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Bioética: um ponto de encontro

Bioethics: a meeting point

DEBATE

Bioética: um ponto de encontro

Bioethics: a meeting point

A bioética, ou 'ética da vida', constitui um dos resultados mais promissores do diálogo entre filosofia e ciência; em particular entre a filosofia prática (a ética) e a filosofia da ciência (a epistemologia). Sendo essencialmente uma intercrítica entre know what, know how e know why, isto é, entre as três dimensões do saber/fazer — o quê? como? por quê? —, a bioética não somente renova o debate teórico, vinculando a tecnociência aos princípios ético-morais de responsabilidade, eqüidade e solidariedade, como atualiza a necessidade de se repensar radicalmente o processo civilizatório, com seus mitos, utopias e realidades.

A bioética, enquanto disciplina, é relativamente recente. Nascida no início da década de 1970 nos Estados Unidos, mas com precedentes jurídicos no processo de Nuremberg, que inscreveu na ordem simbólica o conceito de 'crimes contra a humanidade', ela incorporou sucessivamente a problemática dos direitos-deveres de todos os humanos, dos direitos dos outros seres vivos e dos direitos ambientais ou ecológicos. Constitui-se, portanto, como um campo em rápida expansão e complexificação, integrando argumentos vindos das ciências naturais, das ciências humanas e sociais e da própria teologia, e delineia-se como o foro crítico, teórica e praticamente, onde se debatem algumas das principais questões de nosso futuro.

Para um centro como a Fundação Oswaldo Cruz, a importância da bioética é evidente por si mesma, sendo o tema escolhido por nossa revista para a inauguração desta seção de Debate; as perguntas foram formuladas por Roland Schramm, da Escola Nacional de Saúde Pública, que, em nosso próximo número, desdobrará a análise.

Para tal debate, foram convidados Vilmar Barbosa, do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Socias da UFRJ; Francisco de Assiz Correia, do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; Ricardo Galler, do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular do Instituto Oswaldo Cruz; Marcos Palatinik, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ; e Hermann Schatzmayr, chefe do Departamento de Virologia do Instituto Oswaldo Cruz.

I. — Até bem pouco tempo, a genética se apresentava essencialmente como portadora de esperanças: as novas linhagens de sementes de alta produtividade prometiam, num futuro não muito distante, resgatar a humanidade das agruras da fome. Tal imagem estava perfeitamente de acordo com a visão glorificadora do desenvolvimento econômico, cientifico e tecnológico que caracterizou o nosso passado recente — para alguns, o ápice do modernismo.

— O salto que a genética deu, no momento atual, colocou em dúvida esta proposição, não apenas face aos projetos que realiza, como nas fantasias que é capaz de criar entre o público leigo: a idéia de 'engenheirar' o homem transforma em possibilidade o mito milenar da criação de physis.

Que dizer deste novo demiurgo que surge dos laboratórios? Está ele no âmbito do projeto modernista, é uma continuidade na exploração e expansão dos limites do conhecimento e da ciência? Ou será ele uma afirmação do cinismo pós-moderno?

Vilmar Barbosa

O que marca o processo de geração e ascensão da ciência moderna é fundamentalmente a idéia — tida por evidente por pensadores tais como Bacon, Hobbes, Descartes, Galileu, Gassendi, Mersenne etc. — de que conhecer é fabricar e de que a natureza não faz mais do que realizar em grande escala o que somos capazes de realizar a nível de detalhes compatíveis com nossa escala e graças à nossa engenhosidade. "O homem", escreveu Bacon, "saindo de seu estado de inocência, deixou-se destronar perdendo sua posição de soberania sobre as criaturas. Mas ele pode recuperar ambas ainda nesta vida: a inocência, pela religião e pela fé, e a soberania aqui embaixo, pelas artes (leia-se: pelas técnicas) e a ciência."

Desde já é possível notar que estas idéias elaboradas ao longo do século XVII implicam uma definição de conhecimento concebido não mais como 'contemplação', mas como 'utilização', o que, por sua vez, traduz uma nova atitude perante a natureza: supera-se, já então, o 'tabu do natural' fundado na suposição — que durou quase vinte séculos — de que haveria uma diferença, digamos, 'ontológica' entre uma 'experimentação' e um 'fenômeno natural' tido, até aquele momento, como sagrado. Pascal, não obstante suas profundas preocupações com a dessacralização da natureza promovida pelos seus contemporâneos, concluirá, por exemplo, que a experimentação "multiplicará (e ampliará) os princípios da nossa física", já que a verdade da natureza reside justamente nas possibilidades abertas pela experimentação e não nos raciocínios abstratos sobre as essências, por mais lógicos que fossem. Na realidade, este 'rapto' da natureza, na avaliação destes e outros filósofos clássicos, seria a resultante das disposições divinas, uma vez que o próprio Deus nos teria dado a missão de penetrar nos segredos da natureza e, assim, conhecermos, por meio dos nossos saberes, sua estrutura, captando as leis que permitiriam o agenciamento humano daquela que seria a ordem das ordens. Olhando, portanto, deste ângulo, os avanços da tecnociência — inclusive os das ciências biomédicas — e o projeto dos 'novos demiurgos' situam-se numa linha de continuidade com o projeto propriamente moderno, ainda que sem Deus e no fluir de um movimento que certamente culminará — gostemos ou não — na elaboração de um novo conceito de natureza e de natureza humana que, desta feita, dêem conta não apenas da idéia de que conhecer é construir, mas, também e sobretudo, inventar.

Francisco Correia

As manipulações genéticas constituem-se, sem dúvida, numa pretensão antiga e contemporânea: manipular e transformar o próprio homem. É a autopoiese do ser humano, objeto das mais vivas discussões na atualidade. É a arrogância de não deixar o homem fazer-se por si mesmo, ainda que com a colaboração científica, filosófica, social e moral. O que se pretende é apressar desnaturadamente a sua evolução, o que, indubitavelmente, pode acarretar conseqüências imprevisíveis e/ou incontroláveis para o próprio ser humano. O que pode representar um avanço científico e técnico pode, igualmente, significar um prejuízo e/ou mal incuráveis.

Não se trata de deter o avanço e a evolução científicos e tecnológicos. Trata-se de buscar um consenso em todos os níveis, sobre a humanização e seus parâmetros. Ou seja, é preciso situar a reflexão bioética no interior da relação entre poder técnico-científico e responsabilidade ética. Com efeito, em se tratando do ser humano, não se pode concebê-lo como se fosse um objeto a ser produzido.

Em relação à última pergunta desta primeira questão, não diria tratar-se de cinismo pós-moderno, mas da continuidade do sonho prometéico elevado ao máximo.

Ricardo Galler

Do meu ponto de vista, é a continuidade pura e simples do desenvolvimento científico e tecnológico que leva, conseqüentemente, à expansão dos limites de conhecimento. Certamente o potencial de aplicação desta tecnologia é mais amplo do que anteriormente, mas creio que continua no âmbito modernista.

Marcos Palatinik

A ciência avança através da pesquisa científica, constituindo uma das expressões máximas do progresso da humanidade. Há um processo cumulativo e regular de conhecimentos, porém nada novo se descobre. Trata-se, segundo Kuhn, da resolução de um quebra-cabeça onde o cientista tem que demonstrar habilidade, porém a imagem final já é conhecida previamente (o que ele denomina de ciência normal). Entretanto, quando surge uma descoberta, ela permite destruir o modelo anterior (seja teoria, aplicação ou instrumentação). Há um salto qualitativo. As revoluções científicas são aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior.

Desse ponto de vista, a genética avançou de forma regular até atingir a manipulação do DNA. Trata-se de processo sem solução de continuidade, interrompido a partir de 1975 pela mudança brusca causada pelas poderosas aplicações da genética molecular.

Hermann Schatzmayr:

Considero a genética uma grande portadora de esperanças. Dentro do atual avanço de conhecimentos, ela responderá a uma série de questões médicas ao nível dos mecanismos reais e não apenas de efeitos. Se um dia concluirmos que na genética está a base real de nossas reações, da criminalidade à sensibilidade a um medicamento, caberá ao homem manejar este fato, sem prejulgamentos nem falsos dogmas.

II. Desdobrando a pergunta anterior: no campo da genética, o dispositivo do know-how atingiu um novo patamar no momento em que se tornou tecnociência. Não é a primeira vez que isto acontece, mas, diferentemente de momentos anteñores, onde os desenvolvimentos tecnológicos afetavam essencialmente a possibilidade de eliminar ou então preservar a vida, o que agora se coloca é a possibilidade de criar vida humana. Novas questões éticas se colocam, portanto:

a . Esta ultrapassagem da fronteira técnica exige novas fronteiras para a reflexão ética?

b. Com ela ocorre uma identificação da vontade de poder da tecnociência como única e exclusiva possibilidade para o homem contemporâneo?

c. Em outras palavras: que grau de generalidade tem a reflexão ética enquanto abordagem? De que maneira as novas questões recentemente colocadas exigem a formulação de novas teorias para a ética? Ou será que a questão na ética não é de teoria, mas de moral?

Vilmar Barbosa

Na minha opinião, esta ultrapassagem exige certamente novas fronteiras para a reflexão ética. Porém, para que fiquem ainda mais claras as razões desta exigência, é necessário que se tenha em mente as modificações que estão ocorrendo no âmbito da capacidade humana de agenciamento das chamadas "forças naturais" proporcionadas pela tecnociência, cuja centralidade é hoje irreversível tanto no que se refere às nossas relações com a natureza e àquelas entre as nações, quanto no que se refere às determinações do conteúdo da nossa cotidianeidade e das nossas atividades mentais.

Pela primeira vez na história da humanidade, a totalidade do meio ambiente e a do corpo humano encontram-se submetidas ao agir tecnocientífico do homo sapiens, única espécie que conseguiu ocupar toda a superfície do planeta. Também pela primeira vez, os homens tornam-se capazes de produzir fenômenos naturais e humano-naturais (tais como a fertilização in vitro, transferência de embriões, órgãos artificiais etc.), o que está a indicar uma revolução no campo das habilidades humanas capaz de provocar uma profunda corrosão nos valores, perspectivas e representações que animaram e certamente animam a imaginação ocidental. Dentro deste cenário, aqui descrito em linhas generalíssimas dado o espaço disponível, emerge uma constatação fundamental: a natureza não é um 'livro aberto' de difícil entendimento, mas sempre igual a si mesmo, eternamente dado e disponível. Assim sendo, o pensador contemporâneo, ao se debruçar sobre a questão da natureza, começa a dar-se conta de que, se existem obstáculos ditos 'naturais', eles não são, a rigor, intransponíveis, já que não são colocados pela natureza, mas decorrem da própria ação humana. Desta avaliação emergem outras duas constatações. A primeira nos faz ver que não existem fundamentos metassociais ou meta-históricos que garantam a priori o maior ou menor êxito das ações humanas; por sua própria condição ontológica, o homem deve autofabricar-se. A segunda leva-nos a concluir que, contrariamente ao que pensavam os filósofos clássicos em sua maioria, somos da natureza e não apenas estamos dentro dela; isto faz com que sejamos fator interno e regulador da realidade dita 'natural', o que quer dizer que o maior ou menor equilíbrio das forças naturais das quais emergimos como espécie depende diretamente das nossas escolhas e decisões. Caso estas generalíssimas considerações estejam corretas, podemos afirmar que a centralidade da questão da ética neste fim de século decorre da emergência desta nova representação da relação homem-natureza que implica uma diversa representação da natureza humana e da própria natureza. Diversamente da ordem natural que a filosofia e as ciências clássico-modernas (séculos XVII a XIX) consagraram com a expressão 'natureza mecânica', a ordem natural que emerge desta nova representação pode ser designada com a expressão 'natureza cibernética', na tentativa de captar o essencial da tecnociência que a está configurando: as idéias de invenção, regulação, decisão, manipulação e controle.

É no âmbito desta nova ordem natural que, pela primeira vez na história dos homens, passamos da mera reprodução dos elementos já existentes no mundo material para uma fase em que deliberadamente inventamos e desenvolvemos materiais que, a rigor, jamais existiram como tais na natureza. Estes novos materiais, na sua irredutível originalidade, marcam o advento de uma nova etapa na história mesma da própria natureza. O que imediatamente nos chama a atenção é que, se até o presente os homens foram capazes de conformar (a madeira que vira mesa, a pedra que vira estátua, por exemplo) ou de transformar (o vapor em força de trabalho mecânico, a água em fonte de energia, por exemplo) a matéria, tornam-se agora capazes de desenvolver, isto é, transmitir a uma forma de matéria propriedades que são de outra, modificando-a no sentido desejado, abrindo, assim, as vias para interações e encadeamentos inéditos. Estes procedimentos pressupõem uma verdadeira dessubstanciação da matéria. Já não mais nos perguntamos por aquilo que as coisas são, tampouco pelo modo como elas se dão, mas, sim, como elas funcionam ou funcionariam a partir da transformação, da distorção e da degradação que sofre a energia que lhes perpassa. Tudo isto implica a relaboração da própria idéia de matéria.

Afinal de contas, de que matéria se trata? Não é certamente nem a 'substância do orgânico' nem a 'força do mecânico', ainda que ambas estejam em jogo. Trata-se de uma matéria inédita que se manifesta sob a forma de sistemas, estruturas, isto é, de ordens definíveis pelo conjunto de suas propriedades físicas, químicas e biológicas. É no âmbito de uma tal matéria que a tecnociência atua e aprende a recombinar os materiais existentes na natureza. A partir da análise da estrutura sistêmica e organizacional da matéria, aprende-se, com a tecnociência, a engendrar estruturas dotadas dos atributos desejáveis, tais como os cristais puros obtidos a partir de uma certa dosagem de fatores moleculares. É este o eixo desta nova ordem natural — 'natureza cibernética' — que a tecnociência inventa e desenvolve: permutação dos elementos e das propriedades dos sistemas ou entre sistemas e remodelagem das estruturas. Nesta perspectiva, podemos dizer que a tecnociência, enquanto configuração de uma nova ordem natural, consiste na invenção (e desenvolvimento) deliberada e interessada — guiada pelos fins — de estados de matéria, independentemente de sua originária plasmação física, psíquica, energética ou social. Trata-se de conseguir desequilíbrios entre os sistemas materiais com o objetivo de fazer surgir associações inéditas que, por sua vez, permitam a invenção de novos entes.

Por estas e outras razões, novas fronteiras surgem para a reflexão ética. Desde o momento em que deliberadamente inventamos e desenvolvemos o que não existe na natureza; desde o momento em que a natureza passa a ter o seu destino dependente das nossas escolhas e decisões, isto é, do nosso próprio destino; desde o momento em que podemos reconstruir o corpo humano, atuar sobre o patrimônio genético dos indivíduos e sobre experiências-limite, tais como a fecundação, ressignificando-os; desde o momento em que atuar tecnocientificamente — e não mais exclusivamente com a linguagem — sobre o corpo e o psiquismo implica atuar sobre a fonte de toda eticidade, temos então que 'áreas' tradicionalmente externas à reflexão ética, tais como a natureza, animais, natureza humana, futuro, dentre outras, são paulatinamente colocadas sob a égide da responsabilidade humana. Assim sendo, estamos assistindo à emergência do 'contrato de natureza', dos 'direitos dos animais' e do 'direito ao suicídio assistido', pensados ao lado do contrato social, dos direitos humanos e do direito à vida.

Francisco Correia

— a. e b. Desde que se decifrou o código genético e a apresentação da responsabilidade da manipulação científica da natureza, impôs-se a necessidade de a sociedade buscar limites à ciência e à tecnologia. A pergunta fundamental que se faz a ambas, pelo menos, é: até que ponto pode licitamente estender-se e afirmar-se o domínio do homem sobre o homem?

Esta pergunta fundamental estaria na própria origem da bioética, com o objetivo de proteger a vida humana e seu ambiente. Não se trata, porém, de uma ética preocupada, em primeiro lugar, com a elaboração de novas teorias e, sim, com o orientar pesquisadores, técnicos, cientistas, legisladores, governantes, no sentido de avaliarem com acerto a repercussão humana de seus respectivos trabalhos e tomarem as medidas correspondentes. É uma filosofia prática, com competência crítico-normativa em relação aos problemas do agir pessoal, social e político (ela é fruto da Rehabilitierung der praktischen Philosophie). E é, igualmente, uma filosofia do razoável, enquanto elaborada com o consenso de todos os seres humanos dispostos a encontrar consenso válido para uma racionalidade que não é dada de uma vez para sempre, mas construída através de confrontos com todos os interlocutores possíveis, num diálogo sem fim, capaz de justificar uma escolha, uma adesão, uma atitude quanto à legitimidade, à legalidade, à moralidade, à oportunidade, à utilidade.

Ricardo Galler

A questão levantada é pertinente à capacidade que esta tecnologia proporcionaria ao homem de modificar o próprio homem, geneticamente falando.

a. Creio não haver dúvidas de que o romper desta fronteira exige e exigirá a (re)definição de ética no trato com organismos semelhantes.

b. Não creio que seja a única, pois vejo a eletrônica e a informática como um meio poderosíssimo de poder, embora não haja manipulação direta da matéria do ser humano, se é que entendi bem a pergunta.

c. O potencial da engenharia genética levará a uma redefinição de ética e moral. Eu, pessoalmente, creio que o homem moralmente não está e não estará preparado tão cedo para manipulações do semelhante da maneira como se alardeia. Não creio, inclusive, que o homem chegue a adquirir esta capacidade sem que haja uma reformulação ética (moral) no comportamento e mentalidade humana. Qualquer um que acompanhe o desenrolar da vida no planeta sabe que o ser humano não tem ética ou moral para dominar-se com relação a estes poderes. Do meu ponto de vista, o ser humano não alcançará este poder sem modificar-se moralmente em paralelo. É como na alquimia, quando o sujeito tem que aperfeiçoar a si mesmo para conseguir as transmutações no plano químico. Quando ele alcança o estágio de obtenção do metal valioso, já não está mais interessado no valor do metal. Agora, como as pesquisas exigem financiamento que deriva de definições de prioridades pelas diferentes esferas de poder, sem contar as ambições pessoais...

Marcos Palatinik

— a. A bioética já é uma realidade e representa um intento para considerar todas as novas problemáticas introduzidas pela engenharia genética.

b. Deve-se deixar bem claro que o poder da tecnociência não está sendo exercido pelo cientista nem pelo tecnólogo. Não há cientistas com funções de decisão em nenhum nível de governo e em nenhum país; eles simplesmente cumprem funções de assessoramento. Entretanto, a sociedade tem outras vias de desenvolvimento, além da tecnologia genética. Apesar de que hoje em dia é melhor ser biólogo molecular que qualquer outra coisa, devemos preservar o crescimento harmônico das outras áreas. Se tomamos como exemplo uma doença como a esclerose múltipla, ela será analisada pelo neurologista, imunólogo clínico, neurocientista, epidemiologista, especialista em medicina comunitária e ainda outros cientistas básicos que se ocuparão da estrutura, organização e função cerebral.

c. As aplicações da engenharia genética exigem novas teorias para a ética, baseadas nos conhecimentos desenvolvidos sobre embriogênese humana, fertilização in vitro, aplicações industriais e terapêuticas e patentes sobre seres vivos. Pode-se salientar, entretanto, que quanto mais desenvolvidos sejam os padrões morais de uma sociedade, melhor serão entendidos os alcances da bioética e menor o número de leis proibitivas sobre a matéria.

Hermann Schatzmayr

Embora ainda estejamos longe da criação da vida, a partir do amorfo, não vivo, temos necessidade óbvia de enfrentar, ao nível ético, as novas perspectivas, quase infinitas, de combinação de conhecimentos.

Estes dados já permitem, por exemplo, a geração de vírus, ditos chimera, não existentes anteriormente na natureza, compostos de partes de dois ou mais vírus de grupos biologicamente semelhantes (vírus da poliomielite x vírus da hepatite A).

A comunidade científica tem mostrado sua preocupação com o problema e são exigidas instalações de alta segurança para que se executem estas manipulações, sempre dirigidas a objetivos muito positivos, como a obtenção de vacinas mais potentes e seguras.

A tecnociência deve ser considerada, portanto, uma força de fantástico potencial criador, que não vai parar sua evolução, independente das nossas dúvidas e temores. Concordaria que ela é a única possibilidade de evoluirmos e talvez mesmo de sobrevivermos, pois a ação do homem no planeta desencadeou problemas que exigem imediata resposta tecnológica, antes de ultrapassarmos o ponto de não retorno. Prefiro manter a tecnociência como a nossa grande opção do que aceitar a linha de avaliação que considera o homem não o corolário de uma evolução, mas uma mutação letal com enorme poder destrutivo e sem capacidade de se harmonizar com o meio ao seu redor. Considerando o espaço de tempo comparativamente desprezível em que nossa espécie existe na Terra, muitos fatos apoiam este último conceito e somente uma total reversão de tendências, com apoio na pesquisa e na tecnologia, poderá modificar o quadro.

III. A questão da bioética não diz respeito, claro, apenas aos países ricos e aos laboratórios onde se expandem as fronteiras da ciência. No Brasil, pelo menos dois problemas correlatos estão presentes: a questão da biodiversidade e a da miséria dos serviços de saúde, que mata, com 'precisão cirúrgica', cidadãos abaixo de determinadas faixas de renda. Pode-se imaginar que venha a surgir uma nova questão: a seleção racial, possibilidade futura do sonho eugênico. Você acredita que isto venha a se colocar?

Vilmar Barbosa

Sem dúvida, a bioética é uma reflexão que nasce quando, após se ter atingido um significativo conhecimento e uma inédita capacidade de intervenção e de controle do mundo biológico, começa-se a se dar conta de que na realidade existem muitas concepções de mundo e de vida, igualmente válidas, e que as questões sobre 'qualidade de vida' são éticas a pleno título, ganhando assim uma credibilidade que tende a lançar ao descrédito soluções tradicionais fundadas basicamente numa perspectiva religiosa. Assim sendo, a bioética surge não apenas porque a 'revolução' biomédica, biotecnológica, genética, gera problemas do tipo 'até agora desconhecidos', mas, sim, porque ela permite um tipo de controle do mundo biológico passível de ser avaliado a partir de múltiplas concepções de mundo, laicas ou religiosas, e, por conseguinte, com base em várias éticas ou morais. Portanto, a bioética não é apenas válida para os 'países ricos'. Problemas como aborto, controle da natalidade, determinação da morte, dentre outros, são tão nossos quanto os relacionados com a saúde pública e a biodiversidade. Porém, o problema da 'seleção racial', colocado em termos de uma política pública fundada numa espécie de 'sonho eugênico', não me parece algo provável, a curto ou médio prazo, pelo menos entre nós.

Francisco Correia

Diria, em primeiro lugar, que precisamos trabalhar em duas frentes: com uma bioética de fronteira e com uma bioética do cotidiano (a distinção, devo-a ao prof. dr. Giovanni Belinguer). A primeira trata, sobretudo, das novas tecnologias biomédicas aplicadas à fase nascente e à fase terminal da vida. Em relação à fase nascente, mesmo no nosso país, já se concretiza o sonho eugênico, por exemplo, embutido em certos diagnósticos pré-natais, ora em nome da chamada procriação qualitativa ora, em nome do chamado direito de se ter uma criança sadia etc. E, assim, tenta-se justificar o 'aborto terapêutico', 'o aborto eugênico', 'o aborto seletivo', 'a eutanásia fetal'...

A bioética do cotidiano, entretanto, está voltada para a exigência de humanizar a medicina, articulando fenômenos complexos, como a evolução científica da medicina, a socialização da assistência sanitária, a crescente medicalização da vida, a despersonalização dos cuidados no interior dos hospitais, a sistemática marginalização no interior dos serviços sanitários de certas categorias de pacientes, a tecnização da assistência, a 'diluição da responsabilidade' pela fragmentação do ato médico numa seqüência de relações parciais que colocam em risco a eficácia médico-paciente...

Sem preterir a bioética de fronteira, a bioética do cotidiano é a que mais necessita de atenção, de vigilância.

Ricardo Galler

A seleção racial não é inerente à engenharia genética. A seleção de animais com melhores características referentes à produção de insumos é anterior a esta tecnologia moderna. Certamente, a engenharia genética tem a contribuir com seleção, mas creio que já estão em andamento os primordios da seleção de características específicas em humanos através destas técnicas de fertilização in vitro e reimplantação do ovo fertilizado tão comentadas recentemente.

Marcos Palatinik

A segregação de setores da população na base de critérios éticos é deplorável e trágica e carece de bases científicas, como já tem sido demonstrado pelas teorias evolutivas e a genética de populações. Ela está, no entanto, ocorrendo atualmente na Europa em relação aos migrantes da Ásia e da África; a luta fratricida na Bósnia-Herzegovina é originada por motivos étnicos, além de outros fatores.

Hermann Schatzmayr

Sempre que se coloca em discussão a bioética, temo que a mesma seja manipulada como um instrumento de pressão contra a ciência.

Restrições colocadas em países desenvolvidos são freqüentemente apresentadas a países de ciência com fracas estruturas, como o Brasil, sob a forma de decisões incontestáveis a serem implantadas. Esta mensagem não deve ser por nós esquecida quando, por exemplo, se pretende, através de legislação em exame no Congresso, sem ampla discussão da comunidade científica, criar barreiras quase intransponíveis ao uso de animais de experimentação. A medida beneficiará apenas países mais desenvolvidos, que podem investir em instalações especiais ou outras metodologias.

Quanto à biodiversidade, deve ser inicialmente avaliada em função das atitudes de nossa população, antes de se cobrar internacionalmente uma proteção de fauna e flora.

O conceito é entendido entre nós? Temos alcançado real progresso na proteção de nosso patrimônio ou o processo de destruição da cobertura vegetal da Mata Atlântica, por exemplo, hoje quase completo, está se estabelecendo em outras regiões do país? Acho que a resposta é conhecida de todos os que acompanham o problema.

Parece-me que falar de seleção racial e eugenia, com a composição étnica de nossa população, é utopia e mesmo fora da realidade mundial. A miséria dos serviços de saúde é fruto de incompetência administrativa, passando pelas perdas de recursos, fraudulentas ou não, que se acumularam ao longo dos anos. Nenhum dos grupos que deteve o poder na área da saúde, independente de suas concepções políticas, foi capaz de gerar, implantar e aperfeiçoar modelo adequado ao país, com mecanismos de correção, adaptação às realidades regionais tanto econômicas como sociais.

IV. Muitas vezes as novidades científicas parecem ser aceitas com mais 'naturalidade' pelo público leigo do que pelos próprios cientistas. Isto talvez se deva não só a um maior conhecimento, por parte destes, dos limites e imprecisões de suas descobertas, como também pelo fato de que a ficção científica e a vulgarização pela mídia leva a aceitar — como ilimitadas as fronteiras do conhecimento. Ademais, o extraordinário ritmo do progresso nos conhecimentos dos últimos anos parece ter referendado tal crença.

— Por parte dos não especialistas, o aprofundamento do conhecimento de ponta enfrenta o obstáculo da linguagem técnica e do saber especializado. O cientista se isola, e se por um lado só tem diálogo com sens pares, por outro, suas palavras têm ressonância cada vez maior, pelo que prometem e ameaçam. Esta ressonância é distorcida, pelas razões apresentadas.

— Não seria a ética, e no caso mais específico que tratamos, a bioética, a ponte reflexiva entre estes dois mundos?

Vilmar Barbosa

Se, por um lado, as observações contidas nesta quarta pergunta são corretas, por outro, é importante que se note, há uma tendência crescente na difusão de textos que, a rigor, poderiam ser enquadrados na rubrica 'divulgação científica' e não mais na de 'vulgarização'. Isto não quer dizer que tais textos — extremamente elaborados quanto a seu conteúdo — sejam de 'massa'. No entanto, tendem a dar suporte a um consenso livre e informado relativamente ao uso dos possíveis tecnocientíficos. Este gênero de consenso é fundamental, pois em se tratando de ciências biológicas e/ou biomédicas há sempre uma relação entre os 'dois mundos', entre médico-paciente, cientista-objeto de pesquisa (que muitas vezes é um ser humano). Isto requer que as partes envolvidas em tal relação devem se comunicar e considerar aquilo que cada uma delas deseja, de modo que se estabeleça um acordo. Este procedimento é de suma importância e tem papel central, não apenas porque é em si mesmo válido, mas também devido ao fato de que, na maior parte das vezes, os indivíduos envolvidos não possuem uma mesma visão da vida (ou da morte) moralmente boa e, até que não se elabore tal visão, o consenso livre e informado é essencial para dar suporte a procedimentos médicos e/ou científicos que respeitem o direito que cada pessoa tem sobre seu próprio corpo e sobre seu próprio destino. Dentro desta perspectiva, a bioética é de uma importância, diria, estratégica. Ela trata de um conjunto de problemas cuja análise e solução requerem o concurso de competências diversificadas, já que envolve aspectos sociais, psicológicos, jurídicos, religiosos e científicos. Isto deverá contribuir não apenas na elaboração de normas comumente aceitas, mas, sobretudo, para a formação de um ethos, no qual se desenvolva a capacidade de elaboração de juízos éticos fundados na informação qualificada e no confronto sereno e pluralista dos valores. Na verdade, este ethos deve ser a base para uma ética da pluralidade dos valores e também a resultante de uma adesão consciente, isto é, refletida, por parte de uma comunidade, a um conjunto de valores explicitados e responsavelmente assumidos como valores-guia de ação.

Francisco Correia

A publicidade em torno das descobertas na área da biomedicina tem a vantagem de informar o público, torná-lo conhecedor do que se pesquisa, como se pesquisa, sua finalidade... Por outro lado, tem a desvantagem, sim, de criar falsas esperanças ou expectativas... Mas, também, pode ser estímulo a que elementos deste mesmo público, alvo de informações, se questionem sobre as pesquisas, participem do debate sobre as mesmas.

A bioética talvez não tivesse nascido ou não tivesse tido tamanho desenvolvimento nos últimos vinte anos, não fosse a participação da sociedade não científica. Por isso, a bioética tem como características: ser interdisciplinar, ou seja, articulação, integração e consenso de várias disciplinas, não só da área da saúde, mas, também, de outras áreas, como antropologia, sociologia, psicologia, economia, direito, ecologia, filosofia, teologia etc. Envolve profissionais da saúde e todos aqueles que, com competência e responsabilidade, se dispõem a refletir eticamente sobre a melhor conduta a ser prestada à pessoa humana, à sociedade, ao mundo animal e vegetal e à própria natureza. É também intercultural. A bioética leva em conta as diferentes culturas com seus diversos valores e os respeita, certa da riqueza que os acompanha e, ainda, com o objetivo de definir o conteúdo das políticas em nível nacional e internacional que levem em conta os direitos e o bem-estar individual, harmonizando-os com as exigências do bem comum das gerações presentes e futuras. O diálogo, dentro deste contexto, é a metodologia do trabalho bioético. É, ainda, uma reflexão e prática que valoriza a voz moral das mulheres, a filosofia feminista e sua perspectiva de 'tomar cuidado dos outros'.

Ricardo Galler

É uma questão complexa. Por um lado, alguns cientistas superpromovem suas descobertas e o potencial das mesmas, algumas vezes, para conseguir mais verbas para o financiamento de pesquisas (o que condeno); por outro, a mídia tem papel fundamental na dispersão dos exageros. Certamente, a bioética poderia ser a conexão entre os dois mundos, mas ambos os lados citados têm que se conscientizar da situação.

Marcos Palatinik

Creio que a bioética apresentar-se-á periodicamente em um estado de equilíbrio flutuante, de acordo com a pressão momentânea exercida pelas aplicações deletérias da nova genética.

Jean Bernard traça uma angustiante visão futurista da história da bioética. O professor de bioética explica para seus alunos do Collège de France, lá pelo mês de novembro de 2090, que foi possível cambiar o patrimônio genético do homem quando o século XXI se iniciou, disseminando-se, na época, os comitês de ética. Infelizmente, em 2020, lucro e ciência fazem parceria. Os embriões selecionados junto ao ouro, platina e petróleo são objeto de transações febris dos cambistas da Bolsa. Governos autocráticos, pelo ano 2030, utilizam os serviços dos neurocientistas, que introduzem moléculas clandestinamente nos alimentos para obter cidadãos obedientes, prontos a morrer pela causa, quimicamente induzida. Obviamente, para cada causa, há uma molécula específica!... A união de tecnologia e lucro elimina a bioética dos textos em 2040, ao par do desaparecimento dos valores morais e intelectuais na sociedade.

Todavia, as coisas começam a melhorar para o final de 2090!...

Hermann Schatzmayr

O chamado isolamento do cientista é freqüentemente trazido a debate como uma qualidade negativa, algo errado de seu comportamento.

Em primeiro lugar, a vasta maioria das especialidades evoluiu para o trabalho em equipe, com circulação de informações novas por mais indivíduos, em relação a um projeto de trabalho em corrente contrária do dito isolamento. Além disso, reconhece-se sem esforço o isolamento do escritor ou pintor no momento criativo, e ao cientista se exige permanente exposição, ao mesmo tempo que ele está obrigado a gastar grande parte de seu tempo em processos administrativos para conseguir recursos e preparar relatórios, os quais em sua maioria não serão sequer lidos por alguém.

A bioética certamente tem um papel a desempenhar neste relacionamento, o qual, no entanto, só será melhorado substancialmente com a elevação do nível de informações disponíveis à população. O que se observa no Brasil é a apresentação ao grande público de reportagens com grandes distorções, em veículos de grande poder de formação de opinião.

Julgo que a bioética deve atingir também, e de imediato, estes veículos que têm obrigações com a sociedade, no sentido de adequar e corrigir informações, antes de sua divulgação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1994
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