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A política externa brasileira a partir da imprensa: um estudo exploratório sobre o enquadramento dos principais jornais brasileiros

Brazilian foreign policy in the press: an exploratory study on the framing of the main Brazilian newspapers

RESUMO

Introdução:

Propomos uma nova metodologia para analisar o enquadramento da imprensa nacional sobre a política externa brasileira (PEB) a partir do enfoque de Robert Entman. O objetivo é especificar o papel da mídia na avaliação conceitual da PEB considerando a aprovação ou rejeição que ela faz da conduta do governo como um todo.

Materiais e métodos:

Analisamos editoriais e artigos de opinião de quatro jornais diários brasileiros entre 2014 e 2016: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico. A unidade de análise são os argumentos mobilizados para guiar a percepção dos leitores sobre os fenômenos da política externa. Para descrição e análise dos diferentes enquadramentos da PEB classificamos os argumentos quanto: i) aos problemas identificados, ii) ao valor moral atribuído e iii) às relações de causa e consequência estabelecidas.

Resultados:

Encontramos evidências de que as avaliações críticas prevalecem sobre as positivas. Esses achados contradizem conclusões usuais da literatura sobre a relação da mídia e opinião pública na política externa que identificam uma postura frequentemente favorável em relação ao governante de plantão. Os enquadramentos da mídia brasileira visam a aspectos substantivos e não procedimentais da política externa, o que sugere que a imprensa no Brasil pode ser mais autônoma do que nos Estados Unidos no que toca à cobertura desse tema.

Discussão:

A posição crítica da mídia brasileira em relação à administração provavelmente se deve à baixa saliência dos tópicos de política externa, uma vez que eles não tratam da segurança nacional, o que geralmente envolve a sensibilidade dos cidadãos nos governos dos países centrais. Duas importantes implicações emergem. A primeira é que a avaliação moral da política externa permaneceu em grande parte negativa, embora a cobertura da imprensa englobe uma ampla gama de tópicos. Além disso, a imprensa brasileira não está disposta a assumir o enquadramento governamental, como no caso da cobertura sobre a política externa brasileira para a Venezuela. O Brasil é um caso em que os líderes políticos muitas vezes não podem contar com o apoio imediato da imprensa quando se trata de política externa.

Palavras-chave
enquadramento; política externa brasileira; mídia; opinião pública; editoriais

ABSTRACT

Introduction:

We propose a new methodology to analyze how the Brazilian press has framed Brazilian foreign policy (BFP) based on Robert Entman's approach. The objective is to specify the media's role in the conceptual evaluation of Brazilian foreign policy, considering whether it approves or rejects the government's actions as a whole.

Materials and methods:

We analyzed editorials and opinion articles from four Brazilian daily newspapers between 2014 and 2016: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, and Valor Econômico. The unit of analysis is the arguments employed to shape the readers' perception of Brazilian foreign policy. For a description and analysis of the various framings on Brazil's foreign policy, we sorted the arguments into three categories: i) the identified problems, ii) the assigned moral judgement and iii) the established relationships between cause and effect.

Results:

We found a higher occurrence of critical assessments compared to favorable ones. These findings challenge the commonly held view in the literature that the media has a favorable attitude towards the president in office when it comes to foreign policy. Brazilian media typically frames the substantive, non-procedural dimensions of foreign policy, which suggests a more autonomous press when compared to the United States in the coverage of this topic.

Discussion:

The Brazilian press' critical stance towards the presidential administration likely owes to low significance of foreign policy topics, insofar as they do not address national security, which usually elicits more vehement reactions from citizens in central countries. Two key inferences can be drawn. Despite the broad scope of the media's discussion on foreign policy, its moral assessment has been largely negative. In addition, the Brazilian press is unwilling to take on the government framing, as per its coverage of Brazilian foreign policy towards Venezuela. Brazil is a case where political leaders often cannot count on immediate support from the press on the issue of foreign policy.

Keywords
framing; Brazilian foreign policy; media; public opinion; editorials

I. Introdução1 1 Agradecemos o apoio do Observatório de Política Externa na Mídia (CEBRAP), a Maria H. Tavares de Almeida e a excelente assistência de pesquisa de Caíque Terenzzo, Priscila Petris, Paloma Morais, Ingrid Meirelles de Souza, Gabriel Santos Carneiro, Bruno Castro e Alanna Lima. Agradecemos também pelos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política. Este artigo traz resultados parciais do Projeto Temático Fapesp 2010/06356-3, 2013/00445-4 e 2018/.00646-1. Versão preliminar foi apresentada em painel no 8° Encontro da ABRI 2021 e se beneficiou dos comentários dos participantes.

Com a pluralização da política externa das últimas décadas, os estudos têm buscado analisar os determinantes domésticos e constrangimentos internacionais para a tomada de decisão (Amorim, 2011Amorim Neto, O. (2011) De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier Brasil.). Cada vez mais a discussão sobre a Política Externa Brasileira (PEB) assume elementos conceituais da vasta literatura sobre políticas públicas, já amplamente desenvolvida no Brasil e alhures (Fernandes, 2021Fernandes, I.F.A.L. (2021) Política externa e política externa brasileira. In: R. Gallo (org) Relações internacionais. Temas clássicos. Boa Vista: IOLE Editora.; Milani & Pinheiro, 2013Milani, C.R.S. & Pinheiro, L. (2013) Política externa brasileira: os desafios de sua caracterização como política pública. Contexto Internacional, 35(1), pp. 11-41. DOI
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). Os sindicatos (Vigevani, 1998Vigevani, T. (1998) Mercosul: impactos para trabalhadores e sindicatos. São Paulo: Editora LTr.), os empresários e as organizações não governamentais (Mancuso & Oliveira, 2006Mancuso, W.P. & Oliveira, A.J. de (2006) Abertura econômica, empresariado e política: os planos doméstico e internacional. Lua Nova, 69, pp. 147-172. DOI
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; Oliveira & Milani, 2012Oliveira, I.T.M. & Milani, C.R.S. (2012) Atores não estatais e trade policy-making no Brasil: análise dos interesses e das estratégias da CEB e da REBRIP. Dados, 55(2), pp. 367-401.), a opinião pública (Almeida, Guimarães & Fernandes, 2021Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574.) e os partidos políticos (Oliveira & Onuki, 2010Oliveira, A.J. & Onuki, J. (2010) Eleições, partidos políticos e política externa no Brasil. Revista Política Hoje, 19(1), pp. 144-185. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/view/3836/3140>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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), entre outros, têm sido analisados como atores que buscam influenciar a formulação e implementação da PEB.

O presente trabalho se insere no debate do papel da imprensa em sua relação com a opinião pública em matéria de PEB. A literatura especializada na interação entre política e mídia em geral aponta dois temas centrais no debate: o efeito da mídia na definição da agenda e o seu papel na definição do enquadramento dos problemas, isto é, os conceitos, percepções e leituras sobre os fenômenos políticos em debate na agenda pública (Baum & Groeling, 2008Baum, M.A. & Groeling, T. (2008) Crossing the water's edge: elite rhetoric, media coverage, and the rally-round-the-flag phenomenon. The Journal of Politics, 70(4), pp. 1065-1085.; Baum & Potter, 2008Baum, M.A. & Potter, P.B. (2008) The relationships between mass media, public opinion, and foreign policy: toward a theoretical synthesis. Annual Review of Political Science, 11, pp. 39-65.; 2019; Groeling, 2013Groeling, T. (2013) Media bias by the numbers: challenges and opportunities in the empirical study of Partisan News. Annu. Rev. Polit. Sci., pp. 129-51.; Gries, 2014Gries, P.H. (2014) The politics of American foreign policy: how ideology divides liberals and conservatives over foreign affairs. Stanford: Stanford University Press.). O objetivo deste estudo é contribuir com o segundo tema ao descrever o enquadramento (framing) dado pela cobertura dos principais jornais da imprensa escrita brasileira sobre a PEB entre os anos de 2014 e 2016. Para isto, investigamos quais são os principais eixos analíticos e os argumentos que compõem a leitura que os jornais fazem dos eventos e das decisões em matéria de política externa. Além disso, analisamos como são tratadas pela cobertura da imprensa as principais posturas ideológicas da opinião pública em política externa, a saber: americanismo, regionalismo e multilateralismo.

Para a realização desta análise propomos uma metodologia para descrever o enquadramento por meio da análise dos argumentos. Esta metodologia tem como unidade de análise os argumentos mobilizados pelos jornais para guiar a percepção dos eleitores sobre os fenômenos de política externa. Propomos, assim, uma análise empírica sobre o enquadramento pautado em critérios objetivos e replicáveis, superando um padrão mais subjetivo utilizado na literatura corrente, cuja seleção de casos não é estruturada, frequentemente selecionando os excertos que são considerados pelos pesquisadores como representativos do todo.

Não pretendemos verificar se o enquadramento proposto pelo jornal afeta a opinião pública, a opinião das elites ou mesmo a formulação e implementação da PEB. Nosso objetivo é descrever qual o posicionamento conceitual dos principais argumentos mobilizados nos jornais brasileiros pelos editoriais e artigos de opinião assinados que tratam da PEB. Isso inclui as dimensões ideológicas da opinião pública em matéria de política externa e internacional, cumprindo com uma primeira etapa de um longo programa de pesquisa em andamento para compreender a relação entre mídia, opinião pública e política externa.

Após esta breve introdução, o presente artigo está organizado em cinco seções. Na primeira seção, abordamos as categorias de comunicação em massa; na segunda, discutimos o papel da imprensa na política externa e a relação entre enquadramento e política externa. Na terceira seção apresentamos a metodologia de pesquisa para análise do enquadramento via argumentos, na quarta seção apresentamos os resultados e desenvolvemos uma discussão, encerrando com as considerações finais.

II. As categorias de comunicação de massa e posição da imprensa

A mídia não é uma categoria singular na teoria da comunicação de massa, mas antes um gênero que comporta diferentes formas. A partir de McQuail (2013)McQuail, D. (2013) Teorias da comunicação de massa. 6ª ed. Porto Alegre: Penso. e Thompson (2011)Thompson, J.B. (2011) A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. São Paulo: Vozes. destacamos cinco características fundamentais dos meios de comunicação: (i) a natureza pública do conteúdo da informação; (ii) a elevada escala do seu auditório; (iii) a mediação técnica; (iv) a informação como produto (commodity) e (ii) os meios técnicos e institucionais de produção e difusão da informação.

Delimitamos em nossa análise apenas parte das categorias de comunicação de massa ao focarmos no estudo do jornalismo impresso, i.e., a imprensa, em especial em um formato específico: os editoriais e artigos de opinião. A seleção dessa categoria midiática se deu pela sua intenção opinativa do jornalismo editorial (Firmstone, 2019Firmstone, J. (2019) Editorial journalism and newspapers' editorial opinions. In: Oxford Research encyclopedia of communication. Oxford research encyclopedia. Oxford: Oxford University Press.). Mesmo não sendo o único espaço exclusivo para emissão explícita de opiniões, o editorial representa, ao contrário dos demais, a visão coletiva da organização. Adicionamos aos editoriais os artigos de opinião, pois além da própria visão do jornal, queremos avaliar as opiniões que a editoração do periódico permite que sejam exploradas em suas páginas, de modo a contribuir de forma efetiva para a construção do enquadramento.

Buscaremos ao longo do artigo debater o papel do jornalismo como ator dentro do debate de política externa ao verificarmos os padrões de enquadramento que são realizados pelos meios de comunicação impressos selecionados. Nossa pesquisa se direciona à concepção de jornalismo entendida por Rudin & Ibbotson (2002)Ruddin, R. & Ibbotson, T. (2002) An introduction to journalism: essential techniques and background knowledge. Oxford: Focal Press. como a filtragem e a edição de informações, comentários e eventos em uma forma que é distinta da sua versão original. Isto porque o jornalismo coloca os eventos, ideias, informações e controvérsias em contexto, determinando um quadro (frame) analítico. Desta forma, a veiculação de ideias passa pelo processo de seleção e definição de um modo de apresentação, cujas ações são diretamente vinculadas a uma perspectiva de enquadramento e a partir do qual é possível analisar e descrever como se realiza o referencial sobre a política externa.

Em nosso estudo optamos por desenvolver o arcabouço teórico a partir dos modelos de Entman (1993Entman, R.M. (1993) Framing: toward clarification of a fractured paradigm. Journal of Communication, 43(4), pp. 51-58.; 2004) e de sua variação proposta por Olmastroni (2014)Olmastroni, F. (2014) Framing war: public opinion and decision-making in comparative perspective. New York: Routledge.. O primeiro é a principal referência sobre o papel do enquadramento da imprensa na literatura sobre a política externa estadunidense, ao passo que o segundo o adaptou com sucesso ao analisar o papel do enquadramento da imprensa na avaliação da política externa de grandes potências da Europa ocidental.

Essa visão parte da suposição da existência de um mercado de ideias (Hallock, 2007Hallock, S.M. (2007) Editorial and opinion: the dwindling marketplace of ideas in today's news. Westport: Praeger.), no qual a informação jornalística é um produto ofertado em competição com outros atores. Neste caso, a informação é um produto cuja origem remonta aos agentes estatais que possuem os dados e informações sobre os processos decisórios, cujo mercado consumidor é composto pelo cidadão-leitor e, por consequência, a opinião pública, ou pelo menos nichos específicos desta (Entman, 2004Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press.; Baum & Potter, 2008Baum, M.A. & Potter, P.B. (2008) The relationships between mass media, public opinion, and foreign policy: toward a theoretical synthesis. Annual Review of Political Science, 11, pp. 39-65.). Esse mercado de ideias pode ter, por exemplo, a função de promover ideologias (Nunes & Cabral, 2018Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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).

III. O papel da imprensa na política externa

Na literatura estrangeira, em especial a estadunidense, destacamos duas dimensões sobre política externa e os meios de comunicação de massa: (i) a relação entre tais meios e a opinião pública; (ii) a relação entre tais meios e o governo como formulador público da política externa.

Na primeira dimensão, havia um consenso inicial que postulava o seguinte: (i) a opinião pública é volúvel; (ii) incoerente; (iii) irrelevante no processo de formulação de políticas públicas; (iv) os cidadãos não se interessam por política externa. Esses postulados ficaram conhecidos como o “Consenso Almond-Lippmann”, em homenagem à Gabriel Almond e Walter Lippmann. Lippmann, em sua obra Public Opinion (1922), argumentava em um sentido oposto ao do ex-presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, para quem a opinião pública seria referência à política externa daquele país.

Para este autor (i) o homem comum (unidade da massa) desconhece e não se interessa pela política externa, (ii) os agentes privados formadores de opinião pública (i.e., a imprensa) podem manipular a opinião pública e influenciá-la. Logo, caberia a uma elite intelectual e governamental a boa formação e condução da opinião pública (i.e., o “consentimento manufaturado”). Já Almond, apresentou as suas principais teses sobre o papel das opiniões públicas em The American People and Foreign Policy (1950), no qual a ignorância das massas sobre os temas de política externa torna-as suscetíveis de manipulação e irrelevantes para a formulação e condução da política externa.

O consenso Almond-Lippman foi importante na consolidação das teorias neorrealistas de Relações Internacionais ao amparar a noção de um sistema internacional cujos atores seriam exclusivamente Estados soberanos (Nogueira & Messari, 2005Nogueira, J.P. & Messari, N. (2005) Teorias das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier.). A irrelevância da opinião pública sobre temas internacionais favorecia o insulamento dos Ministérios de Relações Exteriores, a profissionalização cada vez mais rígida dos diplomatas e a exclusão de todos os outros setores da sociedade das decisões de política externa, mesmo que esta prática estivesse em contradição com o ideal normativo de democracia: a responsividade dos governantes às preferências dos cidadãos. (Dahl, 1956Dahl, R.A. (1956) A preface to democratic theory. Vol. 10. Chicago: University of Chicago Press.).

Os estudos de ciência política e relações internacionais passaram a tratar de maneira mais relevante a relação entre opinião pública e temas internacionais a partir da Guerra do Vietnã, quando a sociedade norte-americana se mostrou mais sensível à cobertura jornalística e ao sofrimento trazido pelos conflitos armados da Guerra Fria. A partir deste momento histórico, a política externa tornou-se um assunto relevante na disputa eleitoral norte-americana. A partir destas transformações, Aldrich, Sullivan & Borgida (1989)Aldrich, J.H., Sullivan, J.L. & Borgida, E. (1989) Foreign affairs and issue voting: do presidential candidates ‘waltz before a blind audience’? American Political Science Review, 83(1), pp. 123-141. e Holsti (1992)Holsti, O.R. (1992) Public opinion and foreign policy: challenges to the Almond-Lippmann consensus. International Studies Quarterly, 36(4), pp. 439-466. afirmaram que mesmo diante de um cenário de baixo conhecimento da opinião pública sobre os assuntos internacionais de seus respectivos países, o público conseguiria opinar a respeito de assuntos internacionais quando estes recebem destaque que o tornassem relevantes, ao se estabelecer uma ligação emotiva com tais termos, o que levaria a posições bastante polarizadas no plano doméstico.

Entre os estudos com maior destaque neste período está a obra de Page & Shapiro (1993)Page, B.I. & Shapiro, R.Y. (1983) Effects of public opinion on policy. American Political Science Review, 77(1), pp. 175-190. que constata a existência de uma convergência entre as mudanças de preferência na opinião pública nos Estados Unidos e mudanças políticas internacionais entre os anos de 1935 e 1979. O resultado é importante, pois contradiz a ideia de ausência de coerência e estrutura nas atitudes da opinião pública sobre temas internacionais. Os autores comprovam que apesar de não haver coerência individual, existe um direcionamento coletivo na determinação e variação das atitudes (Page & Shapiro, 1983Page, B.I. & Shapiro, R.Y. (1983) Effects of public opinion on policy. American Political Science Review, 77(1), pp. 175-190.).

Em literatura mais recente, por um lado, Peter Hays Gries (2014)Gries, P.H. (2014) The politics of American foreign policy: how ideology divides liberals and conservatives over foreign affairs. Stanford: Stanford University Press. apresenta o argumento, no caso estadunidense, de uma divisão ideológica entre liberais e conservadores (i.e., diferentes sistemas de crença) na concepção dos efeitos da opinião pública sobre a política externa. Tal argumento não só apresenta a incompletude e limitação dos argumentos de natureza exclusivamente material (por exemplo, diferentes grupos sociais com diferentes interesses econômicos projetam as suas agendas sobre os partidos que mais influenciam), como pretende destacar um conjunto de consumidores de comunicação que já têm suas ideias previamente estabelecidas. Por outro lado, Webster & Albertson (2022)Webster, S. & Albertson, B. (2022) Emotion and politics: noncognitive psychological biases in public opinion. Annu. Rev. Political Sci., 25, pp. 401-418. DOI
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, confirmam o postulado da importância de temas imateriais, ao fazerem uma ampla revisão da crescente literatura que estuda a mobilização do acervo emocional dos indivíduos (raiva, medo, amor, ansiedade etc.) e seus efeitos sobre a política em democracias, contudo reforçam a noção de que as massas são influenciadas pelos canais de comunicação. O argumento de Gries foi testado na análise da opinião pública latino-americana com dados do projeto Las Américas y el Mundo por Castillo, Maldonado & Schiavo (2015)Castilho, R., Maldonado, G. & Schiavo, J.A. (2015) To know or not to know? Realist and liberal theories on foreign affairs and public opinion in Latin America. Latin American Policy, 6(1), pp. 2-18., revelando que a despeito das limitações de conhecimento sobre temas internacionais, as opiniões públicas brasileira, mexicana, equatoriana, peruana e colombiana têm a capacidade para formar e manter preferências coerentes e consistentes sobre temas internacionais. No mesmo sentido, para o caso brasileiro Almeida et al. (2019) mostram o mesmo no que diz respeito à postura da opinião pública brasileira em matéria de abertura comercial.

Na segunda dimensão, Naveh (2002)Naveh, C. (2002) The role of the media in foreign policy decision-making: a theoretical framework. Conflict & Communication, 1(2), s/p. Disponível em: <https://regener-online.de/journalcco/2002_2/pdf_2002_2/naveh.pdf>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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sugere que os líderes políticos levam em conta os meios de comunicação de massa nacionais e internacionais na tomada de decisão em política externa. Já Baum & Potter (2008)Baum, M.A. & Potter, P.B. (2008) The relationships between mass media, public opinion, and foreign policy: toward a theoretical synthesis. Annual Review of Political Science, 11, pp. 39-65. fazem um amplo levantamento da literatura, colocando os meios de comunicação de massa como atores intermediários no processo de difusão de informações sobre a política externa, tendo que cotejar os interesses das autoridades públicas detentoras da informação e a atenção do grande público. Desta forma, os meios de comunicação de massa não apenas são um canal de transmissão das informações divulgadas pelas autoridades públicas ou das tensões existentes dentro das elites políticas, mas atores com interesses próprios (Entman, 2004Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press.).

Como se nota, existe um problema de causalidade reversa na relação entre mídia e opinião pública, uma vez que a própria mídia precisa alcançar o número mais amplo possível de consumidores para que possa sobreviver no mercado (Baum & Potter, 2008Baum, M.A. & Potter, P.B. (2008) The relationships between mass media, public opinion, and foreign policy: toward a theoretical synthesis. Annual Review of Political Science, 11, pp. 39-65.). Se, de um lado, é entendida como um ator com capacidade de afetar a percepção dos indivíduos; do outro, se atêm à opinião de seus usuários para os fidelizarem, justificando o modelo de negócio. Efetivamente, há um desconhecimento empírico se a imprensa de fato molda a opinião pública ou se é por ela moldada, uma vez que sua sobrevivência depende da capacidade de atrair leitores dispostos a comprar seus produtos e que serão objeto de campanhas publicitárias (Olmastroni, 2014Olmastroni, F. (2014) Framing war: public opinion and decision-making in comparative perspective. New York: Routledge.).

No caso do Brasil, estudos apontam para a participação da imprensa no processo político como ator com interesses, opinião e capacidade de alavancagem de poder próprios (Miguel & Biroli, 2011Miguel, L.F. & Biroli, F. (2011) Meios de comunicação de massa e eleições no Brasil: a influência simples à interação complexa. Revista USP, 90, pp. 74-83.; Azevedo, 2017Azevedo, F.A. (2017) A grande imprensa e o PT (1989-2014). São Carlos: EdUFSCar.; Nunes & Cabral, 2018Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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). Tal hipótese, no entanto, encontra mais estudos que a assumam do que estudos que busquem empiricamente comprová-la, dada as dificuldades de se mensurar de maneira objetiva o grau de influência política de um veículo de mídia sobre o eleitorado e o sistema político. As evidências apresentadas são em sua maioria subjetivas e relacionadas com um posicionamento midiático em termos político partidário, algo que não chega a ser surpreendente em regimes democráticos.

A literatura estadunidense também é marcada por tais inquietações. Até o final da Guerra Fria, pelo menos no que toca aos achados da literatura de Análise de Política Externa, a mídia era analisada mais como um transmissor dos conflitos e consensos das elites políticas do que efetivamente como um autor autônomo e com capacidade de influência própria.

O debate sobre a PEB, por sua vez, está cada vez mais explícito nos meios de comunicação escritos e televisivos, conforme podemos ver a cobertura dos efeitos das ações internacionais sobre tópicos polêmicos (Lima, 2018Lima, L.A. (2018) Impasses do MERCOSUL na imprensa: discursos editoriais e a política externa brasileira para a Venezuela no bloco. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo.), como as relações com os EUA, Cuba, Venezuela ou mesmo o combate à pandemia de COVID-19. Tal questão se torna ainda mais importante a partir da redemocratização, uma vez que o processo decisório em matéria de política externa tem se tornado mais plural, pelo menos no que toca ao papel e à capacidade de influência da comunidade de relações internacionais (Casarões, 2012Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224.). Dessa forma, cada vez mais o repertório analítico da literatura do campo de públicas tem sido utilizado para sustentar as hipóteses teóricas sobre as influências sociais na PEB (Fernandes, 2011Fernandes, I.F.A.L. (2011) Interesses organizados na política comercial brasileira: da Era CACEX às negociações internacionais. Leviathan, 2, pp. 1-35.; Faria, 2008Faria, C.A.P.D. (2008) Opinião pública e política externa: insulamento, politização e reforma na produção da política exterior do Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional, 51(2), pp. 80-97.).

Outro elemento de fundamental importância e que justifica a análise do caso brasileiro é o fato que a PEB é menos envolvida com temas de segurança internacional, uma vez que o país possui fronteiras pacificadas na América do Sul e adota uma postura autônoma em relação às principais tensões de segurança.

Posto isto, é interessante explorar a atuação da imprensa brasileira frente à política externa, pois diferente do cânone da literatura internacional, os principais temas cobertos pela imprensa sobre a área não se relacionam às questões de segurança, mas sim a temas concernentes às questões socioeconômicas e ambientais, em relação aos quais a capacidade de produção de informação independente das autoridades políticas e a pressão moral sobre o jornalismo é menor. É esperado, portanto, um espaço mais crítico à política externa do que aquele previsto pelos trabalhos clássicos da literatura norte americana.

IV. O enquadramento na literatura de política externa

O estudo do enquadramento tem como objetivo observar como os elementos retóricos são apropriados pela cobertura jornalística. O enquadramento é entendido como o ordenamento semântico da realidade a partir de certos aspectos que ganham maior destaque sobre outros por meio da articulação retórica do texto (Gamson & Modigliani, 1989Gamson, W. & Modigliani, A. (1989) Media discurse and public opinion on nuclear power: a construcionist approach. American Journal of Sociology, 95, pp. 1-37.). São elementos simbólicos que atuam como mapas compartilhados entre o corpo enunciativo e seu interlocutor, constituindo avaliações sobre a realidade (Araújo & Prior, 2020Araújo, B. & Prior, H. (2020) Framing political populism: the role of media in framing the election of Jair Bolsonaro. Journalism Practice, 15(2), pp. 1-17. DOI
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).

O conceito foi introduzido na análise de política externa a partir da contribuição seminal de Robert Entman (1993)Entman, R.M. (1993) Framing: toward clarification of a fractured paradigm. Journal of Communication, 43(4), pp. 51-58., onde define enquadramento como:

(…) selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e torná-los mais salientes em um texto comunicativo, de modo a promover uma definição de problema particular, interpretação causal, avaliação moral e/ou tratamento para recomendação do item descrito (1993, p. 52).

Enquadrar, para Entman, é selecionar certos aspectos de um evento e torná-lo reconhecível aos olhos do público. O enquadramento introduz e amplia a relevância aparente de certas ideias, ativando esquemas mentais que encorajam o público-alvo a pensar, sentir e decidir de uma maneira particular (Entman 2010Entman, R.M. (2010) Media framing biases and political power: explaining slant in news of Campaign 2008. Journalism, 11(4), pp. 389-408., p. 391). O referido autor aponta que o enquadramento possui quatro funções básicas: 1) definição de um problema; 2) delimitar suas causas; 3) estabelecer um julgamento moral; 4) propor soluções.

As duas principais funções são a definição do problema, pois predetermina o resto do enquadramento; e a sugestão de soluções, porque promove diretamente o apoio ou oposição às ações do governo (Entman, 2004Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press.). Nesta definição, há também dois aspectos que o enquadramento envolve, a saber, seleção e relevância.

A literatura indica duas dinâmicas de relação entre a imprensa, a opinião pública e os tomadores de decisões públicas em política externa. A primeira defendida por Entman (2004)Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press. sugere o Modelo de Ativação em Cascata, no qual se propõe que os tomadores de decisão política pautam a mídia, que, por sua vez, pauta a opinião pública. No entanto, o autor reconhece que em dadas ocasiões a abordagem do governo pode ser posta em dúvida. A outra dinâmica é apontada por Olmastroni (2014)Olmastroni, F. (2014) Framing war: public opinion and decision-making in comparative perspective. New York: Routledge., ao demonstrar como a opinião pública pode afetar a política externa, rompendo com a unilateralidade de Entman. O autor busca compreender como enquadramentos concorrentes contribuem para o desenvolvimento de uma interpretação pública independente, não sendo, nem a opinião pública tampouco a mídia, meras receptoras de informações capazes de influenciar o processo de políticas apenas em circunstâncias muito específicas. Para Olsmastroni, os processos de feedback são mais frequentes e de maior intensidade que os teorizados pelo modelo de ativação em cascata.

Por sua vez os editoriais são o segmento dos grandes jornais diários mais relevantes no diálogo que estabelecem com as elites políticas e a opinião pública de maneira geral (Mont'Alverne & Marques, 2016Mont'Alverne, C. & Marques, F.P.J. (2016) The agenda of the day: a study about the brazilian congress in editorials of Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo. Brazilian Journalism Research, 12(2), pp. 112-137. DOI
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; Guazina et al., 2018), uma vez que apontam os principais princípios, percepções e interpretações propostas pelo veículo. No mesmo sentido, Fonseca (2005)Fonseca, F. (2005) O consenso forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec. indica que os editoriais estabelecem as âncoras políticas, com implicações para o restante do posicionamento do jornal. Porém, em nosso estudo não limitamos a nossa unidade de análise apenas a eles, estendendo-a a todos os espaços que pudessem apresentar juízos de valores sobre política externa ao incorporar o espaço dos artigos de opinião.

Essa escolha tem como motivação principal não só cobrir o posicionamento estrito dos jornais, mas também quais são as visões distintas que estão dispostos a incorporar no cotidiano de sua cobertura jornalística. Posto isto, a incorporação dos artigos de opinião representa toda a amplitude da cobertura proposta pelo jornal. A exclusão dos artigos de opinião das análises sobre o papel da mídia produz viés, pois exclui o espaço de dissonância que a adminisração do meio de comunicação permite em seu cotidiano.

IV.1. O enquadramento da PEB na mídia

Além da abertura democrática, a redemocratização trouxe a presidencialização da política externa (Danese, 1999Danese, S. (1999) A diplomacia presidencial na política externa brasileira. Carta Internacional, 72, pp. 8-9.; Casarões, 2012Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224.; Belém Lopes, 2013Belém Lopes, D. (2013) Política externa e democracia no Brasil. São Paulo: Editora Unesp.). Considerando que o conflito é uma característica inerente da política, fatores que o causam ou o estimulam tendem a ganhar atenção do jornalismo, que o repercute a partir de enquadramentos (Schuck et al., 2014Schuck, A.R., Vliegenthart, R. & De Vreese, C.H. (2016) Who's afraid of conflict? The mobilizing effect of conflict framing in campaign news. British Journal of Political Science, 46(1), pp. 177-194.). Logo, a presidencialização da política externa torna-se objeto do exercício do enquadramento jornalístico.

Em cerca de três décadas de democracia sob a Nova República, a literatura nacional sobre enquadramento da mídia na PEB revela a sua principal linha de argumento: os principais veículos de comunicação partem de uma ideologia própria a partir da qual realizam o enquadramento (Nascimento, 2005Nascimento, R.C. (2005) Diários do príncipe: imprensa e política externa no governo Cardoso (1995-2002). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.; Casarões, 2012Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224.; Goldstein, 2013Goldstein, A.A. (2013) De la expectativa a la confrontación: o Estado de S. Paulo durante el primer gobierno de Lula da Silva. Tesis de Maestría. Buenos Aires: Universidad Nacional de San Martín. Disponible en: <https://ri.unsam.edu.ar/handle/123456789/254>. Assesso en: 31 de mai. 2023.
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; Mesquita, 2014Mesquita, R. (2014) Contradições identitárias do Brasil emergente: uma análise dos discursos do Estado e da imprensa. Compolítica, 4(1), pp. 149-180. DOI
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; Lima, 2018Lima, L.A. (2018) Impasses do MERCOSUL na imprensa: discursos editoriais e a política externa brasileira para a Venezuela no bloco. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo.; Nunes & Cabral, 2018Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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; Monteiro & Lessa, 2020Monteiro, E.N. & Lessa, M.L. (2020) Mídia e política externa brasileira: uma abordagem crítica. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, 9(1), pp. 1-21. DOI
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).

Casarões (2012)Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224. indica que a mídia aumentou o seu enfoque sobre a política externa presidencial durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), do Partido dos Trabalhadores (PT), pelo fato do presidente adotar uma postura mais ativa na promoção da política externa. Isto seria reforçado pela primazia do chanceler Celso Amorim, com sua maior aparição na mídia, que se alega ser uma estratégia sua para conseguir uma base de apoio dos setores sociais (Belém Lopes, 2013Belém Lopes, D. (2013) Política externa e democracia no Brasil. São Paulo: Editora Unesp.). O estudo de Casarões (2012)Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224., feito a partir da análise da cobertura da “Folha de São Paulo” (FSP) e de “O Estado de São Paulo” (ESP) sobre eventos relevantes à época, mostraram que ambos os jornais foram bastante críticos ao governo. A conclusão à qual o autor chega é que a mídia cobriu a política externa de maneira semelhante à política doméstica, mostrando que a postura crítica ao governo era, de certa forma, generalizada.

Abordagem semelhante é adotada por Mesquita (2014)Mesquita, R. (2014) Contradições identitárias do Brasil emergente: uma análise dos discursos do Estado e da imprensa. Compolítica, 4(1), pp. 149-180. DOI
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, a partir da repercussão da mediação feita pelo Brasil do acordo entre Irã e Turquia. Em seu estudo, foram selecionados veículos da imprensa nacional e internacional, a fim de dar um panorama mais amplo da imagem do Brasil veiculada pela mídia. Os resultados mostraram que periódicos de direita, no caso “Wall Street Journal” (WSJ) e ESP, não legitimaram o papel reivindicado pelo Brasil, adotando, por vezes, um discurso alarmista e taxativo.

Monteiro & Lessa (2020)Monteiro, E.N. & Lessa, M.L. (2020) Mídia e política externa brasileira: uma abordagem crítica. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, 9(1), pp. 1-21. DOI
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, a partir da análise da cobertura do jornal “O Globo” (GLO) em três momentos de crise, entre 2002 e 2016, constatam que o enquadramento escolhido pela imprensa diferencia-se a depender da orientação política do governo que está no poder: em períodos nos quais a presidência é ocupada por governos à esquerda no espectro político há por parte dos periódicos um senso de urgência quanto à solução da crise, o que não aconteceria quando o país é presidido por coalizões de centro-direita.

Conclusão parecida foi encontrada por Goldstein (2013)Goldstein, A.A. (2013) De la expectativa a la confrontación: o Estado de S. Paulo durante el primer gobierno de Lula da Silva. Tesis de Maestría. Buenos Aires: Universidad Nacional de San Martín. Disponible en: <https://ri.unsam.edu.ar/handle/123456789/254>. Assesso en: 31 de mai. 2023.
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, que analisou a cobertura do ESP durante o governo Lula. Nesse caso especificamente, entende-se que o conflito se deu porque o PT optou por uma política externa nacionalista, desenvolvimentista e Sul-Sul, aspectos que contrastam com abordagem conservadora do periódico.

Nunes & Cabral (2018)Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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, em um estudo de 13 editoriais do jornal o Estado de São Paulo sobre a presidência de Dilma Rousseff, apontam o uso ideológico dos editoriais de jornais, cujos recursos linguísticos são empregados com “o propósito de reunir leitores em torno das ideias defendidas pelo editorialista e pela instituição e, com isso, levá-los a adotarem tais posições, refletindo-as em suas ações na sociedade” (Nunes & Cabral, 2018Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
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, p. 151). Já Lima (2018)Lima, L.A. (2018) Impasses do MERCOSUL na imprensa: discursos editoriais e a política externa brasileira para a Venezuela no bloco. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo., se propôs a identificar se a imprensa brasileira exerceria um papel de contrapoder ou se se filiava a uma visão ideológica específica de integração regional. A segunda hipótese foi confirmada pelos autores, porque, com exceção da FSP, a posição crítica existente durante os governos petistas deu lugar à complacência durante governos de centro-direita, pois encontraria alinhamento com a visão dos demais periódicos. Isso estaria em linha com um estudo anterior, conduzido por Nascimento (2005)Nascimento, R.C. (2005) Diários do príncipe: imprensa e política externa no governo Cardoso (1995-2002). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro., com base em artigos da FSP e do GLO, que apontou uma variação no alinhamento de certos periódicos com a visão oficial de política externa durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

A partir desse percurso, podemos identificar os seguintes denominadores comuns: (i) as análises enfatizaram FSP, ESP e GLO; (ii) o recorte temporal se concentrou em eventos específicos da política externa; (iii) foi observada a existência de heterogeneidade quanto ao comportamento dos periódicos e ao enquadramento escolhido pela imprensa para governos de orientação política diferentes; (iv) foi identificada elevada parcialidade da mídia ao criticar a política externa no período petista.

Finalmente, uma lacuna existente na literatura é a falta de análise de espaço próprio de discussão da política externa. A literatura assume que as clivagens político-ideológicas da política nacional se refletem de maneira direta na cobertura da imprensa sobre a política externa. Em nosso estudo, buscamos verificar se as ideologias próprias no campo da política externa, apresentadas em Almeida et al. (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574., possuem algum efeito na cobertura da imprensa e afetam o enquadramento realizado. Até onde podemos afirmar, não encontramos nenhum outro trabalho que tenha feito uma análise do enquadramento da mídia a partir das dimensões próprias da política externa.

V. Metodologia de pesquisa: identificação das funções de enquadramento por meio de argumentos

A metodologia desenvolvida neste estudo baseia-se na abordagem de enquadramento de Entman (1993)Entman, R.M. (1993) Framing: toward clarification of a fractured paradigm. Journal of Communication, 43(4), pp. 51-58. nos editoriais e artigos de opinião. Estes são particularmente relevantes para nossos objetivos, pois existe a liberdade putativa de se fazer avaliações morais e interpretações substantivas sofisticadas e abertamente desafiadoras ou mesmo críticas mais severas e agressivas às autoridades de plantão.

Definimos nossa unidade de análise como o argumento mobilizado pelos artigos de opinião e editoriais. Os artigos são desmembrados, portanto, em unidades menores (argumentos), segundo as funções de enquadramento. A delimitação do que seja um argumento é dada pelo cumprimento de ao menos uma combinação das funções de enquadramento de Entman.

Posto isto, os argumentos são definidos como a construção verbal que (A) identifica um problema, (B) articula relações de causas-consequências e/ou (C) propõe soluções para as questões de política externa abordadas.

Avançamos ao propor um código objetivo empírico e replicável (codebook) para organizar a coleta quantitativa (Vimieiro & Maia, 2011Vimieiro, A.C. & Maia, R.C.M. (2011) Análise indireta de enquadramentos da mídia: uma alternativa metodológica para a identificação de frames culturais. Revista FAMECOS: Mídia, Cultura e Tecnologia, 18(1), pp. 235-252.). Visando sistematizar de maneira objetiva e replicável os argumentos identificados nos artigos de opinião e editoriais, a coleta foi implementada da seguinte forma:

1° Um argumento é composto pelas combinações AB, AC ou ABC. Somente se o elemento textual satisfizer esse critério de combinação de funções (AB, AC ou ABC) de enquadramento será considerado como um argumento.

2° O argumento deve ser classificado de acordo com as funções de enquadramento, incluindo a avaliação moral - positiva, negativa ou neutra - no que toca à PEB realizada.

3° Deve ser especificado em quais e em quantos artigos cada argumento aparece, uma vez que o argumento pode ser repetido em diversos editoriais ou artigos. Por definição, o argumento só pode ser mobilizado uma única vez em um determinado artigo ou editorial.

V.1. Universo de análise

Para a elaboração desta pesquisa, analisamos os editoriais e artigos de opinião assinados nos seguintes jornais de grande circulação: FSP, ESP, GLO e Valor Econômico (VEC), entre os anos de 2014 e 2016, sobre as temáticas mais retratadas no debate midiático em matéria de PEB. A escolha do período foi de forma a garantir uma variação nas lideranças políticas. Aproveitamos o período definido pelas eleições de 2014 e a alternância de poder devido ao processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT). Por um lado, isso permite uma variação importante garantida na análise de nossos dados, afastando uma amostra enviesada na análise de uma única gestão2 2 Em trabalhos futuros pretendemos fazer uma análise mais abrangente, utilizando dados de editoriais e artigos de opinião de 2010 a 2022. . Por outro lado, reconhecemos que esse é um período de aguda turbulência na política nacional, com mudanças na política externa e a possibilidade de maior atenção pela imprensa para os problemas internos. As análises anteriores foram prejudicadas pelo fato de terem analisado a cobertura da mídia em um único governo, com exceção de Casarões (2012)Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224..

Esses quatro jornais estão entre os de maior circulação impressa e digital, considerando a série temporal da nossa pesquisa (IVC, Instituto Verificador de Comunicação). Todavia, algumas ponderações precisam ser feitas mostrando as limitações da nossa amostra: (i) a soma de circulações impressas e assinaturas digitais dos jornais analisados, em 2016 (890.025), representava cerca de 0,4% da população brasileira à época (IBGE, 2016); (ii) todos são jornais da região sudeste no eixo Rio-São Paulo; (iii) os quatro estão vinculados a três grandes conglomerados familiares de comunicação (Grupo Estado; Grupo Folha; Grupo Globo).

Para realização da análise, levantamos sete eixos temáticos mais prevalentes na cobertura da PEB e que são considerados como temas mais importantes na discussão sobre a política externa, tendo sido selecionados de modo a simplificar a delimitação do escopo dos argumentos.

O tamanho das amostras para cada uma das temáticas varia em quantidade de artigos e, portanto, também de argumentos. Estes eixos são: (i) as relações bilaterais com a China (com 29 artigos), Cuba (12 artigos), Estados Unidos (11), Venezuela (42); (ii) as relações regionais na América Latina (63); (iii) as posturas do governo brasileiro sobre a mudança climática (13); (iv) a agenda dos BRICS (23). Desta forma foram selecionados 193 artigos como o corpus documental básico de um universo de cerca de 1334 artigos que se referiam a temas gerais de política externa3 3 A definição do universo de artigos de opinião e editoriais que tratam de política externa é feita por uma regra abrangente. Qualquer peça que faça comentário sobre a política externa, mesmo adjacente à argumentação do documento, é considerado. A partir da definição do universo, delimitamos nossa amostra com a análise de eixos temáticos mais prevalentes na cobertura da política externa brasileira. . A opção por uma amostra reduzida tem como objetivo delimitar a análise para os eixos temáticos mais debatidos e politizados da PEB.

Deste conjunto total de artigos de opinião e editoriais, levantamos 107 argumentos, de acordo com os critérios expostos acima, sendo 37 (35%) referentes à reflexão de causas ou consequências dos problemas apontados, 32 (30%) propondo soluções ou alternativas e 38 (35%) fazendo ambas. Não há, portanto, clara prevalência de nenhuma das funções de enquadramento na análise. Todos os argumentos remetem a problemas identificados nos sete eixos.

A maior parte dos argumentos obtidos a partir da desagregação do universo de 193 artigos abordam as temáticas da Venezuela (42), América Latina (18), China (17) e BRICS (13), seguidos por Cuba e EUA (7) cada.

Após a delimitação dos argumentos, os classificamos segundo as seguintes camadas:

  1. Verificamos se o argumento é favorável, neutro ou contra a política externa realizada pelo governo, uma vez que pretendemos identificar o quanto e quais veículos são sistematicamente contrários ou favoráveis ao governo de plantão e como isso evolui ao longo do tempo.

  2. Avaliamos se o argumento é de natureza substantiva ou procedimental.

  3. O que queremos avaliar é se o argumento é mais focado nos procedimentos adotados ou se ele se coloca sobre o próprio objetivo daquela opção de política externa.

  4. Analisamos como os argumentos formulados pelos veículos em seus editoriais e artigos de opinião se posicionam em respeito às três dimensões fundamentais da PEB, americanismo, regionalismo e multilateralismo definidas por Almeida et al. (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574. a partir de estudo sobre a estrutura da opinião pública brasileira sobre a política externa e a política internacional4 4 Almeida, Guimarães & Fernandes (2021) indicam que a opinião pública é estável, estruturada e consistente nas temáticas internacionais. A partir de modelo hierárquico, mostram que as opiniões sobre políticas específicas são determinadas por visões ideológicas da política externa que por sua vez são definidas por crenças profundas e históricas sobre o papel do Brasil nos assuntos internacionais. .

Para a delimitação dos argumentos e classificação de acordo com as variáveis acima mencionadas foi treinada uma equipe de sete pesquisadores que fizeram a análise dos argumentos em duplas variadas para cada um dos eixos temáticos a partir de um livro de códigos. A análise foi realizada individualmente por cada pesquisador e os resultados foram conferidos entre as duplas. Após a realização da primeira delimitação dos argumentos, outra dupla confirmou a análise. Divergências foram resolvidas em discussão coletiva com todo o grupo e a análise refeita.

VI. Análise dos dados e resultados preliminares

VI.1. Argumentos e avaliação moral

O primeiro recorte que fazemos corresponde à temporalidade. Foram mobilizados 66 argumentos em 2014, 42 em 2015 e 23 em 2016. A soma do número de argumentos por ano não é igual à 107, pois alguns argumentos se repetem ao longo de dois ou três anos. Três argumentos, por exemplo, se repetem nos três anos analisados: (i) o Brasil precisa explorar melhor a parceria com China; (ii) omissão do Brasil em relação à Venezuela; (iii) ideologização da PEB em relação à Venezuela.

Na Tabela 1, resumimos o número de argumentos mobilizados sobre o tema e a sua repetição. O debate sobre a Venezuela é o que ocupa maior espaço, seja em termos de argumentos mobilizados (42), seja na repetição destes em diversos artigos e editoriais (93 vezes). Os argumentos mais explorados em nossa amostra referem-se à política externa com a Venezuela, a saber “O Brasil aplicou a cláusula democrática do Mercosul ao Paraguai, mas não condena a Venezuela”, “Omissão do Brasil”, e “Ideologização da PEB” foram mobilizados 10, 8 e 7 vezes, respectivamente.

Tabela 1
Argumentos e utilização dos argumentos por eixos temáticos

Além disso, é interessante apontar que apesar de terem sido elaborados mais argumentos sobre a América Latina (18), o eixo mais comentado, após a Venezuela, foi a discussão sobre as relações do Brasil com a China (51 vezes). O argumento de que o “Brasil precisa explorar melhor a parceria com a China” foi apresentado em oito textos distintos.

Chama atenção o fato que a cobertura da mídia sobre a política externa a partir dos dados analisados se divide em duas faces. De um lado, há uma discussão sobre os aspectos que são considerados como substantivamente importantes, o debate sobre a China, e os politicamente importantes. Há evidências que apontam para o fato que a politização do debate sobre a política externa também afeta a mídia. Corroborando os achados de Casarões (2012)Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224., a inflexão ideológica proposta na política externa petista após a chegada de Luís Inácio Lula da Silva ao poder, compensando à aceitação da ortodoxia econômica (Vigevani & Cepaluni, 2007Vigevani, T., & Cepaluni, G. (2007). Lula's foreign policy and the quest for autonomy through diversification. Third World Quarterly, 28(7), 1309-1326.) é também retratada na cobertura da imprensa.

No Quadro 1 listamos os onze argumentos mais utilizados, que foram repetidos ao menos cinco vezes nos artigos e editoriais analisados.

Quadro 1
Argumentos mais mobilizados por eixos temáticos

Avaliamos o efeito do enquadramento a partir da análise da avaliação moral feita sobre a PEB, apresentada na Tabela 2. Dos 107 argumentos analisados, apenas 26 (24.3%) artigos fizeram uma avaliação positiva da PEB, enquanto 67 (62.6%) fizeram uma avaliação negativa, apontando para uma perspectiva evidentemente crítica da imprensa em relação à política externa. É importante apontar que em dois argumentos foi possível identificar tanto uma avaliação moral positiva quanto negativa, contudo isto foge ao padrão5 5 Os motivos que levam a classificação tanto positivas é que os argumentos sobre a cooperação “Brasil-China: infraestrutura e commodities” e sobre a “Necessidade de protagonismo brasileiro” no eixo temático venezuelano tem conotações positiva e negativa em alguns artigos, uma vez que para os autores poderíamos ter efeitos não triviais com a ampliação dessas interações internacionais. . Nas outras 89 valorações morais o argumento era unicamente negativo ou positivo.

O resultado demonstra que a imprensa brasileira possui razoável autonomia frente à política externa estabelecida pelo governo de plantão. Diferentemente do encontrado por Entman (2004)Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press. em sua análise sobre a relação da mídia com a política externa americana, onde há crítica era a exceção e a reprodução dos enquadramentos propostos pelas autoridades à regra geral, no Brasil os jornais tendem a ser mais críticos do que elogiosos à PEB.

Dos 107 argumentos analisados, 24 tiveram um posicionamento de maneira apenas descritiva sobre a PEB em alguma de suas apresentações, o que classificamos como uma avaliação moral neutra. Deste total, 16 foram neutros em todas as suas aparições nos diversos editoriais e artigos.

Tabela 2
Argumentos negativos por eixos temáticos

Já a Tabela 2 também nos apresenta a distribuição da avaliação moral por eixo temático. A partir dela, chama a atenção a variação da avaliação moral negativa segundo os eixos temáticos. Cerca de 72% dos argumentos sobre a política externa em relação à América Latina foram negativos, assim como 71% dos argumentos sobre a relação com a China e todos os três argumentos sobre a relação com Cuba, novamente apontando como o debate sobre a ideologização da política externa tem preponderância relevante na cobertura da imprensa escrita.

O eixo menos criticado foi na cobertura da política externa com os EUA, onde apenas três dos sete argumentos eram negativos. Notadamente a relação Brasil - EUA apesar de ser um dos eixos estruturantes da ação externa brasileira (Amorim Neto, 2011Amorim Neto, O. (2011) De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier Brasil.), não foi o centro do debate sobre a PEB nos governos petistas e durante a administração Michel Temer. Apenas durante o governo Bolsonaro há uma tensão maior no debate sobre a cooperação entre as duas potências hemisféricas, contudo nossos dados não abrangem esse período, não sendo possível uma avaliação mais qualificada sobre o assunto.

A relação com a Venezuela, ainda que mais debatida, se destaca menos quando levamos em conta a natureza da argumentação moral, estando próximo da média de 62% de críticas encontradas de forma geral. Já no que toca aos argumentos positivos, na Tabela 2, a relação é um pouco distinta. Além de existir um número mais reduzido de argumentos positivos, a temática mais elogiada é a política externa em relação aos BRICS, a China e a Venezuela, com respectivamente 31%, 29% e 29% de argumentos positivos.

Esses resultados apontam para o fato de que os próprios jornais são palco de um debate importante que há na política externa brasileira no que toca à questão venezuelana, sendo alvo de argumentos tanto positivos quanto negativos.

O modelo de cascata de Entman (2004)Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press. prevê que o espaço da autonomia da mídia em relação ao governo de plantão é pequeno, uma vez que a mídia depende das informações disponibilizadas para realizar sua cobertura dos principais eventos de política externa. As considerações de Entman são enviesadas pelo fato que os principais debates travados na mídia norte americana sobre política externa se relacionam de maneira geral a temas de segurança externa, sobre o qual o controle exercido pelo governo, sobretudo em ações foram do território nacional. Isto faz com que a dependência da mídia em termos de obtenção de matéria prima para a cobertura jornalística seja maior do que aquilo que ocorre nas principais temáticas debatidas na cobertura da mídia brasileira sobre a política externa do país. A PEB e os principais assuntos debatido prevalentemente se relacionam por temas geopolíticos fora da agenda de segurança, mais precisamente por debates temas econômicos, sociais e ambientais, o que permite uma maior amplitude dos veículos da imprensa em coletar informações fora do controle das autoridades públicas e políticas.

Nossas principais expectativas quanto ao posicionamento dos artigos de opinião e editoriais foram confirmadas na análise. Esperávamos encontrar interpretações críticas sobre a condução da PEB, e de fato, a imensa maioria dos argumentos identificados se opõem à ação do governo, indo na direção contrária ao encontrado na literatura sobre a política externa estadunidense e reproduzindo os achados da literatura brasileira que encontrou uma cobertura midiática crítica à política externa brasileira nas últimas décadas (Nascimento, 2005Nascimento, R.C. (2005) Diários do príncipe: imprensa e política externa no governo Cardoso (1995-2002). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.; Casarões, 2012Casarões, G.S.P. (2012) A mídia e a política externa no Brasil de Lula. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 1(2), pp. 201-224.; Goldstein, 2013Goldstein, A.A. (2013) De la expectativa a la confrontación: o Estado de S. Paulo durante el primer gobierno de Lula da Silva. Tesis de Maestría. Buenos Aires: Universidad Nacional de San Martín. Disponible en: <https://ri.unsam.edu.ar/handle/123456789/254>. Assesso en: 31 de mai. 2023.
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; Mesquita, 2014Mesquita, R. (2014) Contradições identitárias do Brasil emergente: uma análise dos discursos do Estado e da imprensa. Compolítica, 4(1), pp. 149-180. DOI
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; Lima, 2018Lima, L.A. (2018) Impasses do MERCOSUL na imprensa: discursos editoriais e a política externa brasileira para a Venezuela no bloco. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo.; Nunes & Cabral, 2018Nunes, G.G. & Cabral, S.R. (2018) O Estadão e a Presidente: o editorial como locus de avaliação. Delta, 34, pp. 149-180. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/38991>. Acesso em: 31 de mai. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/delt...
; Monteiro & Lessa, 2020Monteiro, E.N. & Lessa, M.L. (2020) Mídia e política externa brasileira: uma abordagem crítica. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, 9(1), pp. 1-21. DOI
DOI...
).

As temáticas centrais da PEB não perpassam o tema da segurança nacional, que tende a ser mais sensível para o posicionamento contrário em relação às decisões dos governantes de plantão. Dado que as negociações e a participação brasileiras no cenário internacional não acarretam grandes consequências domésticas de curto e médio prazo e nem envolvem a participação brasileira - e de soldados brasileiros - em conflitos internacionais, o alinhamento ou oposição ao governo não traz benefícios ou custos altos para a imprensa. Seus colunistas e editoriais ganham, portanto, maior liberdade para expressar seu posicionamento contrário, ou favorável, às ações dos governantes de plantão.

VI.2. avaliação moral e o teor da crítica: procedimental e substantiva

A interpretação do posicionamento a favor ou contra a condução da PEB pela administração depende do teor das críticas mobilizadas pelo argumento. A distinção entre o caráter procedimental ou substantivo das críticas é apontada como relevante por Entman (2004)Entman, R.M. (2004) Projections of power: framing news, public opinion and U.S. foreign policy. Chicago: The University of Chicago Press.. Para o autor, as críticas realizadas pelos principais veículos estadunidenses eram, em sua maior parte, críticas procedimentais, dada, novamente, a ênfase da questão de segurança na política externa americana. O ponto central de Entman era que devido à sensibilidade dos temas de segurança, a mídia - quando crítica - construía seu enquadramento a partir de uma avaliação do procedimento e não da substância da política externa estadunidense.

Desta forma, a nossa pergunta seguinte foi avaliar se o argumento mobilizado era de natureza procedimental ou substancial. Tal como vimos na subseção anterior, temos a expectativa de uma maior prevalência de argumentos substantivos do que procedimentais, uma vez que a imprensa brasileira possui mais autonomia e menos amarras morais em relação à avaliação da política externa do governo de plantão.

Segundo os dados levantados na Tabela 3, dos vinte e seis argumentos positivos, seis fazem um argumento procedimental, doze um argumento substantivo e oito argumentam de maneira procedimental e substantiva. Por sua vez, entre os 67 argumentos negativos, cerca de 41 fazem uma crítica substantiva (61%) enquanto 11 (16%) fazem um argumento procedimental e 15 estabelecem uma argumentação procedimental e substantiva (22%). Os dados estão expostos na Tabela 3.

Desta forma, podemos concluir que a crítica foi essencialmente substantiva, por vezes atingindo adicionalmente ambos: as estratégias e o procedimento adotado pelo governo. Apontamos, novamente, que a diferença em relação ao encontrado na literatura internacional decorre do fato de que os temas que são tratados sobre a PEB na imprensa não abarcam temas sensíveis de segurança, que dada a construção internacional do país com fronteiras pacificadas desde o início do século XX, não estão entre os grandes temas de nossa agenda internacional.

O Brasil torna-se assim um caso interessante por conta da autonomia dos jornais em relação aos argumentos mobilizados. Os jornais possuem posições normativas claras sobre a política externa brasileira e aplicam essas posições independentemente do governo de plantão. Posto isto, encontramos maior crítica à política externa do que o previsto na literatura norte americana. Logo, o modelo de ativação em cascata de Entman não se conforma no caso brasileiro, corroborando o modelo de interpretação independente de Olmastroni quanto à autonomia da mídia, se entendida dentro do mercado de jornalismo impresso.

Tabela 3
Natureza dos argumentos positivos e negativos

VI.3. Paradigmas de política externa

A terceira categorização dos dados que foi realizada é relativa aos paradigmas de política externa. Nos valemos aqui da contribuição de Almeida et al. (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574., que identificam três paradigmas fundamentais: americanismo, multilateralismo e regionalismo. Fazendo uso destas chaves interpretativas, esperamos ampliar o alcance da análise dos argumentos para eventualmente formar diagnósticos mais substantivos acerca do papel da mídia em relação ao processo decisório e à opinião pública sobre a PEB. Posto isto, analisamos os 107 argumentos em relação às 3 dimensões, cujos dados são expostos na Tabela 4.

Apresentamos, em primeiro lugar, a frequência destes argumentos por eixos temáticos. Encontramos 54 argumentos que falam sobre multilateralismo, 50 sobre regionalismo e 24 sobre americanismo. Apesar da amostra pequena, que foca apenas os artigos publicados no triênio de 2014 a 2016, os dados indicam um foco principal na temática do multilateralismo. Além disso, indica a importância crucial das três temáticas, uma vez que apenas doze dos 107 argumentos não abarcam pelo menos uma das três dimensões consideradas mais relevantes da PEB, corroborando com uma abordagem distinta os achados Almeida et al. (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574..

A presença mais relevante do multilateralismo se dá sobre as questões concernentes à China e aos BRICS e diferente das outras temáticas está presente em todos os eixos analisados. A temática do regionalismo, como esperado, abarca os argumentos sobre a Venezuela e o americanismo sobre os EUA e, curiosamente, possui uma prevalência relevante de questões concernentes à Venezuela.

Interessante apontar que argumentos sobre o americanismo são feitos também nos argumentos sobre Cuba, China e BRICS, que seriam parceiros alternativos à potência hemisférica, mas não aparecem nos argumentos sobre América Latina e política climática. Por sua vez, os argumentos sobre regionalismo abarcam América Latina e Cuba, além de curiosamente ter alguma prevalência nas discussões sobre China.

Tabela 4
Eixos temáticos e dimensões da PEB

Após apresentarmos o padrão geral da relevância das dimensões, analisamos a prevalência de argumentos positivos e negativos em cada uma.

Dos 54 argumentos sobre o multilateralismo, 14 (26%) são positivos e 29 (54%) são negativos. Já na dimensão do regionalismo, 20 (40%) dos 50 argumentos são positivos e 29 (58%) possuem uma argumentação negativa. Finalmente, entre os 24 argumentos sobre americanismo, apenas 4 (16%) são positivos e 14 negativos (58%), o que mostra uma postura geral contra a política bilateral com os EUA no período.

Os padrões indicam bastante crítica à PEB no que toca a relação com os EUA, mesmo quando referenciada em outras temáticas como Venezuela, China, Cuba e BRICS6 6 Em ordem decrescente, dos catorze argumentos críticos na dimensão do americanismo, 4 estão na temática sobre Cuba, 3 sobre Venezuela e EUA, e 2 sobre China e BRICS. , e sobre o multilateralismo, enquanto a mídia aparenta apoiar de maneira mais relevante à política externa no que toca às suas intersecções com o regionalismo.

Obviamente, os dados são ainda preliminares e é necessário uma ampliação da amostra para que conclusões mais confiáveis e válidas possam ser extraídas da análise. Contudo, sugerem a riqueza da metodologia proposta para a análise do enquadramento da mídia no que toca a PEB.

VI.4. Evolução dos argumentos por ano e por governo

Nesta seção, aproveitamos o fato de que os dados coletados abarcam o período de dois governos distintos. Entre 2014 até 12 de maio de 2016, a presidência do Brasil foi exercida por Dilma Rousseff (PT) e no restante por Michel Temer (PMDB). Apesar da análise ser de uma amostra pequena e o governo peemedebista ter sido analisado apenas durante seus oito meses iniciais, verificaremos a hipótese recorrente na literatura sobre a politização da cobertura da imprensa sobre política no Brasil e política externa. Como tratamos na introdução, alguns estudos tendem a assumir, mais do que verificar, a relação (Miguel & Biroli, 2011Miguel, L.F. & Biroli, F. (2011) Meios de comunicação de massa e eleições no Brasil: a influência simples à interação complexa. Revista USP, 90, pp. 74-83.; Azevedo, 2017Azevedo, F.A. (2017) A grande imprensa e o PT (1989-2014). São Carlos: EdUFSCar.) ou testá-la por métodos subjetivos (Mont'Alverne, 2016Mont'Alverne, C. & Marques, F.P.J. (2016) The agenda of the day: a study about the brazilian congress in editorials of Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo. Brazilian Journalism Research, 12(2), pp. 112-137. DOI
DOI...
; Guazina, Hélder & Araújo, 2018).

Nesta seção avaliamos se o padrão dos argumentos muda no período. Destes 107 argumentos, 66 foram feitos em 2014 (62%), 42 em 2015 (39%) e 23 em 2016 (22%). Do total, apenas 3 foram articulados nos três anos. No que toca aos diferentes governos, 84 argumentos (79%) foram feitos apenas durante o governo Dilma, 10 (9%) nos dois governos e 13 (12%) no governo Temer, conforme exposto na Tabela 5.

Em primeiro lugar, verificamos se há mudança na natureza do tipo de enquadramento realizado. Verificamos, assim, se o argumento é sobre causa/consequência, uma proposta de solução ou ambos ao longo dos períodos analisados.

Dos 66 argumentos arrolados em 2014, 17 (26%) apresentavam soluções e propostas, 28 (42%) causas e consequências e 21 (32%) ambos. Em 2015, dos 42 argumentos, 15 (36%) são apenas sobre soluções e propostas, 9 (21%) sobre causas e consequências e 18 (42%) sobre ambos. Finalmente, em 2016, os valores são, respectivamente, 7 (30%), 5 (22%) e 11 (48%).

Os dados indicam que o tema da política externa foi saindo do debate público, assim como o número de argumentos articulados. No que toca ao enquadramento de análise, houve uma ampliação do número de argumentos que concatenam as duas funções de enquadramentos, havendo menos argumentos que sejam apenas análise de causas ou consequências, enquanto o número de propostas de soluções apresenta-se mais estável. Podemos concluir que o maior volume de trabalhos em 2014 tinha como principal objetivo radiografar problemas, enquanto os mais recentes propunham tanto a radiografia quanto soluções.

Tabela 5
Tipos de enquadramento por ano e presidência

Já na comparação entre as diferentes presidências, apresentadas na Tabela 6, chama atenção o maior volume para o período de Dilma Rousseff. Em seu período, foram elaborados 93 argumentos para sua política externa, cerca de 3.3 argumentos por mês, enquanto no governo Temer foram elaborados 23, cerca de 2.9 argumentos por mês. Além disso, as presidências diferem sobre o enquadramento realizado. No governo Dilma há mais análises sobre causa e consequência (38%) do que no governo Temer (22%), enquanto no segundo há mais análises com o duplo enfoque de funções de enquadramento (48%) do que no governo Dilma (34%).

No entanto, o que parece mais interessante na comparação entre os dois governos é a dinâmica distinta que os argumentos possuem na valoração moral da política externa. A imprensa foi mais crítica ao governo Dilma em 63 (67%) dos 94 argumentos elaborados, enquanto foi crítica ao governo Temer em 12 (52%) dos 23 argumentos, assim como foi mais favorável ao segundo em 10 argumentos (43%), uma proporção muito maior do que a dos 18 (19%) argumentos favoráveis ao governo Dilma.

Dois elementos chamam atenção nestes dados, de um lado, a mídia teve uma postura mais favorável ao governo do presidente Temer, por outro lado, mesmo sendo mais favorável, a mídia continuou a ser majoritariamente crítica ao governo. Isto é, nossos dados indicam, sublinhamos de maneira preliminar, que houve uma maior disposição crítica ao governo de Dilma Rousseff, corroborando em parte os achados qualitativos sobre o tema, mas essa diferença não é de gênero, mas de grau. Diferente do argumentado sobre a partidarização da imprensa, não foi encontrada uma aceitação da PEB de Michel Temer. Em ambos os momentos, pelo menos 50% dos argumentos foram críticos aos governantes de plantão.

Tabela 6
Valoração moral por presidência

Na Tabela 7, apresentamos a valoração moral por eixos temáticos. A análise do governo Temer é prejudicada pelo pequeno número de argumentos positivos (10) e negativos (12), contudo chama atenção que a questão dos BRICS e de Cuba saem da imprensa, enquanto todos os outros eixos permanecem como parte do debate sobre a política externa. Além disso, a discussão é concentrada na temática venezuelana, que ocupa cerca de 60% dos argumentos positivos ou negativos, não havendo nenhum argumento positivo ao longo dos oito meses de governo sobre a política externa com os EUA e o Clima.

Tabela 7
Valoração moral por presidência e eixo temático

Já no governo Dilma, novamente chama atenção que o debate é severamente crítico e pouco positivo, outra vez o maior número de argumentos negativos refere-se à temática Venezuelana e à América Latina. Os elogios são mais dispersos, sendo os mais prevalentes para a temática Venezuelana, ainda que as críticas sejam mais presentes que as visões positivas.

Finalmente, analisamos a relação entre as dimensões da política externa e os governantes de plantão na Tabela 8. No governo Dilma, a temática mais prevalente é a multilateral, enquanto no governo Temer é a temática regional, muito decorrente da prevalência da discussão sobre Venezuela, dos 15 argumentos desenvolvidos durante seu governo pela imprensa na temática regional, 12 são sobre a crise do parceiro andino. Em ambos os governos, a temática menos relevante no debate sobre a política externa é o americanismo, ocupando 1 de cada 4 argumentos desenvolvidos no governo Dilma e 1 em cada cinco no governo Temer.

Tabela 8
Valoração moral por presidência e dimensões da PEB

VII. Conclusões

Este estudo exploratório adotou como ponto de partida uma discussão teórica sobre a relação entre a imprensa e política externa para propor uma metodologia empírica para a avaliação do enquadramento midiático sobre a PEB. Particularmente buscamos contribuir com o entendimento de como a política externa brasileira foi enquadrada pela imprensa a partir dos diversos argumentos mobilizados. Para tal, utilizamos dados do triênio 2014/16.

Esses argumentos foram analisados e, concomitantemente, classificados em termos de i) avaliação moral que fazem à política externa, ii) teor/conteúdo da sua avaliação e iii) paradigma da política externa nacional que se segue. Fizemos isso, aplicando a visão baseada na estrutura de Entman, uma referência na aplicação da análise do enquadramento na política externa.

Tendo em conta esta abordagem, podemos inferir os seguintes aspectos relevantes do enquadramento:

Em primeiro lugar, o enquadramento apresentado pela imprensa baseou-se em vários argumentos, tão mais críticos do que favoráveis à política externa do governo. Ou seja, no Brasil, há um distanciamento da imprensa do enquadramento governamental. Neste caso, a imprensa brasileira tende a adotar o seu próprio enquadramento e tem autonomia relevante face à política externa estabelecida pelo governo e seu enquadramento correspondente. Embora alguns argumentos por trás dos enquadramentos fossem mobilizados ocasionalmente, outros foram constantes ao longo dos três anos analisados, denotando tanto uma maior congruência cultural como uma orientação específica do jornal em questão;

Em segundo lugar, quando seguimos Entman, notamos que os enquadramentos podem ser de natureza procedimental e/ou substantiva. Diferentemente do que a literatura já sugeriu, este estudo aponta para uma situação em que os argumentos que apoiaram os enquadramentos eram de natureza marcadamente substantiva, embora a presença de enquadramento procedimental também fosse notada, em menor medida;

Em terceiro lugar, confirmamos que se fazem presentes nos argumentos as três linhas gerais que permeiam a PEB, corroborando os importantes achados de Almeida et al. (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574..

Duas outras implicações emergem dos resultados deste estudo:

A primeira, mais prática, é que, embora este estudo abranja temas que vão do BRICS à Venezuela, a avaliação moral da imprensa sobre a política externa adotada permaneceu, na sua maioria, negativa. A exceção foi em relação à política externa com os EUA, onde apenas três dos sete argumentos foram negativos. Além disso, a imprensa brasileira não está disposta a aderir ao enquadramento governamental, como no caso da Venezuela. O Brasil, assim, oferece uma situação em que as lideranças políticas nem sempre terão apoio imediato da imprensa.

A segunda implicação dos resultados obtidos é teórica e metodológica. Tanto quanto sabemos, esta abordagem não foi aplicada antes. Ademais, enquanto muitos estudos tentam alcançar os enquadramentos, pouco são aqueles que buscam ir além, dissecando os enquadramentos para entender os argumentos que os embasam. Tal metodologia não afasta todas as fragilidades encontradas nesse campo de estudo, mas ela as reduz significativamente, ampliando a capacidade explicativa da relação entre a imprensa e a PEB.

Novos trabalhos a partir dessa metodologia, podem avançar ao ampliarem a amostra de artigos (seja em termos de periódicos, seja pelo lapso temporal, seja pelo tipo de mídia), ou os eixos temáticos (direitos humanos, migração, ilícitos internacionais etc.), ou os governos a serem estudados.

  • 1
    Agradecemos o apoio do Observatório de Política Externa na Mídia (CEBRAP), a Maria H. Tavares de Almeida e a excelente assistência de pesquisa de Caíque Terenzzo, Priscila Petris, Paloma Morais, Ingrid Meirelles de Souza, Gabriel Santos Carneiro, Bruno Castro e Alanna Lima. Agradecemos também pelos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política. Este artigo traz resultados parciais do Projeto Temático Fapesp 2010/06356-3, 2013/00445-4 e 2018/.00646-1. Versão preliminar foi apresentada em painel no 8° Encontro da ABRI 2021 e se beneficiou dos comentários dos participantes.
  • 2
    Em trabalhos futuros pretendemos fazer uma análise mais abrangente, utilizando dados de editoriais e artigos de opinião de 2010 a 2022.
  • 3
    A definição do universo de artigos de opinião e editoriais que tratam de política externa é feita por uma regra abrangente. Qualquer peça que faça comentário sobre a política externa, mesmo adjacente à argumentação do documento, é considerado. A partir da definição do universo, delimitamos nossa amostra com a análise de eixos temáticos mais prevalentes na cobertura da política externa brasileira.
  • 4
    Almeida, Guimarães & Fernandes (2021)Almeida, M.H.T., Guimarães, F.S. & Fernandes, I.F.A.L. (2021) Structuring the public opinion on foreign policy issues: the case of Brazil. Latin American Research Review, 56(3), pp. 557-574. indicam que a opinião pública é estável, estruturada e consistente nas temáticas internacionais. A partir de modelo hierárquico, mostram que as opiniões sobre políticas específicas são determinadas por visões ideológicas da política externa que por sua vez são definidas por crenças profundas e históricas sobre o papel do Brasil nos assuntos internacionais.
  • 5
    Os motivos que levam a classificação tanto positivas é que os argumentos sobre a cooperação “Brasil-China: infraestrutura e commodities” e sobre a “Necessidade de protagonismo brasileiro” no eixo temático venezuelano tem conotações positiva e negativa em alguns artigos, uma vez que para os autores poderíamos ter efeitos não triviais com a ampliação dessas interações internacionais.
  • 6
    Em ordem decrescente, dos catorze argumentos críticos na dimensão do americanismo, 4 estão na temática sobre Cuba, 3 sobre Venezuela e EUA, e 2 sobre China e BRICS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2022
  • Revisado
    17 Jan 2023
  • Aceito
    16 Mar 2023
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