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A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro

The conquest of territory: backlands and frontier in Brazilian thought

Resumos

O artigo procura mostrar a importância da conquista do espaço territorial na construção da identidade nacional. Discute os diferentes significados que a palavra "sertão" tem assumido no pensamento social brasileiro tomando como marco a obra de Euclides da Cunha. Explora um dos desdobramentos do mito do sertão presente na noção de fronteira e na conquista de novos espaços territoriais decorrente do movimento das bandeiras. Analisa a recuperação da imagem do bandeirante em sua função mítica capaz de organizar o mundo simbólico dos brasileiros em geral e dos paulistas em particular.

sertão; identidade nacional; Euclides da Cunha; fronteira; bandeira


The conquest of territorial space has played an important role in the construction of a national identity in Brazil. The article discusses the different meanings that have been assigned to the term ‘sertão’ within Brazilian social thought, using Euclides da Cunha’s work as a reference point. It explores some reflections of the myth of the backlands found in the notion of frontier and in the conquest of new territorial space as a product of the bandeirante movement. Lastly, it analyzes the question of recapturing the image of the bandeirante as a mythical force that can organize the symbolic world of Brazilians in general and Paulistas in particular.

sertão; backlands; national identity; Euclides da Cunha; frontier; bandeirante


A conquista do

espaço: sertão e

fronteira no

pensamento

brasileiro*

The conquest

of territory:

backlands and

frontier in Brazilian

thought

*Subproduto de pesquisa que compara a construção simbólica sobre a fronteira no Brasil e nos Estados Unidos, este artigo foi apresentado no XXI Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu, no Seminário ‘Canudos: 100 anos’, no Rio de Janeiro, e, ainda, no BRASA IV International Congress, em Washington, entre outubro e novembro de 1997.

Lúcia Lippi Oliveira

Doutora em sociologia pela USP e pesquisadora do

CPDOC/FGV.

Praia de Botafogo 190, 12º andar

22 253-900 Rio de Janeiro — RJ Brasil

E-mail: llippi@fgv.br

LIPPI, L.: ’A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro’.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos

vol. V (suplemento), 195-215 julho 1998.

O artigo procura mostrar a importância da conquista do espaço territorial na construção da identidade nacional. Discute os diferentes significados que a palavra "sertão" tem assumido no pensamento social brasileiro tomando como marco a obra de Euclides da Cunha. Explora um dos desdobramentos do mito do sertão presente na noção de fronteira e na conquista de novos espaços territoriais decorrente do movimento das bandeiras. Analisa a recuperação da imagem do bandeirante em sua função mítica capaz de organizar o mundo simbólico dos brasileiros em geral e dos paulistas em particular.

PALAVRAS-CHAVE: sertão, identidade nacional, Euclides da Cunha, fronteira, bandeira.

LIPPI, L.: ‘The conquest of territory: backlands and frontier in Brazilian thought’.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos,

vol. V (suplemento) 195-215 July 1998.

The conquest of territorial space has played an important role in the construction of a national identity in Brazil. The article discusses the different meanings that have been assigned to the term ‘sertão’ within Brazilian social thought, using Euclides da Cunha’s work as a reference point. It explores some reflections of the myth of the backlands found in the notion of frontier and in the conquest of new territorial space as a product of the bandeirante movement. Lastly, it analyzes the question of recapturing the image of the bandeirante as a mythical force that can organize the symbolic world of Brazilians in general and Paulistas in particular.

KEYWORDS: sertão, backlands, national identity, Euclides da Cunha, frontier, bandeirante.

Apresentar e discutir os diferentes significados que a palavra "sertão" assume no pensamento social brasileiro pode nos ajudar a entender os diversos caminhos na construção da nação. O sucesso das interpretações que falam da singularidade brasileira em termos de espaço é maior e mais duradouro do que o da retomada dos eventos históricos. A conquista e a ocupação de terras oferecem uma longa genealogia retomada na construção da brasilidade. A referência ao espaço da América como o jardim do Éden e como "possessões maravilhosas" povoa o imaginário sobre o Novo Mundo e o Brasil. As imagens fantasticamente positivas ou terrivelmente ameaçadoras sobre os novos espaços aparecem na literatura que procurou dar conta da identidade do país.

O Novo Mundo e o Brasil tiveram no domínio do espaço geográfico o processo básico que acompanhou a formação da sociedade e do Estado. A ausência de um passado histórico remoto, exemplificada na ausência de catedrais góticas, produziu a busca de raízes em passados mitológicos ou em traços culturais primeiros do português, do índio e do negro. Entretanto, estas construções simbólicas têm produzido mais a consciência das distinções do que a da integração. A consciência do espaço, da territorialidade, em contrapartida, forneceu as bases da integração necessária à formulação de um projeto de nação. Esta premissa nos ajuda a entender a importância e a permanência do ‘ufanismo’ como ideologia fundada na natureza e na relação desta com o caráter do povo, produzindo o sentimento de identidade nacional. A valorização da natureza aparece como que compensando a debilidade da cultura no Brasil. O ufanismo baseado nos atributos da natureza não aparece sozinho. Seu reverso também faz parte do imaginário sobre o país desde seus primórdios e assinala os perigos e as ameaças relacionados à natureza dos trópicos.

A versão da terra como natureza paradisíaca está presente desde sua "certidão de nascimento" com a carta de Pero Vaz de Caminha e vem sendo retomada como mito de origem que perdura até os dias de hoje (Carvalho, 1996). A versão oposta, a que fala dos perigos da natureza tropical, pode ser encontrada também desde os primórdios da colonização no discurso dos "soldados de Cristo", ou seja, dos jesuítas no Brasil. As novas terras são apresentadas como tendo uma natureza ainda intocada que parece ter sido abandonada por Deus após a criação. A natureza parece rica mas é natureza bruta, não transformada pela mão do homem e necessitando da ação purificadora dos súditos de Cristo. "Nega-se, assim, qualquer presença naturalista-panteísta do Senhor em todas as suas criações e afirma-se uma eficácia humana sobre a terra" (Neves, 1978, p.51). A natureza brasileira é descrita pelos jesuítas portugueses de forma quase oposta à dos ideólogos de uma natureza tropical edênica. "O jesuíta vê a natureza como algo luxuriante, soberbo, avassalador, misterioso. Grávido de perigos e surpresas. Como algo que lhe é estranho e terrível" (idem, p. 53). Há assim tanto uma genealogia de autores que trata a natureza como paraíso quanto outra que trata dos "tristes trópicos".

O lugar geográfico ou social identificado como sertão acompanha este caminho que recebe ora uma avaliação positiva, ora negativa. As definições de sertão fazem referência a traços geográficos, demográficos e culturais: região agreste, semi-árida, longe do litoral, distante de povoações ou de terras cultivadas, pouco povoada e onde predominam tradições e costumes antigos. Lugar inóspito, desconhecido, que proporciona uma vida difícil, mas habitado por pessoas fortes. A força de seu habitante aparece relacionada à capacidade de interagir com a natureza múltipla. O cabra — o cangaceiro — aparece como a encarnação do herói sertanejo. Para além destes atributos, aparece no imaginário social a idéia de que não há um sertão mas muitos sertões e que o sertão pode e deve ser tomado como metáfora do Brasil.

O sertão, para o habitante da cidade, aparece como espaço desconhecido, habitado por índios, feras e seres indomáveis. Para o bandeirante, era interior perigoso, mas fonte de riquezas. Para os governantes lusos das capitanias, era exílio temporário. Para os expulsos da sociedade colonial significava liberdade e esperança de uma vida melhor. Como nos diz Janaína Amado (1995a), "desde o início da História do Brasil, portanto, sertão configurou uma perspectiva dual, contendo, em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem falava".

Duas perspectivas na conotação de sertão podem ser identificadas com a tradição romântica e a realista no trato do espaço geográfico e do homem que o habita. Na perspectiva romântica, o sertanejo aparece como símbolo da nacionalidade pelo seu admirável modo de vida, caracterizado pela destreza e simplicidade. Natureza e organização social se fundem na base deste julgamento positivo, opondo-se à vida degradada e corrompida do litoral, ou seja, das cidades. Na perspectiva realista, a vida interior perde esta visão idealizada. O sertão passa a ser visto como um problema para a nação e se opõe à urbanidade do litoral. Sob a visão cientificista do final do século XIX, as explicações raciais sustentam uma suspeita sobre os tipos miscigenados portadores da degeneração. Aqui o "sertão atinge o seu ápice como antítese da nação desejada" (Souza, 1994).

O sertão e o sertanejo têm sido apresentados na literatura sob a categoria de regionalismo. Em suas origens, o regionalismo do romance de José de Alencar, de Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Alfredo D’Escragnolle Taunay era forma de definição da nacionalidade. No fim do século XIX e início do XX, o regionalismose transforma em conto sertanejo, que trata o homem rural sob o ângulo do pitoresco, do jocoso e do sentimental. Alfredo Taunay, autor de Inocência e de A retirada da Laguna, este último romance inspirado na guerra do Paraguai, pode ser tomado como um exemplo da literatura regional romântica. O autor, em seu romance sobre a guerra do Paraguai, narra as agruras do clima e do meio que atingiram a expedição brasileira e sua heróica luta contra o inimigo guarani em Mato Grosso, região de fronteira com o Paraguai. Obra do fim do romantismo, destaca a barbárie escondida na natureza exuberante e pronta a atacar a civilização.

A grandeza épica das paisagens atenua o peso da derrota, relativiza as forças. A natureza brasileira, ninguém acreditava nisso mais que Taunay, é nossa grandeza, talvez nosso bem maior. Somos superiores porque a temos e não somos bárbaros, somos heróicos descendentes dos europeus, temos nosso quinhão garantido de civilidade (Alambert, 1995).

Os paraguaios, os guaranis, são primitivos, ou seja, são mais próximos à natureza e dela fazem parte. Frente à natureza é compreensível a vitória dos paraguaios em um primeiro momento. Mas a civilização vai vencer, já que pode conhecer e dominar a natureza. "Estávamos condenados a vencer os paraguaios." Esta interpretação de que estávamos condenados à civilização também está presente em Euclides.

Entre os representantes do regionalismo/conto sertanejo destaca-se, entre outros, Afonso Arinos. É preciso lembrar que uma das primeira obras literárias sobre Canudos, antecipando a de Euclides da Cunha, foi a de Afonso Arinos que, sob o pseudônimo de Olívio de Barros, escreveu o romance Os jagunços, publicado primeiro como folhetim no jornal O Comércio de São Paulo e em 1898 como livro. Afonso Arinos vem sendo redescoberto e citado como uma importante figura que fazia a mediação entre as culturas erudita e popular, entre os mundos cosmopolita e regional. Freqüentando roda de músicos populares da qual fazia parte Donga e Catulo da Paixão Cearense entre outros, convidando-os para se apresentarem em sua residência ou para se hospedarem em sua fazenda, Afonso Arinos colocava em contato mundos culturais distintos.

Catulo da Paixão Cearense a ele assim de refere: "Este imortal, que é deveras imortal pelas obras que escreveu sobre a vida e os costumes sertanejos, foi um dos meus maiores amigos. Arinos foi um adorador de tudo que é brasileiro. A natureza o enfeitiçava. Parecia que o seu sangue era a seiva de nosso pau-brasil" (Vianna, 1995, p. 51).

Suas conferências sobre lendas e tradições brasileiras seguidas da representação do auto da Nau Catarineta, a apresentação docateretê em baile no seu palacete paulista são mencionadas como manifestações deste amor a tudo que é brasileiro ainda que este tudo seja o Brasil rural, o Brasil do interior. Afonso Arinos, vivendo em Paris, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, foi um dos que comandou o movimento de ‘redescoberta’ do Brasil popular, folclórico, regional.

Sua obra O contratador de diamantes foi encenada em 1919 (Arinos morreu em Paris em 1916) pela Sociedade de Cultura Artística, recebeu apoio do prefeito Washington Luís e de famílias ilustres de São Paulo. Artigo de jornal citado por Nicolau Sevcenko (Sevcenko, 1992, pp. 239-44) menciona que sua peça coloca em cena quadros do "Brasil colonial, do Brasil das Bandeiras e das minas, do Brasil heróico" e que pela primeira vez se apresenta no palco do Teatro Municipal de São Paulo um congado, interpretado por "pretos de verdade" e por dançadores e violeiros da roça.

Nicolau Sevcenko considera que a atuação de Afonso Arinos estava sintonizada com o movimento nacionalista que se segue ao início da Primeira Guerra Mundial e que tem na figura de Olavo Bilac e na criação da Liga Nacionalista suas expressões mais conhecidas. Estas manifestações tinham uma linha de continuidade com uma tradição cuja raiz e modelo é Os sertões. A denúncia do descaso e irresponsabilidade das elites para com o sertanejo do norte, inaugurada por Euclides, teria sido continuada por Monteiro Lobato ao denunciar o abandono do sertanejo do sul, o caipira, caricaturado na figura do Jeca Tatu.

No início da década de 1920 prospera uma literatura regionalista paulista que se dedica à vida rural e à cultura caipira. Frente a esta se coloca o movimento modernista paulista. Saraus regionalistas então em voga apresentam tanto figuras da sociedade vestidas de caipira e cantando canções sertanejas quanto verdadeiros cantadores e violeiros sertanejos. Ainda segundo Sevcenko, este movimento de revalorização do regional, do Brasil "verdadeiro", também se faz presente no cinema e teve como um dos mais expressivos sucessos a exibição do filme rodado por Rondon e sua equipe sobre a vida e costumes dos índios coroados, da região do Alto São Lourenço. "Era a primeira vez que a população da cidade podia ver índios de verdade." O jornal também informa que esse filme tinha sido apresentado por Roosevelt no Carnegie Hall em Nova York e teria tido extraordinário sucesso.

A associação entre sentimentos nativistas que valorizam caipiras e índios assim como o cruzamento das trajetórias do general Rondon e do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt é muito interessante. Roosevelt, que teve papel fundamental na releitura da fronteira e do cowboy no nacionalismo americano (Oliveira, 1995), após deixar a presidência fez uma viagem aos sertões do Brasil. O governo brasileiro, através de seu ministro das Relações Exteriores, Lauro Müller, designou o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon para acompanhá-lo nesta viagem. Dela resultou o livro Through the Brazilian wildness, publicado em Nova York em 1914 e só publicado no Brasil trinta anos depois. A primeira edição brasileira saiu pela Companhia Editora Nacional na coleção Brasiliana (vol. 232) em 1944 sob o título Através dos sertões do Brasil. Outra edição foi feita pela Editora Itatiaia e Edusp em 1976 na coleção Reconquista do Brasil (vol. 35) sob o título Nas selvas do Brasil. O mapa de Mato Grosso apresenta com o nome de Roosevelt o antigo "rio da Dúvida" cujo curso foi corrigido com a expedição Roosevelt-Rondon.

Na literatura brasileira o tema do sertão aparece pelo menos sob três perspectivas (Cristóvão, 1993-94). A primeira é o "sertão como paraíso", que se expressa basicamente no romantismo. Evoca-se um paraíso perdido em que tudo era perfeito, belo e justo e cuja linguagem retrataria uma pureza original a ser apreciada e preservada. Esta linha romântica se mantém no século XX por figuras como as de Catulo da Paixão Cearense, no âmbito da cultura popular, e Afonso Arinos, na veia mais erudita e de elite.

A segunda forma de lidar com o sertão o associa ao inferno. O destempero da natureza, o desespero dos que por ele perambulam (retirantes, cangaceiros, volantes, beatos), a violência como código de conduta, o fatalismo, são os principais traços apontados. Euclides da Cunha é certamente um dos representantes desta leitura do espaço do sertão como inferno ainda que sua explicação seja de ordem político-cultural.

Por fim, o sertão é o purgatório. Lugar de passagem, de travessia, definido pelo exercício da liberdade e pela dramaticidade da escolha de cada um. Identificado como lugar de penitência e de reflexão, o sertão aparece como reino a ser desencantado e decifrado. Aqui estamos no mundo de Guimarães Rosa. O sertão como reino do fantástico e do mítico aparece em vários estudos sobre os movimentos messiânicos no Brasil (Queiroz, 1993-94).

Euclides da Cunha pode ser considerado como uma das matrizes do olhar sobre os sertões. Ao procurar transmitir o mundo do sertão para o público leitor, transmite a sensação de sentir-se estrangeiro em seu próprio país. "Espantado com a radicalidade da diferença entre o ambiente e a sociedade que conhecia e aquele meio com que se deparava ... põe em questão a existência de um Brasil único. E mais, passa a duvidar das possibilidades de uma nacionalidade convivendo com fossos profundos entre suas regiões" (Souza, 1997). Para Euclides, a questão não se refere somente à distância es-pacial, mas principalmente à distância temporal. Esta distância poria em risco a nacionalidade. Para pensar e propor o encontro do litoral com o sertão (sociedades separadas, indife-rentes uma à outra), Euclides terá que superar o dilema derivado dasteorias raciais de seu tempo. Mesmo descrevendo os traços mais expressivos das sub-raças sertanejas, resultado do cruzamento do branco com o índio, não decreta a inviabilidade da nação. A homogeneidade étnica não é apresentada como condição indispensável ao progresso civilizatório. Mais importante será colocar lado a lado sertão e litoral, unificar os diferentes ritmos civilizatórios.

Euclides da Cunha pode ser identificado como aquele que realiza uma inversão na compreensão do sertão de seu tempo. Em sua obra, o sertanejo é retrógrado e não degenerado. Seu atraso se deve ao abandono a que foi relegado e não aos condicionamentos e determinações de ordem genética. A civilização seria capaz de sincronizar os tempos sociais do sertão e do litoral, trazendo para o nosso tempo "aqueles rudes compatriotas retardatários". A diferença entre tempos sociais poderia ser conciliada pela ação governamental, encarregada de trazer os espaços atrasados e incultos para a civilidade. Se há limitações a esta proposta, elas parecem advir de resistências derivadas principalmente da natureza do sertão: o deserto, a terra desolada e estéril que garante condições físicas adversas à civilização e mantém o resíduo da barbárie no interior do Brasil.

O sonho romântico de juntar tempos históricos e sociais distintos parece ser abandonado na mesma medida em que o autor vai descrendo da República como o regime capaz de construir a nação, já que se perde na especulação financeira, produzindo a decomposição de caráter dos indivíduos. Sua descrença na República e na política, anterior a Canudos e posterior ao seu livro, parece indicar os limites da ação dos intelectuais denominados por Nicolau Sevcenko de "mosqueteiros intelectuais". "Sua idéia de nação parece perder-se entre as imagens de um sertão autêntico, mas retrógrado e sem futuro, de um deserto amazônico, desafio e paraíso, mas já perdido, e uma ‘civilização pesteada’, utilitária e parasitária dos centros urbanos do litoral" (Carvalho, 1997).

Entretanto a formação de engenheiro, de cartógrafo, de positivista cuja missão era trazer o progresso ao Brasil, é muito forte e se faz presente nos escritos de Euclides da Cunha tanto em sua incursão pelo sertão quanto em sua expedição pela Amazônia (Murari, 1997). Na primeira parte de Os sertões, Euclides mostra o sertão como um território estranho, um vazio, um hiato, um espaço em branco a ser preenchido. Na indiferença dos brasileiros por sua própria terra estaria a raiz desta ignorância e deste desconhecimento do território sertanejo. O sertão seria mesmo a prova da existência de fronteiras internas que ameaçavam a nacionalidade. Para Euclides era mister tornar a totalidade do espaço territorial um espaço nacional.

Sua expedição à Amazônia, que deveria dar origem a uma segunda grande obra intitulada Um paraíso perdido, não chegou a ser concluída. Seu contato com a natureza da região o leva a falar de uma terra inacabada, imprópria à ocupação humana, adversáriamesmo do homem. Esta natureza poderosa e considerada invencível, entretanto, acaba cedendo lugar à demanda por uma ação organizada e sistemática do governo nacional sobre a região visando torná-la parte efetiva do território nacional.

Como missionário do progresso, Euclides da Cunha deseja integrar o sertão à vida nacional. Isto deveria começar por um trabalho de produção de um minucioso estudo da região recolhendo os elementos causadores de sua desordem climática. Defende também um plano de combate à seca pela construção de pequenos e numerosos açudes capazes de transformar o deserto em rica região agrícola. Na Amazônia, Euclides propõe a recuperação do rio Purus, a construção de uma estrada de ferro — a Transacreana — que seria capaz de espalhar frentes de colonização e proteger as fronteiras do país. Neste sentido, Euclides pode ser visto como um precursor de idéias e projetos que foram implementados, com ou sem sucesso, anos mais tarde, como a Madeira-Mamoré, o IBGE, o DNOCS e, até mesmo, a Calha-Norte. André Rebouças, Euclides da Cunha e Cândido Rondon podem ser considerados como os mais importantes membros do panteão dos missionários do progresso e da civilização no Brasil.

Para além das propostas de engenharia nacional o papel matricial de Euclides e de Os sertões pode ser observado em inúmeras obras e autores do pensamento social brasileiro. Canudos se transmuta em obra-prima cultuada desde seu lançamento em 1902. O livro de Euclides revelou o desconhecimento que os brasileiros tinham e têm de suas populações sertanejas. Assim observa Tristão de Athayde (1981, p. 76):

Canudos era resultado de um longo erro, de um erro secular. Era o artifício da civilização brasileira que ali se expunha à luz da mais terrível realidade ... A República desorganizara a autoridade e portanto a unidade nacional, o Império não conseguira organizar a civilização no Brasil — eis o que revelavam aqueles fanáticos broncos e formidáveis do Vaza-Barris.

O artificialismo, o litoralismo político em seu sentido trágico teria sido a maior denúncia de Canudos e de Euclides, que conseguiu "revelar o erro do esquecimento em que jazia a massa dos homens brasileiros". Para Alceu Amoroso Lima, a "obra teve uma repercussão que o tempo só tem feito crescer". Desde seu lançamento o livro passou por um culto sacralizador. "Euclides constituiu de chofre um raro caso de unanimidade nacional: o livro começou a ser comentado em dezembro de 1902 e no ano seguinte o jovem escritor, antes desconhecido, é eleito para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, pelas mãos de Machado de Assis, para a Academia Brasileira de Letras" (Menezes, 1995, p. 46) . O mesmo AlceuAmoroso Lima em inúmeras conferências retoma as categorias básicas de Euclides da Cunha para pensar o Brasil falando de diferenciações espaciais segundo três eixos fundamentais — litoral e sertão; norte e sul; cidade e campo — e seus diversos tipos psicológicos correspondentes: o homem do litoral, o do sertão, o nortista e o do sul.

A presença de Euclides da Cunha e da natureza como uma das chaves explicativas do Brasil se faz presente em inúmeros autores. Podemos citar Ronald de Carvalho em ‘As bases da nacionalidade brasileira’, de 1924. Para o autor, a natureza no Brasil não expressava o homem, pois estava no "espanto primitivo dos cataclismos e das transformações geológicas" expressos no fenômeno da "terra caída", também mencionado por Euclides ao descrever os rios da Amazônia. E, continua Ronald de Carvalho (1981, p. 34),

somos atraídos pela imensidão da terra, pela maravilha da natureza. Em verdade, o brasileiro encontrou uma natureza áspera e pouco generosa para as criações do homem civilizado. Faz-se mister que ele a domine continuamente, para não ser absorvido por ela ... pois, ao menor descuido, a terra volta novamente a sufocá-lo, na magia de sua exuberância violenta e impiedosa.

A idéia de que nos diferenciamos segundo o meio geográfico permanece como chave interpretativa para a diferenciação social e cultural. Vale citar o livro de Viana Moog, Uma interpretação da literatura brasileira (1943), onde fala do Brasil como um "arquipélago cultural" cujas ilhas são: a Amazônia, o Nordeste, a Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e a capital.

Fernando de Azevedo, em A cultura brasileira (1945), fala de Machado de Assis e de Euclides de Cunha como as duas faces do espírito nacional: Machado com seu "espírito de civilização" e Euclides com o "espírito americano". Euclides fixou o local, o que há de mais particular na nacionalidade, e com a força de seu estilo "pôde apresentar a vida dos sertões, nos seus aspectos primários e brutais, e dar-nos como ninguém a sensação estranha de tudo que é grande e poderoso, contraditório e traiçoeiro na terra e na natureza tropical" (p. 352).

Pode-se destacar como o pensamento brasileiro refletiu continuamente sobre as distinções entre litoral e interior, entre cidade e sertão, demarcando as diferenças de vida social e de tipos humanos. Civilização versus barbárie, cosmopolitismo versus brasilidade parecem marcar o paradoxo do "estilo tropical" que permanece como um dos traços do pensamento brasileiro. Roberto Ventura (1991) aponta para a ambivalência do discurso europeu que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural e inocência dos habitantes da terra americana e a condenação dos seus costumesbárbaros. É preciso lembrar que um discurso negativo sobre o homem e a natureza da América permite a legitimação da expansão européia. A tese da degeneração dos animais, das plantas e do homem americano assim como a tese da juventude do continente abrem espaço para a ação civilizadora do homem branco. Viajantes e naturalistas no século XIX retomam a tese da natureza estranha e maravilhosa como aparece retratada no romance Inocência, de Taunay (1872). A valorização da natureza aparece como efeito compensador à debilidade da cultura no Brasil e esta ambivalência marca, como nos lembra Roberto Ventura, a dialética cultural entre o Brasil e a Europa.

Janaína Amado (1995b, p. 67), ao comparar a conquista do Oeste nos casos norte-americano e brasileiro, estabelece uma distinção fundamental. Nos Estados Unidos, nos diz a autora, a história uniu-se ao mito para construir a identidade nacional; "a mito-história do Oeste fez parte da construção de uma hegemonia nacional e internacional" através de uma narrativa única capaz de simbolizar a nação. No Brasil, diferentemente, há dois espaços simbólicos da conquista do Oeste: o sertão e a Amazônia. São ambos mitos de caráter regional e não foram capazes de incluir a nação inteira em uma única narrativa.

Euclides da Cunha produziu, é preciso lembrar, tanto narrativa referida ao sertão quanto à Amazônia, marcando o pensamento social brasileiro ocupado em produzir uma identidade nacional para o país.

Um dos desdobramentos do mito do sertão é o do bandeirante, responsável pelo aumento do espaço territorial da colônia portuguesa nos séculos XVII e XVIII. O movimento das bandeiras constitui a principal experiência de fronteira na história brasileira.

A categoria de fronteira seria resultado da mudança de perspectiva em relação ao sertão, já que estaria relacionada aos processos econômicos de incorporação e ocupação de "vazios demográficos". A noção de fronteira seria capaz de diluir a dicotomia litoral/sertão, já que significa a oportunidade de chegada da civilização-litoral ao sertão-interior, conciliando a qualidade positiva do litoral — a civilidade — com a crença de que no interior/sertão está preservado um Brasil autêntico.

Fronteira, assim como sertão, ou nação, não é conceito estático e atemporal. Seu sentido de delimitação, definição e referência territorial de unidades sócio-políticas envolveu um longo e múltiplo caminho. Através de diferentes processos, chegou-se à noção de exercício soberano do poder sobre um território, mas para isto foi necessário conseguir um controle militar, econômico, populacional, cultural e político-administrativo. O que hoje os mapas apresentam como parte ‘natural’ do espaço dos países, seu espaço territorial, sua identidade geográfica, foi resultado de políticas - entre outras, fiscais - pelo estabelecimento de pontos de controle aduaneiro.

Confirmando a importância do espaço na construção da identidade nacional, encontra-se a questão do ponto zero da história do país, do evento histórico original que fez nascer a nação: as bandeiras. Movimento de expansão territorial, de ocupação do "vazio" que teve lugar no período colonial, bandeira e bandeirante, assim como sertão e sertanejo, volta e meia retornam à ordem do dia como componentes do imaginário nacional.

A recuperação do ponto zero da história do país não é absolutamente questão indiscutível. Podemos citar como exemplo deste conflito na construção da memória histórica do Brasil a entrevista de Evaldo Cabral de Melo para O Globo (29.09.1997) onde o respeitável historiador do Brasil Colônia e da luta dos pernambucanos nas guerras holandesas faz a seguinte declaração:

Nunca me interessei por Antônio Conselheiro. Nem pelo sertão. Aliás, acho que o maior erro do Brasil foi não ter respeitado o Tratado de Tordesilhas. Deveria ter a geografia do Chile. A incorporação de Mato Grosso e da Amazônia foi uma tragédia. O Brasil deveria ir da Ilha de Marajó até Santa Catarina. O Rio Grande do Sul ficaria de fora...

As bandeiras e os bandeirantes estiveram também no centro da polêmica de duas imagens conflitantes na construção da memória histórica do país. De um lado, foram acusados de serem assassinos cruéis, instrumentos selvagens da classe dominante. De outro, seriam os verdadeiros construtores da nacionalidade pela bravura e integridade de sua conduta. Esta versão que tem no movimento bandeirante seu tema central por vezes se confunde com a história de São Paulo no período colonial (Abud, 1985).

A historiografia deste movimento pode ser situada em dois momentos. O primeiro, no século XVIII, e o segundo, nas três primeiras décadas do século XX. Os trabalhos de Pedro Taques de Almeida Paes Leme e de Gaspar Teixeira de Azevedo (Frei Gaspar da Madre de Deus) estavam preocupados com a história "verdadeira" e trataram de citar e transcrever as fontes de seus trabalhos. Para eles, o que se chama bandeirante era o "paulista fazendo várias entradas ao sertão", o "conquistador e descobridor das minas de ouro no sertão", o "chefe das tropas". Entre seus atributos estava a liderança de grupos que entravam nos sertões, a capacidade de prear índio, de procurar minas de ouro e pedras preciosas, de combater os ataques estrangeiros e os escravos rebelados. O chefe da expedição tinha conotação militar de comandante de tropas.

Para os dois historiadores havia a questão comum de discutir a procedência dos primeiros povoadores que estariam ligados às camadas da nobreza portuguesa, submetidos às Ordenações, constituindo a categoria de "homens bons" e enquanto tal

participando das Câmaras. As bandeiras seriam caminhos também da nobilitação, já que através de ofícios militares era possível galgar a nobreza. Tanto Taques quanto Gaspar valorizavam o orgulho de casta, a afirmação da tradição e dos valores aristocráticos do ócio, da ostentação, em oposição aos valores burgueses do trabalho e do comércio.

Para Taques, o bandeirante era o proprietário, o ocupante de cargos, o chefe militar, ameaçado pelos reinóis que vieram depois da decadência do ouro. Estes vinham para o comércio. No bandeirante estava a pureza do sangue dos primeiros povoadores.

Já para Gaspar o bandeirante se caracterizava pela mestiçagem com o índio, o que tinha enobrecido o sangue português com as virtudes indígenas. Valoriza o mameluco sem ameaçar as instituições estamentais dominantes. Os atributos do índio — "ociosidade, imprevidência, intemperança, gosto por atividades predatórias" — se ajustavam aos padrões da nobreza. Os mamelucos, chefes de tropas que destruíram missões jesuíticas, foram os fundadores de São Paulo e de outros povoamentos e foram ameaçados pelos comerciantes portugueses recém-chegados.

É bom lembrar que relatos contemporâneos ao movimento de ocupação do território são muito poucos. Os séculos XVI e XVII são marcados pelo tráfico de escravos, conquista de terras e apropriação de seus produtos, havendo questionamento acerca da humanidade ou não dos índios. Este período é marcado pela disputa entre paulistas e jesuítas e a questão não era a "legitimidade do uso de mão-de-obra indígena mas sim de quem deveria ter direitos sobre ela" (Abud, 1985, p. 24). O século XVIII recoloca a questão das bandeiras, na medida em que se discute e se fixa a posição das terras ocupadas por Portugal desde o Tratado de Tordesilhas. A descrição de caminhos, de pontos de referência e a localização de minas tinham como função preservar caminhos e roteiros que pudessem assegurar a glória dos paulistas e garantir aos portugueses o domínio da terra. Assim, as primeiras descrições e narrativas acontecem simultaneamente ao descobrimento e à exploração das minas disputadas por diferentes populações. Os Tratados de Madri (1750), El Pardo (1761) e Santo Ildefonso (1777) acabaram por consagrar os contornos territoriais do Brasil, garantindo através do princípio do uti possidetis as terras que os colonos portugueses ocuparam da Espanha em sua busca de índios.

Os Relatos sertanistas, publicados mais tarde por Taunay, têm por objeto a história dos paulistas em Minas Gerais. Narram as expedições que, partindo de São Paulo, descobriram ouro e falam dos conflitos entre paulistas e portugueses, sendo simpáticos aos paulistas. O ambiente histórico do poema ‘Vila Rica’, de Cláudio Manoel da Costa, expressa o descontentamento da camada privilegiada de Minas com o sistema colonial português e resgata opapel dos descobridores das minas com os direitos jurídicos sobre as descobertas. A guerra dos Emboabas, forasteiros, em sua luta pelo domínio das terras, nega aos paulistas a primazia pela descoberta e apresenta visão positiva dos portugueses e negativa dos paulistas.

O primeiro momento das bandeiras, caracterizado pelo domínio, destruição e aprisionamento dos índios, apresenta problemas para a história do Brasil no século XIX, já que os índios passam a ser identificados com a liberdade e com a natureza. Por outro lado, a história do país se volta para outros temas ligados à formação da nação. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro os temas considerados relevantes estão vinculados à administração colonial e aos grandes feitos dos governantes. As bandeiras são pouco relevantes ainda que estejam presentes nas obras de Varnhagen, Rio Branco e Robert Southey. Com a Independência, a centralização do poder e o enfraquecimento do poder das câmaras municipais, a maior autoridade passa a ser das províncias e dos conselhos gerais de província. Daí o tema do bandeirante - nobre ou mameluco - ser relegado ao esquecimento ou à omissão.

No século XIX, os paulistas louvados eram os que tinham feito fortuna com os canaviais e engenhos ciosos de sua ascendência européia. Com a chegada de D. João VI, "a situação invertia-se, antes ter título de nobreza assegurava prestígio, hoje o prestígio conseguia o título. E o prestígio estava sobretudo ligado à riqueza, não à tradição" (Abud, 1985, p. 112). Os comerciantes enriquecidos e os proprietários de canaviais e cafezais tinham pouca ou nenhuma vinculação com o bandeirante. Não procuravam vínculos com o passado da província, com os primórdios da colonização ou com as bandeiras. Tinham os olhos voltados para a corte. A defesa da Faculdade de Direito em São Paulo não se deu em nome do passado remoto, mas sim em nome do papel desempenhado pela província na revolução da Independência.

Como diz Katia Abud (p. 117), o índio histórico foi derrotado, escravizado. O índio mitológico de antes da chegada do homem branco à terra permanece. Mas frente a este o bandeirante é difícil de ser incorporado à história pátria na medida em que destruiu o mito da invencibilidade do indígena. Na questão da escravização dos índios a historiografia tem de lidar com o papel dos jesuítas e da Companhia de Jesus, outro grande tema que não será aqui discutido.

Uma leitura do papel do índio na cultura brasileira do século XIX é apresentada por John Monteiro (1996) . O autor nos mostra como o Império apresenta um conjunto de atributos positivos das "raças nativas" que teriam, através da mestiçagem, contribuído para a formação do povo brasileiro. O tupi, visto como nobre guerreiro, não sobrevivera enquanto povo, mas seria a matrizda nacionalidade realizada através de alianças e da mestiçagem com o luso. Um conjunto de atributos negativos relacionados à inferioridade moral, física e intelectual também se faz presente no século XIX, justificando a exclusão dos índios e expresso na figura do tapuia. O tapuia é o inimigo, o selvagem traiçoeiro que atrapalha o avanço da civilização. O tupi versus o tapuia, enquanto figuras emblemáticas, dão origem à diversidade de posições civilizatórias. Para os primeiros fala-se de catequese e civilização. Para os segundos, remoção e extermínio. Os pressupostos do modelo bipolar tupi/tapuia marcavam a tensão entre políticas assi-milacionistas e repressivas existentes e condicionaram o consumo das doutrinas raciais no final do século XIX. John Monteiro nos lembra também que, enquanto durou a escravidão, o debate em torno das idéias de raça e civilização fixava-se prioritariamente no índio.

O café no final do século XIX fez São Paulo ocupar mais espaço no cenário político nacional, dando origem ao crescimento do núcleo urbano a partir de 1870. A entrada de escravos de outras províncias após a proibição do tráfico se esgota, passando a ser economicamente inviável. Daí o estímulo de entradas de brancos através da imigração. Com o fluxo imigratório, os negros libertos passam a ocupar funções mais desclassificadas. A expansão dos cafezais ocupa terras antes deixadas aos indígenas. Os índios perderam suas terras para plantadores de café, assim como os posseiros pobres, que também foram desalojados.

No final do Império, a província de São Paulo ocupa ainda posição secundária no cenário nacional, acumula ressentimentos e desen-volve a idéia de federação e até de separatismo. São Paulo aparece como região capaz de financiar e expandir sua economia exportadora, mas isto só seria possível com um governo republicano. A criação do Partido Republicano Paulista em 1873 congrega esta plataforma. Os ‘quatrocentões’ (a maioria provinha de famílias com menos de um século no Brasil) não abriram mão de seu poder para permitir aos recém-chegados ascenderem politicamente. A coesão interna foi mantida por fortes ligações familiares e pela homogeneidade da elite que se formava no curso da Faculdade de Direito.

É na República que acontece a luta por manter São Paulo no controle da vida política no país, não só pelo progresso e riqueza, mas porque "sempre fora" a região mais progressista, ativa e conquistadora, que expandiu o território, enriqueceu a metrópole com o ouro, e por sua tradição de arrojo e vitalidade. Foi nesse período, entre 1890 e 1930, que a figura do bandeirante foi resgatada como símbolo da pujança paulista baseada em qualidades individuais de coragem, determinação e ao mesmo tempo em atributos nacionais, já que fora a ação destes homens que dera sentido à integração territorial do país.

No século XX, os autores que mais se destacaram na retomada da questão do bandeirante são: Afonso D’Escragnolle Taunay, Alfredo Ellis Júnior e José de Alcântara Machado. As obras de Frei Gaspar e de Pedro Taques são retomadas como base para a construção das matrizes do novo conhecimento sobre as bandeiras e os bandeirantes. Os três reconhecem no bandeirante o mameluco audaz que expandiu as fronteiras e descobriu o ouro. Foram membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e/ou de São Paulo e pertenciam à elite política paulista cuja ascendência estava nos heróis bandeirantes.

Afonso D’Escragnolle Taunay foi criador e diretor do Museu Paulista e era filho de Alfredo D’Escragnolle Taunay , o já citado autor de Inocência e de A retirada da Laguna. Produziu a monumental História geral das bandeiras paulistas, iniciada em 1924 e só concluída em seu 11º volume em 1950. Foi influenciado por Capistrano de Abreu, que considerava que até o final do século XIX e início do XX a história do Brasil tinha sido a história do litoral. Defendia a necessidade de voltar os olhos para o interior, escrever a história das incursões pelos sertões, como estava indicado em seu livro Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Em sua obra, todavia, Capistrano questiona a matança e destruição dos povos indígenas pela ação dos bandeirantes. Capistrano convenceu Taunay a se dedicar ao tema e perseguir a valorização da descoberta de novos documentos como o caminho para a escrita da nova história. Taunay se detém na figura do chefe da bandeira como eixo predominante de sua história e reconstrói a organização das bandeiras em ciclos: o da devassa das terras e o do ouro, também nomeado de monções. O autor valoriza a expansão territorial e não o apresamento de índios. Considera mesmo que a escravidão indígena foi circunstancial, enquanto se esperava as levas de escravos africanos. Os mamelucos formaram uma raça aclimatada ao solo e ao clima, e o êxito da expansão territorial acaba por compensar a dizimação dos povos inferiores (Abud, 1985, p. 173).

Alfredo Ellis Júnior vai valorizar a cruzamento do branco ibérico com o ameríndio, produzindo uma sub-raça superior. Se a mestiçagem brasileira desqualifica seu povo, a mestiçagem paulista o valoriza. A prova de sua superioridade estaria na capacidade de se reproduzir, ou seja, em sua fecundidade, e na longevidade dos habitantes do planalto paulista. Fazendo uso da interpretação de Frei Gaspar, não rejeita a mestiçagem que produziu um mameluco bravo, pioneiro, capaz de empreendimentos que denotam a iniciativa individual. Os bandeirantes pertencem às melhores famílias da terra, se destacam como guerreiros e como pioneiros do individualismo, avalizando a hegemonia paulista. Ellis Júnior procurou mostrar as bases científicas e históricas da especificidade do caráter paulista, o que constituiria a base do papel econômico e político a serdesempenhado por São Paulo na República. Aluno de Afonso Taunay, teve seu interesse pela história redobrado a partir da publicação dos primeiros volumes dos Inventários e testamentos em 1920 por iniciativa de Washington Luís. Em 1923 ingressou no Correio Paulistano, onde conviveu com Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado. Foi deputado estadual antes de 1930 e participou da Revolução de 1932, quando escreveu o livro Confederação ou separação. Foi novamente deputado estadual em 1935, tendo seu mandato interrompido pelo golpe de 1937. Assumiu a cadeira de história da civilização brasileira na Faculdade de Filosofia da USP, onde permaneceu até 1956. Suas obras O bandeirismo paulista (1924) e Raça de gigantes (1926) apresentam três pressupostos fundamentais que orientam a concepção da história paulista: o isolamento do planalto durante todo o período formativo, o caráter específico da mestiçagem luso-indígena — e a correspondente ausência do negro africano — e o fenômeno sui generis do bandeirantismo paulista (Monteiro, 1994). Diante do pessimismo frente ao futuro de uma nação mestiça, Alfredo Ellis Júnior e outros intelectuais paulistas procuraram resgatar o antepassado tupi e exaltar a mestiçagem que ocorreu no planalto paulista. O mameluco assume um papel histórico sem paralelos ao se constituir como sub-raça dinâmica, selecionada e forte — sub-raça de gigantes —, o que concilia o caráter específico da mestiçagem paulista com os postulados cientificistas da época. A blague de Oswald de Andrade, "Tupy or not Tupy, that’s the question", dava uma resposta antropofágica ao tema do imaginário paulista de sua época.

José de Alcântara Machado, em sua obra Vida e morte do bandeirante, desmistifica aspectos difundidos por Pedro Taques e que foram retomados por Oliveira Vianna: São Paulo como cidade habitada por nobres refinados e cultos. Esta versão não pôde sobreviver à vista dos inventários e testamentos dos paulistas do século XVII. O autor estudou as fortunas, o povoado, o sítio da roça, o vestuário, as doenças e os remédios, a organização da família e a escravaria, a religião e o comportamento diante da morte. A mistura do sangue de um povo de marinheiros com o sangue de tribos errantes produziu um homem pobre, analfabeto, de modos grosseiros, mas com um toque de austeridade e heroísmo.

Este debate sobre a formação étnica dos bandeirantes está presente em outros autores, valendo citar Oliveira Vianna, Paulo Prado e Basílio de Magalhães. Oliveira Vianna faz uso do mesmo fundamento de Alfredo Ellis Júnior a respeito do mestiço superior, diferente dos outros mestiços do Brasil. Esta mestiçagem seria selecionada e daria ocasião à formação de uma aristocracia. Ao falar do desacordo entre o idealismo da Constituição e a realidade nacional, Oliveira Vianna esclarece que no Brasil não havia "regime de opinião" e que não bastava a concessão do sufrágio para queele surgisse. As classes não têm solidariedade alguma, dada a enorme dispersão demográfica do país. O grosso do eleitorado do país é formado pela população rural composta por párias, sem terra, sem lar, sem justiça, sem direitos e dependentes dos grandes senhores rurais.

Oliveira Vianna constrói sua interpretação sobre o Brasil associando formação territorial e dificuldades para o estabelecimento de formas de identidade. Para ele, as extensões territoriais, pulverizando a população em pequenos núcleos organizados no interior das fazendas, bloqueariam a construção de qualquer solidariedade. A forma dispersa de povoamento levou o Estado a assumir formas mais centralizadas, como no Império, ou descentralizadas, como na Colônia e na República. Em todos os casos não foi resolvido o problema da unidade nacional, ameaçada pelas tendências separatistas. As profundas descontinuidades demográficas do país têm papel relevante na chave interpretativa do autor. Oliveira Vianna (1991a) destaca a permanência do eugenismo paulista, revelada pela persistência dos caracteres mentais dos antigos paulistas (construtores de estradas e descobridores de ouro) e pelos paulistas modernos (fazendeiros de café do Oeste e fundadores de cidades). São as características do "gênio americano", marcado por grandes empreendimentos e pela capacidade de sobrevivência.

Paulo Prado em ‘Paulística’ (1925), artigo que compõe o livro Província e nação, se refere ao mameluco como homem marcado pela ambição e amor pela aventura, pela glória da conquista, apanágios da aristocracia. O autor estava também tentando responder à questão apresentada por Capistrano de Abreu, ao indagar se o aumento territorial teria compensado o horror da caça ao índio.

Basílio de Magalhães classifica a história dos paulistas no ciclo das entradas dentro da linha de Tordesilhas, e o ciclo das bandeiras para além desta demarcação. Nele se encontra a valorização do papel da hidrografia, que mais tarde será retomada por Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Para Basílio de Magalhães, a epopéia do sertão, a Independência (com José Bonifácio), a Regência (com Feijó), a luta pela Abolição e pela República e a introdução dos imigrantes são todas iniciativas dos paulistas, que podem ser chamados de "ianques da América do Sul" (Abud, 1985, p. 177).

Este debate e reinterpretação do significado das bandeiras e dos bandeirantes foi acompanhado pela publicação das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo e mais tarde dos Inventários e Testamentos dos séculos XVI e XVII, realizados por Washington Luís enquanto prefeito e presidente do estado de São Paulo.

A imagem do bandeirante foi retomada por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932. A visão do homem destemido, da raça privilegiada que trouxe o progresso e anexou ao Brasil regiões distantes, é retomada na luta. Panfleto anônimo, ‘São Paulo, sua terra e sua gente’, o Jornal das Trincheiras e O Separatista apelam para a coragem, a bravura do paulista/bandeirante.

Os versos de Menotti del Picchia para o hino ‘Anhangüera’ corroboram esta versão. Só mais tarde Cassiano Ricardo faria novamente uso da figura histórica do bandeirante, associando-o ao Estado Novo, entretanto esta não conseguiu ter a mesma força que tinha durante a Primeira República, ao representar simbolicamente a elite paulista.

A expansão territorial conseguida através do movimento das bandeiras foi lida, relida e reinterpretada em diferentes momentos da história paulista e nacional. O movimento das bandeiras permite acompanhar uma das vertentes da fronteira do pensamento brasileiro. A possível comparação entre este movimento no Brasil e nos Estados Unidos não escapa a Oliveira Vianna (1991b). Para ele há duas concepções de fronteira, ou duas fronteiras: "a que decorre dos tratados internacionais e está expressa na configuração geográfica do território nacional e a que decorre da nossa própria estrutura econômica e social e está expressa na posse, na apropriação e exploração efetiva deste território nela compreendido". Para que as duas coincidam, é necessário a "marcha para o Oeste e a organização de territórios". As regiões fronteiriças carecem de condições de vida autônoma pela baixa densidade demográfica e pela ausência de estrutura social. Falta uma classe superior, uma "nobreza da terra" que possa ocupar os cargos da administração local — uma classe dirigente — que permita o funcionamento eficiente da máquina administrativa municipal num regime autônomo, de tipo democrático. E continua:

Nada há de antidemocrático, nem mesmo contrário ao regime federativo... Este expediente [criar territórios] foi o processo normal de que os Estados Unidos lançaram mão para preparar a organização social, econômica e administrativa de vastas extensões conquistadas aos peles-vermelhas pela audácia dos pioneiros e lot-jumpers, e que hoje são ricos e grandes estados daquela União. Assim: o Arizona, o Arkansas, Oklahoma, os dois Dakotas, Ohio, Idaho, Utah, Montana, Novo México. É que os americanos - homens pragmatistas e dotados do senso realista em política - sempre souberam distinguir lucidamente estes dois problemas inteiramente distintos: a administração local, a que toda população, seja qual for a sua condição de estrutura ou de processo, temdireito; e a administração local autônoma, a que só fazem jus os grupos locais que tenham capacidade para ela.

A recuperação da imagem do bandeirante na história brasileira desempenhou uma função mítica capaz de organizar o mundo simbólico principalmente para os paulistas que estavam atravessando um processo acelerado de industrialização e tendo que transformar em brasileiros um enorme contingente de forasteiros, imigrantes que dele participaram. A hipótese interpretativa que guia esta leitura pode ser assim expressa: A retomada, a revalorização do bandeirante — de seus atributos — serve não para dizer quem é o paulista mas para dizer como é o paulista e assim ser possível socializar, aculturar seus imigrantes e migrantes.

Esta hipótese se inspira na recuperação do cowboy, como imagem central da identidade nacional norte-americana. Foi através da construção mitológica de um tipo nacional que se definiu um ser americano e se viabilizou o sonho de ‘fazer a América’ para milhões de imigrantes que para lá se dirigiram.

O sucesso e/ou os limites simbólicos desta narrativa sobre as bandeiras e os bandeirantes no Brasil ainda precisam ser melhor analisados, mas sua incapacidade em se transformar em matriz única da narrativa histórica da nação não nos deve fazer ignorar sua importância no tempo e no espaço.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 1998
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