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Carta do editor

CARTA DO EDITOR

Apresentamos o 4º número de História, Ciências, Saúde—Manguinhos logo após seu primeiro ano de existência, e o resultado obtido vem cumprindo plenamente nossas expectativas. Temos recebido manifestações elogiosas dos leitores e um número significativo de artigos submetidos para publicação. Acreditamos que a qualidade dos artigos, a diversidade e equilíbrio entre temáticas e seções e o apuro de sua produção visual e gráfica sejam responsáveis por essa receptividade.

Face a outros compromissos, Sergio Goes de Paula ficou impedido de dedicar-se com a mesma intensidade que o trabalho de editor — e o preciosismo obsessivo que é peculiaridade sua — vinha exigindo, razão pela qual o estou substituindo. Ele integrará o corpo de editores associados, e estaremos sempre nos valendo de sua sensibilidade e experiência, que muito contribuíram para firmar o padrão de qualidade de Manguinhos na etapa crucial de sua implantação.

Esse número traz um cardápio de opções substantivas, com temáticas e estilos variados, que vão do tradicional acadêmico ao quase literário. Em estudo voltado para a história de políticas públicas, Eduardo Marques adianta uma análise da constituição do setor estatal responsável por políticas de saneamento, aspecto pouco tratado por trabalhos anteriores sobre as relações entre produção da cidade, teorias médicas e processos normativos.

No campo da história das ciências, Luzia Castañeda analisa a evolução da história natural em torno das matrizes taxonômicas, dos fundamentos filosóficos e das tensões metodológicas, face à redefinição de seu objeto, quando se aproxima do que viria a constituir a biologia. As idéias de geração e herança são tratadas através dos conceitos de Buffon (epigênese) e Bonnet (preformismo).

Os dois outros artigos são de especial relevância: Mirko Grmek nos brinda com um precioso texto sobre história das doenças, que reflete de maneira exemplar sua trajetória de formulador de conceitos e interpretações seminais, associada à erudição e capacidade invejável de seleção didática dos aspectos mais relevantes do tema tratado. As relações entre a "realidade patológica" e sua conceitualização, ou entre as abordagens naturalistas e normativistas; o debate em torno da causalidade e da classificação de doenças e a problematização e categorização do tema candente das "doenças emergentes", sob a ótica do conceito de patocenose, formulado pelo autor, são apresentados sinteticamente, tornando o artigo uma importante referência para programas de estudos nessa área.

Pelo seu estilo e tema abordado, o artigo de José Murilo de Carvalho tem o sabor de uma crônica literária. A partir da narrativa de uma descoberta inesperada — os bordados do líder da Revolta da Chibata, João Cândido — o autor vai tecendo uma reveladora leitura desse fato singelo e das imagens retratadas. A conhecida maestria de José Murilo nos apresenta com cores vivas os contornos da revolta, que provoca "pânico e fascínio" nos contemporâneos, arrebatados pela ameaça do mais avançado poder bélico da época, nas mãos de marinheiros.

Sempre figurados como rudes e desclassificados, de repente os marinheiros demonstram "parnasianismo de manobras", segundo comentário de época ou, na imagem construída pelo autor, em que João Cândido "bordava as águas da baía com o lento e majestoso evoluir dos encouraçados". A história das mentalidades surge com toda sua riqueza quando o autor analisa as expressões dos valores de ordem e liberdade, a associação do sentimento de revolta com a memória recente da escravidão, e as possíveis interpretações dos sentimentos de João Cândido entre a figura do líder revoltoso e do "negro bom". Tudo isso em movimentos fluidos e esclarecedores entre a história particular de João Cândido e a formação da mentalidade social dos marinheiros e da população do Rio de Janeiro. As relações entre historiografia e mito são tratadas com rigor e dignidade em que, como diz o autor, a valorização dos aspectos humanos faz crescer o respeito pelos heróis.

Na sessão 'Debate' esse tema reaparece em depoimentos enriquecedores sobre as relações entre historiografia e texto literário na experiência de Alberto Dines, Ana Miranda, Fernando Morais, Jorge Caldeira e Roberto Ventura, romancistas históricos e biógrafos bem-sucedidos que têm em comum o fato de não serem historiadores profissionais. A reabilitação da narrativa e sua relação com a história, objeto de uma rica vertente de reflexões acadêmicas, surge aqui como relato vivo da experiência desses autores. O processo criativo, as razões mercadológicas do interesse sobre biografias, a tensão entre conhecimento documentado, ignorância, interpretação e ficção, ou entre estilos acadêmicos e literários ganham vida e sabor especiais.

Outro bom momento desse número é o depoimento de Oracy Nogueira, um dos pioneiros das ciências sociais no Brasil, conhecido internacionalmente por seus trabalhos sobre relações raciais e sua interpretação das diferenças entre "preconceito de origem" e "preconceito de marca", para distinguir suas manifestações nos EUA e Brasil. Destacamos, nesse relato, as observações sobre a integração entre sociologia, antropologia e história, acentuada na apresentação de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, e a maneira saborosa como Oracy Nogueira vai relatando suas vivências e contando causos cheios de humor, que motivaram e deram suporte a sua produção acadêmica.

Paulo Gadelha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1995
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