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Prezado senhor editor, peço-lhe que reproduza em sua revista minhas considerações a respeito do estudo que o ilustre maranhense Nina Rodrigues fez sobre o regime alimentar vigente em seu estado natal, no final do século XIX. A repercussão deste trabalho revela o caráter acanhado e imaturo do meio pouco propício a acolhê-lo.

Tendo se formado em medicina no Rio de Janeiro, com a tese Das amiotrofias de origem periférica, defendida em 10 de fevereiro de 1888, seguiu Nina Rodrigues para São Luís do Maranhão, onde pretendia radicar-se e clinicar, e estabeleceu-se em consultório num sobrado de azulejos e sacadas de ferro, localizado na rua do Sol, 17 (Domingos Vieira Filho, Breve história das ruas e praças de São Luís, 2a ed. revista e aumentada, Rio de Janeiro, Gráfica Olímpia Editora Limitada, 1971, p. 139).

Faltando-lhe clientela e sobrando-lhe tempo, estudioso que era, Nina Rodrigues dedicou-se à análise do regime alimentar do Maranhão, cuja base era a farinha de mandioca. Em seguida publicou os resultados do seu estudo no jornal maranhense A Pacotilha, dividido em cinco partes vindas à luz nos dias 5, 9, 18 de junho, 6 e 9 de julho de 1888. Como achasse oportuno ventilar o assunto no momento em que o país havia decretado o fim do regime escravocrata, insurgia-se contra "todos aqueles erros, que, sancionados por uma prática de muitos séculos e aceitos sem exames pela nossa indiferença rotineira (grifos nossos), haviam adquirido o valor de uma verdade inatacável ou de uma necessidade iniludível".

Mas iludiu-se achando que os espíritos estavam abertos para a adoção de novas idéias e reformas. Nessas publicações, Nina Rodrigues denuncia a agricultura então praticada que "tinha, transformando-a em um pacto, criado uma necessidade econômica de produtos altamente condenados pela ciência e de conseqüências desastrosas imediatamente para a saúde e mais de espaço para o progresso do país, pelo influxo deprimente que exerceu sobre o vigor físico dos seus habitantes, em virtude da insuficiência dos seus princípios alimentares". E defende a substituição da farinha de mandioca, "um produto alimentício falazmente insuficiente", por outro cereal mais rico.

A prioridade de tal empreendimento, reconhece, cabia ao clínico dr. José Lourenço de Magalhães, do Rio de Janeiro, estando, porém, ciente do escabroso da empresa de ambos: "Pretender combater um erro que é já um legado de três séculos, a que se vinculam grandes interesses econômicos (grifos nossos) ... é decerto tarefa árdua."

Consciente das dificuldades, Nina Rodrigues faz uma profissão de fé: "Mas a medicina não estaria na altura de sua missão e mentiria ao seu objetivo se, antepondo-se estas considerações, problemas vitais da saúde pública e progresso social se deixasse sucumbir, desconhecendo que a propaganda da verdade acaba sempre por convencer..."

Nina Rodrigues tem como objetivos nesse estudo demonstrar o valor nulo da farinha de mandioca como alimento exclusivo e determinar qual o produto que a pode substituir e a possibilidade desta substituição. Na segunda parte do estudo (publicada em 9 de junho de 1888) demonstra, baseado em observações de famosos pesquisadores, como von Martius, Peckolt e Payer, a ausência de princípios azotados na farinha de mandioca, e responsabiliza a alimentação exclusiva pela farinha de mandioca como "uma das causas principais da anemia e da fraqueza de reação que constitui o fundo de nossa patologia, muitas vezes obrando ao mesmo tempo como causa provocadora importante".

Citando o prof. Fourragrives ("Garantir às populações, nos limites do possível, uma nutrição suficiente e proteger a saúde pública contra as especulações culposas da fraude e da sofisticação, tal é o duplo fim que n’um Estado bem organizado deve mirar a administração pública"), Nina Rodrigues defende a substituição da farinha de mandioca pela de trigo, além de uma outra composta de mandioca e de feijão ou fava, em proporções recomendadas pela ciência, e preparados de milho.

Infelizmente, esse estudo serviu apenas para que os seus conterrâneos o apelidassem de "Dr. Farinha Seca", achando que o seu autor estava se preocupando com questões menores. A esse propósito queixava-se em artigo publicado em A Pacotilha (1º de agosto de 1888), da "grande mágoa que me havia causado o procedimento injusto, desleal e pouco digno do colega que, em porta de botica, procurava, em termos que não comentarei, chamar o ridículo sobre mim e a minha interessante propaganda". Profundamente magoado com esse episódio, mudou-se para a Bahia, docemente acolhedora, onde iria sobressair-se.

Sete anos antes, Aluísio de Azevedo também já havia sido hostilizado por seus conterrâneos, quando da publicação do romance O mulato, que o consagrou como romancista e, no entanto, o incompatibilizou com a gente de sua terra. Esta mesma sociedade burguesa e clerical de São Luís do Maranhão do final do século XIX repetia o fato com outro de seus rebentos ilustres.

Pedro Henrique Miranda Fonsêca

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1998
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