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Biotecnologias de terceira geração

Third-generation biotechnologies

DEBATE

Biotecnologias de terceira geração

Third-generation biotechnologies

Conceitos e evolução

Costuma-se dividir a evolução de biotecnologia em três fases: a biotecnologia de primeira geração, incluindo o uso secular da fermentação; a de segunda geração, surgida após a II Guerra Mundial, com o desenvolvimento de tais processos para a produção de antibióticos; e a de terceira geração, de rápido crescimento a partir dos anos 70, com técnicas de manipulação de seres vivos. Isto inclui a tecnologia do DNA recombinante e de anticorpos monoclonais, síntese de genes, técnicas de cultura de célula ou de tecidos, purificação em larga escala de proteínas e macromoléculas. Inseridas neste movimento, a chamada engenharia genética refere-se em geral a dois diferentes grupos de técnicas: DNA recombinantes (rDNA, obtido em 1973 por Cohen e Bover) e hibridomas (técnicas de fusões de células).

Antes da engenharia genética os processos de produção biológica eram feitos através de variedades mutantes de microorganismos, obtidos por seleção natural. As novas técnicas permitem a criação de células (fungos, bactérias ou células de mamíferos) com capacidade de produzir proteínas específicas: os microorganismos 'engenheirados' permitem 'expressar' (produzir) proteínas e a criação de animais ou plantas transgênicos. Nos anos 80 outro importante avanço iria surgir com a engenharia de proteínas, i. e., mutação sítio-dirigida que altera a conformação da proteína pela mudança na seqüência de amino-ácidos. Os hibridomas combinam a imortalidade das células tumorais com a produção de anti-corpos específicos, gerando uma população monoclonal.

Tais inovações configuram um salto no conhecimento biomédico, pois permitem a transferência de materiais genéticos de um determinado organismo ou célula para outro, que se transforma em hospedeiro com capacidade de produzir proteínas e desenvolver reações que ocorrem naturalmente apenas no organismo ou célula doadores. Este método 'recombinante' é diferente de outros procedimentos biotecnológicos devido ã origem genética dos processos que gera. Nos processos convencionais, todas as informações genéticas necessárias para a síntese já estão disponíveis naturalmente no interior da célula; as técnicas de recombinação substitui as mutações como fonte de variabilidade genética: os ácidos nucleicos (DNA/RNA) contêm o código químico (na forma de pares de bases) que controla a síntese de proteínas e, conseqüentemente, permite a herança contínua de características e comportamentos através de gerações sucessivas. A principal característica das biotecnologias de terceira geração é o uso de novas combinações genéticas não-naturais, pois a informação genética necessária à produção não ocorre naturalmente na célula produtora.

A partir da década de 1970 travaram-se grandes debates sobre segurança e riscos de liberar organismos recombinantes no ambiente e sobre as questões éticas referentes à exploração comercial de novas biotecnologias. Em 1980 as patentes tornaram-se urna questão principal no debate sobre o DNA, quando a Suprema Corte americana definiu que organismos vivos poderiam ser patenteados. E não é só: o regime de patentes dos Estados Unidos não trata a descoberta como diferente de invenção. Já a tendência predominante na Europa Ocidental foi expressa na Convenção Européia de Patentes: para microorganismos, aplica o termo 'descoberta' aos pré-existentes na natureza e o termo 'invenção' aos que não ocorrem naturalmente e são criados pela biotecnologia. Quanto à posição brasileira, uma longa controvérsia vem se arrastando. Tudo indica que o Brasil não está aberto para uma nova regra internacional que restrinja seu direito de legislar com autonomia numa área vital como a dos direitos de propriedade intelectual; por outro lado, a irritação expressa pelos representantes norte-americanos nas negociações sugerem que os Estados Unidos ainda não estão preparados para uma nova abordagem em suas relações interamericanas.

Da perspectiva brasileira, esta controvérsia tem sido identificada por uma parte da 'comunidade científica' como uma tendência internacional no sentido da propriedade privada da vida (microbiológica, vegetal e animal). Afirmam também que tal tendência pode ter impactos decisivos nas atividades de pesquisa brasileiras: enquanto o Brasil investe em P&D dirigidos para a avaliação da atividade terapêutica de algumas promissoras plantas medicinais, os Estados Unidos estão, em alguns casos, patenteando preventivamente toda a planta. Assim, se o Brasil pretender produzir e comercializar tais plantas, deverá pagar direitos aos Estados Unidos. O temor é de que, caso persistam tais políticas de direitos de propriedade intelectual, o vasto material genético disponível nas florestas brasileiras se torne inacessível aos cientistas locais, que terão de abandonar campos de pesquisa que pertençam, literalmente, a cientistas estrangeiros.

De certo modo, não há debate político mais importante no campo da ciência brasiliera de hoje. E é por isso que História, Ciências, Saúde — Manguinhos convidou alguns especialistas para participar desta discussão, respondendo, a partir de posições diferenciadas, a algumas perguntas sobre questões estratégicas. São eles: Antonio Paes de Carvalho, secretário geral da Fundação Bio-Rio e presidente da ABRABI (Associação Brasileira das Empresas de Biotecnologia); Daniel Goldstein, professor de ciências biológicas da Faculdade de Ciências Exatas da Universidade de Buenos Aires; Isaías Raw, diretor do Instituto Butantan; e Glaci T. Zancan, do Instituto de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná.

Finalizando esta apresentação, a editoria de Manguinhos deseja registrar aqui nossos agradecimentos pela colaboração de Marília Bernardes, de cujo livro Patenting Life — Foundations of the Brazil-United States Controversy (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1993), retiramos as presentes observações.

1. Qual a sua opinião sobre o direito de patentear formas de vida? E sobre o patenteamento de informações genéticas humanas, mesmo com finalidades de diagnóstico? Que conseqüências o patenteamento— e o não patenteamento— poderá trazer para o desenvolvimento da biotecnologia em países como o Brasil?

Antonio P. de Carvalho

A pergunta precisa ser qualificada.

Sou contrário ao patenteamento de formas de vida tal como existem na natureza. Os segredos da natureza podem ser descobertos pelos cientistas, mas patentes são outorgadas para invenções e não para descobertas. Todas as leis de patentes, inclusive o atual Código Brasileiro e o projeto em andamento no Congresso, explicitam que descobertas científicas não são patenteáveis. A única exceção é o entendimento da jurisprudência americana, que tende a não diferenciar nitidamente entre invenção e descoberta. Este e outros pontos de divergência entre os Estados Unidos e o resto do mundo deverão ser 'harmonizados' com a assinatura do tratado GATT/Rodada Uruguai e seu setor de patentes, o TRIPS.

Dito isto, é importante não cair na armadilha de que tudo o que é biológico é natural, logo não pode ser patenteado. Entendo que toda invenção (produto da engenhosidade do homem) utilizando fatos biológicos conhecidos ou construída em torno deles, pode e deve ser patenteada, desde que tenha finalidades claras de produção de bens e serviços. Por exemplo, pode-se descobrir que uma dada seqüência no complexo genômico humano corresponde à síntese de uma determinada enzima. Embora tal descoberta possa necessitar apreciável criatividade da parte do cientista, isso não deve tornar patenteável aquele 'gene', visto que ele existe como tal na natureza. A partir daí, pode ser possível descobrir que determinada doença genética está relacionada com um distúrbio de composição (ou de extensão) daquele segmento, mas ainda assim estaremos lidando com uma descoberta não patenteável. Em torno desses fatos biológicos descobertos, pode-se então começar a inventar aplicações produtivas, seja em nível de terapia genética, seja em termos de diagnóstico. Tais invenções úteis podem e devem ser protegidas por patentes, mesmo que isso signifique patentear uma seqüência modificada de DNA, a sua inclusão num vetor de expressão ou outra estratégia efetivamente criativa de geração de um novo serviço ou produto.

A conseqüência mais imediata do patenteamento é assegurar ao inventor (pessoa física) e ao detentor da patente (o próprio inventor ou seu empregador) o direito de industrializar e explorar comercialmente sua invenção sem interferência de terceiros 'copistas', que não investiram esforço, dinheiro e massa cinzenta para inventar. O segundo efeito da patente é assegurar a divulgação da informação técnico-científica necessária para que o processo produtivo possa ser repetido por terceiros especialistas, bem como permitir-lhes utilizar esse conhecimento como base para novas descobertas (não patenteáveis) e novas invenções (patenteáveis, dependendo da adição de originalidade e de inventividade com relação à invenção original). O terceiro efeito é obrigar o inventor a 'exercer' sua patente, ou seja, industrializá-la e comercializá-la em escala suficiente para atender à demanda de mercado — ou, se entender conveniente, licenciar a sua patente para quem possa fazê-lo. Em qualquer caso, significa ofertar à sociedade o resultado prático da invenção, socializando os seus benefícios. No caso, a questão de preço é menos relevante do que a questão de oferta. Se a oferta e a demanda estão equilibradas, os preços se ajustam com um mínimo de assistência preventiva do abuso de poder econômico. Se o serviço/produto é de natureza essencial e há pouca oferta para muita demanda, criam-se as condições legais e sociais para a licença compulsória de fabricação por terceiros, em benefício da sociedade.

Concluo, pois, dizendo que o Brasil, que já utiliza o sistema de patentes numa infinidade de áreas, se beneficiará com a extensão desse mecanismo à área de saúde em geral e à área da biotecnologia (para a saúde e outras aplicações). Vou mais longe: sem a patente em biotecnologias, a ciência biológica brasileira terá dificuldades para estabelecer seu contato com a indústria da saúde. Isso já ocorre em muitos campos do conhecimento, mesmo aqueles aonde existe patente, por absoluta pobreza numérica de certos setores de nossa ciência. Mas não é esse o caso das ciências biológicas. Temos mais números e mais potencial atualizado para competir na fronteira do conhecimento. Podemos, portanto, aspirar a uma parte crescente da modernização e do crescimento da bio-indústria brasileira.

Daniel Goldstein

O debate acerca do patenteamento de formas de vida' está impregnado de vitalismo. A própria pseudocategoria formas de vida' é um ressaibo do passado, e implica aceitar a existência de um caráter vital metafísico e especial, contraposto a todo o resto da realidade material, e outorgar uma carga moral a algo que não a tem.

A biologia molecular demonstrou que a totalidade dos 'seres vivos' pode ser explicada pelas leis da física e da química. Em outras palavras, a biofísica não é mais que física e química, e os objetos vivos não são nem mais nem menos do que conjuntos macromoleculares e micromoleculares que funcionam de acordo com as leis da física e da química. O Vivo' e o 'inanimado' se diferenciam apenas por: a. os tipos de matéria que os formam; b. a estrutura física (determinada por sua natureza química); c. a organização funcional; e d. as propriedades destas categorias físicas, químicas e funcionais.

É por isso que considero que o primeiro passo que se deve dar na discussão política do patenteamento de objetos biológicos é recusar a contraposição entre 'vivo' e 'inanimado', e rejeitar a localização dos objetos biológicos em uma categoria especial. Longe de ser um mero detalhe retórico, este esclarecimento permite a análise racional do problema de patenteamento. Para patentear objetos biológicos é preciso respeitar os mesmos critérios — invenção, novidade, melhoramento do estado da arte e utilidade — que regem os objetos não biológicos.

Ninguém de juízo perfeito pensaria em patentear a composição química da areia, a estrutura do cloreto de sódio, o mapa das distancias inter-estelares, as leis de Newton, as leis da termodinâmica, as regras de valência, a estrutura do benzeno, os logaritmos decimais e/ou neperianos, a função de Dirac, a constante de Plank, o princípio de exclusão de Pauli, ou as teorias de relatividade geral e especial de Einstein.

Do mesmo modo, não se pode aceitar o patenteamento de organismos biológicos naturais, ou de seus sistemas de regulação gênica e bioquímica, ou de suas partes e moléculas constituintes, incluindo os ácidos nucleicos e proteínas, tal como se encontram na natureza. E tampouco se pode aceitar o patenteamento de modificações puramente cosméticas dessas estruturas naturais, porque os critérios universais de patenteabilidade exigem novidade substantiva e utilidade perspectiva. O patenteável tem que ser inédito e não trivial, e possuir uma potencialidade tecnológica definida, independentemente de qual seja o material natural sobre o qual está baseada.

Basta, para tanto, aderir estritamente à letra e ao espírito da patente, para definir os limites do patenteamento: tudo o que existe como resultado do processo evolutivo e como conseqüência do mecanismo da seleção natural não é patenteável; tudo o que provém do engenho humano e que reúne as características de originalidade, reprodutibilidade e utilidade é patenteável.

Aplicando estes critérios, podemos definir o que é e o que não é patenteável:

Os genes, tal como se encontram nos cromossomas, não são patenteáveis.

Os sistemas de regulação gênica em si mesmos não são patenteáveis.

Os cDNAs são patenteáveis se e somente se tiverem valor de uso tecnológico, quer dizer, se: a. a função dos elementos que codificam tal definibilidade com precisão em termos moleculares são b. a base de aplicações tecnológicas radicalmente originais, explícitas e precisas.

Os fragmentos gênicos e os elementos regulatórios ativos em si não são patenteáveis, porque são partes de estruturas naturais, mas o são quando estão modificados — tanto em composição como em localização — para otimizar seu funcionamento em sistemas in vivo e in vitro inventados, inéditos e úteis.

Qualquer tipo de organismo transgênico é patenteável, pois se trata de uma invenção que pode ser definida com a precisão de uma máquina. Neste sentido, os métodos criados para realizar a terapêutica gênica em seres humanos são patenteáveis, porque se trata de criar um organismo transgênico capaz de fazer coisas que antes não fazia.

Os genes ou fragmentos gênicos utilizados em sistemas de diagnóstico não são patenteáveis, mas os sistemas de diagnóstico baseados em tais genes ou fragmentos gênicos o são, na medida em que sejam radicalmente originais e/ou constituam um avanço tecnológico com respeito aos métodos anteriormente disponíveis.

Sim, são patenteáveis: a. os procedimentos e os instrumentos que permitem descrever e inventar novos objetos biológicos ou partes dos mesmos, e b. as modificações de estruturas naturais que resultam em mudanças específicas, previsíveis e presumivelmente úteis como ferramentas tecnológicas. Uma estrutura material radicalmente original realizada a partir de elementos naturais, dotada de estruturas e capacidades funcionais novas e potencialmente úteis, é patenteável. Tais estruturas materiais novas podem ser organismos, tecidos, células, fragmentos de células, sistemas catalíticos isolados, que não se encontram como tal na natureza e que foram inventados com propósitos tecnológicos. Também são patenteáveis os algoritmos químicos que permitem sua construção, manipulação e regulação.

Não são razões morais, mas técnicas, que tornam inaceitáveis os pedidos de patentes de Craig Vanter. É uma aberração patentear seqüências polinucleotídicas — mesmo quando não sejam exatamente as naturais, dado que estão modificadas pelo tagging — porque, desconhecendo-se sua significação biológica, não se pode propor usos tecnológicos de qualquer tipo. Não se pode patentear algo cuja utilidade (mesmo sua utilidade potencial) se desconhece.

Assim como teria sentido patentear o procedimento de criação de hibridomas produtores de anticorpos monoclonais, também teria sido lógico patentear os procedimentos químicos inventados para o seqüenciamento do DNA. É surpreendente que assim como abundaram as críticas e as autocríticas pelo não patenteamento da invenção de Milstein e Kohler, nunca se questionou o não patenteamento dos procedimentos de seqüenciamento de Sanger e de Maxam e Gilbert, já que constituíram uma inovação tecnológica revolucionária na química dos ácidos nucleicos que tornou possível a totalidade da biologia molecular contemporânea e a biotecnologia.

Com respeito aos métodos de diagnóstico, o que é patenteável não são os genes e/ou suas partes, mas as técnicas utilizadas para caracterizá-los. Um gene doente é uma molécula natural, totalmente incompatível com o patenteamento. As técnicas utilizadas para demonstrar sua existência, ao contrário, são invenções humanas. Como o uso de PCR (Reação em Cadeia de Polimerase) com fins comerciais está coberto por patentes, qualquer pessoa que pague os royalties correspondentes ao uso do PCR tem todo o direito de utilizá-lo para diagnosticar qualquer doença. Quer dizer, o elemento original, passível de proteção e protegido, é o método de amplificação gênica, e não sua aplicação para demonstrar genes. O que é legitimamente patenteável é um novo método de amplificação gênica, que otimize radicalmente o PCR ou que o substitua de todo.

A conseqüência de qualquer patente é a exclusão. Quem tem a patente exclui o resto. Isto é válido para qualquer país, independentemente de seu grau de desenvolvimento econômico, social e político. A diferença entre os países é dada pela capacidade que têm de superar tais exclusões mediante a invenção de procedimentos alternativos ou a melhoria radical da tecnologia patenteada.

Os países desenvolvidos competem entre si pela geração de tais procedimentos alternativos, e em geral se produz uma situação de equilíbrio em que todos geram alguma patente tecnológica fundamental de uso universal. Desta forma, a exclusão tecnológica é mínima, porque a interdependência é máxima.

Isto não ocorre nos países carentes de estruturas educativas que reflitam as exigências da ciência contemporânea, e que não possuem sistemas científicos treinados para descobrir e inventar. Em tais países, a exclusão começa antes das patentes: são suas próprias universidades e centros de pesquisa que os afastam da fronteira da ciência.

Considero que não se deve exagerar o significado econômico do patenteamento de genes, sobretudo quando levamos em conta três dados da realidade:

Aquilo que realmente importa científica e tecnologicamente não é tanto a genética molecular convencional, mas a fisiologia molecular, quer dizer, a compreensão dos mecanismos estruturais e/ou funcionais que determinam as conseqüências fenotípicas da expressão de um gene determinado.

As leis de patenteamento por si sós não geram conhecimento científico e inventividade tecnológica.

Por enquanto, os procedimentos efetivos, curativos ou paliativos, derivados da biologia molecular são muito escassos.

Na maioria das enfermidades genéticas, a única coisa que se sabe é sua descrição clínica, ou seja, o macrofenotipo. Em geral, o descobrimento do gene responsável por uma doença hereditária é apenas o fim do começo, o prelúdio do estudo racional da doença. Até agora não são muitos os casos em que o descobrimento do gene doente causador de uma patologia leva automaticamente à invenção de uma solução terapêutica. O isolamento do gene responsável por uma patologia genética leva em geral à identificação de uma proteína até então desconhecida, mas entre o esclarecimento da função do produto de expressão normal e a invenção de procedimentos farmacológicos (a criação de drogas terapêuticas) capazes de reduzir ou suprimir os efeitos da mutação existe um trecho de longitude desconhecida. É aí onde começa o problema real dos direitos de propriedade intelectual.

As enfermidades genéticas ocasionadas por mutações em genes únicos são importantes porque permitem descobrir elementos estruturais e funcionais fundamentais até então desconhecidos. A genética é o (único) instrumento que permite realizar a dissecação bioquímica de processos complexos. No entanto, a maioria das patologias humanas não são devidas a mutações em um gene único, mas a genes múltiplos que interagem entre si e com o meio ambiente. Muitas vezes o que se herda são os perfis de suscetibilidade à patologia, e as conseqüências fenotípicas de uma mesma mutação variam de indivíduo para indivíduo porque os genes não operam no vazio, mas sim em um contexto condicionado por outros genes e outros produtos gênicos.

É preciso recordar que o Projeto Genoma Humano, ao demonstrar que uma mesma mutação tem conseqüências fenotípicas díspares em função do complemento gênico total do indivíduo portador, destruiu o reducionismo trivial que paralisava intelectualmente a biologia molecular. As questões fundamentais da biologia contemporânea são a redundância e epigênese, e um dos grandes programas da biologia molecular do século XXI é o descobrimento da lógica das interações gênicas, que levará ao surgimento de novos conceitos teóricos e aplicações tecnológicas agora insuspeitadas.

Isaias Raw

Não creio em patentes de seres vivos, como encontrados na natureza. Poderia haver patente de um produto de seleção genética, transgênico, ou outro produto da engenharia genética. Numa primeira etapa perderemos com as patentes — que creio que acontecerão independentemente de nossa vontade política — mas, com o tempo, deveremos criar condições para fazer esse desenvolvimento. Se o produto 'engenheirado' derivar de sementes selecionadas no Brasil, é preciso negociar antes para obter participação nos direitos.

Glaci T. Zancan

Parece-me perfeitamente razoável o patenteamento de organismos procarióticos, eucarióticos inferiores, células animais e vegetais imortalizadas, vinculados a um processo determinado, visando a produção em composto orgânico ou bioquímico específico, de aplicação na indústria alimentar ou farmacêutica. O que não se pode concordar é com o patenteamento dos seres vivos como tais, já que não constituem inovações, requisito básico para a concessão de patentes. Na realidade, o homem copia a natureza, transferindo um pequeno número de genes de um organismo para outro, sem causar profundas alterações no hospedeiro.

O patenteamento de seqüências do genoma humano é inadmissível. O próprio Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos retirou seu pedido. O que se pode patentear é o processo para obter as informações genéticas. A obtenção dessas informações tem sido amplamente discutida e não há consenso. É justo avisar a um jovem que ele ficará inválido aos 40 anos, quando não há terapia para o seu caso? Será que o exame estava certo? Quem fará o controle das análises de DNA? É preciso pensar no custo social dessas novas tecnologias. A restrição de recursos na área da saúde é de tal ordem que na definição de prioridades certamente não estariam incluídos o mapeamento de doenças genéticas de baixa incidência e as sofisticadas técnicas da terapia gênica somática.

Estou convencida de que a rapidez no avanço do conhecimento na área biológica vai tornar o sistema de patentes ultrapassado e será importante discutir uma nova forma de proteção de propriedade intelectual para a área. Em minha opinião, a nova legislação para a área de biotecnologia deveria englobar as descobertas envolvendo a biodiversidade. Uma possibilidade seria adotar um instrumento legal como o direito autoral nos moldes da prática estabelecida na publicação de trabalhos científicos.

Dado o pequeno número de empresas nacionais de biotecnologia, o patenteamento de seres vivos transgênicos não representará, a curto prazo, um grande impacto econômico. O sistema será benéfico para as grandes empresas transnacionais que dominam as pesquisas e têm subsidiárias no país, especialmente face à inexistência da legislação de biossegurança. É bom lembrar que o fumo transgênico, com alto teor de nicotina, estava sendo produzido no país, com pedido de patente junto ao INPI.

2. A Convenção da Biodiversidade definiu que os seres vivos encontrados em cada país a ele pertencem. Como isto se articula, ou se contradiz, com a posição que você defende a respeito dos patenteamentos de seres vivos?

Antonio P. de Carvalho

Não há contradição. Seres vivos encontrados (ou descobertos) em determinado país não devem ser patenteados, pois não constituem invenção. Sua utilização deve ser regulada pelo país, para benefício sócio-econômico de sua população (e não apenas de um pequeno segmento dela...), sendo necessário estabelecer canais de negociação entre governos e empresas. O objetivo dessa ação deve ser não só regular e restringir, mas trazer de pronto uma maximização de benefícios, ao mesmo tempo em que se zela pelo patrimônio natural representado pela biodiversidade do país. Vale dizer que não é permissível, para brasileiros ou estrangeiros, 'patentear a nossa biodiversidade'. Mas seria desastroso impedir que todos pudessem inventar novos produtos e novas aplicações para o que existe na natureza, aqui e alhures. Corresponderia a negar à sociedade um benefício que poderia estar ao seu alcance, através da industrialização e exploração comercial. Tal benefício não se alcança meramente com a publicação de descobertas científicas, por mais prestigiosos que sejam os veículos de comunicação especializada.

Daniel Goldstein

A questão da propriedade dos recursos naturais biológicos é, a meu ver, uma armadilha conceituai que nos leva a fixar a atenção sobre problemas secundários e considerar como 'triunfos' políticos a formulação de regulamentos internacionais que não consideram o problema substantivo: a impossibilidade prática de controlar o fluxo da informação biológica.

A legislação internacional aceita que os objetos naturais não biológicos, como o petróleo, o gás natural, os minerais e a água pertencem aos países onde se encontram.

Logo, é totalmente lógico exigir que os objetos biológicos e/ou de origem biológica também lhes pertençam.

No entanto, as riquezas naturais não são comparáveis à informação genética. O rendimento de uma jazida petrolífera ou de gás natural se mede em unidades de volume, enquanto a diversidade se mede em termos de macromoléculas informacionais. O petróleo, o gás, os minerais e a água têm uma utilidade concreta e imediata, enquanto a utilidade da informação genética é totalmente potencial. Pode-se cobrar royalties por uma exploração petrolífera, mas como se calculam os royalties correspondentes à informação genética potencial? Como demonstrar 'roubos' e exigir royalties?

A 'propriedade' da informação genética natural não constitui uma garantia para que o país donde provêm os genes obtenha alguma vantagem econômica no caso de alguém chegar a um produto ou procedimento baseado neles. A impossibilidade de patentear organismos naturais e suas partes se contradiz com a pretendida propriedade dos mesmos. Por outro lado, como se pode provar que um desenvolvimento biotecnológico teve efetivamente como origem esta informação genética silvestre, e não é resultado da engenharia genética? Como se poderia provar legalmente que o desenho racional de uma droga baseou-se em um produto natural?

Imaginemos uma situação teórica (um thought experiment), em que os químicos e farmacologistas da Squibb desenvolvam os inibidores da enzima de conversão da angiotensina I (iECAl) em um contexto legal em que o Brasil tenha direito a solicitar royalties pelo uso de peptídeos reforçadores da ação hipotensora da bradiquinina presente no veneno da Bothrops jararaca.

Que relação óbvia existe entre o captopril e tais peptídeos? Sabemos que essa relação existe, porque Ondetti e Cushman contaram como a droga foi modelada levando em conta a seqüência dos peptídeos e a estrutura tridimensional do sítio ativo de uma metaloenzima Zn++ dependente, a carboxipeptidasa de Lipscomb. Sem esta informação, seria preciso realizar um trabalho de detetive de primeira ordem para estabelecer o parentesco. Supondo que nossos países tivessem equipes científicas capazes de realizar esta investigação — o que não é o caso — estaríamos dedicando uma grande quantidade de recursos humanos e instrumentais para recriar a história intelectual e química de cada novo composto orgânico com propriedades farmacológicas que aparece no mercado farmacêutico! No entanto, mesmo que tais laboratórios de investigação dedicados a explorar a possível participação de material biológico 'roubado' em moléculas ou procedimentos patenteados no exterior tivessem êxito em 100% dos casos, existiria o problema de provar legalmente que foi este, efetivamente, o caminho percorrido pelos produtores para chegar às drogas. Afinal de contas, é precisamente a ciência dos países centrais que está resolvendo a estrutura atômica tridimensional de proteínas e ácidos nucleicos estruturais e catalíticos, que permite a modelagem de substâncias orgânicas que atuam como ligações específicas.

Não é preciso grandes análises contábeis para compreender que o orçamento necessário para levar a cabo estes programas de investigações estéreis (nada se faz de novo) e os custos dos litígios em tribunais internacionais consumiriam muito mais dinheiro do que se poderia obter com os royalties. Do ponto de vista científico e tecnológico, tais laboratórios constituiriam aberrações intelectuais e políticas, porque se apropriariam de recursos financeiros e humanos altamente especializados que deveriam estar fazendo investigação original de fronteira, para dedicá-los a uma espécie de arqueologia química e farmacológica, sem o menor valor heurístico ou científico.

Da mesma forma, como se poderia chegar a provar que um gene presente em uma planta patenteada provém efetivamente de um organismo encontrado num país periférico, e não é um derivado de um gene equivalente encontrado e caracterizado em Arabidopsis thaliana? Para começar, é altamente improvável que o gene 'roubado' esteja na forma original em que se encontra na planta de onde foi extraído, devido à necessidade de patentear moléculas inventadas. Por outro lado, caso se encontre um gene útil em um organismo dos centros de diversidade do Sul, é muito provável que se encontre algum gene equivalente em um organismo modelo, e na prática seria impossível determinar o que ocorreu primeiro: a descoberta do gene no material importado ou no organismo modelo. A rigor, a questão dos organismos modelos deveria fazer-nos refletir sobre o valor estratégico atual e futuro da informação genética acumulada nos centros de diversidade. Como se faz para controlar o fluxo de informação genética?

Uma empresa radicada em um país estrangeiro não pode estabelecer uma indústria extrativa em outro país sem solicitar uma autorização explícita e respeitar suas leis e costumes, da mesma forma que um país não pode modificar cursos d'água sem realizar acordos de exploração com os países vizinhos que também dependem desta água. Israel e os países árabes vizinhos sempre discutiram o problema do rio Jordão, mesmo quando enfrentavam-se militarmente.

Mas o acesso a materiais biológicos não pode ser controlado de forma alguma, assim como não existem mecanismos efetivos para controlar a saída de material genético. Nem sequer é preciso que uma corporação transnacional se radique efetivamente em um país para ter acesso natural e imediato a suas reservas biológicas, já que a informação estratégica pode ser obtida por terceiras partes e remetida aos laboratórios de forma impossível de detectar. Como se faz para controlar a 'evasão' de uma célula, de uma semente, ou de uma seqüência polinucleotídica?

Já nos tempos da biologia molecular clássica o controle do fluxo de informações colocava problemas insolúveis. Por acaso não se obtinham mutantes interessantes de fungos produtores de antibióticos mediante o simples expediente de visitar os laboratórios dos competidores e 'sem querer' levar consigo cápsulas de Petri? Os trajes ou as camisas utilizadas pelos visitantes, antes de ir para a lavanderia passavam pelo laboratório onde se extraiam os esporos... Ou já nos esquecemos do estratagema utilizado por um laboratório europeu para conseguir um bacteriófago de RNA cuidadosamente guardado e monopolizado por um investigador americano em Nova York? Bastou solicitar uma resposta pessoal a uma carta que necessariamente tinha de ser respondida no laboratório para romper o monopólio: o papel de carta, impregnado pelos bacteriófagos presentes no ar e na superfície do laboratório novaiorquino, cedeu os vírus pelo simples tratamento com uma solução ácida diluída.

Agora, sem dúvida, nem isto é preciso. Basta o DNA de uma única célula para obter praticamente a totalidade da informação genética de um organismo, e no caso das plantas, o progresso da tecnologia de regeneração a partir de células somáticas permite manipulações ainda mais ousadas. Por último, mas não menos importante, o PCR supera todas as barreiras aduaneiras possíveis e imagináveis, porque uma seqüência de DNA escrita é tudo o que se necessita para obter um gene.

A real proteção do germoplasma e a exploração das riquezas informativas contidas na flora e na fauna de cada país não passa por acordos internacionais nem por sofismas. Só o patenteamento pode proteger a informação genética, mas dado que não se pode patentear formas naturais, nada mais resta além de competir na identificação de genes úteis, descobrir as propriedades de seus produtos de expressão, e modificá-los para convertê-los em instrumentos tecnológicos originais e úteis.

Isaías Raw

É extremamente difícil manter a Convenção. Passaremos a pagar direito sobre o trigo para os países do crescente fértil? Vamos pagar à Austrália direitos do kiwi que produzimos para o país e para exportação? Posições lógicas do ponto de vista teórico nem sempre garantem implementação. No caso dos microorganismos, eles já foram e estão sendo coletados... e não teremos capacidade de policiar, de impedir que sejam pirateados. Os próprios membros das ONGs declararam (v. Scientific American de julho de 1993) que estão levando amostras.

Glaci T. Zancan

Na realidade, a Convenção de Biodiversidade prevê que as partes acordem a forma de se beneficiarem equitativamente dos resultados da pesquisa e desenvolvimento envolvendo seres vivos. Justamente por não haver consenso a Convenção deixa em aberto a forma de reconhecimento intelectual. Portanto, cada país deve definir a que mais lhe favorece. Daí a idéia de se encontrar uma fórmula jurídica distinta de patente que não parece ser a mais adequada para proteger os interesses dos países detentores de grande diversidade biológica, como é o caso do Brasil.

3. Qual a sua posição sobre a política de patentes no Brasil? Ela deve ser realizada já, mais tarde, ou nunca? Que tipo de ônus uma política de patentes distinta da americana — a maior potência na área biotecnológica — poderá trazer ao país?

Antonio P. de Carvalho

Acho que uma boa lei de patentes deveria ser passada imediatamente pelo Congresso. O projeto atualmente em curso no Legislativo, embora não seja a lei dos meus sonhos, representa já um apreciável consenso entre os vários interessados. Principalmente, ao deixar de discriminar saúde, alimentação, produtos químicos e as biotecnologias correspondentes, o projeto brasileiro alinha-se corretamente com o GATT/TRIPS. É esse o alinhamento que queremos para já. A política americana de patentes tem peculiaridades que precisarão ser harmonizadas com as decisões do GATT/TRIPS. Eles é que devem preocupar-se ao insistir numa política diferente do resto do mundo. Segundo estou informado, a adesão dos Estados Unidos ao GATT/Uruguai está sendo intensamente discutida e é uma questão de tempo político, visto que já ultrapassou a etapa de negociações multilaterais (das quais o Brasil participou ativamente).

Daniel Goldstein

A existência ou ausência de uma lei de patentes por si só não terá efeito sobre o desenvolvimento de nossos países. A pergunta chave, a meu juízo, é outra, que nada tem a ver com as patentes: temos capacidade para sobreviver à margem do mundo civilizado, para subsistir afastados e excluídos da comunidade econômica internacional?

E mesmo que a resposta seja positiva, seria esta política de isolamento ativo a mais correta para sair do subdesenvolvimento ativo e surgir como nações competitivas?

A história econômica dos países exportadores de matérias-primas de valor agregado muito pequeno indica que as rendas derivadas deste tipo de exportação não geraram indústrias competitivas capazes de competir no mercado mundial com produtos altamente diferenciados e de alto valor agregado.

Arábia Saudita, Líbia, Irã, Iraque e Venezuela exportam petróleo há décadas e não existem evidências objetivas que indiquem que o enorme volume de recursos financeiros acumulados através dos anos lhes tenha servido para sair do subdesenvolvimento. O mesmo se pode dizer sobre os excedentes gerados por outras exportações primárias ou de tecnologia rotineira, como as armas convencionais.

Isaías Raw

A lei de patentes virá como fato consumado. O pipeline de um ano — útil para instituições como a minha, que está correndo contra o tempo — em nada favorece à indústria farmacêutica brasileira, que dormiu em berço esplêndido... Assumindo que a lei de patentes é fato consumado, além do pipeline de um a cinco anos, gostaria de ter um dispositivo que previna que a patente seja usada como forma de monopólio. Só deve valer a patente que for utilizada no Brasil. Caso contrário (como no Canadá), a patente poderá ser utilizada, depositando (à revelia, se for o caso) os direitos estipulados (4%?).

Glaci T. Zancan

O código de propriedade intelectual deve ser atualizado e poderia ser aprovado desde que fossem revistos alguns itens. É importante que fique absolutamente claro o que se entende por microorganismos. O texto aprovado na Câmara permite o patenteamento de plantas e animais transgênicos, tema sobre o qual não há unanimidade entre os países industrializados. Aceitar neste momento, quando a legislação internacional nos dá dez anos de prazo, a imposição de patentear seres vivos transgênicos me parece, no mínimo, irresponsabilidade com as futuras gerações.

4. Como vê, no que se refere ao Brasil, a questão da biossegurança na liberação de organismos recombinantes? Há providências a tomar? Quais?

Antonio P. de Carvalho

A questão da biossegurança é de importância fundamental para o exercício da biotecnologia e o desenvolvimento sadio da bioindústria. A lei do Senado, ora em exame na Câmara, contém alguns defeitos importantes que devem ser sanados, sob pena de imobilizar-nos numa camisa-de-força. Precisamos criar um organismo central regulador, mas este mecanismo não pode ser transformado num grande cartório de chancela e autorização de experimentos científicos e empreendimentos industriais. É essencial ter a norma, mas é essencial descentralizar a sua aplicação. Em minha opinião, cada instituição ou empresa que trabalhe (ou pretenda trabalhar) com biotecnologia, clássica ou moderna, em sistemas contidos, deve ter seus projetos aprovados e controlados por uma comissão interna de biosssegurança, com representação dos vários segmentos da força de trabalho. Em sua composição, devem estar presentes, em posição controladora, elementos com uma sólida qualificação nas áreas de biociências e higiene do trabalho. Tais comissões devem ter a sua composição aprovada pelo órgão regional de vigilância sanitária, de acordo com as normas do organismo nacional de biossegurança. No caso específico de experimentos ou de comercialização de produtos que impliquem a disseminação de organismos na natureza, o organismo nacional deverá ser previamente informado e uma autorização obtida do organismo regional de controle agrícola ou sanitário, conforme o caso.

Aponto, finalmente, que tais conceitos sobre biossegurança não devem ser aplicados exclusivamente para organismos recombinantes. Há um enorme número de ações no âmbito da biotecnologia clássica que merecem atenção, especialmente quando envolvem o melhoramento genético de microorganismos, animais e plantas.

Daniel Goldstein

Creio que a questão de biossegurança está hipertrofiada. De certo modo é cômico constatar que os países periféricos em subdesenvolvimento ativo que se preocupam tanto com a biossegurança têm os recordes mundiais de consumo de tabaco, o instrumento aditivo mais importante que se conhece e o principal agente cancerígeno na história da humanidade. Muitas das críticas à biotecnologia estão baseadas em uma visão maniqueísta, totalitária e idealista, que pintam as coisas como 'boas' e 'más' (para quem?), como 'reacionárias' e 'progressistas'. A realidade econômica, política, cultural e tecnológica não pode ser explicada por um quadro sinóptico em preto e branco. A história é um processo onde os eventos criam novas situações que, por sua vez, induzem reações e acomodamentos.

Os que vivemos e trabalhamos no mundo periférico e no subdesenvolvimento ativo temos que ter muito cuidado porque nossa debilidade científica, a corrupção administrativa endêmica e a debilidade dos sistemas democráticos de controle da função pública criam um ambiente regulatório muito flexível, onde se pode fazer coisas que são proibidas nos países centrais. É na raiz de tal labilidade que devemos saber distinguir entre o substantivo e o anedótico nos temas referentes à biossegurança, e separar o importante do trivial.

A criação de variedades vegetais tem sido uma atividade tecnológica permanente desde o surgimento do Homo sapiens e a invenção da agricultura. As plantas híbridas são uma realidade agrícola há milênios, e o 'melhoramento' de espécies animais e vegetais de interesse econômico através do cruzamento e da seleção de monstruosidades que convertem eficientemente luz e forragem em dinheiro é um atividade cotidiana há pelo menos duzentos anos.

Em termos gerais esta atividade teve um êxito notável e não se pode considerá-la como uma fonte de desastres horrorosos, a despeito de que há menos de vinte anos implicava na transferência maciça de genes anônimos e a formação de organismos de composição genética essencialmente desconhecida.

É necessário estabelecer quais são os riscos reais criados pela engenharia genética. Para começar, é preciso lembrar que as técnicas do DNA recombinante permitem realizar a modificação específica de genomas com uma precisão jamais antes imaginada. A compreensão das bases bioquímicas e moleculares de crescimento exponencial da fisiologia molecular permite substituir os cruzamentos às cegas por modificações específicas do genoma destinadas a otimizar, regular ou inibir a formação de proteínas e ácidos nucleicos específicos. Os organismos transgênicos atuais são espécies molecularmente definidas, em contraposição, com os híbridos da genética clássica.

É muito provável que a prática agronômica revele que algumas de tais modificações genéticas têm efeitos secundários imprevistos por seus inventores, como, por exemplo, o surgimento de animais e plantas suscetíveis a pragas não habituais. Mas este tem sido o risco e a realidade permanentes da prática agronômica contemporânea, tanto pelas características genéticas dos indivíduos utilizados como pelo modo de produção. A suscetibilidade às pragas das monoculturas de híbridos de milho, as leucemias infecciosas nas fábricas de galinhas e ovos, as patologias induzidas pela imobilidade das variedades comerciais de gado bovino são, todas elas, conseqüências de novas formas de produção agrícola. Não há dúvida que muitas das patologias de animais e plantas de importância econômica não se encontram nas chácaras dedicadas a uma exploração agrícola de subsistência.

Mas tais riscos não constituem uma particularidade do desenvolvimento biotecnológico, mas sim a constante do progresso técnico. A destruição da camada de ozônio, a ação cancerígena do cigarro e as emissões dos motores a explosão, os efeitos das radiações ionizantes e dos campos magnéticos intensos são, todas elas, conseqüências da apropriação imperfeita da natureza pelo ser humano.

Pessoalmente, preocupa-me mais o uso das novas e velhas proteínas hormonais disponíveis agora em quantidades industriais do que o das variedades vegetais transgênicas. Tomemos, por exemplo, o caso do hormônio de crescimento, utilizado atualmente para aumentar a produção de leite bovino. Quais são os riscos de ingerir leite de vacas tratadas com somatotrofina? Quais são as conseqüências a longo prazo da administração de hormônios de crescimento a crianças e adolescentes? A FDA garante que o leite de tais vacas não têm níveis detectáveis do hormônio exógeno, mas desconhecemos o teor lácteo de peptídeos derivados da degradação proteolítica da proteína. E se alguma coisa nos ensinou a fisiologia molecular é que muitos dos peptídeos derivados da degradação proteolítica de hormônios têm, por sua vez, efeitos hormonais. Talvez fosse conveniente reconhecer que praticamente ignoramos tudo sobre a real fisiologia do hormônio de crescimento — e sem dúvida nada sabemos sobre os peptídeos que resultam de seu catabolismo — pelo simples fato de que até dez anos atrás não se dispunha de quantidades suficientes da proteína para se fazer estudos sistemáticos sobre suas ações. E o problema não é trivial, quando se considera que o hormônio de crescimento exerce, ademais, ações substantivas sobre a medula óssea. O caso deste hormônio serve para exemplificar o problema regulatório enfrentado pela humanidade face à avalanche de hormônios exócrinos, paracrinas e autocrinas, e fatores de crescimento que atualmente inundam os livros-texto. As ações de tais agentes são apenas conhecidas, e, no entanto, dentro de muito pouco saturarão as farmacopéias.

Daí surge a necessidade de controlar com muito cuidado e seriedade as novas gerações de produtos farmacológicos. Nossos países não dispõem das instituições necessárias e suficientes para exercer a patrulha biológica das ofertas farmacológicas do futuro. Não apenas nos faltam estruturas equivalentes às do Center for Disease Control e da Federal Drug Administration dos Estados Unidos, como, além disso, falta-nos a infraestrutura de investigação fundamental necessária para explorar as dúvidas colocadas pelas instituições reguladoras.

Creio que a única solução é interatuar protagonicamente com os países centrais, participando dos debates reguladores e dos programas científicos destinados a dissipar dúvidas sobre os possíveis efeitos secundários deletérios das drogas e/ou substancias que consumiremos. Temos que fazer valer nossos direitos como consumidores e usuários, e entre estes direitos estão a participação no desenho dos produtos (para adaptá-los a nossas necessidades) e testar sua efetivadade e seus problemas, em provas de campo, tanto agrícolas como clínicas.

Nossos países teriam que interatuar muito mais com as companhias produtoras de bens e serviços biotecnológicos na área médica e agrícola. Nossa labilidade regulatória e a extensão enorme de nossos territórios converte-nos quase automaticamente em sede de provas de campo clandestinas. Seria preciso cortar esta prática pela raiz, porém, a meu ver, isto não se conseguirá com medidas políticas ou aduaneiras. A alternativa é criar as condições legais para que os testes sejam feitos em lugares adequados, com a integração de equipes de pesquisadores e de tecnólogos (agrônomos, veterinários e médicos) formados pelo pessoal das empresas biotecnológicas, farmacêuticas, agroquímicas e produtoras de sementes, de organismos reguladores nacionais, e de empresas locais interessadas em eventualmente representar os inventores dos produtos e processos testados. Creio que este tipo de interação teria resultados muito positivos, porque poderíamos formar quadros de primeira categoria internacional em investigação agronômica, veterinária e clínica de fronteira, que é o que precisamos.

UMA REFLEXÃO FINAL

O interesse despertado pelo temas das patentes biotecnológicas e da 'proteção' do germoplasma nos países periféricos é totalmente desproporcional quando se considera a escassa geração de resultados científicos e tecnológicos patenteáveis que os caracterizam. A preocupação com o problema do patenteamento e a questão do direito proprietário da biodiversidade supera em muito a discussão dos problemas educacionais que emperram o desenvolvimento de instituições científicas competitivas. Talvez sejamos mais uma vez vítimas de uma blitzkrieg publicitária que nos leva a preocupar-nos com insignificâncias e nos afasta da preocupação com os problemas reais.

As patentes não são o problema chave que condiciona nosso desenvolvimento ou nossa falta de desenvolvimento. No máximo, são um problema para a indústria farmacêutica de nossos países, habituada a gerar sua renda através da cópia e da distribuição de drogas importadas, abastecendo mercados cativos, subsidiada pelo Estado, e que não investe, nem exige que o Estado invista em investigação e desenvolvimento originais.

A segurança de nossas riquezas genéticas depende de nossa capacidade científica para explorá-las antes dos demais. Para tal, nossa prioridade política deveria ser a construção de um sistema educacional e científico capaz de gerar um setor industrial agrobiomédico internacionalmente competitivo. A melhor lei de patentes, ou a ausência total de patentes, não nos tirarão do subdesenvolvimento, como demonstra nossa história econômica e industrial. Quase meio século de pirataria não levou à geração de uma indústria farmacêutica séria em nenhum país da América Latina. As substâncias e os procedimentos que salvam vidas continuam sendo importados, porque até a capacidade de cópia é praticamente inexistente.

O terror à patente é urna forma de reconhecer nossa incapacidade coletiva de mover o amperímetro da ciência e da tecnologia, porque se fôssemos excelentes em nossa capacidade de descobrir e inventar estaríamos desejando patentear nossos produtos e procedimentos. O culto à não-patenteabilidade simplesmente reflete uma cultura dependente e acientífica, influenciada por culturas nacionalistas e nacional-socialistas (de 'esquerda' ou de direita) onde se misturam em diversas proporções elementos totalitários, estatizantes e protecionistas que atuam como propagandistas e defensores de uma pseudo-indústria farmacêutica corrupta, ineficiente e acientífica, cuja racionalidade capitalista estava baseada na obtenção de rendas através da pirataria, dos mercados cativos e das interações delinqüentes com o Estado.

Isaias Raw

Até agora a biologia molecular não criou monstros. Creio que deveríamos fazer uma legislação que não fosse mais um empecilho burocrático para a pesquisa, exigindo uma autorização competente para a liberação na natureza.

Glaci T. Zancan

É urgente aprovar a lei de biossegurança que transita na Câmara dos Deputados. O país não pode servir de campo de prova para experiências proibidas em outros países. É sabido que está sendo usado hormônio de crescimento no gado leiteiro, o que foi proibido na Europa. Quem garante que não estão sendo comercializados alimentos contendo a toxina do Bacilus thuringiensis? Isso, quando não há conhecimento suficiente sobre as implicações do uso, a longo prazo, na alimentação animal e humana, tanto do hormônio quanto da toxina bacteriana. Será que um inibidor de amilase colocado na ervilha só faz mal para o inseto? Enquanto a lei não for aprovada, seria importante que os órgãos de pesquisa organizassem comissões provisórias internas para analisar os projetos na área, impedindo que pesquisadores menos avisados sejam usados por instituições internacionais. Bastaria aplicar as normas adotadas nos países da Europa. O mesmo se aplica à comercialização de produtos obtidos por engenharia genética.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Fev 1995
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