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Arquivo Rockefeller

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Lina Rodrigues de Faria

Mestre em Medicina Social

Apresenta-se a seguir o documento 'Public health situation and work of the International Health Board in Brazil', escrito por Wickliffe Rose, da Junta Internacional de Saúde da Fundação Rockefeller. Foi colhido por Luiz Antonio de Castro Santos nos arquivos da Rockefeller, Tarrytown, e está classificado no Banco de Dados sobre a Fundação Rockefeller que vem sendo por nós construído no Instituto de Medicina Social — UERJ.

O relatório foi apresentado em 25 de outubro de 1920, escrito por Rose nas três semanas em que esteve no Brasil — de 17 de junho a 5 de julho de 1920; consta de 44 páginas de texto (aqui apenas trechos são transcritos literalmente), e alguns mapas e gráficos com informações epidemiológicas. Apresenta informações sobre a situação geral da saúde pública no Brasil por volta de 1920 e sobre os trabalhos aqui realizados pela Missão Médica da Rockefeller, além de impressões e opiniões a respeito dos vários fatores que teriam dificultado a organização e o desenvolvimento dos serviços de saúde pública. E talvez aí resida seu maior interesse: por seu caráter reservado, Rose sente-se à vontade para não se furtar a críticas abertas não só aos serviços de saúde e à educação médica no Brasil, como também aos "brasileiros" e ao governo brasileiro.

Assim, a partir de uma análise baseada essencialmente numa geografia das populações (onde enfatiza a grande extensão territorial e a dispersão populacional) e numa certa visão da raça (pouco diferenciada de cultura) que é seu conceito determinante e definidor, Rose apresenta-nos algumas análises sociológicas bem ao gosto da época. Trata, por exemplo, dos "círculos fechados de poder no Brasil": "o Brasil é uma democracia somente no nome ... e nas presentes condições é melhor que seja assim"; fala do governo: "a tendência é de que a classe governante se torne parasita e o governo se desenvolva no sentido de uma corrupção organizada"; discorre sobre o "brasileiros nativo": "[que] não é um pioneiro por escolha. Não gosta de trabalhar. Prefere o lazer, o luxo e a facilidade"; em compensação, alegra-se com a imigração: "o futuro do país está na maior introdução destas estirpes mais viris."

A crítica ao emperramento da administração pública é outra nota constante do Relatório Rose: "faltam espírito de equipe e critérios formais e universais de avaliação de desempenho das atividades profissionais". Há, nesse sentido, uma observação surpreendente sobre o Instituto Oswaldo Cruz: após um elogio quase protocolar à instituição então dirigida por Carlos Chagas, critica nela os conflitos pessoais — que chegariam a afetar a "lealdade institucional" dos pesquisadores —, o excessivo individualismo, a tendência de cada um tomar como ofensa pessoal as críticas ao trabalho científico etc.

De modo geral, o Relatório Rose revela-se uma importante fonte de pesquisa. Interessa ao historiador das idéias por trazer comentários e análises sobre "caráter nacional", raça e cultura, política e administração, temas que provocavam visões bastante semelhantes entre as elites norte-americanas e brasileiras. Por fim, o relatório interessa muito à história da saúde pública e da medicina naquele período, por revelar o panorama que então se tinha das doenças que afetavam as populações rurais e por sua análise da qualidade do ensino médico no país.

"OBSERVAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA E SOBRE O TRABALHO DA JUNTA INTERNACIONAL DE SAÚDE NO BRASIL* * Documento nº 7502, Nova York, 25 de outubro de 1920. Original em inglês depositado no Rockefeller Archive Center, Tarrytown, EUA. ** Diretor Geral, International Health Board.

Wickliffe Rose** * Documento nº 7502, Nova York, 25 de outubro de 1920. Original em inglês depositado no Rockefeller Archive Center, Tarrytown, EUA. ** Diretor Geral, International Health Board.

SUMÁRIO

Itinerário

I. Considerações gerais

1. Distribuição da população

2. Topografia e transportes

3. Tipos de população

4. Alguns traços nacionais

5. Administração governamental

II. O problema brasileiro de saúde pública

1. Doenças da cidade

2. Doenças rurais

3. Desnutrição

III. A atual administração de saúde pública

1. Considerações gerais

2. Estatísticas vitais

3. Serviços de laboratórios de saúde pública

4. Educação médica

IV. Indicações de progresso

V. Política

1. Na administração de saúde pública

2. Na promoção, em solo brasileiro, da higiene como ciência e o treinamento de pessoal para o trabalho de saúde pública

3. Para a promoção da medicina moderna nas escolas médicas

I. Considerações gerais

...

3. TIPOS DE POPULAÇÃO

No desenvolvimento de um programa de saúde pública, o caráter de um povo de cuja cooperação [o programa depende] é fundamental. O limite Norte do Estado de São Paulo divide o Brasil em duas seções, que apresentam contrastes populacionais tão agudos quanto entre México e Estados Unidos.

O Brasil Nordeste, começando na Bahia, foi colonizado por um tipo parasita de portugueses que eram supridos pelo governo da matriz com um exército para seus combates e escravos da África para seus trabalhos. Após algum tempo, os escravos foram libertados. Presentemente a população se compõe de negros incapazes, brancos parasitas de origem portuguesa e uma grande porcentagem de seus descendentes híbridos, com traços aqui e ali de características indígenas. Uma exceção a essa situação geral é o Ceará. O estado foi colonizado originalmente por um pequeno grupo dos tipos mais intrépidos de Pernambuco. Estes se uniram a uma tribo indígena nativa particularmente viril e desenvolveram uma população nativa resistente. Em condições extremamente duras, com fome e seca periódicas, tais populações permaneceram no estado e são hoje uma raça enérgica e autoconfiante.

O Brasil Sul, começando no Estado de São Paulo, foi colonizado por portugueses destemidos e autoconfiantes que desde o começo cruzaram com os índios nativos, desenvolveram uma estirpe brasileira resistente, estabeleceram-se nas estreitas margens costeiras de Santos e logo passaram a explorar e conquistar o interior. Esta população tem sido revigorada por uma onda de imigrantes europeus que continua a trazer para os estados sulistas tipos vigorosos de colonos — italianos, alemães, austríacos e poloneses. Os japoneses também estão chegando em grande número. Tais imigrantes fincam raízes no solo e tendem, na segunda geração, a tornar-se uma raça de brasileiros fortes e brancos. É uma queixa permanente do grande proprietário rural: em três ou quatro anos os colonos que ele traz para trabalhar como assalariados em sua fazenda já compraram terras e se estabeleceram por conta própria.

Tais Estados do Sul, tendo a vantagem de um clima mais frio e mais variável e uma população muito mais viril, têm sob sua conta o futuro do Brasil. É o homem branco autoconfiante que está expandindo a fronteira e deitando as fundações de uma civilização mais progressista. O Estado de São Paulo é o centro e a alma deste movimento, com o Rio Grande do Sul prometendo se tornar um importante segundo lugar. A esperança do Norte reside na liderança do Sul e no sangue novo destes Estados e da Europa.

4. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS NACIONAIS

Apesar dessas acentuadas diferenças na população, não é difícil reconhecer certas características gerais que podem ser denominadas nacionais, das quais algumas são de interesse, por afetarem diretamente a eficiência e a administração nacional. Os brasileiros são um povo latino, de origem portuguesa, e há gerações vêm sendo ardentes imitadores dos franceses. Devido ao temperamento e à cultura latinos — que o clima tropical nada faz para perturbar — encontram no Brasil, mais do que é costume nos Estados Unidos, amplas condições para uma vida ociosa. Este é talvez o primeiro fato teimosamente persistente diante do qual o americano típico, ansioso, perde a paciência. Ele concede de mão beijada que o brasileiro culto é um homem agradável de conhecer, é viajado, é um homem do mundo, está à vontade no uso de três ou quatro línguas, vai conquistá-lo com sua hospitalidade e suas intermináveis e delicadas atenções, vai seduzi-lo com sua conversação e quase convencê-lo com sua lógica — etc. etc. Mas o americano lhe dirá: quando se trata de conseguir que as coisas sejam feitas neste país!!! Omitindo imprecações e lisonjas, em resumo trata-se disto: o brasileiro é um homem que acredita ser mais difícil fazer do que saber o que deveria ser feito. Há atrasos intermináveis e inevitáveis em todas as coisas, grandes e pequenas. Toda a máquina do governo e dos negócios movimenta-se em primeira marcha; e você não pode acelerá-la, pela simples razão de que, ao ser fabricada, omitiram as marchas mais altas.

Para o anglo-saxão o brasileiro não parece confiável. Não se pode contar com ele; nunca assume uma posição. Os próprios brasileiros designam como um 'homem sério' o raro indivíduo que é digno de confiança. O que querem dizer com isto é o homem que leva a sério seus compromissos, suas responsabilidades nos negócios e no governo, e que se sabe que estará à altura deles. O temperamento latino aparece aqui, como na maioria dos países latinos, na forma de um individualismo inculto: não tanto um egoísmo agressivo, mas a falta de sentido de solidariedade, de consciência social, de sentimento comunitário, ou até mesmo de um vivo interesse pelo bem-estar de seus vizinhos. Ao brasileiro faltam tanto o espírito como a técnica de realização por meio de uma ação organizada de equipe. E intimamente afim a este individualismo é sua atitude extremamente pessoal em todas as coisas. O brasileiro comum parece ser totalmente 'cego' diante da objetividade científica. Em lugar da fidelidade a princípios, ao país, à comunidade, ou mesmo ao partido, ele coloca a fidelidade pessoal. Criticar sua folha de serviço é realizar uma afronta pessoal. Uma tentativa de crítica científica é passível de tomar a forma de um inflamado ataque pessoal.

Quanto ao brasileiro jovem, seria de se desejar que fosse mais facilmente movido pela ambição — no sentido de um desejo ardente de conquistar por si próprio uma carreira importante, de tornar sua vida valiosa. No fundamental, esta falta talvez se deva menos ao temperamento do que à ausência de um ambiente estimulante. E tal falta de um objetivo forte é responsável, em larga medida, pela óbvia falta de persistência — persistência de levar as coisas até o fim. Há quem veja na falta de disciplina do brasileiro a chave para entender a maioria dos traços nacionais que o estrangeiro tende a considerar como deficiências nacionais. A criança não é disciplinada em casa, nem na escola; o jovem tem liberdade para seguir seus próprios caminhos; e o homem adulto não passa de um jovem crescido.

5. ADMINISTRAÇÃO GOVERNAMENTAL

Tais traços nacionais refletem-se na administração governamental. Em todos os Estados as rédeas do governo estão nas mãos de um grupo de brasileiros brancos nativos. Tais funcionários constituem-se em uma nítida classe governante. O Brasil é uma democracia somente no nome; o povo não tem voz nem na determinação das políticas nem na seleção dos representantes que irão executá-las. Tais questões são administradas por um pequeno e íntimo círculo. Nas presentes condições, é melhor que seja assim; com mais de 80% da população composta de analfabetos, não pode haver opinião pública inteligente.

Não há partidos políticos, no sentido de grupos unidos pela adesão a princípios ou políticas bem definidos. Dentro da classe governante há sempre e somente dois grupos — os de 'dentro' e os de 'fora'. As linhas de clivagem são pessoais.

A principal ambição do brasileiro nativo médio é ser nomeado para um cargo no governo e na realização desta ambição é bem sucedida a maioria dos alfabetizados; há nesses serviços, a qualquer tempo, o dobro ou o triplo de pessoas necessárias para o trabalho. O horário de trabalho vai de 11 às 3; o número real de horas e o próprio trabalho são em grande parte uma questão de capricho pessoal. Quando uma pessoa chega 'lá dentro', seu interesse principal está não em servir ao público, mas em manter e explorar o cargo para fins pessoais.

Praticamente todos os funcionários do governo são forçados a complementar seu salário oficial. Alguns tocam suas fazendas ou outros negócios, os professores da Escola de Medicina mantêm seus consultórios; muitos funcionários recorrem ao suborno — sempre se espera que o governo pague muito mais caro pelo que compra. Municípios, comunidades locais e fazendeiros têm prazer em contribuir financeiramente para os gastos dos representantes da Junta Internacional de Saúde; mas recusam-se a tal cooperação se o responsável pelos gastos for o Governo Federal ou dos Estados.

Não é no interesse da eficiência que as pessoas estão autorizadas a manter um certo número de empregos ao mesmo tempo. Ele se candidata a tantos quanto queira, aceita as nomeações oferecidas, assume as obrigações da que preferir, pede e obtém licença por tempo indeterminado (não remunerada) dos outros empregos e os mantém à mão, para a eles recorrer em caso de necessidade. Enquanto isso, as pessoas responsáveis pelo preenchimento das vagas mantêm-nas à mercê da sua vontade.

Nas posições administrativas o brasileiro tende a negligenciar suas responsabilidades. Em face de complexidades, especialmente quando estão envolvidos conflitos de interesses pessoais e amigos, evita decisões definitivas. A execução de ordens se faz de um funcionário para outro, escala abaixo, com repetidas perdas de tempo e de comunicação inteligente.

Não obstante o excessivo número de empregados em praticamente todas as repartições, os negócios governamentais estão sempre atrasados. Não é raro, por exemplo, ter mercadorias presas por seis meses na alfândega ou nos correios. Por causa deste estado de coisas criou-se um sistema de despachantes, com licença governamental e tabela de pagamento, que presumivelmente serve aos interesses dos clientes. Todos os negócios que têm a ver com o governo devem utilizar esses agentes remunerados.

A situação se reduz, em última instância, à falta de espírito e de técnica de equipe; não há juntas administrativas, conselhos consultivos ou reuniões de equipe. Até em uma instituição tão boa como o Instituto Oswaldo Cruz, por exemplo, não há um ataque organizado de todo o grupo aos problemas científicos e absolutamente não existe lealdade institucional. A equipe não passa de um grupo de cientistas individuais, divididos por conflitos pessoais, cada um trabalhando à sua maneira e para seus próprios fins. Dr. Crowell, o patologista americano da equipe, que está treinando em seu laboratório um grupo jovem bastante promissor, ainda não conseguiu realizar reuniões eficazes, mesas-redondas em que cada um se disponha a submeter os resultados de seu trabalho à crítica franca de todos. Cada qual deve ser tratado como indivíduo, isoladamente. Não obstante, o dr. Crowell está fazendo progressos — e este fato também é típico. Pois, a despeito das condições aqui francamente expostas, há tendências promissoras. Afinal de contas, o Brasil ainda se encontra em seu estágio pioneiro.

II. Problemas da saúde pública no Brasil

...

2. DOENÇAS RURAIS

No Brasil rural, a ancilostomose e a malária são as principais doenças. Com respeito à primeira, levantamentos de âmbito estadual, baseados em exames microscópicos cobrindo todas as partes do país e confirmados por exames de fezes em mais de 20 localidades representativas, mostraram que a infecção pelo ancilóstomo é prevalente em todo o país; praticamente ninguém que viva em condições rurais dela escapa; e, particularmente entre os trabalhadores agrícolas, é uma séria ameaça à vida, à saúde e à eficiência do trabalho. O diretor da Divisão Federal de Profilaxia Rural avalia que a ancilostomose, enquanto ameaça à saúde rural, suplanta todas as outras doenças juntas.

A malária é prevalente em todos os Estados, mas na maioria das regiões ela se confina a localidades comparativamente limitadas. Na região amazônica, incluindo os Estados do Amazonas, Pará, Maranhão e as porções norte do Mato Grosso e Goiás, onde a ameaça seria maior, a população é extrememente esparsa (exceto no Maranhão). Nos Estados populosos a infecção ocorre em toda a extensão da planície costeira, do Pará ao Rio Grande do Sul. No grande Planalto Central, que aguarda futuro desenvolvimento, a infecção se limita principalmente aos estreitos vales dos rios, onde o controle não deverá ser difícil. A infecção parece ser terçã e benigna, exceto na região amazônica; aí, as estatísticas de mortalidade na construção da Estrada de Ferro do Rio Madeira foram extremamente altas.

Outras doenças rurais são as seguintes, na ordem de sua suposta importância: doença de Chagas; tracoma; lepra; leishmaniose, esquistossomose; uma quantidade reduzida de filariose e de bouba.

A doença de Chagas, devida a um tripanossomo, distribui-se por uma ampla área; estima-se que envolva cerca de 60% da população de Goiás e cerca de 15% de Minas; pode resultar em séria invalidez ou morte. O tripanossomo encontra no tatu seu nicho natural e é transmitido pelo barbeiro, que habita a toca do tatu e as casas de taipa dos camponeses.

O tracoma, aparentemente trazido por imigrantes italianos, é um problema sério. ... A lepra se espalha por todo o país, tendo alguns focos bem conhecidos; ...

A febre amarela, anteriormente uma ameaça séria e constante em toda a região costeira, desde o Rio de Janeiro até o Norte, no Pará e ao longo do rio Amazonas, até Iquitos, no Peru, limita-se agora às regiões costeiras entre Bahia e Pernambuco. Espera-se que em breve estará eliminada. ...

III. A atual administração da saúde pública

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

A administração de saúde pública no Brasil está de acordo com as condições pioneiras do país. Todos os Estados têm pelo menos os primórdios de uma organização; o Governo Federal e o Estado de São Paulo desenvolveram departamentos que estão fazendo um trabalho adequado; mas em nenhuma comunidade existe um serviço de saúde pública que possa ser encarado como razoavelmente eficiente.

Até 1916, a atenção dirigiu-se quase exclusivamente para as cidades maiores. A eliminação da febre amarela no Rio e na região amazônica, o fornecimento de água potável para muitas comunidades, como Rio e São Paulo, e o controle razoável de algumas das doenças infecciosas mais comuns são realizações importantes. No entanto, em nenhuma comunidade se fez um ataque às duas principais doenças das cidades — tuberculose e sífilis. Em nenhuma cidade existem estatísticas vitais adequadas ou serviços de laboratório de saúde pública. Não existem enfermeiras treinadas, tanto para serviços hospitalares como para visitações de saúde pública; nenhuma inspeção médica de escolas que valha a pena mencionar; ...

Tais deficiências devem-se não tanto à carência de fundos como à falha em usá-los da melhor maneira. Há também os problemas normais que atingem toda a administração governamental. Quase não existem trabalhadores treinados; como resultado desta falta de treinamento técnico no topo, ocorrem enormes desperdícios decorrentes de não se avaliarem os valores relativos no trabalho de saúde pública. Por exemplo, a vitrine de um departamento de saúde brasileiro é seu equipamento de fumigação — o mais sofisticado do mundo. Sua operação, como qualquer funcionário de saúde bem treinado sabe, é um luxo caro que interessa principalmente para propósitos de exibição. Existem comunidades que ainda têm sérias epidemias de varíola e fazem fumigações detalhadas após todos os casos, mas não empregam nenhum esforço em obrigar a vacinação contra a infecção. Recentemente, na zona de febre amarela, algumas autoridades sanitárias destruíam mosquitos adultos com fumigação ao invés de prevenir sua criação através do controle de nascedouros — operação muito mais simples, mais efetiva e menos cara.

2. ESTATÍSTICAS VITAIS

O Brasil não tem nenhum censo demográfico confiável. Aparentemente nenhuma comunidade o possui. Sem esta base não é possível para qualquer departamento de saúde construir um sistema adequado de estatísticas vitais. A cidade de São Paulo parece ter um registro confiável de nascimentos e mortes. Também se tem buscado realizar um relato acurado de causas de morte, na medida em que os médicos sejam capazes de realizar um diagnóstico correto. Com esta exceção, nenhuma comunidade parece ter estatísticas de padrão sequer razoável. Devido às exigências do serviço militar, e da incapacidade do governo brasileiro de obrigar qualquer medida, é particularmente difícil obter um registro de nascimentos confiável. É desnecessário dizer que até o Brasil ter um bom censo populacional e os Estados desenvolverem um sistema efetivo de estatísticas vitais, o funcionário de saúde, por não ter os meios de definir seus problemas ou de medir seus resultados, vai continuar a trabalhar no escuro.

3. SERVIÇOS DE LABORATÓRIOS DE SAÚDE PÚBLICA

Existe no Brasil um número considerável de laboratórios fazendo trabalhos de saúde pública; mas em nenhum Estado tais serviços estão disponíveis para toda a população. Os dois laboratórios mais importantes sao o Oswaldo Cruz, no Rio, e o Butantan, em São Paulo. Realizam pesquisas, manufaturam os produtos biológicos normais e fazem uma quantidade limitada de serviços de diagnóstico. Seus fundos são derivados do Governo Federal, do Estado e da venda de seus produtos. ...

O dr. Vital Brazil abriu recentemente, em cooperação com o governo do Estado do Rio, um laboratório comercial privado em Niterói. Esta última instituição ilustra de forma extrema o caráter semi-comercial do desenvolvimento laboratorial no Brasil. Em troca de serviços gratuitos e de um desconto de 20% nos produtos biológicos, o dr. Vital Brazil, diretor da empresa, obteve do Estado uma concessão por 50 anos, com terreno e muito equipamento. O Instituto vai produzir e vender os habituais produtos biológicos, além de um grande número de produtos que nenhuma autoridade de saúde pública nos Estados Unidos sancionaria. Os lucros cabem ao diretor. ...

4. EDUCAÇÃO MÉDICA

Entre os problemas de saúde pública do Brasil está a educação médica. Na situação presente, alguns homens podem ser treinados no exterior para servirem como líderes na administração de higiene e saúde pública, mas ao fim e ao cabo o Brasil deve treinar seu próprio pessoal. Isto pressupõe o cultivo da higiene como ciência; e isso, por sua vez, uma base ampla de medicina moderna em suas escolas de medicina. Há agora dez escolas de medicina em operação no país e outra está para ser inaugurada. Seis delas merecem consideração; duas — uma no Rio e outra na Bahia — são muito grandes. Em sua maioria, tais instituições são governamentais e, considerando o tipo de trabalho que desempenham, recebem recursos com liberalidade.

O ensino é sobretudo didático e ministrado por clínicos de tempo parcial, cuja principal atividade é ganhar dinheiro com a prática da medicina. Mesmo ciências como fisiologia e patologia são ensinadas por clínicos que apenas proferem conferências sobre os temas. Os laboratórios existem apenas para ilustração; os alunos aprendem ouvindo e vendo, não pelo trabalho prático de laboratório sob uma direção inteligente. As escolas, ao adotar a política de recrutar profissionais ocupados demais com sua próprias atividades práticas para se engajarem em pesquisa, excluem de seu ensino o espírito e os métodos da ciência. Dr. Neiva, recentemente designado secretário de saúde no Estado de São Paulo, diz: 'O médico brasileiro é um ruminante: devora todo seu pábulo durante seus cursos na faculdade de medicina e pelo resto da vida tem apenas isto para ruminar.'

IV. Indicações de progresso

1. A tendência geral do desenvolvimento populacional e econômico é na direção do grande Planalto Central. Este é o coração do país. ... Atrasada por sua relativa inacessibilidade, esta região, com seus vastos recursos intocados está agora sendo aberta à imigração e investimento. ...

2. O fato mais significativo envolvido nesta abertura do interior é que está trazendo novo sangue para o país. O brasileiro nato não é um pioneiro. Ele não gosta de trabalhar. Prefere o lazer, o luxo, a facilidade. O trabalho nas fábricas e nas grandes plantações de café de São Paulo é estrangeiro. ... Os resultados obtidos por italianos, alemães, austríacos, poloneses e japoneses em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul mostram que o futuro do país está numa introdução maior ainda de tais estoques mais viris.

3. Esta maré de imigração européia já está contribuindo para o desenvolvimento de uma classe média, que, a seu tempo, vai se fazer sentir como um elemento determinante no governo. O governo do Brasil, como já se disse, nunca foi democrático. Existe uma pequena classe governante e um campesinato analfabeto e dócil. A tendência é da classe governante se transformar em parasita e o governo em uma corrupção organizada. Na cidade e no Estado de São Paulo existe agora um grande e crescente elemento estrangeiro, cujo cérebro e capital estão criando uma grande comunidade progressista. Estes cidadãos mais rijos, de origem estrangeira, estão servindo como constante estímulo para o brasileiro nato; ele reconhece o fato e está respondendo a ele. ...

4. A resposta ao trabalho da junta no Brasil tem sido extremamente pronta e generosa. ... A ancilostomose é agora reconhecida em todo o país não apenas como realidade e ameaça, mas como a doença a que se deve dar o lugar principal no saneamento rural. Tanto o Governo Federal como o estadual [do Rio de Janeiro] estão engajados no trabalho. Dos US$ 750.000, em números redondos, gastos em 1919, a junta contribuiu com apenas US$ 130.000, ou 17%. Os fundos governamentais são crescentes.

5. O progresso nos últimos dois anos, não apenas no controle da ancilostomose, mas no desenvolvimento de um programa geral de saúde pública, tem sido tão rápido quanto o permitido pelas condições. ...

6. Entre os novos serviços criados está o de 'Profilaxia Rural'. Como apontado acima, o trabalho em saúde pública no Brasil era anteriormente limitado às cidades maiores. O trabalho contra o ancilóstomo centrou a atenção em regiões rurais.

7. Entre os primeiros e mais importantes resultados deste movimento está a reorganização do Departamento Nacional de Saúde. ... A nova organização envolve três divisões principais: a. serviço de saúde do Distrito Federal; b. serviços de quarentena dos portos brasileiros; c. serviço de assistência e controle das doenças endêmicas rurais. ...

8. Outro movimento importante decorrente do programa de saúde rural é o que se faz no sentido da cooperação entre Estados e Governo Federal. Os serviços federal e estaduais têm se mantido separados, cada um deles excessivamente zeloso de suas prerrogativas. Mesmo agora, o funcionamento de um acordo ou política satisfatórios não se faz sem consideráveis dificuldades, mas a cooperação é um fato estabelecido. A mediação da junta tem sido, e continua sendo, muito útil. ...

9. Também se deu início a um movimento no sentido da cooperação dos municípios com os programas de saúde dos Estados. ...

10. O Departamento Nacional está dando uma contribuição importante ao progresso geral no serviço de saúde pública ao exigir tempo integral em suas indicações para a Divisão de Profilaxia Rural. ... É um movimento radical no Brasil, onde uma parte importante do serviço governamental é realizada por pessoal em tempo parcial e como atividade colateral ou ocupação subsidiária. ...

11. Há um crescente reconhecimento, também, da necessidade de treinamento para o serviço de saúde pública. Por enquanto não há demanda insistente por pessoal especialmente treinado. A crença tradicional de que o médico tem toda a formação necessária para a bem-sucedida administração de um serviço de saúde pública vem sendo apoiada pela França — principal fonte da instrução brasileira em todas as questões médicas. Mas os sinais de uma mudança de atitude são numerosos e óbvios. É especialmente significativo um artigo recente de um médico do Rio tratando diretamente da questão e citando os exemplos dos Estados Unidos, Inglaterra e alguns países continentais, que realizam cursos especiais sobre higiene e administração de saúde pública para trabalhadores em saúde pública. Dr. Chagas, recentemente indicado para a chefia do Departamento Nacional de Saúde, propôs mandar os chefes das novas divisões aos Estados Unidos e Europa para estudos especiais. ...

12. O Departamento de Higiene, criado com a cooperação da junta em conexão com a Escola de Medicina em São Paulo, vem sendo bem recebido. Pode ser encarado como um promissor começo do cultivo da higiene como ciência e do ensino da higiene e da saúde pública em solo brasileiro. O que o dr. Darling e o dr. Smillie conseguiram em dois anos está além de qualquer louvor. ... [Vem sendo] desenvolvida uma série de investigações de campo que revelaram-se extremamente interessantes e apresentaram resultados importantes. Tais resultados vão reduzir em muito o custo do controle do ancilóstomo — o trabalho de um posto operado segundo o plano modificado indica uma economia de custo de cerca de um terço. ...

13. Mesmo na educação médica existem sinais de mudança. Já se encontra um número considerável de médicos que reconhece as limitações do presente sistema. Além do mais, muitas vezes se ouve comentários de que o Brasil não pode mais seguir a França em tais questões. ... A maior parte da literatura ainda é em francês, mas um número cada vez maior de médicos estão estudando inglês e voltando-se para a literatura americana e inglesa como fonte de informação médica. ... Dr. Chagas, como se mencionou acima, está conduzindo uma luta importante pela introdução do espírito e método científicos na escola médica de Belo Horizonte. ... Tudo isto é apenas um início modesto para um grande país. Mas é um começo, e é genuíno. É a pequena alavanca.

V. Política

A junta parece ter sido muito feliz em sua política no Brasil e na escolha dos homens que a representam aqui. Ambos têm sido abundantemente justificados pelos resultados de três anos e meio de serviço. ... O embaixador americano chegou a reconhecer: 'É o trabalho mais importante que está sendo feito neste país.'

1. NA ADMINISTRAÇÃO DE SAÚDE PÚBLICA

a. Continuar a cooperação com o Governo Federal e dos Estados no desenvolvimento de um programa de saneamento rural. A primeira etapa do controle da ancilostomose está completada: o interesse despertado; o problema definido; a possibilidade de controle demonstrada; as forças do governo engajadas. ...

b. Centrar os esforços principais nos Estados estratégicos: São Paulo e Rio Grande no Sul, e Pernambuco — menos importante — no Norte. ...

c. Procurar mediar um acordo satisfatório de cooperação federal e estadual. ...

d. Buscar estabelecer o princípio da participação municipal e local nos programas estaduais de saúde. ...

e. Nos programas rurais, concentrar esforços no controle do ancilóstomo e malária. ...

f. Para o trabalho rural, treinar e colocar brasileiros em posições de responsabilidade tão rapidamente quanto permitam as condições. ...

g. Cooperar com os governos federal e dos Estados no treinamento de pessoal para as posições mais importantes no serviço de saúde pública, tanto urbano como rural...

h. Buscar promover o desenvolvimento de um sistema de estatísticas vitais mais confiável e mais utilizável. ...

i. Buscar uma oportunidade para cooperar com o desenvolvimento, em um dos Estados mais importantes, de um serviço efetivo de laboratórios de saúde pública. Ainda é preciso estimular o reconhecimento da necessidade disto.

2. PARA A PROMOÇÃO, EM SOLO BRASILEIRO, DA HIGIENE COMO CIÊNCIA E O TREINAMENTO DE PESSOAL PARA O SERVIÇO DE SAÚDE PÚBLICA

a. O presente acordo de cooperação com a Escola de Medicina de São Paulo para o desenvolvimento de um Instituto de Higiene deve ser mantido. ...

3. PARA A PROMOÇÃO DA MEDICINA MODERNA

Não há razão para mudar a presente política de oferecer bolsas de estudo que permitam que jovens cientistas brasileiros possam estudar no exterior, preparando-se para o ensino e o trabalho científico nas escolas de medicina e em laboratórios como os dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan. Muito se pode realizar também com um intercambio de visitas e conferências de cientistas importantes. Dr. Chagas, por exemplo, chefe do Instituto Oswaldo Cruz e também do Departamento Nacional de Saúde, deve visitar os Estados Unidos no próximo outono. Ele terá oportunidade de fazer viagens de observação e de proferir uma série de conferências, o que, espera-se, será útil tanto para a educação médica como para a saúde pública no Brasil. ..."

Tradução de Luiz Antonio de Castro Santos

O arquivo estará aberto ao público em meados de 1995

Maiores informações:

Lina Rodrigues de Faria

Instituto de Medicina Social

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rua São Francisco Xavier, 524 7º andar Bl. D

Maracanã Rio de Janeiro - RJ CEP 20559-900

  • *
    Documento nº 7502, Nova York, 25 de outubro de 1920.
    Original em inglês depositado no Rockefeller Archive Center, Tarrytown, EUA.
    **
    Diretor Geral, International Health Board.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 1995
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