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Epidemiologia e emancipação

LIVROS, ARTIGOS & REDES

Epidemiologia e emancipação

Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves

Doutor em medicina preventiva da 'Universidade de São Paulo

José Ricardo de C. M. Ayres

Rio de Janeiro, Hucitec/Abrasco, 1995. 231 p.

O trabalho de José Ricardo Ayres, Epidemiologia e emancipação, faz parte de um amplo movimento histórico com potencialidades emancipatórias, movimento este que é mais do que suficientemente bem caracterizado pelo próprio autor, da aurora da modernidade até os tempos contemporâneos. Será enquanto parte de um pequeno movimento histórico, aspecto particular daquele outro mais amplo, e que se constitui no contexto mais imediato da gênese do texto, que procurarei abordá-lo. Farei isso examinando como o trabalho de José Ricardo Ayres se situa, prosseguindo-a e superando-a, na pequena tradição de 'escola' da qual ambos fazemos parte.

Uma 'escola' de pensamento, investigação e prática educacional não se sustenta, como tantas 'igrejas' acadêmicas, na devoção a um referencial téorico-metodológico, nem na obsessão por um qualquer desenho de pesquisa, nem na restrição a um particular objeto de interesse, nem tampouco ao que é evidente em qualquer delas: um certo jargão e uma certa forma tendencial de encadeamento lógico entre as proposições isoladas de um discurso e sua estrutura mais geral. Será sempre um certo número, menor ou maior, de construções conceituais, organizadas ao redor e por dentro de certos valores históricos que dará, ao conjunto dos trabalhos que interagem a partir da adesão operativa àqueles valores e conceitos, o caráter de 'escola', aquela quase inefável marca registrada que permite ao observador treinado a identificação da origem e do pertencimento de um trabalho isolado qualquer que lhe caia em mãos. Menos do que um paradigma, portanto: mais do que uma vocação institucional, por outro lado.

Creio não andar longe da objetividade ao afirmar que, a partir dos trabalhos de Maria Cecília Ferro Donnangelo, se constituíram várias 'escolas' na saúde coletiva brasileira, que se foram diferenciando, amadurecendo, desdobrando e, eventualmente, desaparecendo. Uma dessas 'escolas' foi a que prosseguiram e mantiveram seus auxiliares mais diretos, na própria instituição em que ela realizou seu trabalho, e foi dentro dela que o autor iniciou seu movimento de objetivação como trabalhador, que atinge seu primeiro ponto de maturação no estudo de que aqui tratamos. Que esse estudo apresenta todos os sinais dessa tradição 'escolar', os leitores não terão dificuldade de perceber; obrigar-me-ei a buscar chamar a sua atenção para o modo específico, individual, pelo qual o autor desenvolve algumas características do trabalho coletivo no qual se insere, tratando de evidenciar, pelo contraste e pelos ganhos adquiridos, uma parte dos méritos de seu esforço.

Tomarei para esse fim, valendo-me de intuições alicerçadas no fato de ter participado dessa tradição quase desde os seus começos, um conjunto de quatro conceitos, ou categorias racionais, e de dois valores que neles anseiam objetivação, como conjunto especificador — apenas enquanto conjunto — do estilo dessa 'escola'.

Em primeiro lugar, a historicidade. Essa marca aparece sempre, e verifica-se com facilidade, desde a composição dos projetos de pesquisa até a constituição de linhas maduras de investigação e ensino. Agora se vê, todavia, que se trata de um conceito predominantemente negativo de historicidade, que se foi construindo progressivamente na aplicação aos objetos de conhecimento, primeiro pela recusa à concepção "naturalista" de natureza, de saúde e de doença, depois na crítica à concepção fetichista de tecnologia. Ao propor o conceito de razão tecnológica, o autor não só demonstra a saudável ousadia de reaproveitar um conceito 'sagrado', como o de razão instrumental, mas sobretudo dá um passo adiante na aplicação do conceito de historicidade, e, o que é mais significativo, dá esse passo no sentido de uma positividade de que o conceito não dispunha, no interior da 'escola', e alarga as vias de trânsito entre seu campo de aplicação e aos daqueles outros de que trataremos a seguir, pois a razão tecnológica, diversamente da razão instrumental, se caracteriza menos por seu comprometimento teleológico abstrato, do que pela vinculação que re-estabelece entre história, socialidade, totalidade, estruturação e os valores que esperam se realizar através da articulação específica desse conjunto de categorias, e através de sua operação.

Em segundo lugar, a socialidade. É certo que desde os trabalhos de Cecília Donnangelo a socialidade já não aparece como a mera contrapartida negativa da particularidade individual, mas positiva-se como a busca das formas particulares de estabelecimento e reprodução de relações sociais entre indivíduos, nas práticas que constituem o campo visado pela saúde coletiva. Entretanto, não se pode deixar de reconhecer um certo funcionalismo a contragosto na montagem dos esquemas de captação técnica de evidências empíricas em quase todos os trabalhos da 'escola', o que faz com que às vezes pareçam excessivamente bem-arrumados. Aqui também o autor avança: faz isso através do recurso ao conceito de espaço público, que reinventa como função lógica sintetizadora da historicidade e dos processos de estruturação das práticas de saúde enquanto práticas sociais, recusando a redução da apreensão da socialidade dessas práticas à sua conexão com interesses particulares, e ampliando-a para sua conexão com as necessidades humanas historicamente produzidas.

Em terceiro lugar, o peso do conceito de estrutura. Não creio que se possa, sem maiores cuidados, classificar como estruturalista a 'escola' de que faz parte o autor. A noção de estrutura como produto intelectual que visa capturar os sentidos e regularidades impressos pelos sujeitos históricos aos processos de reprodução e re-produção das práticas sociais já lhe dá um sabor mais histórico do que admitiria um estruturalismo puro, e a situa como fundamento teórico antes do que ontológico. Mas não se pode fugir à evidência, proporcionada pelos trabalhos da 'escola', de que a concepção negativa de historicidade e o quase-funcionalismo dos esquemas teórico-metodológicos de apreensão da socialidade cobram insuficiências do conceito de estrutura, principalmente no que diz respeito à sua utilização em investigações empíricas concretas, onde, apesar de tudo, acabam por tender a assumir proporções ontológicas que, por isso, se desdobrariam em quadros teóricos nos quais as 'necessidades estruturais', como fantasmas, se sobrepõem aos sujeitos históricos, substituindo-os por construções imaginárias, ilusórias mas eficientes. Aqui a contribuição do autor é mais complexa e sutil, mas não menos virulenta. Pode-se entrevê-la no reaprovietamento do conceito kuhniano de paradigma, mas para encontrá-la plena na proposição dos conceitos de projeto antropemancipador e projeto tecnoconservador, em cuja formulação a noção de estrutura restringe-se quase ao que ambiciona a 'escola': uma armadura teórico-metodológica, necessária para a produção e análise de dados empíricos, que expresse em sua montagem menos os efeitos da ação sócio-histórica dos sujeitos do que a própria vitalidade dessa ação.

Em quarto lugar, o conceito de totalidade. Manifesta-se ele, na 'escola', através da ênfase concedida à aproximação sempre simultânea entre o 'interno' das estruturas englobadas que estão sob exame e o 'externo' das estruturas englobantes que orientam esse exame, no anseio por superar toda oposição conceituai e lógica entre a 'parte' e o 'todo', entre o 'individual' e o 'coletivo'. Nesse caso, a contribuição do autor é menos da ordem da novidade do que da espécie da coragem. Pois como verão os leitores, assume até às últimas conseqüências a totalização como limite para o conhecimento, justamente o limite que o aproxima da prática emancipadora, e com isso deixa de manter a crítica epistemológica no estreito espaço disciplinado de qualquer teoria do conhecimento, embora dialogue com muitas delas. Nem interdisciplinaridade nem tampouco pluralismo metodológico nem muito menos ecletismo, o que o autor exige de cada modo ou área de conhecimento é apenas o que ela tem a dizer acerca do problema que ele se colocou e da trajetória de sua reconstrução como pensamento.

Finalmente, por último em minha exposição, mas em primeiro lugar na organização da elaboração do seu texto, os valores. A dignidade e a prioridade humana dos valores.

Não será difícil admitir que a 'escola' fundada por Cecília Donnangelo sempre se manteve distante de todo pragmatismo imediatista, o que não impediu que se desdobrasse em linhas de investigação aplicadas, especialmente na área de organização tecnológica das práticas de saúde, mas sempre com dificuldades para oferecer como seu produto privilegiado respostas operacionais imediatas às demandas que lhe foram dirigidas. Têm razão, embora não a que pensam ter, os que a acusam por isso de um 'desvio teoricista'. Menos que por um desvio, entretanto, a mediação auto-imposta entre conhecimento e prática decorre da supremacia de um valor, da confiança na racionalidade dos seres humanos como poder capaz de re-organizar e re-orientar suas intervenções práxicas no mundo, na vida, na sociedade, na historia, no conhecimento. Creio que essa confiança pode autorizar que sejamos caracterizados como herdeiros tardios da tradição das Luzes, o que não deve ser tomado como justificativa de nenhuma insuficiência concreta em nossa capacidade de integração no mundo em que vivemos, mas convido os leitores a acompanharem o esforço, que se evidencia no texto, por retomar os fundamentos dessa confiança na Razão, inspirados sobretudo no aproveitamento das contribuições da Escola de Frankfurt, e particularizá-los em uma reflexão crítica sobre a ciência epidemiológica.

Tornou-se também característica da 'escola', por exigência desse iluminismo de inspiração marxista, que a virtude da Esperança, como a Moisés na terra de Moab (Deuteronômio, 34), sempre se nos tenha sido exigida, menos como norma moral que como valor histórico objetivo para os seres humanos, pois escolhemos um caminho que impugna a plena realização de nossos valores nos prazos de nossas vidas individuais e de execução de nosso trabalho coletivo.

Entretanto, se é evidente nossa dificuldade para resolver os impasses práxicos que essas opções implicam, será talvez porque é grande nossa dificuldade em superar a dicotomia, de origem positivista, entre esses valores e nossas práticas de investigação e ensino. Eis aqui possivelmente, no contexto menor da 'escola' de onde inicia seu movimento, o maior dos méritos do trabalho de José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres: em sua contribuição para superar as contradições derivadas dessa dicotomia. Não posso me furtar a convidar os leitores a começarem a leitura pela última parte ('Nós e a epidemiologia') para justificar minha apreciação de que os valores ali inteiramente expostos, embora aparentemente apriorísticos e abstratos, se reconstroem como conhecimento objetivado durante o conjunto todo da exposição, lida desde o começo. Encontram-se sempre presentes, como fundamento ético da subjetivação do objeto que o autor constrói. Melhor ainda do que isso: por causa de sua progressiva penetração na problemática que vai sendo tecida e resolvida, não serão encontrados sempre com o mesmo significado, mas se desdobrarão de si mesmos objetivando-se progressivamente mais e mais, afastando-se de toda aparência de preceitos morais abstratos.

Creio que essas observações são suficientes para justificar a afirmação que fiz, no início, de que se trata de um trabalho de grande fôlego, às quais devo acrescentar, agora, a de que se trata de um trabalho de excepcional qualidade, se avaliado no âmbito particular da 'escola' em que tem origem, o que me parece um critério muito adequado, ainda que longe de ser exclusivo.

Acrescente-se que mais fortemente o mérito do autor se evidencia, no contraste com esse contexto de origem mais imediato, se considerarmos que sua individuação como pensador, no interior de uma tradição, se dá pela confrontação com as tendências "normalizantes" que ela apresenta, e vem por isso trazer-lhe nova vitalidade, imprimir-lhe uma inflexão em sua história da qual ela não pode mais recuar. Das aberturas proporcionadas por este trabalho esperamos poder renovar nossa Esperança, torná-la mais empreendedora, sábia e corajosa, e poder colaborar melhor para que o 'precioso legado', de que nos fala o texto em suas últimas linhas, se consolide como um presente realizado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1995
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