ação coletiva) não são resolvidos unicamente através da ação coercitiva externa à organização, mas pela própria comunidade (atores internos) ao visualizar a magnitude dos custos e a dimensão dos ganhos derivados da ação coletiva. Com isso, a autora foca sua análise, a exemplo de Putnam, no caráter histórico-comunitário e descentralizado do processo decisório como indutor de eficiência organizacional, retirando do limbo do ceteris paribus variáveis como relações de pertencimento e símbolos de fortalecimento do grupo social, bem como a evolução histórica (cultura, tradição).

Por seu turno, Nee e Opper (2007)Nee, V.; Opper, S. 2007. On Politiziced Capitalism. In: V. Nee; R. Swedberg, eds. On Capitalism. Stanford: Stanford University Press., ao estudarem a formação de estruturas burocráticas do capitalismo de estado na China, destacam o papel das conexões políticas como variável explicativa para o funcionamento do modelo institucional híbrido daquele país, denominado pelos autores de capitalismo politizado, pois deriva das condutas socialmente apropriadas da burocracia do estado chinês, visando sua legitimação. Esses autores mesclam variáveis sociológicas, de difícil parametrização, com variáveis quantificáveis que possibilitam a elaboração de modelos formais - ainda que os autores não tenham utilizado tal recurso no trabalho aqui destacado -, compondo um mosaico analítico que bem representa uma possível síntese argumentativa dos estudos burocráticos.

Com semelhante perfil analítico, o trabalho de Evans e Rauch (1999)Evans, P.; Rauch, J.E. 1999. Bureaucracy and Growth: A cross-national analysis of the effects of “weberian” state structures on economic growth. American Sociological Review, 64(5), pp. 748–765. identifica variáveis mensuráveis e variáveis comportamentais (subjetivas) para explicar o impacto do padrão burocrático de um país sobre seu crescimento econômico. Em outro trabalho, Evans (2004)Evans, P. 2004, Autonomia e Parceria: Estados e transformação industrial. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. destaca as relações entre burocracia estatal e segmentos da sociedade civil para explicar o desempenho de algumas ações governamentais com vistas ao desenvolvimento de segmentos da indústria nacional, destacando as redes interpessoais como mecanismos causais de definição de políticas. Assim, percebe-se certa recorrência nas teorias de quarta geração, a exclusão de variáveis de cunho culturalista e simbólico do conjunto de variáveis integrantes do ceteris paribus da teoria, passando-se a incorporar o leque de variáveis explicativas da dinâmica burocrática e da estrutura organizacional reguladora dos conflitos de poder. Tal procedimento aponta para uma composição metodológica entre o qualitativo e o quantitativo, ao fomentar estudos que recorram tanto à inferência descrita quanto à inferência causal (cf. King, Keohane & Verba 1994King, G.; Keohane, R.; Verba, S. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. Princeton: Princeton University Press., pp. 75–113), facilitando a produção de refinos de natureza analítica.

IV. A “genética” e a tradição de pesquisa: as linhagens das teorias organizacionais

À guisa de comparações acerca da ontologia e epistemologia das diferentes abordagens sobre estudos burocráticos, percebe-se que, apesar de múltiplas explicações, as gerações de modelos analíticos distinguem-se em ao menos três tradições investigativas, a primeira e a terceira ancoradas na tradição positivista. Ambas as gerações de estudos organizacionais baseiam seu desenho de pesquisa na uniformidade comportamental dos atores nas organizações, partindo da premissa da racionalidade absoluta e do individualismo metodológico. Essa abordagem exclui de seus modelos teóricos aspectos subjetivos do comportamento social como cultura, identidade de grupo, símbolos sociais etc., considerando-os como ceteris paribus na explicação da dinâmica burocrática.

Como explica Moe (1980Moe, T. 1980. The Organization of Interests: Incentives and the Internal Dynamics of Political Interest Groups. Chicago: University of Chicago Press., p. 13), os modelos de racionalidade sobre burocracia têm como pressupostos centrais (i) o ator racional; (ii) a tomada de decisão pautada por tipos específicos de informação (informação completa) e (iii) a avaliação das alternativas baseada em uma escala individual de valores ou preferências. Ou seja, os pressupostos de racionalidade, informação - sem dissonâncias cognitivas - e valores (preferências) derivados do cálculo estratégico constituem-se nos vetores analíticos dos estudos burocráticos alicerçados na escolha racional. Assim, as teorias positivas da burocracia tendem a ser extremamente econômicas na seleção de suas variáveis explicativas, simplificando os vetores que atuam na dinâmica de funcionamento da estrutura burocrática, conduzindo sua análise ao problema da parcimônia estrutural e tornando seus modelos apartados da realidade burocrática.

Outro grupo de teorias - as de segunda geração - foca seus estudos nas características das relações interpessoais e comportamentais nas organizações. Essa corrente teórica destaca o aspecto valorativo do comportamento humano como variável explicativa e considera como ceteris paribus a ação racional otimizadora, a informação completa entre os stakeholders e a uniformização cognitiva dos atores sociais. Os trabalhos dessa geração, portanto, identifica a dinâmica burocrática como resultado exclusivo do padrão comportamentalista dos indivíduos diante das relações de poder travadas no interior da estrutura das organizações formais.

Tal padrão origina-se da percepção do real por parte dos atores, considerando as dissonâncias cognitivas para a formação desse construto. Destarte, essa realidade atomizada e particularista não pode ser capturada através de procedimentos quantificadores (parametrizáveis), o que inviabiliza a identificação de leis causais no estudo da burocracia. Dado o padrão subjetivista e particularista dos projetos de pesquisa de segunda geração, dotados de características próprias do interpretativismo, essa linha de investigação encontra seu limite explicativo no problema da subjetividade analítica, comprometendo a estrutura de análise da explicação por mecanismos dos desenhos de pesquisa do tipo small-n.

Um terceiro agrupamento teórico - os estudos de quarta geração - foca suas variáveis explicativas em um mix de vetores tangíveis e outros intangíveis, considerando de maneira combinada tanto os elementos subjetivos para a definição da ação humana como os elementos de racionalidade e de estratégia na definição do processo decisório. Desse modo, as teorias de quarta geração incorporaram tanto variáveis parametrizáveis para explicar a dinâmica burocrática como variáveis de dimensão cognitiva, aproximando seu arcabouço teórico do real, sem, contundo, comprometer um possível mapeamento de regularidades empíricas que permita a identificação de causalidades gerais e possibilite estudos comparativos do tipo large-n. Ademais, dada essa natureza do desenho de pesquisa de quarta geração, dotado de contornos inclusivos para a utilização agregada de metodologias quantitativas e qualitativas, possibilitam a utilização de análises conjuntas (nested analysis), a exemplo do que argumenta Lieberman (2005)Lieberman, E.S. 2005. Nested Analysis as a Mixed-Method Strategy for Comparative Research. American Political Science Review, 99(3), pp. 435–452., como estratégia analítica voltada para o aumento do poder de explicação das teorias do comportamento burocrático.

O mix metodológico de Lieberman, passível de aplicabilidade nos modelos de quarta geração, pode fortalecer a testabilidade de teorias e o surgimento de novas questões de pesquisa, pois “a análise conjunta fornece uma base mais sólida para a inferência causal do que a soma individual das pequenas e grandes amostras. Em vez de enfatizar a lógica inferencial usual de estratégia de pesquisa qualitativa e quantitativa - marca registrada de King, Keohane e Varba (1994)King, G.; Keohane, R.; Verba, S. 1994. Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. Princeton: Princeton University Press. para o tratamento metodológico da pesquisa - a abordagem da análise conjunta enfatiza a característica de complementaridade desses dois modelos de análise e estratégia para a inferência causal” (Lieberman 2005Lieberman, E.S. 2005. Nested Analysis as a Mixed-Method Strategy for Comparative Research. American Political Science Review, 99(3), pp. 435–452., p. 450; sem grifos no original). Em outros termos, a combinação de variáveis parametrizáveis com variáveis de dimensão subjetiva aponta para uma complementaridade ontológica, epistemológica e metodológica do desenho de pesquisa com aparente aumento na capacidade explicativa acerca dos mecanismos da dinâmica burocrática.

Ao promover o relaxamento das premissas de racionalidade absoluta, de informação completa, e de uniformização cognitiva dos atores sociais, admitindo a existência de limitações interpretativas por parte dos stakeholders, as teorias de quarta geração tendem a escapar do problema da parcimônia estrutural. Por sua vez, a inclusão de certas dimensões de cálculo estratégico no rol das variáveis explicativas a afastam de uma abordagem dotada meramente de subjetividade e particularizada, desprovida da capacidade de transformar, por exemplo, estudos de caso em algo mais que frágeis narrativas etnográficas acerca das organizações complexas. Os desenhos de pesquisa enquadrados no realismo - i.e. as teorias de quarta geração - parecem, portanto, dotados de uma “estrutura genética” que torna possível a estratégia adequada para a demarcação do ceteris paribus e da configuração metodológica para o refino dos modelos analíticos sobre processos decisórios e relações de poder nas organizações burocráticas. A problemática é sintetizada na Tabela 2 e na Tabela 3.

Tabela 2
Dimensões analíticas dos estudos sobre burocracia (trabalhos selecionados)
Tabela 3
Classificação ontológica e epistemológica dos modelos analíticos sobre burocracia e os alcances e limites da opção de pesquisa

É possível observar, como exposto na Tabela 3, que as teorias de quarta geração, ao delimitarem seu ceteris paribus com variáveis que engessam a compreensão da dinâmica burocrática, tendem a reduzir os problemas das patologias do processo seletivo de “tudo o mais constante”, elevando o poder de explicação da teoria. Ademais, ao combinarem elementos das tradições positivista e interpretativista, enquadrando-se à tradição realista, tende a gerar certo “relaxamento” das tensões entre o problema e a ignorância do objeto estudado, possibilitando a formulação de teorias que expliquem e subsidiem o processo de desenvolvimento dos arranjos institucionais. A existência de um continuum, de acordo com Meyer e Rowan (1999)Meyer, J W.; Rowan, B. 1999. Organizaciones institucionalizadas: la estructura formal como mito y ceremonia. In: W.W. Powell; P.J. DiMaggio, eds. El Nuevo Institucionalismo En Al Análisis Organizacional. México: Fondo de Cultura Económica., onde as organizações situam-se conforme seu grau de institucionalização, evidencia a necessidade de formulação de desenhos de pesquisa híbridos. Necessário se faz, portanto, que as construções analíticas voltadas para os estudos organizacionais se revistam de um refinamento metodológico mediante a incorporação de metodologias qualitativa e quantitativa. A tradição de pesquisa realista, ao possibilitar o mapeamento de regularidades empíricas que não sejam passíveis de parametrização, combinado com procedimentos de quantificação das relações causais subjacente às mudanças institucionais das organizações, constitui um vetor para o aprimoramento teórico desse campo de pesquisa. Os procedimentos de metodologia qualitativa, por exemplo, permitem captar a natureza constitutiva e operacional das redes de relações entre os stakeholders, tão significativas na determinação do desempenho organizacional em burocracias de baixo nível de institucionalização. Por sua vez, a aplicação do ferramental quantitativo viabiliza a mensuração do efeito, e intensidade, das regras e normas (arranjo institucional) sobre a dinâmica burocrática e a performance organizacional.

Destarte, a possibilidade de incorporar a lógica dos modelos de pesquisa do tipo nested analysis pode fomentar novas questões de pesquisa derivada do próprio processo de mix metodológico quantiquali, ampliando a compreensão da dinâmica (relações de poder) nas burocracias. Mesmo assim, as teorias de quarta geração e a síntese ontológica e epistemológica da tradição realista ainda consistem em um trabalho inconcluso, havendo espaço para novos procedimentos de refino teórico a partir dessa tradição de pesquisa. Afinal, o limite do realismo parece centrar-se na definição da estratégia de integração do método a ser utilizado na pesquisa, e não em suas dimensões ontológica e epistemológica.

V. Conclusões

Este trabalho consistiu em uma categorização de um conjunto de teorias sobre burocracia e estudos organizacionais a partir da análise de suas naturezas ontológicas e epistemológicas. Foram identificadas ao menos quatro gerações de projetos de pesquisa sobre burocracia as quais, a partir dos perfis das tradições investigativas e dos conceitos dos problemas de parcimônia estrutural e subjetividade analítica utilizados neste trabalho, foram classificadas como pertencentes a uma das tradições de pesquisa analisadas. Assim, as teorias de primeira e terceira geração dos estudos organizacionais afiliam-se à tradição positivista de pesquisa, com perfis ontológicos e epistemológicos ancorados em paradigmas das ciências naturais.

Tal opção delineou o ceteris paribus desses modelos teóricos de tal forma que os mesmos, ao menos no caso dos estudos sobre burocracia, incorrem no problema da parcimônia estrutural. Ou seja, ao reduzir em excesso a quantidade das variáveis independentes, tais modelos descolam-se da realidade organizacional. Por sua vez, a segunda geração de modelos analíticos sobre burocracia incorpora as naturezas da ontologia e epistemologia pertencentes à tradição do interpretativismo, visando maior poder de explicação através da proximidade da teoria com a realidade da dinâmica burocrática.

Todavia, ao incluir em seu ceteris paribus a ação racional maximizadora, individual ou coletiva, destaca em grau elevado, como variável explicativa, a cognição dos atores sociais em suas abordagens. Essa opção induz seus modelos teóricos ao problema da subjetividade analítica. Em outros termos, o esvaziamento do ceteris paribus, ou a expansão da quantidade de variáveis independentes, comprometeu a verificação de possíveis regularidades empíricas do fenômeno estudado tornando tais análises, invariavelmente, estudos de caso de perfil etnográfico.

Por fim, a quarta geração das pesquisas organizacionais, visando reduzir as patologias oriundas da seleção de variáveis a serem excluídas do modelo teórico, buscou adequar a delimitação do “tudo o mais constante” de forma a mesclar as variáveis independentes entre aquelas passíveis de parametrização e aquelas menos suscetíveis a tais procedimentos. Com isso, tais estudos enquadraram-se na tradição realista de projetos de pesquisa (ou no pós-positivismo na tipologia de Della Porta e Keating (2008)Della Porta, D.; Keating, M. 2008. How Many Approaches in the Social Sciences? An epistemological introduction. In: ________, eds. Approaches and Methodologies in the Social Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press., representando uma alternativa ontológica e epistemológica viável para se evitar (reduzir) o problema da parcimônia estrutural do positivismo e o problema da subjetividade analítica do interpretativismo. A tradição realista, portanto, ao viabilizar a construção de desenhos de pesquisa híbridos - i.e. uso paralelo de metodologia qualitativa e quantitativa - pode contribuir para o aperfeiçoamento teórico desse campo de estudos.

Assim, ao menos em princípio, as abordagens da tradição realista apresentam modelos teóricos mais robustos para a explicação do fenômeno burocrático, pois possibilita a superação da dicotomia metodológica entre o quantitativismo e as análises qualitativas nos estudos organizacionais. Dada a sua “estrutura genética” - perfil ontológico e epistemológico - as teorias de quarta geração podem melhor adequar-se a modelos do tipo nested analysis, constituindo um importante reforço metodológico e teórico na área.

  • 1
    Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política por seus comentários.
  • 2
    O particularismo do objetivo de estudo na tradição inter-pretativa, segundo os críticos dessa corrente de pesquisa, inviabiliza a produção de teorias generalistas do fenômeno pesquisado (cf. Della Porta & Keating 2008Della Porta, D.; Keating, M. 2008. How Many Approaches in the Social Sciences? An epistemological introduction. In: ________, eds. Approaches and Methodologies in the Social Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press., p. 26).
  • 3
    Della Porta e Keating (2008)Della Porta, D.; Keating, M. 2008. How Many Approaches in the Social Sciences? An epistemological introduction. In: ________, eds. Approaches and Methodologies in the Social Science. Cambridge, UK: Cambridge University Press. desenvolveram uma categorização das dimensões ontológicas e epistemológicas das tradições de pesquisa em quatro linhas analíticas: (i) positivismo;(ii) pós-positivismo; (iii) interpetativismo e(iv) humanismo. Postas em um continuum, a rigidez das premissas vai sendo reduzida à medida que se desloca do positivismo para o humanismo.
  • 4
    Os termos burocracia e organização(ões) são tratados como sinônimos ao longo do texto, referindo-se, ambos, a um sistema social formalizado.
  • 5
    Em boa medida isso explica as dificuldades na promoção de mudanças institucionais em determinadas estruturas burocráticas, fazendo que os dilemas de ação coletiva se configurem no vetor de insucesso de algumas iniciativas de reformas. Sobre isso ver o clássico trabalho de Pressman e Wildavsky (1973)Pressmam, J.L.; Wildavsky, A. 1973.“A complejidad de la acción conjunta. In: Implementación. 3a ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica..
  • 6
    As traduções de trechos em língua estrangeira são de responsabilidade do autor.
  • 7
    Chama-se a atenção do leitor que o termo evolução não é considerado aqui no sentido dado a ele por Spencer - de melhoria no tempo -, mas enquadra-se na concepção darwinista de transformação.
  • 8
    Obviamente que os modelos microeconômicos que inspiraram a análise atemporal do comportamento burocrático de primeira geração foram aqueles que antecederam o trabalho seminal de Alfredo Marshall, que incorporou a variável tempo no processo de decisão econômica (cf. Marshall 1920Marshall, A. 1920 [1982]. Princípios de Economia: tratado introdutório. Col. “Os economistas”. São Paulo: Abril Cultural.). Para um panorama da história do pensamento econômico cf. Feijó (2007)Feijó, R. 2007. História do pensamento econômico: de Lao Tse a Robert Lucas. São Paulo: Atlas..
  • 9
    O trabalho de Robert K. Merton (cf. Merton 1940Merton, R.K. 1940. Bureaucratic Structure and Personality. Social Force, 18, pp. 560–568.), destacando as “disfuncionalidades” da organização burocrática também se encaixa nesta geração de estudos organizacionais, subsidiando significativamente o trabalho de Philip Selznick.
  • 10
    Uma exposição detalhada das conexões entre a abordagem neofuncionalista de Luhmann e os estudos organizacionais pode ser vista em Crubellate (2007)Crubellate, J.M. 2007. Três contribuições conceituais neofuncionalistas à Teoria Institucional em Organizações. Revista de Administração Contemporânea, 1, pp. 199–222..
  • 11
    Para uma abordagem das reformas gerenciais em organizações governamentais à luz do gabage can model, cf. Fittipaldi (2005)Fittipaldi, I. 2005. A anarquia organizada das reformas administrativas no setor público: uma abordagem à luz do modelo garbage can edo policy environment. Política e Trabalho, 23, pp. 91–104..
  • 12
    O trabalho seminal de Coase (1937)Coase, R. 1937. The Nature of the Firm. Economica, 4, pp. 1–17. acerca do papel dos contratos coordenados (instituições) como vetor explicativo da função produtiva, derivou estudos mais elaborados apenas a partir de Alchian e Demsetz (1972)Alchian, A.A.; Demsetz, H. 1972. Production, Information Costs, and Economic Organization. American Economic Review, 62, pp. 777–795.. Com este, a racionalidade limitada norteou os trabalhos de Williamson (1975)______. 1975. Markets and Hierarchies: Analysis and Antitrust Implications. New York: Free Press., Arrow (1974Arrow, K. 1974. The Limits of Organization. New York: W.W. Norton.; 1985)_______. 1985. The Economics of Agency. In: ________. Principals and Agents: The Structure of American Business. Boston: Harvard Business School Press., Tirole (1989)Tirole, J. 1989. The Theory of Industrial Organization. Cambridge, MA: MIT Press. e North (1990North, D. 1990. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; 1998)______. 1998. Custos de transação, instituições, e desempenho econômico. Rio de Janeiro: Instituto Liberal.. Cf. Barney e Hesterly (2004)Barney, J.B.; Hesterly, W. 2004. Economia das organizações: entendendo a relação entre as organizações e a análise econômica. In: S.R. Clegg; C. Hardy; W.R. Nord, eds. Handbook de Estudos Organizacionais: ação e análise organizacional. São Paulo: Editora Atlas..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2013
  • Aceito
    08 Out 2013
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