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Epidemias e sociedade no Peru do século xx

Epidemics and society in twentieth century Peru

Epidemias e sociedade no Peru do século xx

Epidemics and society in twentieth century Peru

Rodolpho Telarolli Junior

Professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas

da Universidade Estadual Paulista

Departamento de Ciências Biológicas/Unesp

Rodovia Araraquara-Jaú, Km 1, 14801-902 Araraquara — SP Brasil

O retorno de velhas doenças transmissíveis, quase esquecidas no cenário sanitário do Brasil contemporâneo, é uma mudança no quadro nosológico já incorporada à agenda dos problemas sanitários do país nas últimas décadas do século XX, seja na forma de grandes epidemias, como o cólera, a dengue e a malária, ou de endemia, como a tuberculose. É de um processo análogo que Marcos Cueto trata em El regreso de las epidemias: salud y sociedad en el Perú del siglo XX.

O livro reúne um conjunto de investigações realizadas por Cueto nos últimos anos sobre diferentes epidemias que ocorreram no Peru no século XX. O autor inicia seu período de estudo em 1903, com a peste bubônica, encerrando-o na década de 1990, com a epidemia de cólera de 1991, já transformada em endemia neste final de século. Entre as duas epidemias encontram-se as de febre amarela, a de tifo e varíola e a de malária. A combinação de processos sanitários tão díspares, longe de constituir uma colcha de retalhos, resultou em um trabalho encorpado, tendo como fio condutor as doenças estudadas e sua relação com a crescente participação do Estado peruano no campo da saúde pública.

Marcos Cueto segue, em sua obra, uma seqüência que se repete nos diferentes capítulos, cada qual dedicado ao estudo de uma epidemia. No primeiro deles, é a peste bubônica em Lima, de 1903 a 1930; no segundo, a febre amarela e a varíola, na costa norte do Peru, de 1919 a 1922; o terceiro é dedicado ao tifo e varíola na região de Puno, em meados do século XX; o quarto capítulo aborda a malária em todo o Peru, ao longo do século XX; e por fim, no quinto capítulo, o cólera, a partir de 1991. Cueto trata de forma agradável a temática estudada, apresentando inicialmente as doenças do ponto de vista biológico, suas características clínicas e epidemiológicas. A seguir contextualiza, no cenário social, cada doença nos diferentes momentos da história peruana, para então tratar do papel do Estado e das políticas públicas adotadas em cada período. É nessa última etapa que se encontra o ponto mais frágil da obra de Marcos Cueto, na forma superficial com que apresenta o contexto político e social do Peru, limitação que se torna mais severa ao leitor não iniciado nas particularidades daquela sociedade.

A partir da descrição de epidemias que ocorreram em distintos momentos do século XX, Cueto apresenta as estratégias públicas e populares de combate às doenças, além de abordar as especificidades de cada evento, dentro da história social peruana, ampliando o campo temático de sua investigação. Esse, aliás, foi um dos objetivos explícitos do autor, de incluir a saúde e a doença como dimensões fundamentais do passado para a compreensão das condições de vida da população, as idéias populares sobre a saúde física e mental e a consolidação da autoridade estatal e a dinâmica dos movimentos populares no Peru. Assim, procura conciliar a história natural e a história social da doença, incluindo tanto aspectos que explicam a ecologia das epidemias como as reações sociais à doença no país.

À medida que desenvolve seu texto, Cueto vai apresentando os diferentes atores que atuaram em cada momento histórico. Médicos, curandeiros, líderes comunitários, comerciantes e religiosos são personagens que aparecem em todos os capítulos, enriquecendo o trabalho com muitas informações inéditas e fatos pitorescos, tornando seu livro uma leitura agradável, o que amplia o universo de leitores potenciais da obra, ultrapassando o grupo restrito dos que estudam a história da saúde pública. Em sua abordagem, ao enfatizar o papel de alguns atores individuais representativos, o autor dá voz a indivíduos e setores sociais com papel fundamental na definição dos rumos das epidemias, obtendo explicações, por exemplo, para trajetórias distintas da mesma doença, na mesma época, em localidades ou departamentos próximos.

Logo no início do livro, Cueto define a forma como utilizará as epidemias em seu estudo, ultrapassando a barreira da epidemiologia e da demografia, optando por uma definição ampliada do papel desses eventos sanitários, que inclui a forma como elas têm aparecido para os homens. São eventos dramáticos, onde situações de pânico e insegurança coletiva têm espaço para se desenvolver, catalisando ações individuais e reações públicas de extraordinária riqueza informativa, permitindo visualizar as perspectivas de uma sociedade para a saúde pública. Por outro lado, as epidemias são também ocasiões para comportamentos individuais significativos, como as atitudes heróicas de médicos e lideranças populares, que nos dizem muito sobre as concepções de uma época. São, ainda, espaço para o aparecimento de formas populares de agir, formas criativas e eficientes, num contexto duro e adverso.

As atitudes dos comerciantes, da Igreja, dos médicos e setores populares em geral diante de medidas que afetam muito seu cotidiano, como o fechamento de portos, a suspensão do comércio entre cidades e regiões, o desemprego produzido por quarentenas, são medidas que afetavam o conjunto da população, sendo alvo de sua reação. Os agentes não institucionais de cura, como os curandeiros urbanos e os xamãs indígenas, estão incorporados à história de cada uma das epidemias estudadas por Cueto. As concepções populares de saúde e doença aparecem também nos embates que estiveram presentes mediando as ações oficiais e a população, resistindo à internação compulsória ou à incineração de toda uma cidade, como se cogitou durante a epidemia de febre amarela.

No primeiro capítulo, é apresentada uma epidemia de peste bubônica que atingiu as principais cidades da costa peruana entre 1903 e 1930. Essa epidemia evidenciou as precárias condições de vida nas cidades, dando ensejo a uma tendência que se repetiria na epidemia de cólera, a de culpar os grupos mais pobres da população pela doença, como ocorreu com os chineses e seus descendentes, que foram responsabilizados pelo poder público e setores da população pela origem e permanência da peste bubônica. As condições miseráveis de vida dos imigrantes chineses e seus descendentes ajudaram a criar um estigma em torno desse grupo, dando origem a debates e leis regulamentando a imigração asiática.

Um obstáculo para a organização de uma campanha contra a peste foi a inexistência de uma estrutura sanitária eficiente que cobrisse todo o território nacional, pois até então esse era um campo da alçada municipal. Cueto ressalta, entretanto, que essa epidemia diferenciou-se das demais por seu significativo saldo positivo, com a criação do primeiro órgão de abrangência nacional no campo da saúde pública. Entre as medidas adotadas contra a doença, encontram-se ações presentes em epidemias análogas, inclusive no Brasil, como a compra de ratos mortos pelas autoridades, dando margem à criação de ratos pela população com o objetivo de venda para o poder público. Foram instituídos prêmios aos que denunciassem doentes de peste tratados em domicílio, de forma a viabilizar sua internação compulsória. Tanto os lazaretos como a inoculação do soro antipestoso foram objeto de resistência popular. Um importante legado da peste no campo da intervenção estatal em saúde pública foi uma primeira e fundamental mudança de atitude por parte do Estado, dos médicos e da população em torno das questões de saúde coletiva.

No segundo capítulo, sobre a febre amarela que atingiu localidades portuárias e da zona açucareira de vital importância na costa Norte entre 1919 e 1922, Cueto chama a atenção para a intervenção da Fundação Rockefeller, que coordenou as ações da campanha oficial contra a doença, sofrendo a oposição de grupos nacionalistas, contrários à intervenção dos norte-americanos. Logo que surgiu a epidemia, tornou-se prioridade, por interferir em toda a economia nacional. A ênfase ficou com um conjunto de medidas de polícia sanitária, desenhadas a partir dos conhecimentos acumulados sobre a história natural da doença, num momento em já se conhecia quase todo o ciclo da febre amarela, faltando apenas uma vacina eficiente. Desprezou-se a participação da população — vista como um dos principais obstáculos à ação oficial contra a epidemia — e eventuais programas que envolvessem a comunidade.

Foram descartadas medidas como as empregadas no estado de São Paulo no final do século XIX, como o isolamento de doentes, quarentena de portos, cordões sanitários e melhorias nas moradias, por serem muito dispendiosos, optando-se por ações voltadas exclusivamente ao combate do vetor. De início, foi utilizada principalmente a fumigação, que matava apenas os mosquitos adultos, com resultados fracos. Como exemplo do autoritarismo empregado no combate à doença, Cueto salienta a tentativa de destruir toda uma cidade através de sua incineração, por ser medida eficiente, mas servindo também de exemplo e advertência para o resto do país. Após a incineração de 10% da cidade, o trabalho foi interrompido, diante dos clamores populares. Medidas pouco conhecidas foram empregadas com sucesso nessa epidemia, como a criação de peixes nas tinas onde a população armazenava água, com o objetivo de comer as larvas do mosquito vetor.

No terceiro capítulo, é descrito o esforço para combater o tifo e a varíola na região dos Andes, em epidemias que tiveram uma trajetória de combate totalmente distinta das anteriores, contando com a participação popular, através das brigadas sanitárias rurais criadas e dirigidas por um médico de origem indígena. Os episódios são da década de 1930, refletindo, segundo Cueto, a influência das idéias sociais na medicina, a tenacidade da cultura indígena e o gênio de alguns atores envolvidos. Aquele era o momento em que crescia no Peru uma corrente cultural que ficou conhecida como ‘indigenismo’, que valorizava as crenças indígenas, o que facilitou a introdução de novas práticas de higiene individual, quando efetuada por um médico indígena. As brigadas sanitárias rurais chegaram a publicar uma revista para auxiliar no controle das duas doenças, contribuindo para que o indigenismo, que era um movimento literário, artístico e político, se expressasse como um indigenismo médico.

Tiveram papel na difusão do tifo a migração freqüente de grupos de indígenas e alguns hábitos, como o de não cortar os cabelos das crianças até os dois anos de idade, para não debilitar sua dentição. Em todas as epidemias estudadas estiveram presentes as concepções de saúde e doença dos indígenas e somente nessa epidemia elas seriam trabalhadas com sucesso, sem recurso às medidas autoritárias antes adotadas. Foi criado um programa sanitário apoiado pelas comunidades indígenas, combinando a auto-ajuda com o paternalismo médico, numa experiência classificada como excepcional para a história do Peru. Excepcional porque mesmo na atualidade essa continua sendo uma tarefa difícil, um desafio.

No quarto capítulo, Cueto apresenta as campanhas de controle e erradicação da malária em diferentes momentos, incorporando questões como a crise agrária desencadeada pela doença em vastas regiões do país e o papel da urbanização e da industrialização nos fluxos migratórios que contribuíram para disseminar a malária. O combate à doença teve dois períodos distintos, o primeiro visando ao controle da malária através do combate às larvas e tratamento dos doentes, que perdurou até a década de 1940, e um segundo momento, até a década de 1970, visando à sua erradicação, que se acreditava possível, após a descoberta do DDT. Aqui também aparecem a resistência ao tratamento e a negação da ocorrência da doença pela população, comerciantes e líderes municipais e comunitários. Em algumas das epidemias estudadas, os religiosos aparecem como atores importantes e a de malária foi uma delas. Nos primeiros tempos da malária, foi a vez da Ordem dos Dominicanos, enquanto nas epidemias de tifo e varíola foi a Igreja Adventista.

O quinto e último capítulo trata da conhecida epidemia de cólera, iniciada em 1991, espalhando-se a partir de então para vários países da América Latina, inclusive o Brasil. No Peru, a doença causou um impacto global na economia do país, afetando a exportação de peixes, o comércio de alimentos e a indústria turística. Nessa epidemia contemporânea, voltou a atitude oficial, presente na epidemia de peste do início do século, de responsabilizar as vítimas pela doença. Desvalorizou-se o papel do Estado e das políticas públicas no campo social, reduzindo-se a importância do saneamento ambiental, conhecido desde a intervenção de John Snow na epidemia de Londres, na década de 1850, como a mais eficiente ‘vacina’ de uma população contra o cólera, valorizando-se uma abordagem individual e familiar da saúde pública. O resultado dessa postura foi o desperdício de uma oportunidade para melhorar a infra-estrutura sanitária do país, segundo Cueto.

Apesar das centenas de milhares de casos, o cólera no Peru teve uma baixa taxa de letalidade, inferior a 1%. As perguntas que o autor se coloca e responde ao leitor são de grande interesse: como se conseguiu essa baixa letalidade? O que significou o cólera para a relação entre o Estado e a saúde pública? Quais foram as percepções e as respostas da população à doença? Por que a falta de higiene pessoal acabou aparecendo como a causa mais importante da epidemia? Cueto não tem dúvidas de que a rápida urbanização e as precárias condições de saneamento básico no Peru foram condições prévias para o aparecimento da doença, discutindo com detalhes os aspectos biológicos e epidemiológicos que estiveram presentes na definição do modelo de atuação pública na epidemia. São incorporadas à sua análise questões relevantes na politização da epidemia, como a crise hiperinflacionária vivida pelo Peru e as disputas pelo poder político dentro do Ministério da Saúde.

Marcos Cueto teve sucesso em seu objetivo de contribuir para uma reflexão contemporânea do Peru, sob uma perspectiva que incorpore o abismo existente entre os problemas sociais e os recursos disponíveis para solucioná-los, os limites do esforço individual na luta contra a adversidade, a relação entre a fragmentação étnica e as políticas sociais autoritárias e descontinuadas, as dificuldades reais e imaginárias que têm existido no processo de convívio de diferentes grupos humanos e a recorrência de padrões de soluções e posturas oficiais em resposta a crises. Isso indica a leitura de seu livro tanto aos que se interessam pela história da saúde pública como aos estudiosos da saúde pública contemporânea no Brasil e na América Latina, já que muitas das questões levantadas para o Peru são pertinentes, em graus variáveis, para o Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 1998
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