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Narrativa documental e literária nas biografias

Documental and literary narrative in biographies

DEBATE

Narrativa documental e literária nas biografias

Documental and literary narrative in biographies

Entre as leituras marcantes a que todos nós nos entregamos ultimamente decerto figura alguma biografia. O tema que colocamos em debate no presente número é precisamente este gênero de narrativa, a um só tempo historiográfica e literária, em que se enquadram diversos livros recém-publicados, de grande sucesso editorial. O prestígio crescente que tal gênero vem adquirindo entre nós sinaliza não apenas processos em curso na indústria do livro e na psicologia dos leitores, como tendências importantes no âmbito da historiografia e da literatura.

Quando cogitamos debater sobre essas tendências, vieram-nos à lembrança as discussões travadas em um passado não muito distante sobre "o papel dos indivíduos na história". Esta era a questão proposta por um intelectual pertencente à primeira geração de marxistas russos, George Plekhanov, em 1895 (A concepção materialista da história, 8ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 1992), e era ainda tema de controvérsias que perduravam nos anos 60 entre historiadores como Isaac Deutscher (Ironias da história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968) e E. H. Carr (Que é a história?, 6ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 1989).

O que se pretendia era demarcar o lugar das individualidades em meio às multidões, às forças coletivas que sustinham ou demoliam os vigamentos das estruturas sociais, e que faziam girar as engrenagens do processo histórico em acordo ou desacordo com as leis gerais que determinavam seu curso inexorável. Naquela época, a ambiência intelectual não era propícia nem à produção nem à leitura de narrativas que pusessem em primeiro plano histórias singulares, a menos que fosse a de um revolucionário ou um oprimido, cuja vida cumprisse a função pedagógica de exortar à ação. Não obstante esta matriz tenha envelhecido, dela resultaram criações biográficas definitivas, como a magistral trilogia que o mesmo Deutscher dedicou a Leon Trotski.

Os estruturalismos ruíram. O muro de Berlim veio abaixo. Há quem diga até que a história acabou. Nas circunstâncias atuais, de euforia neoliberal, a questão enunciada poderia ser recolocada quase que ao revés: qual é o papel que a história desempenha na vida dos indivíduos?

O refluxo das teorias explicativas abrangentes, o relativo desinteresse pela história das estruturas materiais e dos movimentos coletivos teve como contrapartida uma valorização da história da vida privada, investigando-se de forma cada vez mais especializada e fragmentária as múltiplas facetas da subjetividade e da sensibilidade dos indivíduos, assim como os múltiplos cenários de sua existência cotidiana ao longo do tempo.

Terão estas tendências contribuído de alguma forma para robustecer o interesse pelas biografias? Não serão elas hoje uma forma privilegiada de narrativa em virtude, justamente, do poder prismático que as trajetórias singulares de vida têm de refratar luz sobre os processos históricos macroscópicos e os aspectos mais sutis e imponderáveis da existência?

Desde Tácito e Plutarco, em fins do século I, o traço predominante das narrativas biográficas foi o panegírico, o louvor às virtudes dos homens notáveis, carregado de intenções morais. A qualidade do trabalho era incrementada se o autor tivesse a sensibilidade para combinar a exaltação dos grandes feitos com os pequenos fatos, os detalhes de importância menor que servissem para temperar o caráter de um homem com as tonalidades cambiantes da virtude e do vício.

A preocupação ética foi, assim, o traço dominante das narrativas sobre os senadores e generais do Império Romano, as vidas de santos na Idade Média, as histórias de príncipes, chanceleres e cardeais que protagonizaram a edificação dos estados absolutistas nos tempos modernos.

Estes lavores ganharam qualidades artísticas mais refinadas quando se disseminou nos séculos XVII e XVIII o interesse pela investigação de fundo psicológico sobre a natureza humana. E lucraram em sobriedade e erudição quando passaram a ser escritas no século XIX por historiadores profissionais, preocupados em recompor com precisão e minúcia o contexto em que se moviam os personagens retratados.

Isso não significa que a biografia tenha se tornado patrimônio dos historiadores. O caso O. J. Simpson, nos Estados Unidos, é um bom exemplo de como este gênero se presta à confluência do poder da mídia, do voyeurismo do público e do oportunismo dos editores, sem falar no lucro e no interesse do biografado. Mas qual é o ramo da criação humana que não gera frutos bastardos?

E se peneirarmos os muitos panegíricos que aqui se escreveram para colhermos as obras lapidares no gênero — Um estadista no Império (1897) do político e diplomata Joaquim Nabuco representando, talvez, o que há de melhor no ramo das biografias, e os cinco volumes do médico Pedro Nava brilhando como diamantes na memorialística —, veremos que, na maioria dos casos, não foram os historiadores que escreveram boas biografias: foram estas que geraram bons historiadores.

A safra recente que veio a lume entre nós nada fica a dever aos exemplares mais nobres desta tradição. Os autores que a continuam manejam com eficiência as ferramentas da investigação histórica, produzindo relatos bem fundamentados, verazes, e, ao mesmo tempo, realizam a ambição do ficcionista de criar obras de arte.

O debate com estes autores é duplamente relevante para nós. Como historiadores que exercemos nosso ofício numa instituição de pesquisa médica e biológica já nos demos conta, primeiro, de que há muita escavação biográfica por fazer no território das ciências e da saúde no Brasil. Segundo, porque ao ocupar a história um lugar entre as ciências que se praticam nesse âmbito institucional, seus artífices são compelidos a acompanhar as ciências naturais no que tange à produtividade — o que é bom — e no que tange ao esoterismo da linguagem — o que é mau.

As criações biográficas bem-sucedidas nos lembram que a história é, a um só tempo, ciência e arte, e que o historiador não deve permitir que sua linguagem definhe na clausura e nos formalismos da Academia. Cremos que vem muito a propósito o comentário com que Peter Gay encerra o saboroso e arguto estudo que foi aqui publicado com o título O estilo na história (São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 196).

"Os historiadores estão sempre procedendo à feliz descoberta de que sua retórica difere da do químico ou do biólogo. Mas isso não acarreta a expulsão da história dentre a família das ciências. Simplesmente torna especial a ciência do historiador, com sua própria maneira de dizer a verdade. O que deveria impedir o historiador de apresentar suas descobertas à maneira árida, deliberadamente deselegante, de um artigo, digamos, de psicologia clínica, não é sua aversão literária a tal tipo de exposição, mas o reconhecimento de que tal modalidade expositiva seria não apenas menos agradável do que uma narrativa disciplinada — seria também menos verdadeira. O estilo é a arte da ciência do historiador."

Jaime Benchimol

Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz

Participaram do debate três jornalistas, uma escritora e um professor de literatura que não esgotam, em absoluto, o rol de biógrafos competentes que desejaríamos ouvir. Alberto Dines escreveu Morte no paraíso, sobre a vida do escritor Stefan Zweig, e Vínculos do fogo: Antônio José da Silva, o judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. Ana Miranda é autora dos romances históricos Boca do Inferno, e A última quimera, cujos personagens centrais são os poetas Gregório de Matos Guerra e Augusto dos Anjos, respectivamente. Fernando Morais publicou Olga, sobre a companheira de Luiz Carlos Prestes, e Chatô: o rei do Brasil, em que ressuscita o proprietário da poderosa rede de comunicação Diários Associados. Jorge Caldeira lançou recentemente Mauá: o empresário do Império, retratando as aventuras e desventuras de Irineu Evangelista de Souza, visconde de Mauá. Roberto Ventura escreve, no momento, sobre a vida de Euclides da Cunha.

A cada um destes convidados enviamos um conjunto de cinco perguntas. Para fazer com que a conversa a distância se aproximasse de um debate ao vivo, os participantes receberam todas as respostas, junto a uma nova rodada de perguntas, de maneira que cada um pudesse comentar o que os outros escreveram.

Os leitores encontrarão diferentes visões sobre os limites entre o documentário e a ficção na narrativa biográfica. "A criatividade ... está apenas em tentar conseguir dar um tratamento literário — não confundir com ficcional — ao texto final", afirma Fernando Morais. Já para Ana Miranda, "alguns romances revelam mais sobre um tema ... do que um estudo dos dados reais disponíveis. ... No fundo, tudo não passa de ficção..."

O jornalista Alberto Dines e a ficcionista Ana Miranda revelam surpreendente afinidade de sentimentos quando falam da escolha do personagem. "... ao levar o meu personagem para o divã da psicanálise ... eu estava vivenciando com grande intensidade o encontro com o Outro, razão primeira e essência da experiência biográfica. ... tentei promover um encontro comigo mesmo", confessa Dines. E Ana sente também uma identificação profunda com seus biografados, "... porque se entregaram de corpo e alma à literatura. ... Queria ser outra pessoa através deles."

Jorge Caldeira e Roberto Ventura valorizam o encontro de novas explicações sobre o contexto e as situações vivenciadas por seus biografados. O primeiro classifica a biografia como "um híbrido ... que exige tanto fontes documentais como interpretação e ficção. Será boa se tiver muito dos três." Para o professor de literatura, "A interpretação é importante, mas deve partir dos documentos e depoimentos".

Dines desperta polêmica com sua crítica à Academia: "A historiografia brasileira perdeu o brilho e acomodou-se porque no ambiente acadêmico a curiosidade intelectual está sendo triturada pelo falacioso saber das citações." Ana Miranda rebate: "tenho lido brilhantes livros de uma nova geração de historiadores brasileiros...".

Em suas intervenções, os debatedores abordaram vários outros aspectos do processo de criação de suas narrativas biográficas: há segredos na reconstrução de uma história de vida? Existe um método? Qual o melhor personagem, aquele esquecido, o desconhecido ou o famoso? Como seduzir autores, editores e público? Como combinar invenção, veracidade e interpretação?

Ao debate.

Ruth B. Martins

Que circunstâncias profissionais ou pessoais determinaram a sua decisão de trabalhar com biografias e, em particular, com os seus biografados?

Alberto Dines

Como todo jornalista de uma certa geração (ou 'escola'), desde cedo relacionei-me com a literatura. Sou de um grupo para o qual beletrismo não é palavrão. Aliás, a literatura chegou antes do jornalismo (pela mão de Romain Rolland), depois veio o cinema e, como solução profissional, apareceu o jornalismo. Já repórter, continuei ligado ao cinema, escrevendo argumentos e adaptações, o que me deu um certo traquejo na armação narrativa. Quando nosso cinema entrou em crise em meados dos 50, comecei a escrever contos (publiquei dois livros), mas era uma atividade clandestina, marginal e, de certa forma, conflitante com o desempenho jornalístico não apenas sob o ponto de vista formal, mas, sobretudo, existencial. Foi uma fase muito dividida e vejo que muitos jornalistas ainda não resolveram, nem conciliaram sua atividade cotidiana com o apelo para algo mais duradouro.

O encontro com a biografia, que aconteceu na maturidade — justamente quando eu começava a enfrentar as divisões —, permitiu o estabelecimento de uma ponte entre literatura e jornalismo, uma sinergia entre o compromisso com os fatos e o ofício literário. Isto ocorreu em 1980 quando, demitido pela Folha [de S. Paulo] e desempregado, comecei o trabalho de pesquisa para o Morte no paraíso (a biografia de Stefan Zweig). Percebi pela primeira vez que a vibração das lides jornalísticas também era possível fora do formato jornal. Aqui estava eu num legítimo exercício literário, em regime full-time, escancaradamente (ao contrário do que acontecia com os contos, elaborados solitariamente nas madrugadas ou fins de semana).

Foi amor à primeira vista, apaixonei-me pelo artesanato biográfico tão logo saí à rua para buscar os primeiros elementos. Repare na expressão que usei — sair à rua. Na ficção, você sai da ma e enfurna-se no seu gabinete. Na biografia, ao contrário, você vai à vida. Antes mesmo de terminar o texto e ouvir a opinião do editor eu já sabia que encontrara o meu caminho. É claro que o biografado ajudou, ele próprio, biógrafo. É claro que o ângulo escolhido — a fragmentação de um artista fugido do nazismo, o seu afogamento no atoleiro da cordialidade, descaso e dos compromissos com o Estado Novo — forneceram as fagulhas para manter o fogo aceso. É claro que ao levar o meu personagem para o divã da psicanálise (como efetivamente aconteceu), eu estava vivenciando com grande intensidade o encontro com o Outro, razão primeira e essência da experiência biográfica.

A biografia foi para mim uma opção intuitiva, mas também maravilhosa revelação. Não fui buscar um gênero original, tentei promover um encontro comigo mesmo. Convém lembrar que naquele tempo o biografismo no Brasil era considerado démodée (as últimas produções biográficas brasileiras de envergadura datam dos anos 50-60).

Ana Miranda

Os meus dois trabalhos que podem ser chamados de biografias, embora não sejam biografias, são os romances Boca do Inferno e A última quimera. Os dois têm, como personagens centrais, Gregório de Matos Guerra no primeiro e Augusto dos Anjos no segundo. Dois poetas. Minha motivação pessoal deve ser, portanto, alguma coisa ligada ao meu amor pela poesia, ao meu ser poético. Além disso, sinto uma identificação profunda com esses dois homens, porque se entregaram de corpo e alma à literatura. O mistério que esses personagens representam me atraiu. Queria fazer deles parte de minha vida, meus antecessores, no sentido de que fala o Borges. Queria conhecê-los como se estivesse conhecendo a mim mesma. Queria ser outra pessoa, através deles. Por outro lado, o lado ideológico, eu gosto de trabalhar com temas que sejam peculiarmente brasileiros.

Fernando Morais

Não sei identificar a origem do meu gosto por biografias, tão precisamente. Até porque não consigo me ver como um biógrafo profissional — não sei dizer, por exemplo, se meu próximo livro será obrigatoriamente uma biografia. O que eu tenho, isto sim, é um particular interesse pela história recente do Brasil. Interesse que vem dos tempos de colégio, quando eu era um péssimo aluno em matemática, química, física e tinha um desempenho muito bom em história do Brasil.

Jorge Caldeira

A soma de dois fatores: admiração pela figura do biografado e uma profunda insatisfação com as explicações correntes sobre muitos fenômenos da vida brasileira que me via obrigado a reproduzir diariamente em meu ambiente de trabalho. A certa altura do campeonato, me pareceu que seria mais produtivo investir num livro que desse uma visão nova do papel do empresário que continuar no caminho em que trafegava.

Roberto Ventura

Os sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que me fascina por seus aspectos históricos e pela construção literária. É um livro muito trabalhado em termos de estilo, com imagens fortes que ficam gravadas na mente do leitor. É deslumbrante o modo como ele narra a guerra de Canudos, alternando os fatos presenciados como correspondente de O Estado de S. Paulo com outros reconstruídos a partir de relatos e documentos. Alterna ainda o assunto da guerra com uma interpretação do Brasil, em que discute a natureza e o homem dos sertões e o abismo entre os habitantes das cidades, voltados para a cultura estrangeira, e a vida no interior do país. Seu livro revela os impasses do escritor ou do intelectual que tenta entender uma outra cultura que lhe é estranha.

As circunstâncias em que o livro foi escrito são também fascinantes. Euclides atuou no movimento republicano. Foi expulso da Escola Militar por suas posições políticas e fez propaganda da causa com artigos de jornal. Foi, dentre os militantes, um dos primeiros críticos da República, que denunciou, em Os sertões, pela violência da repressão a Canudos, cujos habitantes foram massacrados pelas tropas do governo.

Euclides mostrou em Os sertões sua desilusão com os ideais revolucionários da juventude. Fez a autocrítica do patriotismo exaltado das reportagens que tinha escrito sobre a guerra de Canudos, quando tomara os seguidores de Antônio Conselheiro como inimigos do novo regime.

O homem por trás do livro é ainda mais fascinante. Euclides teve uma vida de personagem romanesco, repleto de conflitos e decepções. Sua vida é marcada pelo choque entre os sonhos e as imposições da realidade, entre a vida pública e a privada, entre as aspirações políticas e as paixões pessoais. Viveu à margem e, ao mesmo tempo, próximo do poder e da política. Tais desencontros levaram à sua morte, em 15 de agosto de 1909, em tiroteio com Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Ana, filha do general Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, um dos mais destacados oficiais da República e um dos articuladores do golpe militar da proclamação. Foi o maior escândalo da vida brasileira do início do século.

Euclides é um autor de leitura difícil, pela força e exuberância de seu estilo. Achei que sua biografia poderá ajudar a trazer para o leitor de hoje o contexto e as situações com as quais o escritor sempre dialogou. Sua obra é, afinal, uma tentativa de reflexão sobre as transformações políticas e culturais do Brasil da sua época.

Como é o seu processo de trabalho? Como você gerencia o seu tempo? Como coleta, organiza, usa e referencia as suas matérias-primas, as suas fontes vivas e inanimadas? Como é o processo da escrita para você?

Alberto Dines

Não tenho método, tenho, sim, uma brutal curiosidade, vontade de saber. Esta é a ferramenta fundamental do jornalista, do historiador, do biógrafo. A historiografia brasileira perdeu o brilho e acomodou-se justamente porque no ambiente acadêmico a curiosidade intelectual está sendo triturada pelo falacioso saber das citações e também pelas rotinas, procedimentos e vieses corporativos.

Ana Miranda

Cada livro me obriga a um processo diferente de trabalho, mas estou criando hábitos e maneiras de trabalhar que me dão mais desenvoltura. Eu escolho um tema, crio uma história, delineio os personagens, o conflito, o dénouement, chego às vezes a fazer um roteiro e uma pequena biografia dos personagens, enfim, planejo um livro, sabendo que de certa forma é uma perda de tempo, o plano nunca vai ser seguido, porque na verdade sou dona do livro apenas nas primeiras páginas, depois é só uma questão de encontrar o fio de Ariadne, que me vai levar à saída do labirinto. Mas também não é uma perda de tempo, porque de uma maneira misteriosa esse plano inútil fica sendo um esqueleto invisível do livro. Começo a escrever, e quando ultrapasso as, digamos, sessenta primeiras páginas, o que nem sempre acontece, o livro 'pega' e vai. Nesse momento, sinto como se desmoronasse o primeiro andar de um edifício dentro da minha cabeça, os outros andares tomam os lugares abaixo, o livro que estou escrevendo sai de dentro desse edifício e no primeiro andar fica o novo livro que eu vou escrever, e começo a pensar nele, mesmo sem perceber muito bem, mas me pego pensando nele, fazendo meus planos inúteis. Dessa forma, passo o tempo todo pensando nos livros, até mesmo enquanto durmo, e chego a sonhar com eles ou com a tela do computador. Mas me obrigo a escrever todas as manhãs, religiosamente, pelo menos das nove até a hora do almoço, por volta da uma e trinta. O resto do tempo, distribuo entre minhas leituras, pesquisas, tarefas domésticas, outros trabalhos. Quando vou chegando ao final do livro, fico de tal forma fatigada que, para me livrar dele, passo cada vez mais tempo escrevendo, chego a 15, 16 horas por dia na frente do computador. A coleta do material não é nada científica, porque minhas fontes são tudo o que meus sentidos me informam, desde um raio de luz que incide num botão de madrepérola até a maneira de um sujeito acender seu cigarro na rua. Mesmo assim, tento dar um aspecto mais material às coisas e abro uns arquivos PQ, BIB, CRON, BIO, LNG, que são pesquisa, bibliografia, cronologia, biografias, linguagem. Mas eu acho mais facilmente as coisas dentro da minha cabeça do que dentro do computador. Gosto de ter livros por perto e rabisco muito as páginas, faço anotações às margens e marcas para voltar ao local. Escrever não é tão difícil. O difícil é pensar. Mesmo assim, reescrevo muitas dezenas de vezes uma mesma cena, um mesmo parágrafo, uma frase. E sempre há alguma coisa a ser melhorada. Mas já me acostumei com a imperfeição do gênero romance.

Fernando Morais

O trabalho a que venho me dedicando envolve primeiro um esforço muito grande de pesquisa. Quanto mais minuciosa e detalhista tiver sido a pesquisa, tanto mais fácil será a segunda fase do trabalho, que é a produção do texto final. Em geral a pesquisa se divide entre a tomada de depoimentos e entrevistas e a varredura em arquivos e acervos de memória existentes sobre o personagem (ou sobre as circunstâncias em que ele viveu). Um personagem me seduz quando, além de ter tido uma vida rica, interessante, permite que, por intermédio de sua trajetória, seja possível recontar um pouco da história não oficial, da história que não nos contaram nos bancos de escola. Assis Chateaubriand e Olga Benario, por exemplo, embora tenham um abismo a separar suas opções de vida, tinham esse traço em comum. Tanto um como outro foram protagonistas de passagens importantes — muitas delas inéditas — da vida brasileira.

Jorge Caldeira

No caso de meu livro, o processo foi inteiramente pessoal, já que trabalhei sozinho. Isso obrigou a uma gestão bastante sovina de meu tempo, porque não há coisa mais fácil no mundo do que parar de escrever ou de fazer pesquisa quando o prazo é muito longo. Um trabalho como este exige tempo e concentração, que tive de arrancar de mim mesmo. Primeiro, fazendo a pesquisa: dias e dias nos arquivos, dias e dias lendo muito material para coletar pouca coisa. No meu caso, como se tratava de uma biografia longínqua, nem ao menos tive o prazer de quebrar esta rotina com conversas com gente que conheceu a figura. E finda esta primeira rotina, veio outra: escrever todos os dias durante um ano. Para mim, este tempo era tanto um alívio — afinal o trabalho virava livro — como um prazer. Gosto muito de brincar com textos, mais que de falar.

Roberto Ventura

Tenho dividido meu tempo entre a redação do livro e os cursos e atividades na Universidade de São Paulo, onde trabalho como professor de literatura. Fiz as inúmeras viagens necessárias para as entrevistas e pesquisas fora dos períodos de aulas. Esta divisão de tempo é, às vezes, problemática, pois escrever uma biografia exige um mergulho no personagem e na época.

Escrevi antes estudos de literatura e cultura, centrados na análise de textos, como História e dependência (com Flora Süssekind), sobre Manoel Bomfim, e Estilo tropical, sobre a crítica literária brasileira. Resolvi escrever uma obra narrativa, que partisse de um escritor para discutir a relação entre vida e obra, para pensar como uma age sobre a outra.

A biografia de Euclides da Cunha apresentou certa dificuldade pela inexistência de contemporâneos vivos. Entrevistei descendentes de Euclides e de pessoas de seu tempo, além de estudiosos de assuntos relacionados à biografia. Recorri às fontes escritas, depoimentos inéditos ou publicados, documentos de todo tipo, artigos e notícias de jornal, além da sua própria obra.

As ferramentas necessárias à criação de uma biografia provêm da história, da literatura, do jornalismo? Como se combinam — ou como você combinou — invenção, verossimilhança e veracidade? Quais são os limites da criatividade do autor na reconstrução de uma história de vida? Como conjugar as trajetórias singulares dos personagens com os contextos históricos e regionais, com o tempo e o espaço? A estrutura da narrativa foi informada pela lógica dos fatos, pelo exemplo de outras biografias, por princípios estruturantes de natureza sócio-históricos ou por força tão-somente da intuição e da criatividade?

Alberto Dines

Quem se deixa levar pela curiosidade não deve temer a invenção, a vontade de saber e, antes dela, a admissão da ignorância. São o antídoto para a 'sacada' ou a mistificação. Por outro lado, a fidelidade aos fatos não é inimiga da criatividade, ao contrário, ela tem condições de fomentar a compulsão do conhecimento e, assim, empurrar o investigador para novos caminhos. Importante assinalar que o biógrafo não é um mero colecionador de informações, inéditas ou não, mas um reconstrutor de existências, narrador de vidas, como dizia Virginia Woolf, ela própria biógrafa. Um delírio investigativo sem o contrapeso da sensibilidade, sem o recheio e o espelho da nossa própria vivência, resulta em coleções de episódios pitorescos ou dramáticos que não chegam a constituir uma biografia, stricto sensu.

Ana Miranda

Alguém pode escrever uma biografia a partir de qualquer coisa, por exemplo, de um retrato de família do personagem. Ou de um maço de cartas. Ou de um pequeno período da vida de alguém. Nem sempre a biografia mais rica ou profunda ou veraz é a que conta a história da vida do sujeito. Por isso, alguns romances revelam mais sobre um tema, seja uma pessoa ou uma época, ou uma sociedade, do que um estudo dos dados reais disponíveis. No fundo, tudo não passa de ficção, seja um livro do Ellmann sobre o Joyce, do Gay sobre o Freud, do Fernando Morais sobre a Olga, da Yourcenar sobre o Adriano, ou do Graves sobre a Messalina ou do Burgess sobre Napoleão. Ora, o Ulisses revela muito mais sobre o Joyce do que as mil e tantas páginas do Ellmann. No fundo, tudo são apenas convenções. Quando o sujeito determina a si mesmo que vai fazer uma biografia dentro das técnicas tradicionais, para levantar a verdade sobre uma pessoa, ele está apenas escondendo seu lado subjetivo, mítico, ontológico. O problema é que trabalhar com palavras é uma arte, e não uma ciência exata. Seja qual for o tema, as palavras nunca são exatas. E nunca aprisionam nenhuma verdade.

Fernando Morais

Se houvesse uma receita de como fazer uma biografia de sucesso, eu estaria rico. Acho que cada personagem exige um tratamento diferente. A experiência jornalística legou-me um saudável cacoete profissional, que é a obsessão com a precisão. Isto costuma tornar o trabalho de pesquisa mais difícil: o autor tem que lidar com a mitomania e com as idiossincrasias de cada depoente em relação ao personagem. Acredito que uma biografia começa a ficar boa quando o autor consegue tirar o defunto da cova e fazê-lo voltar a andar tal como ele realmente era, e não como gostariam seus áulicos ou seus inimigos. Metade das duzentas pessoas que ouvi sobre Chateaubriand, por exemplo, acreditava que ele era santo. A outra metade falava de um monstro. Talvez ele tivesse sido um pouco das duas coisas, mas é preciso tomar o cuidado de não se deixar levar pelas paixões. Que podem ser das testemunhas ou, até, do próprio autor. A criatividade, para mim, pelo menos, está apenas em tentar conseguir dar um tratamento literário — não confundir com ficcional — ao texto final. Quanto à estrutura, também varia de personagem para personagem (e, claro, de autor para autor). Eu, pessoalmente, não me sinto muito atraído pela estrutura cronológica rígida, do tipo nasceu assim, viveu assim, morreu assado. O recurso do flashback, por exemplo, pode dar mais vida ao texto.

Jorge Caldeira

O grande atrativo das biografias para os leitores é que elas satisfazem um certo voyeurismo — penetrar na intimidade de uma pessoa — e, ao mesmo tempo, dão algum prazer ao seu texto. Ali não há espaço para grandes teorias. Isto se combina com as ferramentas necessárias para o trabalho: pesquisa árdua para penetrar nesta intimidade e uma certa liberdade para tratar o material. Uma biografia traz, em sua estrutura, uma relação pessoal entre autor e biografado. É sempre um retrato, como os velhos retratos renascentistas. Forma-se de informações objetivas e angulações pessoais, obriga a combinar o material histórico com dados de natureza pessoal. Procurei o máximo de cada um sem qualquer preocupação de hierarquizar os pesos. O resultado, se fosse bem-sucedido, seria uma visão ao mesmo tempo pessoal e objetiva do personagem e sua época. Algo impossível na teoria, mas possível se pensarmos no retrato.

Roberto Ventura

Em princípio, tudo sobre o biografado deve interessar ao biógrafo. É preciso pesquisar tudo, ou quase tudo, seguir todas as pistas. Em um primeiro momento é difícil estabelecer o limite entre o que entra e o que fica de fora da biografia. Mas este limite acaba por ser traçado quando o livro toma forma, quando seus contornos se tornam nítidos. É este limite que permite ao biógrafo apresentar sua visão pessoal da vida do biografado.

Toda biografia é um relato verossímil construído a partir dos mais diversos tipos de fontes. Este relato será sempre uma versão dos fatos, criada a partir de depoimentos e documentos. Muitos indícios, como uma carta ou uma entrevista, são interpretados sem que se possa ter certeza sobre o grau de verdade da interpretação proposta.

O biógrafo precisa ter a coragem e a ousadia de dar a sua versão dos fatos, de trazer idéias sobre as motivações de seu personagem. É isto que cria o interesse pelo relato biográfico, que deve ir além da mera exposição de fatos e dados. Isto aproxima a biografia do romance e da ficção, com a diferença de que, no relato biográfico, a narração deve partir de evidências documentais.

Quais são as obras e os autores que considera como exemplares no gênero? E quais foram as obras e os autores que exerceram influência sobre o seu trabalho?

Alberto Dines

Li e estudei mais biografias depois de escrever Morte no paraíso do que antes da empreitada. Meu mestre, no caso, foi o próprio Zweig, cuja obra li toda, especialmente a biográfica. Se a investigação não foi o seu forte, suas percepções psicológicas foram extraordinárias. Não esqueçamos que foi amigo de Freud (e seu analisando). Ao escolher figuras dúbias para nelas encontrar o drama das escolhas, Zweig escapou dos panegíricos e dos pelourinhos. Biografia laudatória ou difamatória — típicas da fase pré-moderna do gênero no Brasil — não é biografia.

Ana Miranda

Nunca fui uma leitora assídua de biografias, elas quase sempre têm um fundo panegírico ou, ao contrário, hostil. Gosto de 1er biografias porque me fazem recordar coisas de minha vida, não para saber sobre a vida de alguém, são uma espécie de roteiro de lembranças pessoais. Considero uma obra exemplar os ensaios autobiográficos do John Updike, o Consciousness, por exemplo. Li com muito prazer as biografias recentemente publicadas no Brasil, sobre o Chato, o Vinícius, o Mauá, a Clarice. Todas as biografias sobre o Gregório de Matos e o Augusto dos Anjos, que tive a felicidade de encontrar, influenciaram meus romances sobre esses poetas.

Fernando Morais

Quando algum colegial que quer ser jornalista me pede indicação de uma boa escola de comunicação, recomendo a leitura de Machado de Assis. Quem leu (e releu) Machado de Assis, Dostoievski Thomas Mann, Hemingway e Gabriel García Márquez, para ficar em apenas cinco nomes, já tem meio caminho andado para aprender a escrever. Uma vez um jovem perguntou a Hemingway o que devia fazer para aprender a escrever. O escritor recomendou que ele amarrasse uma corda no pescoço, com a outra ponta presa a um galho de árvore. Em seguida, devia subir num banquinho e, um segundo antes de saltar, cortar a corda com uma faca. Aí tinha que sentar e descrever a emoção que sentiu. Se percebesse que o relato estava muito pobre, tinha que repetir a operação. Dessa vez não precisava levar faca nenhuma.

Jorge Caldeira

Em meu trabalho, a influência veio muito mais do material de pesquisa, que pede para se organizar, do que de qualquer obra específica — embora eu goste bastante de biografias. O que realmente me influenciou no trabalho foram as descobertas da pesquisa. Quanto aos autores que exercem influência no meu trabalho, são tantos que já perdi a capacidade de fazer listas. Leio um pouco de tudo, trabalhei em jornal (onde a gente escreve sobre o que precisa, não sobre o que quer), e sofro a contribuição milionária de todos os erros, como diria o nosso Oswald de Andrade.

Roberto Ventura

Estou escrevendo tendo em mente alguns livros bem realizados, como as biografias de Oscar Wilde e James Joyce por Richard Ellmann. Baseei-me também na crônica de Simon Schama sobre a Revolução Francesa, Cidadãos.

A biografia de Euclides exige uma narração de época, capaz de recriar, sob a ótica do biografado, muitos períodos da história brasileira de que o escritor participou. Reconto, do ponto de vista de Euclides, a proclamação da República, a corrupção financeira e a repressão política dos primeiros governos republicanos, a Revolta da Armada, a guerra de Canudos e os conflitos de fronteira entre o Brasil e o Peru.

Estou partindo também da enorme literatura já existente sobre Euclides e Canudos. A melhor biografia de Euclides é o livro de Silvio Rabelo, Euclides da Cunha. Utilizo muito o excelente estudo de Olímpio de Souza Andrade, História e interpretação de 'Os sertões', que aborda um período de sua vida e de sua obra. E também alguns estudos de Walnice Galvão, os inúmeros trabalhos de José Calasans sobre Canudos e Antônio Conselheiro, os documentos sobre a expedição de Euclides à Amazônia reunidos por Leandro Tocantins, os materiais levantados por Gama Rodrigues sobre sua atuação como engenheiro estadual. Baseei-me também em versões apresentadas por familiares e descendentes de Euclides, Ana e Dilermando, como Joel Bicalho Tostes, Dirce de Assis Cavalcanti e Judith Ribeiro de Assis. Recorri ainda às cartas publicadas por Francisco Venâncio Filho, que serviram como ponto de partida para levantar a correspondência ainda inédita de Euclides e de seus amigos e familiares, que tem sido uma das principais fontes para a biografia.

A biografia é um gênero em ascensão? Qual é o espaço que ocupa na historiografia brasileira e internacional contemporânea? As razões que determinam a aceitação desse gênero têm sua origem na dinâmica desta disciplina?

Alberto Dines

Também aqui é preciso separar o joio do trigo. A atual 'onda' biográfica mundial tem muito de sensacionalismo. Mesmo no Brasil, o sucesso do gênero decorre de uma opção mercadológica centrada preferencialmente em figuras célebres, recém-falecidas. Trata-se de uma exumação interesseira sem a conotação do biografismo legítimo, que busca principalmente a reconstituição do passado esquecido e a evocação daqueles que sumiram no tempo.

Ana Miranda

Esse foi sempre um gênero muito difundido, desde Plutarco, quando a biografia era a mesma coisa que história. Mas ela só floresceu quando se libertou do moralismo, porque foi usada muito tempo pelos áulicos dos imperadores, ou como propaganda política, ou religiosa, ou pelos que falsificavam a vida de alguém para torná-lo um exemplo de santidade ou heroísmo a ser seguido. Mas se a biografia se libertou disso, no fundo ela continua a ter a mesma função exemplar, só que os exemplos são de anti-herói. Os biógrafos não deformam mais a vida dos seus personagens no sentido de torná-las virtuosas, muitas vezes é exatamente o contrário, o que torna esses personagens mais humanos e verossimilhantes. A biografia, hoje, é mais literatura do que história. Não é por acaso que os biógrafos adoram fazer biografias de escritores. A biografia tem muita aceitação porque muitas pessoas gostam de saber das intimidades alheias. Mas é um gênero respeitável e maravilhoso. A gente saberia muito menos sobre os gregos e romanos antigos, se não existissem as biografias escritas pelo Plutarco.

Fernando Morais

Isto também depende do autor e do personagem que ele escolheu. Há biografias que procuram tratar apenas de bisbilhotices, e fazem a delícia dos voyeurs. Não sou um teórico do tema, mas me parece que o sucesso que as biografias vêm fazendo no Brasil se deve muito ao fato de serem bem escritas, com um texto acessível a qualquer pessoa e, depois, a um visível desejo dos leitores (especialmente os mais jovens) de conhecer um pouco da história recente do Brasil. O anjo pornográfico, de Ruy Castro, e Mauá, de Jorge Caldeira, por exemplo, são notáveis trabalhos jornalísticos. Mas são, igualmente, robustas contribuições para um melhor entendimento do Brasil hoje.

Jorge Caldeira

O verdadeiro segredo da ascensão das biografias no Brasil tem nome: Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que conseguiu uma linha de financiamento específica para as pesquisas de biografias. Com isso, passamos do amadorismo desprendido (com tudo que tem de importante e com todos os problemas que a desconsideração ao leitor implícita numa obra feita assim traz) para um quase profissionalismo. O que os sucessos de biografias mostram, basicamente, é que um livro onde se investiu na produção vende mais que outro feito em condições precárias. Mas esta fórmula serve para qualquer tipo de livro, da pesquisa poética ao trabalho de ponta em ciência. Assim, o que eu espero é que o exemplo iniciado com as biografias se expanda para toda a produção de livros no país, onde impera o mais grave primitivismo: escritores ressentidos com a falta de apoio, editados por donos de empresas que reclamam da falta de vontade de fazer produtos para o mercado (e na maioria das vezes não acreditam que isto tenha qualquer relação com pagamento de direitos autorais), escrevendo para pouca gente (já que neste quadro pobre é melhor satisfazer seus poucos pares que um público amplo), que acabam lidos por críticos comprometidos com as 'pequenas igrejas' (sejam de escolas de críticas, ideologia ou simples afinidade pessoal). Por outro lado, a maior parte dos brasileiros têm tanto medo de entrar numa livraria quanto numa cara joalheria, pois ficam com a impressão — real — de que aquele mundo não é mesmo para eles.

Roberto Ventura

A biografia, assim como a narração histórica, é um velho gênero novo. O ressurgimento da biografia e da narrativa é indicativo da crise de modelos teóricos, como o marxismo e o estruturalismo, e da busca de formas de escrever capazes de trazer para o leitor o prazer do texto, que Roland Barthes defendeu em um de seus livros.

A ascensão da biografia e a recente orientação dos estudos históricos para a narrativa retomam vertentes da historiografia iluminista e romântica, acrescidas de tratamento jornalístico em alguns livros, ou de preocupações metodológicas ditadas pela história das mentalidades e pela história cultural em outros trabalhos. Mas basta pensarmos nos grandes painéis históricos de Jules Michelet sobre a Revolução Francesa, ou de Edward Gibbon sobre o Império Romano, para verificarmos que se trata da retomada de uma arte de narrar praticada por mestres do passado.

Em uma biografia não há espaço para grandes teorias, escreve Jorge Caldeira. Perguntamos, então: haverá relação entre o crescente interesse por biografias e o esgotamento das explicações abrangentes e deterministas dos processos sociais? A proeminência dos jornalistas neste gênero não reflete, de algum modo, a "crise de paradigmas" vivenciada por historiadores e outros componentes do meio acadêmico, como parece indicar Roberto Ventura? Ou consideram vocês que grandes teorias — ou teorias, simplesmente — continuam a ser importantes para a reconstrução de existências singulares, de histórias de vida?

Alberto Dines

Volto a Virginia Woolf, figura lapidar do biografismo inglês com os seus inspirados ensaios sobre o gênero. Para ela, biografar significava writing lives, escrever vidas. Leon Edel, biógrafo e estudioso americano, de uma geração mais nova, também aderiu ao conceito, utilizando-o como título do seu livro. Com isto quero dizer que a biografia dispensa as 'grandes teorias' que explicam a trajetória de alguém. O desenrolar de uma existência (a expressão é de Litton Stratchey, do mesmo grupo de Bloomsbury), dispensa a teorização, sobretudo quando aparece de estalo, desligada da narrativa. Mesmo no caso do biografismo literário, os intermezzos conceituais interrompem e embaraçam o fluxo da história. O problema, na realidade, reside numa situação absurda, na qual historiadores exibem e até se vangloriam da sua gritante incapacidade literária, esquecidos de Michelet, Gibbons (apontados por Caldeira) e outros mais modernos, como Cario Guinzburg ou Fernand Braudel. O verdadeiro artesão literário sabe harmonizar fatos e comentários, seja quando trabalha no campo da ficção como no da realidade.

É preciso escapar da dicotomia que coloca, de um lado, o documento chato e, de outro, a ficção bem escrita. No prólogo dos Vínculos do fogo proponho a Estética do Fato: "Entre a ilusória ficção histórica e os cartapácios inanimados da historiografia existe uma terceira via: esmerilhar o acontecido até que se desprenda dele a emoção congelada pelo tempo. Notícia assim expandida, mesmo remota, tem viço próprio imune aos vícios da fantasia. Esta é a Estética do Fato... "

Pesco num jornalão paulista um exemplo paradigmático do bloqueio que os historiógrafos desenvolveram contra a arte literária. Referindo-se à preocupação literária de Euclides da Cunha, seu novo crítico diz, textualmente: "Há uma carga poética tão pesada na obra (Os sertões) que ela perde o valor documental..."

Este preconceito xiita dos 'cientistas' contra os 'artistas' é o responsável pelo isolamento em que se encontra a intelectualidade brasileira, circunscrita no seu Olimpo acadêmico, aprisionada in vitro.

Ana Miranda

Sempre houve um interesse maior pela vida de celebridades do que por explicações abrangentes de processos sociais que, todavia, não se esgotaram, pelo contrário. O meio acadêmico continua a produzir suas biografias, veja o caso da biografia da Clarice Lispector escrita por uma professora da USP, a Nádia Gotlib. É um livro bastante teórico, não tem quase nada de factual, é bem parecido com a Clarice, uma coisa abstrata. Há diversas biografias assim. Não sei se existe realmente uma proeminência de jornalistas escrevendo biografias. Muita gente está escrevendo biografias, mas as biografias escritas pelos jornalistas são mais conhecidas, porque os jornalistas usam uma linguagem acessível e sabem escrever bem, em geral. Mas mesmo as biografias escritas por jornalistas, muitas vezes escritores obrigados a trabalhar em jornais, contêm alguma teoria, alguma reflexão, algum conhecimento especulativo, explicações de fatos, idéias sistematizadas.

Jorge Caldeira

Nessa pergunta, a meu ver, há duas confusões. A primeira é entre o conhecimento teórico e as necessidades inerentes ao gênero. O conhecimento teórico é aconselhável para qualquer pessoa que não confie em sua ingenuidade. Eu mesmo o prezo muito, e sempre mantive um pé na Academia (no momento, completo meu doutorado em ciência política). Só que este instrumental, sozinho, não serve para construir uma biografia. De certa forma, ele dá uma base, na medida em que uma boa biografia deve ser adequada às teorias gerais sobre o período de que trata. Mas vestido só com ele, quem se dispuser a fazer uma biografia estará tão nu como Adão no Paraíso. A segunda confusão é pensar que 'jornalistas' sobressaem porque os 'historiadores' vivem uma crise de paradigmas. Além de um preconceito implícito (o 'abastardamento' do conhecimento trazido à luz por gente menos formada), a pergunta pressupõe que um tipo de trabalho ocupa o lugar do outro, quando me parecem simplesmente campos diversos.

Roberto Ventura

O interesse por biografias revela a crise das grandes teorias de que Jorge Caldeira falou. Mas acho que todo biógrafo parte de uma 'teoria' pessoal sobre seu personagem, de algumas idéias básicas que orientam a pesquisa. Algumas intuições, quando confirmadas, permitem demolir mitos criados pelo biografado ou por seus admiradores e detratores.

O material de pesquisa "pede" para ser organizado, escreve ainda Caldeira. Quanto mais minuciosa é a pesquisa, mais fácil é a redação do texto final, comenta Fernando Morais, obcecado com a precisão. Ninguém mais é ingênuo aponto de achar que os fatos falam por si. Mas eles impõem um lastro de objetividade aos textos criados pelos jornalistas. Não obstante estes valorizem suas subjetividades criadoras, atribuem a suas obras um valor documentário, documentam uma verdade histórica. Roberto Ventura recorre a fontes documentais, mas dá um peso forte à 'interpretação '. Já para Ana Miranda, no fundo tudo não passa de ficção. Os romances revelam mais sobre uma pessoa ou uma época do que qualquer estudo fundado em dados reais. O que acham disso?

Alberto Dines

Quanto mais elementos o biógrafo colige mais difícil fica o trabalho de selecionar o relevante. Por outro lado, se a busca foi insuficiente, emperra-se o desenrolar daquela existência. É preciso tomar cuidado para não enfiar no texto — por zelo ou ostentação — tudo o que se investigou. Corre-se o risco de ficar maçante. Assumi este risco conscientemente em Vínculos do fogo porque (como expliquei) nenhuma história relativa à Inquisição pode se circunscrever ao singular, todas necessariamente plurais, conectadas às dos denunciantes e denunciados pelo réu. Daí o título, compromisso com os fatos e contrato com o leitor.

A obsessão com a precisão não implica tamanho. Provas e comprovações de uma informação não precisam estar na narrativa, podem correr nos rodapés ou apêndices. Aliás, por que nossos autores e editores têm tanto horror aos rodapés ? Eles existem desde que o livro é livro, fazem parte orgânica deste objeto, cumprem a função de suporte e contraponto, são o basso continuo da música barroca, recurso tão indispensável quanto o comentário musical num filme.

Os fatos não falam por si, porque fatos não têm voz. A voz é do narrador. E o narrador deve ter prazer em narrar, seduzir. Se encontra a entonação apropriada e se sabe juntar eventos às reflexões, situações e percepções, satisfaz a curiosidade do leitor e a sua de explicar o acontecido. Aliás, é disso que devíamos tratar. O narrador que não é dotado de uma tremenda curiosidade será incapaz de preencher o puzzle de uma vida; seu relato será uma coleção de situações pitorescas ou dramáticas, mas nunca uma vida estendida no papel.

Ana Miranda

Concordo plenamente com o Roberto Ventura, que dá um peso forte à interpretação. Conheço pessoas que foram objeto de estudos biográficos altamente 'objetivos' que não correspondem em absolutamente nada com minha visão dessas pessoas, ou com a visão delas sobre si mesmas. Jornalistas, os mais objetivos de todos os escritores, escreveram perfis a meu respeito, por exemplo. Eram todos de uma subjetividade surpreendente.

Jorge Caldeira

Creio que a Ana Miranda criou uma imagem bem melhor que a minha no que se refere ao processo do texto se tecer, derrubando os melhores rascunhos. No meu caso, este tecer se deu em torno do material de pesquisa a ser organizado, que conduzia a história. Só que esta organização do material de pesquisa tem pouco a ver com a palavra com que está traduzida na pergunta, que é 'objetividade' (e, mais complicado, ligada a 'textos criados por jornalistas'). A organização do material de pesquisa para uma biografia obriga que se penetre tanto na 'objetividade' da época como na 'subjetividade' do personagem. Daí resulta um cruzamento entre materiais, que se constitui na essência do gênero. A biografia é um híbrido entre uma obra de 'valor documentário' e uma peça de ficção, que exige tanto 'fontes documentais' como 'interpretação' e 'ficção'. Será boa se tiver muito dos três.

Roberto Ventura

A interpretação é importante, mas deve partir, nas biografias, dos documentos e depoimentos. É claro que o ponto de vista do romancista é aqui bastante diverso. Para escrever uma biografia, é preciso confrontar depoimentos contraditórios e rever o que se conhece sobre o biografado à luz das fontes levantadas. É aí que o biógrafo pode descobrir fatos novos ou pistas até então desconhecidas.

Cartas de familiares de Euclides me abriram fatos até então pouco explorados nas biografias já existentes. Estas cartas se referiam e negavam a participação do sogro de Euclides, o general Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, na conspiração de 10 de abril de 1892, que tentou derrubar o marechal Floriano Peixoto. Precisei entender o porquê das acusações de corrupção contra Sampaio Ribeiro, um dos heróis da proclamação, e de sua prisão por mais de um ano, durante a Revolta da Armada, de 1893 a 1894. Tais fatos tiveram repercussão na vida afetiva e profissional de Euclides, que entrou em conflito com a mulher e os sogros, com o Exército e com o próprio marechal Floriano. Tudo isso contribuiu para o seu abandono da carreira militar, o que lhe trouxe dificuldades profissionais e problemas pessoais até a morte.

Em que medida a fabricação de biografias implica — ao menos para os fabricantes — uma revalorização daquela literatura historiográfica mais factual, mais descritiva, que durante muito tempo foi tratada com desdém pelos cientistas sociais?

Produzir e 1er biografias não implica um estímulo a que se busquem os originais, a que se leiam os clássicos, hábito ainda incomum entre estudantes e até profissionais das ciências sociais, que costumam tomar conhecimento destes materiais por intermédio de citações ou comentários de segunda mão?

É este o saber falacioso das citações a que se refere Dines, quando declara que a historiografia brasileira perdeu o brilho? Estão todos de acordo com este juízo?

Alberto Dines

A moderna organização do conhecimento coloca o historiador (ou biógrafo) no campo das ciências humanas. Mas ele não precisa ostentar seu diploma em cada parágrafo como acontece com tanta freqüência. O corporativismo acadêmico com a sua linguagem e empostação está eliminando do nosso panorama intelectual os grandes artífices. Conheço muito doutor em história incapaz de recontar urna fábula de Esopo com suas próprias palavras. O modismo racionalista francês está atravancando nossa produção histórica e mesmo literária, impedindo que talento, engenho e empenho tenham a devida relevância. O resultado é desastroso cultural e politicamente porque a história passa a ser autarquia de historiadores enquanto o povo historiado fica à margem, obrigado a se contentar com as migalhas das 'releituras' satíricas e simplistas. Não esqueçamos do grande Marc Bloch, para quem história era sinônimo de liberdade.

Os jornalistas têm senso de oportunidade, caso contrário não seriam jornalistas. Mas nas sociedades com alguma densidade cultural a imprensa não pode ser hegemônica, é espelho, agente polinizador apenas. Respondam: quantas revistas de história publicam-se nas universidades brasileiras? Mas há dezenas de historiadores agarrando-se aos bicos em jornais ou revistas para 'aparecer' como autores de magras resenhas, na esperança de se tornarem tão célebres e celebrados como os jornalistas. Este protagonismo da imprensa torna os jornalistas exibidos e exibicionistas, frívolos e banais, deixando um vácuo irreparável no campo da crítica das idéias, costumes e mentalidades.

Ana Miranda

Deve haver muita falácia por aí, não sei se a arte de escrever história perdeu o fulgor. Tenho lido brilhantes livros de uma nova geração de historiadores brasileiros. Para citar alguns na área com a qual estou trabalhando neste momento, há a Laura de Mello e Sousa, a Gilda de Mello e Sousa, a Anita Novinski, o Vainfas, a Manuela Carneiro da Cunha, entre outros. A história está mais rica, mais interessante, mais profunda, mais abrangente, e alguns historiadores, como os que citei, escrevem tão bem quanto alguns dos melhores narradores da literatura.

Jorge Caldeira

Como "fabricante" de biografias e cientista social, me sinto duplamente incomodado para pensar na disjuntiva entre o "descritivo" das biografias e o "conhecimento por comentários de segunda mão" atribuído aos cientistas sociais.

Roberto Ventura

As biografias recontam a história sob a ótica do indivíduo e trazem os fatos de forma mais bruta do que nas obras históricas, que propõem modelos interpretativos mais amplos. Mas os historiadores também têm se voltado para a narrativa. Livros de Cario Guinzburg, Robert Darnton, Laura de Mello e Sousa ou Nicolau Sevcenko também contam histórias a partir de personagens sociais ou culturais.

Jornalistas e, em menor medida, ficcionistas, fazendo todos papel de historiadores, conseguem alcançar uma platéia que poucos profissionais da área atingem. A que se deve a magreza de público para os textos escritos por gente do meio acadêmico? À temática? À inabilidade de armar uma boa narrativa, de manusear adequadamente o 'artesanato biográfico'?

Como é este artesanato? Quais são os segredos de uma boa narrativa? Dá para explicar os macetes do 'tratamento literário' do texto final?

Alberto Dines

O tratamento literário ou sai na hora ou não sai jamais. Talento não se ensina, no máximo pode ser desenvolvido em workshops ou oficinas. Desde que existam mestres verdadeiros, vocacionados para fazer do ensino uma obra de arte. Nas universidades temos hoje apenas professores-doutores preocupados com o número de papers que vão produzir no semestre — muitas vezes pesquisados por seus alunos.

Macete é aquele maço pesado que carpinteiros e entalhadores usam para bater no formão. Em outras palavras, o único macete literário que conheço é o trabalho duro, aplicado, silencioso e solitário. No campo da biografia, vale lembrar que ela é prima da autobiografia. Se o biógrafo não afina e não sintoniza com o biografado, se não ocorre aquela inefável tangência entre criador e criatura — a catarse —, então ele não conseguirá apaixonar-se nem desprezar seu personagem (dá no mesmo). O produto final sairá frio, mera colagem de recortes.

Ana Miranda

Os jornalistas estão acostumados a escrever para o grande público, têm até manuais para isso. Os ficcionistas escrevem para si mesmos, e acabam tendo algum público que se identifica com eles. Os acadêmicos escrevem numa linguagem específica para pessoas de seu mundo. Parece claro como água, mas não é tão simples assim. Há muitas exceções. E no campo da ficção, não há regra que se possa aplicar. Há alguns macetes, que eu chamaria de técnica literária, como as conectivas de narração; a arquitetura do texto; a dramaticidade; a construção de cenas; o suspense; a alternância de formas narrativas — descrição, diálogo, reflexão —; a narração sempre no mesmo tempo verbal, seja qual for, de preferência na terceira pessoa; as pausas; o ritmo; as palavras certas; enfim, um milhão de coisinhas. Mas nada disso garante um bom texto. E nem um bom texto é garantia de se "alcançar uma platéia que poucos profissionais atingem".

Jorge Caldeira

A diferença de públicos, a meu ver, se deve às especificidades de cada trabalho. Um bom trabalho acadêmico é feito para convencer pessoas treinadas numa área específica de conhecimento a respeito da solidez de uma nova idéia que está sendo apresentada. Para isso, é necessário deixar à mostra todos os alicerces do raciocínio. O texto produzido com este objetivo é sempre de difícil digestão para os amadores no assunto, mesmo quando bem-intencionados. No Brasil, nos últimos anos, como bem lembrou o Dines, estas dificuldades de leitura foram elevadas a um grau de paroxismo. Contribui muito para isto o fato de que as carreiras acadêmicas foram sendo progressivamente burocratizadas. Assim, a grande maioria dos textos acadêmicos, além das exigências de praxe, vem ganhando camadas extras de verniz erudito, pois se destinam cada vez mais a garantir progressos em etapas predeterminadas de formação profissional. A exigência de escrever para uma banca, para obter um financiamento — enfim, para ser melhor entendido por um leitor que tem também o poder de acelerar ou brecar uma carreira — gera medo e cuidados. O resultado é que se aprende a escrever para públicos cada vez mais específicos. Ao fim de 15 ou vinte anos deste processo — que é em média quanto dura a passagem do início da graduação até o momento no qual os sobreviventes se sentem mais livres para tentar algo pessoal — acaba-se gerando um medo de lidar com o grande público, e muitas vezes uma reação defensiva de desprezo aos 'de fora'.

No meu caso, a diferença de exigências entre públicos acabou se transformando em drama, embora no início não visse qualquer problema para superá-la. Mauá: empresário do Império foi concebido, ao mesmo tempo, como biografia e tese de doutorado. O projeto do livro foi considerado bom para um trabalho. Mas havia um problema: com tudo pronto, eu teria de esperar até que vencesse um certo prazo mínimo para defesa definido no regulamento da USP. Achei isto tão acintoso que desisti de apresentar o trabalho assim que soube da genial restrição. E me poupei de produzir a diferença entre a tese de doutorado e a biografia feita por um jornalista: eliminei as notas de rodapé (que desde sempre só existiam na versão acadêmica, com a função de justificar as afirmações com base na bibliografia e na documentação primária). Tive a sorte de poder fazer isto com toda a tranqüilidade, pois nunca fui condicionado a escrever pensando apenas no juízo acadêmico.

Conto tudo isto para levantar uma hipótese: a produção acadêmica hoje me parece cada vez mais regida pelas regras internas de uma carreira altamente formalizada (quem quiser que encontre uma explicação para um prazo mínimo para apresentar uma tese), o que cria tanto um distanciamento do 'público externo' como uma sensação de vazio em quem se vê obrigado a sacrificar a liberdade de trabalhar um texto porque só conta com o 'público interno' como leitor. Meu medo é que se produza uma estratégia de trabalho cada vez mais defensiva na Academia, transformando o que um dia foi uma idéia de autonomia num gueto de produtores de relatórios burocratizados, destinados a produzir somente manifestações de apreço aos senhores diretores.

Roberto Ventura

Acho complicado nivelar coisas tão distintas, como romances, biografias e obras históricas. É problemático comparar os números de venda de livros escritos para públicos diferentes. As obras acadêmicas têm um público específico, formado por profissionais ou especialistas. E livros de história, como História da vida privada e História das mulheres, têm atingido um público amplo, muito além dos muros da Academia.

Sucessos editoriais tampouco são sinônimo de qualidade. Livros de auto-ajuda, obras pseudo-esotéricas, histórias de aeroportos e hospitais vendem mais do que muitas biografias e nem por isso são melhores.

Personagem bom, para Fernando Morais, é o que viveu uma vida interessante e que propicia bons vislumbres e boas conexões com a história não oficial. Para Dines, mais 'legítimos' são aqueles personagens que sumiram na poeira do tempo. Um jornalista ou escritor com escassa bagagem historiográfica ou destituído de erudição não fica ao sabor de figuras já celebrizadas, de personagens que já possuem 'valor de troca' no mercado editorial? Personagens obscuros, pretéritos, cuja relevância decorre mais de seus fracassos do que de seus êxitos seduzem escritores, editores e público?

Alberto Dines

Já disse na primeira rodada: grande parte da nova onda biográfica brasileira aproveita a fama de defuntos recentes e famosos. São relatos quase testemunhais com os inevitáveis vieses dos depoentes, acrescidos das lantejoulas da mitologia e do marketing. O que não lhes tira o enorme mérito de estarem pavimentando o caminho para o reencontro do país com seu passado.

Ana Miranda

Todos os personagens são bons. Bêbados, prostitutas, sapateiros, generais, engraxates, astrônomos, barbeiros, vadios, detetives, boxeurs, poetas, vendedores de apólices de seguro de vida, escritores, rabinos, desertores, ladrões, navegadores, extraterrestres, vacas, gatos, morcegos, canalhas, reis, rainhas, padres, medidores de relógio de luz, bancários, astronautas, anatomistas, eunucos, sultões, fabricantes de violinos, bailarinas, relojoeiros, mártires, sodomitas, freiras enclausuradas etc. etc. etc. A vida de qualquer pessoa dá uma biografia.

Jorge Caldeira

Que Valor de troca' possuíam a quase desconhecida Olga Benario, Stefan Zweig ou o pouco lembrado Augusto dos Anjos? Eram todos personagens obscuros, cuja relevância decorria mais de seus fracassos que de seus êxitos. No entanto, seduziram escritores, editores e público. São livros tão sedutores como Parceiros do rio Bonito, de Antonio Candido, que um dia foi tese, e boa tese.

Roberto Ventura

São mais interessantes os personagens que têm uma rica trajetória individual, capazes de revelar muito de sua época. E, ao mesmo tempo, devem ser bastante singulares, para permitirem o foco sobre suas ações. É o caso de Nelson Rodrigues, Chateaubriand e também de Euclides da Cunha. São, sem dúvida, nomes conhecidos do grande público. Mas personagens anônimos podem trazer surpresas. A historiadora Natalie Zemon Davis mostrou isso, ao contar a história de Martin XVI. Guinzburg partiu das idéias de um obscuro herege para discutir a Inquisição italiana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1995
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