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Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal)

The small pox vaccine: its first century in Brazil (from the Jennerian to the animal vaccine)

Resumos

Neste artigo abordamos aspectos da institucionalização da vacina antivariólica no Brasil, em cerca de um século. Apresentamos descobertas e discussões ocorridas em outros países, mostrando seus reflexos em nosso país desde a introdução da vacina humanizada até a chegada da vacina animal e a criação do Instituto Vacínico Municipal, por iniciativa particular do dr. Pedro Affonso Franco, o barão de Pedro Affonso. A introdução da vacina animal significou um avanço no controle da doença e impulsionou as discussões que redundaram no alinhamento de grupos médicos e políticos em torno de Oswaldo Cruz ou do barão de Pedro Affonso. Com a incorporação do Instituto Vacínico aos laboratórios de Manguinhos, terminou a polêmica que agitou os meios acadêmicos e políticos.

vacina antivariólica e sua história; história e saúde pública; história da ciência e da técnica; Jenner e Pasteur; barão de Pedro Affonso e a varíola


Covering a period of roughly hundred years, the article looks at some of the more meaningful events during the period in which the small pox vaccine was institutionalized in Brazil. Discoveries and discussions then taking place in other countries are also examined, particularly as they influenced Brazil. The process is followed from introduction of the human vaccine to the arrival of the animal vaccine and creation of the Municipal Vaccine Institute - a private initiative by physician Pedro Affonso Franco, also known as the barão de Pedro Affonso. Adoption of the animal vaccine not only represented progress in controlling the disease but also spurred discussions that saw medical and political groups in Brazil taking sides with either Oswaldo Cruz or the barão de Pedro Affonso. The debate continued within the academic and political arenas until the Vaccine Institute was made part of the Manguinhos laboratories.

small pox history; small pox vaccine; history and public health; history of science and technology; Jenner and Pasteur; barão de Pedro Affonso and small pox


Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal)

The small pox vaccine: its first century in Brazil (from the Jennerian to the animal vaccine)

Tania Fernandes

Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Av. Brasil, 4365 Prédio do Relógio

21045-900 Rio de Janeiro — RJ Brasil

e-mail: taniaf@fiocruz.br

FERNANDES, T.: ‘Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal)’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(1): 29-51, mar.-jun. 1999.

Neste artigo abordamos aspectos da institucionalização da vacina antivariólica no Brasil, em cerca de um século.

Apresentamos descobertas e discussões ocorridas em outros países, mostrando seus reflexos em nosso país desde a introdução da vacina humanizada até a chegada da vacina animal e a criação do Instituto Vacínico Municipal, por iniciativa particular do dr. Pedro Affonso Franco, o barão de Pedro Affonso.

A introdução da vacina animal significou um avanço no controle da doença e impulsionou as discussões que redundaram no alinhamento de grupos médicos e políticos em torno de Oswaldo Cruz ou do barão de Pedro Affonso. Com a incorporação do Instituto Vacínico aos laboratórios de Manguinhos, terminou a polêmica que agitou os meios acadêmicos e políticos.

PALAVRAS-CHAVE: vacina antivariólica e sua história, história e saúde pública, história da ciência e da técnica, Jenner e Pasteur, barão de Pedro Affonso e a varíola.

FERNANDES, T.: ‘The small pox vaccine: its first century in Brazil (from the Jennerian to the animal vaccine)’.História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(1): 29-51, Mar.-Jun. 1999.

Covering a period of roughly hundred years, the article looks at some of the more meaningful events during the period in which the small pox vaccine was institutionalized in Brazil. Discoveries and discussions then taking place in other countries are also examined, particularly as they influenced Brazil. The process is followed from introduction of the human vaccine to the arrival of the animal vaccine and creation of the Municipal Vaccine Institute — a private initiative by physician Pedro Affonso Franco, also known as the barão de Pedro Affonso. Adoption of the animal vaccine not only represented progress in controlling the disease but also spurred discussions that saw medical and political groups in Brazil taking sides with either Oswaldo Cruz or the barão de Pedro Affonso. The debate continued within the academic and political arenas until the Vaccine Institute was made part of the Manguinhos laboratories.

KEYWORDS: small pox history, small pox vaccine, history and public health, history of science and technology, Jenner and Pasteur, barão de Pedro Affonso and small pox.

11passando-se a utilizar vitelos para esse fim, com o emprego da vacina animal. Este acontecimento significou não só um avanço para o controle da doença, como um importante impulsionador de discussões que, no Brasil, levaram ao alinhamento de grupos médicos e políticos em torno das opiniões divergentes de Oswaldo Cruz e do barão de Pedro Affonso, dr. Pedro Affonso Franco (Fernandes, 1991, 1989). Inicialmente, após os estudos de Jenner, a vacina era produzida no organismo humano por inoculações sucessivas, processo este denominado de vacinação "braço a braço", e a vacina como jenneriana ou humanizada. Posteriormente, a vacina passou ser a extraída de vitelos inoculados artificialmente, tornando-se conhecida como vacina animal.

Introdução

A varíola, até sua plena erradicação, na década de 1970, ocupou no quadro epidemiológico mundial lugar de expressão, difundindo-se indiscriminada e violentamente. Trata-se de uma doença hoje aparentemente inócua, mas que ao longo de séculos dizimou populações deixando marcas físicas e sociais indeléveis.

Várias foram as tentativas de controlar sua expansão, desde as práticas empíricas de inoculação da própria doença — conhecida como variolização — até a produção, em larga escala, da vacina, sustentada pelo desenvolvimento de um profundo conhecimento de microbiologia e imunologia e por importantes descobertas técnicas, com destaque para a microscopia eletrônica. No final do século XVII, a partir dos testes relativos à possível proteção natural contra a varíola elaborados por Jenner, chegou-se ao aprimoramento do método experimental das ciências biomédicas, à identificação do agente da varíola e da vacina antivariólica e à elucidação do ‘mecanismo imunitário’ que as envolve.

Após intensa polêmica travada ao longo de séculos, em torno dos métodos de combate à doença, alcançou-se, com sua erradicação, o controle absoluto do vírus e sua preservação fora do organismo humano, em frascos de laboratório. Elucidou-se a diferença entre a varíola e a vacina antivariólica, hoje compreendidas como duas doenças similares, englobadas num ‘complexo’ denominado ‘varíola-vacínia’ (Bier, 1975; Angulo, 1982).

Apesar de tratar-se de uma doença erradicada mundialmente na década de 1970, a varíola vem provocando polêmica entre especialistas em decorrência da proposta de extermínio do vírus que, desde a erradicação da doença, está conservado em dois importantes laboratórios. Se, por um lado, a preservação do vírus — mesmo cercado de forte esquema de segurança — simboliza um risco para o homem, por outro, seu extermínio expressa a primazia do ser humano sobre todas as formas vivas. A discussão sobre esse assunto — que, aparentemente, tende para o extermínio como solução — envolve interesses diversos em fóruns diferentes de debate, tais como segurança bélica mundial, bioética e a própria virologia, que vem utilizando esse vírus para os estudos sobre a Aids.

Se atualmente a questão envolve o destino de um microrganismo prisioneiro, em outros momentos, o problema era descobrir como impedir que ele se difundisse pelo mundo e debelasse grande parcela da população humana, conforme ocorreu em conseqüência de várias epidemias.

Nossa intenção é abordar alguns dos pontos que nos parecem mais significativos para o período de institucionalização da vacina antivariólica no Brasil. Para tanto, trazemos para este artigo, além das mais importantes descobertas sobre o assunto, discussões travadasem outros países sobre o tema, apontando alguns de seus reflexos em nosso país, até o momento da introdução da vacina animal entre nós e da criação do Instituto Vacínico Municipal. O desenvolvimento do assunto feito dessa forma nos fará percorrer cerca de um século de vacina antivariólica.

Este texto busca também marcar os 110 anos de introdução da vacina animal em nosso país, vacina essa que já era comum nos países europeus desde meados do século XIX. Deixava-se de usar o homem como suporte para a produção do imunoterápico,
22em pessoas sadias, com a finalidade de reproduzir esse fenômeno (Jenner, 1798). A partir da pústula desenvolvida na vaca, Jenner obteve um produto que passou a denominar vacina (‘da vaca’) que, ao ser inoculado no homem, fazia surgir, no local das inoculações, erupções semelhantes à varíola. Dessas erupções era retirada a "linfa" ou "pus variólico", utilizado para novas inoculações. Formava-se assim uma cadeia de imunização entre homens, funcionando o cow-pox da vaca como um primeiro agente imunizador, e o homem como produtor e difusor da vacina. Essa vacina ficou conhecida como "vacina jenneriana" ou "humanizada". Os testes de Jenner vieram alterar uma prática bastante remota, a ‘variolização’, que se baseava na constatação de que os indivíduos que sobreviviam à varíola não mais a contraíam, e que a implantação artificial de sua forma benigna (variolóide) poderia provocar defesa contra a doença. Julgava-se possível reproduzir a doença em sua expressão similar, igualmente benigna. A ampla propagação da técnica de variolização acabou mostrando que esse processo permitia o desenvolvimento das diferentes manifestações da doença, independentemente da forma original, redundando, de sua aplicação, altos índices de mortalidade nos indivíduos inoculados. Cada inoculação poderia, na realidade, originar um doente, que além dosriscos da varíola em sua forma confluente e letal tornava-se um agente de difusão da doença (Darmon, 1986; Chalhoub, 1996; Moulin, 1996). A diferença entre a variolização e a vacina de Jenner é que a primeira tentava implantar a forma benigna da varíola, e a segunda buscava evitar a varíola através do acometimento de doença não letal. É preciso destacar que o conceito de imunidade que explicaria o fenômeno da vacina criada por Jenner não havia sido ainda elaborado e que o instrumental responsável pela comprovação de sua hipótese resumia-se na reprodução de ‘fatos’ observados, em condições naturais, pela inoculação em indivíduos. Dessa forma, a experiência detinha-se numa tentativa de reprodução da natureza (Darmon, 1986). A vacina jenneriana foi, inicialmente, recebida com descrédito e receio, que acabaram sendo relativamente superados: a vacina difundiu-se por todo o mundo, ao mesmo tempo em que novos estudos vinham somar-se aos originais. Propagou-se pela Europa e, posteriormente, Edward Jenner (1749-1823) nasceu em Berkeley e concluiu seus estudos em Londres, retornando em seguida à sua cidade, onde iniciou testes com relação à varíola. Inicialmente, seus trabalhos tiveram pouca repercussão, porém, após o sucesso de algumas experiências na Itália, na Áustria e na Alemanha, ganhou reconhecimento do governo inglês. Logo depois, iniciou-se ampla divulgação e difusão da vacina antivariólica por todo o mundo, atribuindo-se a Jenner a célebre descoberta.

33pela América do Norte, tendo chegado ao Brasil ainda no século XVIII. Cerca de vinte anos depois da descoberta da vacina, percebeu-se que, algum tempo após a inoculação, seu efeito imunitário era perdido. Isso gerou discussões e novas experiências na tentativa de reativação da vacina. Em 1840, como resultado desse processo de investigação, o cow-pox original foi localizado, iniciando uma nova etapa da imunização antivariólica, com a utilização da vacina retirada diretamente da pústula da vaca e inoculada no homem. Quebrava-se assim a cadeia de imunização conhecida como ‘de braço a braço’, iniciando-se a era da ‘vacina animal’. A vacina humanizada, segundo referências na documentação oficial, foi introduzida no Brasil em 1804 pelo marechal Caldeira Brand Pontes (marquês de Barbacena), que enviou a Lisboa alguns escravos e um especialista ("facultativo") a fim de que a vacina fosse transmitida de braço a braço até a Bahia, de onde foi da mesma forma trazida para o Rio de Janeiro, ainda em 1804.

A descoberta da vacina e sua difusão: de Jenner a Pasteur
A vacina antivariólica, surgida em fins do século XVIII (1797), resultou da observação de Jenner quanto ao fenômeno de ‘proteção’ contra a varíola, adquirida por algumas pessoas ao entrarem em contato com uma doença similar que acometia os bovinos, conhecida como cow-pox (pústula da vaca). A observação desse fato em um grupo de ordenhadores incitou-o a desenvolver uma série de testes
A mudança na técnica de produção da vacina antivariólica, a partir de então, deixava de usar o homem como ‘instrumento’, diferença básica observada entre as duas vacinas, a jenneriana e a animal. Conceitualmente, ambas têm a mesma lógica: uma doença produzindo imunidade para outra semelhante. A vacina de origem animal consistia, na realidade, em uma mudança técnica da vacina de Jenner, na medida em que era igualmente produzida a partir do cow-pox.
Não se conhecia ainda o agente etiológico da varíola, nem o princípio de seu processo imunitário; somente podia ser comprovada a eficácia da técnica de vacinação através de verificações estatísticas, indicadoras de que a vacina animal apresentava mais atividade que a humana, além de ser também de aplicação menos agressiva, pois eliminava-se a fase extremamente dolorosa de extração da linfa no homem.
Apesar do significativo avanço para o controle da doença, incrementado pela descoberta das duas vacinas, existia um movimento contrário à utilização desses métodos profiláticos. Não obstante a comprovação de sua eficácia, a vacina animal demorou mais de vinte anos para se difundir fora de seu país de origem, chegando ao Brasil somente em 1887.
Entre as justificativas antivacínicas — tanto para a vacina humanizada quanto para a animal —, verifica-se a associação da vacina com outras doenças que poderiam ser transmitidas através da inoculação. Aparecia aí uma gama enorme de doenças passíveis de transmissão; as mais expressivas seriam, no caso da vacina humanizada, a tuberculose, a sífilis e a erisipela. Quanto à vacina animal, a demora de sua difusão nos países europeus era também conseqüência do receio em relação ao uso de um produto terapêutico extraído da vaca. Afirmava-se que a inoculação da vacina ‘avacalharia’ as pessoas, transplantando-lhes características do animal, além de transmitir doenças próprias desses animais para os indivíduos inoculados. No Brasil, ao longo do século XIX, a essas razões se somava a carência de formação científica institucionalizada, dificultando a importação da técnica, que requeria procedimentos específicos no sentido de sua produção e conservação.
Durante o século XIX, principalmente a partir de sua metade, as experiências de Jenner foram sendo aprofundadas, e a elas se incorporaram as investigações que marcaram a ciência biomédica do período, notabilizada pelo aprimoramento do método experimental. Em nosso país, é somente na virada do século XIX para o século XX que, de forma mais sistemática, se começam a produzir conhecimentos com base experimental no âmbito da medicina, o que ocorre, principalmente, a partir da criação de institutos de pesquisa e produção de imunoterápicos, com destaque para os do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Embora existam muitas referências de Pasteur à vacinação, é preciso destacar — para acompanhar o pensamento de Anne Marie Moulin — que a medicina pasteuriana não construiu bases teóricas para a imunidade propriamente dita; preocupava-se antes em generalizar o conceito de imunização através da atenuação da virulência dos microrganismos. Segundo a autora, os seguidores de Pasteur buscavam, naquele momento, estabelecer "um programa empírico de imunização", através do controle em laboratório do desenvolvimento dos microrganismos, mas não se preocupavam com o fenômeno de atenuação in vivo. Para tal, seria necessária a compreensão do fenômeno imunológico, somente conquistada posteriormente. Essa autora, que considera a imunidade um ponto fraco das teorias microbianas, estabelece ainda uma distinção entre a imunologia — ciência autônoma, posterior a Pasteur — e a "vacinologia", denominação por ela atribuída à prática relacionada à vacina, que engloba desde a organização industrial da produção até a vacinação. Ressalta ainda a diferença entre a imunização, concebida como conjunto de técnicas, e a ciência da imunidade, portadora de um referencial teórico próprio, afirmando que "a vacinologia é hoje uma doença em vias de autonomia" (Moulin, 1991, p. 47; 1996, p. 41).
Apesar de Pasteur concordar com Jenner quanto à descrição da vacina antivariólica como um produto natural, é importante assinalar que a compreensão da vacina tal como formulada pelos dois estudiosos provocou mudanças bastante significativas no modo de concebê-la. Pasteur imprimia a essa definição um significado diferente, incorporando-a à conceituação teórica que embasava a recém-criada microbiologia e relacionando-a à presença de um microrganismo.
A introdução da vacina animal como proteção contra a varíola — apesar de coincidir com o início das pesquisas desenvolvidas com a utilização do método experimental — não está estreitamente relacionada às concepções que seriam geradas nesse contexto do conhecimento médico. Acreditamos não ter sido o movimento pela medicina experimental fator determinante nem do retorno ao cow-pox nem da utilização da vacina antivariólica animal. Foi, na realidade, o resultado de um processo de aperfeiçoamento técnico do poder de imunização da vacina antivariólica, em que se reproduziam fatos constatados por Jenner.
É importante chamar atenção para a incorporação à literatura científica pasteuriana de determinados termos, originados no período pré-pasteuriano, como vacina, vírus, linfa, imunização, virulência. Tal incorporação, muitas vezes, emprestou novos significados aos termos originais. A microbiologia alterou o conceito de ‘vacina’ — que originalmente significava ‘da vaca’ —, associando-o às respostas imunitárias dadas por um microrganismo, independentemente de sua relação com bovinos. O termo vacina passa, assim, a se vincular a todas as substâncias fabricadas para produzir ‘imunização’. Essa palavra, por sua vez, só posteriormente veio a ter o conceito científico de hoje, que a associa ao complexo processo imunitário. Por ‘vírus’ passou-se a designar um determinado grupo de microrganismos, visualizáveis apenas a partir de meados deste século, com a invenção do microscópio eletrônico. ‘Virulência’, palavra que expressa a ação do microrganismo, é outro componente da terminologia da nova ciência. Alguns termos conservam seu significado original, como é o caso de ‘vírus-vacina’, "o vírus que causa a doença e não a morte, preservando da ação do vírus mortal, seguindo a lei geral da não recidiva das doenças virulentas" (Vallery-Radot, vol. VI, 1922, p. 339; Portocarrero, 1991).
Pasteur considerava a vacina antivariólica como a doença em sua forma mais branda. Afirmava ele: "A vacina jenneriana é um vírus que produz uma doença benigna; uma vez que a tivemos ela preserva de uma doença mais grave frequentemente mortal, que é a varíola, ...; não é um produto de laboratório, é um produto natural; ele provém como todo o mundo sabe, de uma doença própria da vaca e do cavalo" (Valery-Radot, vol. VI, 1992, p. 258).
A idéia central, introduzida por Jenner, de que a vacina antivariólica produzia uma doença foi, como já dissemos, acatada por Pasteur, para quem o vírus presente na vacina não era o da varíola, mas sim um vírus similar, modificado pela disseminação no gado bovino. Apesar de compartilharem da mesma compreensão da vacina como doença, os dois pesquisadores guardavam diferenças bastante profundas em relação ao entendimento do processo. Para Pasteur, o ponto fundamental era a presença de um agente etiológico específico, sobre cuja ação era possível estabelecer controle.
Ao longo do século XX, os avanços do conhecimento, tanto no âmbito da produção quanto no da conceituação teórica, permitiram mudança substancial na compreensão dos mecanismos da vacina e na difusão de seu uso. O laboratório, para a vacina antivariólica, funcionaria como espaço essencial de controle — principalmente da virulência da vacina — através de ações físico-químicas. Ao passar pelo laboratório, esta ‘doença’ seria controlada, ou seja, seria atenuada ou potencializada.
A vacina continuou a ser produzida em grande escala, preferencialmente em vitelos, apesar de várias pesquisas tentarem alterar a sua produção, utilizando meios de cultura, embrião de galinha e outros animais, principalmente o coelho. O aprofundamento teórico e experimental dos últimos anos do século XIX possibilitou alterações na técnica de produção da vacina, introduzindo alguns procedimentos na etapa posterior à retirada da secreção das pústulas do vitelo. Agentes físicos e químicos foram indicados para purificação, atenuação e conservação. Buscava-se, com isso, o domínio sobre o imunoterápico fora do organismo humano, que deixava de ser o único meio de experimentação. A vacina só era aplicada depois de comprovada sua eficiência em cobaias ou in vitro.
Um dos primeiros avanços nesse sentido, em relação à vacina antivariólica, ocorreu em Berlim, em 1886, com a introdução da glicerina como substância purificadora e conservadora para o imunoterápico, procedimento que se tornou de uso universal. Essa descoberta, de grande valia, resultou da comprovação de que a vacina continha restos celulares, líquidos orgânicos e outros microrganismos que precisavam ser eliminados ou controlados.
As experiências alteraram também a concepção de varíola, possibilitando a elucidação do agente etiológico, a compreensão do processo imunológico natural, da fisiopatologia e da terapêutica. O permanganato de potássio tornou-se um agente fundamental no tratamento da doença, na medida em que eliminava os microrganismos que provocavam infecções secundárias e agravavam a doença.
Hoje, a varíola e a vacina antivariólica, ao fim de intenso processo de investigação e de conquistas técnico-científicas que propiciaram a erradicação da doença, são compreendidas como duas doenças similares, que formam um ‘complexo’ denominado ‘varíola-vacínia’. Isolado um vírus denominado Poxvírus officinale, responsável pelas pústulas vacínicas e diferenciado do vírus causador da própria varíola, a doença ocasionada pela vacinação passou a ser conhecida como vacínia (Bier, 1975; Angulo, 1982).
Como definição para a vacina antivariólica, afirma-se atualmente: — "consiste em suspensão de tecidos animais, geralmente, pele de vitela ou membrana corio-alantóide de embrião de galinha, contendo o vírus ativo (vivo) da vacínia. Esse vírus, o ‘Poxvírus officinalle’ é mutante, obtido no laboratório pela passagem seriada do vírus da varíola da vaca (cow-pox), ou, ainda, do vírus da varíola humana, em pele de vitela e de coelho (Angulo, 1982, p. 56).
Sobre o cultivo do vírus — tanto o variólico quanto o vacínico — em cobaias e em meios de cultura, várias foram as tentativas experimentais. Em 1889, foi detectada a receptividade do coelho para esses vírus, como se pode ver nos trabalhos de Calmette, Guérin, Noguchi e Levaditi. A técnica de cultura de tecidos para o cultivo do vírus vacínico foi introduzida somente em 1925, por Pasker e Nye, ao passo que a cultura do vírus vacínico em ovo embrionado, de extrema importância para a produção do imunoterápico, teve início em 1931, com os trabalhos de Goodpasture.
No Brasil, até a erradicação da doença, na década de 1970, continuou-se a produzir, em larga escala, a vacina em vitelos, apesar de todos os estudos que, seguindo a técnica utilizada para a fabricação da vacina contra a febre amarela, buscavam modernizar a técnica de produção da vacina antivariólica com a utilização de outros meios de cultivo, sobretudo o ovo embrionado. 44considerada fundamental para a efetivação das medidas propostas. Apesar do projeto ambicioso de d. João no sentido da difusão plena da vacina antivariólica, a atuação da junta foi muito inexpressiva diante da magnitude dos problemas decorrentes da doença, tanto na capital como nas demais províncias, o que era constantemente ressaltado nas publicações oficiais. A Constituição de 1824 e a lei de 1828 (Campanhole e Lobo, 1971; Neder, 1981, pp. 31-3) estabeleceram a criação e as atribuições das câmaras municipais. Foi extinta a Fisicatura, e os exíguos serviços de saúde, até então a ela vinculados, passaram a ser da competência das câmaras municipais. Essa alteração não trouxe mudança substancial aos serviços, pois atendia, na realidade, à proposta de descentralização do poder estatal em função da consolidação das relações locais regidas pela ascendente "classe senhorial" (Mattos, 1987). Esse processo, associado às iniciativas particulares de vacinação jenneriana no âmbito das localidades, impulsionou a criação de instituições que se voltavam para a tentativa de controle da varíola em nível local. No município do Rio de Janeiro, o Código de Posturas, elaborado em 1832, estabeleceu pela primeira vez no Brasil a obrigatoriedade da vacina, limitando-a às crianças e estabelecendo multa para aqueles que infringissem a legislação. A obrigatoriedade, apesar de restrita a apenas uma fração da população, não se fez cumprir. A única obrigatoriedade efetivamente cumprida foi a relacionada à escravidão nas fazendas, para onde o vacinador era deslocado por solicitação dos proprietários de escravos. A Fisicatura, que tinha uma ação de fiscalização e não de intervenção propriamente médica, associava-se ao órgão de polícia para o seu exercício fiscalizador. Posteriormente, a complexidade de estrutura dos serviços de saúde e a incorporação ideológica do ‘controle’ — incluída no serviço médico — dispensaria a vinculação da junta com a Intendência Geral de polícia, uma vez que, dessa forma, o papel da Polícia estaria absorvido nestes serviços.

55Com isso, alcançava-se cerca de 40% da vacinação em relação aos demais vacinados. No âmbito da população em geral, o uso da vacina era muito desacreditado e temido, conforme afirmam os responsáveis pela vacinação e estudiosos do assunto, através de vários ofícios e publicações específicas (Guarany, 1863; Lee, 1863; Moreira, 1862). Ao longo do período de 1834-35, o Rio de Janeiro enfrentou forte epidemia de varíola. Foram, então, consultados órgãos como a Academia de Medicina e as faculdades de medicina quanto à ação governamental a ser tomada. A consulta do governo federal a essas instituições referia-se, principalmente, à revacinação, que estava sendo apontada na Europa como uma das ações a serem tomadas diante de uma epidemia. As discussões encaminhadas nessas instituições e na própria Junta Vacínica entendiam a revacinação como forma de consolidação da imunidade, o que não ia ao encontro das constatações feitas nos países europeus, que previam a perda do poder imunizante em pessoas já vacinadas. A mudança da ação estatal, que marcou o período iniciado na década de 1840, apresentou alterações às medidas sanitárias vigentes, forçadas pelas exigências de uma resposta política às epidemias de varíola e febre amarela. Ao contrário da Fisicatura, que se voltava estritamente para a fiscalização, as organizações criadas a partir de 1840 calcavam-se nos conhecimentos da higiene, atuando diretamente no campo médico e não somente no exercício de fiscalizar a medicina. A incipiente racionalidade administrativa buscaria também introduzir, ideologicamente, a ação de controle sanitário, anteriormente incumbência policial, através da articulação entre Fisicatura e Intendência Geral de Polícia. Relatórios do Instituto Vacínico do Império. Esses documentos estão sob a guarda da Biblioteca Nacional, organizados por períodos e acessados por Ministério do Império/Instituto Vacínico. Não estabelecemos aqui uma análise aprofundada dessa documentação, no entanto, pudemos detectar a preocupação do instituto e dos fazendeiros em proceder à vacinação em escravos.

A introdução da vacina jenneriana no Brasil

A chegada da corte portuguesa ao Brasil significou, para a escassa população brasileira — e também para os integrantes da própria corte — uma forte mudança no âmbito social, político e mesmo sanitário. Entre os problemas encontrados estavam as doenças infecciosas, notadamente a varíola, cuja tentativa de controle se caracterizou como uma das primeiras medidas sanitárias assumidas por d. João VI, através da criação, em 1811, da Junta Vacínica da Corte. Essa instituição, responsável pela vacinação jenneriana (humanizada), sofreu em sua estrutura, ao longo do governo imperial, diversas mudanças associadas à formação do Estado imperial. Era o início da implantação no Brasil da prática médica como ação estatal (Machado et alii, 1978). No entanto, ao longo do século, as várias mudanças no sentido de tentar minimizar a ação da doença no país não implicaram estudos experimentais referentes ao conhecimento da doença e da vacina, como ocorria na Europa.

Ao ser criada, a instituição vacínica subordinou-se à Fisicatura, cuja atribuição era, até então, de fiscalizar a medicina. A junta vinculava-se também à Intendência Geral de Polícia — órgão que tinha, entre seus funcionários, um oficial de polícia —

A centralização dos serviços: o Instituto Vacínico do Império e a Junta Central de Higiene Pública

Em agosto de 1846, foi criado o Instituto Vacínico do Império (decreto 464 de 17.4.1846), que atuaria sobre todas as províncias como órgão central que dita normas e fiscaliza a atuação nas localidades. Essa proposta atendia a um conjunto de sugestões formuladas por várias instituições, consultadas para tal fim, nos moldes do que já havia ocorrido na década anterior. A Junta Vacínica, incorporada ao Instituto Vacínico, passaria a ser um órgão consultor, responsável pela vacinação na corte. A reforma de 1846 seguia os parâmetros político-administrativos do Segundo Reinado: determinava que os serviços fossem centralizados nas mãos do governo imperial, e sua execução e financiamento ficassem sob a responsabilidade dos governos locais. Com relação à vacinação, caberia ao governo central a coordenação e fiscalização dos serviços a serem executados nas províncias e custeados pelos cofres municipais, o que certamente contribuiu para inviabilizar sua efetivação.

A mesma legislação que criava o Instituto Vacínico do Império definia, mais uma vez, a obrigatoriedade da vacinação em crianças de até três meses e em grupos determinados. Exigia-se atestado de vacinação ou comprovação da doença, para admissão no Exército ou Armada, em estabelecimentos de educação ou em oficinas a cargo do governo. A mesma exigência se fazia para os admitidos, matriculados ou inscritos em qualquer estabelecimento literário oficial, público ou particular.

A obrigatoriedade da vacina era em geral defendida pelos adeptos a essa forma de profilaxia contra a varíola; alguns sugeriam mesmo a participação da polícia para a garantia da execução da lei (Guarany, 1863, p. 460). A revacinação, que vinha tendo sua validade discutida desde a década anterior, foi assumida como orientação técnica a ser aplicada ao longo de um período de três anos, após a implantação do regulamento. Funcionaria como experimentação para que a junta pudesse adotar uma posição segura quanto à questão. A revacinação ainda estava distante de ser aceita, mesmo pelos legisladores.

A legislação de 1846 demonstrava, ainda, preocupação com os avanços científicos promovidos nos países europeus. Nesse sentido, era da competência da junta manter-se atualizada através de contatos com instituições de outros países, no intuito de buscar o aprimoramento técnico para a produção da vacina, já que o Brasil ainda não se detinha em pesquisas experimentais nesse campo, restringindo-se à reprodução das técnicas desenvolvidas na Europa. Assim, a legislação previa premiação para quem conseguisse "regenerar o vírus vacínico", fazendo descobertas relativas à varíola das vacas (cow-pox) ou inoculando o fluido vacínico em outros animais.

Ainda no final da década de 1840, novas medidas foram tomadas visando mais uma vez à reestruturação dos serviços de saúde. A Junta de Higiene, criada em 1849 e inicialmente proposta para o controle da febre amarela, teve suas atividades ampliadas com a incorporação do Instituto Vacínico e da Inspeção de Saúde dos Portos, passando a denominar-se, em 1851, Junta Central de Higiene Pública.

As medidas e orientações políticas formuladas e regulamentadas, nesse momento, apesar de se manterem válidas até 1880, não alteraram significativamente o quadro nosológico do Rio de Janeiro nem de outras regiões do país. Ao contrário, no que diz respeito à varíola, há referências de aumento considerável de casos, inclusive de pessoas já vacinadas, o que viria a fortalecer o questionamento acerca da eficiência da vacina, defendida, por alguns, como a mais completa medida profilática, e atacada, por outros, como a mais despótica prática médica.

À qualidade da linfa produzida no Brasil era imputada a ineficiência da vacinação antivariólica, problema que se tentou resolver através da regulamentação da importação de linfa vacínica dos países europeus, principalmente do Instituto Jenneriano, na Inglaterra. A importação da linfa, no entanto, era também condenada: criticavam-se suas condições de conservação e o ônus causado pela medida para os cofres do governo.

Uma das tentativas de desenvolvimento da vacina animal foi formulada pelo próprio governo imperial em 1884, caracterizando-se como a única iniciativa governamental nesse sentido. A Escola Veterinária de Pelotas, incumbida do estudo e possível cultura da vacina em vitelos, organizou um instituto vacínico. O fracasso dessa instituição levou o governo, após dois anos, a extinguir o órgão, transferindo as atividades de vacinação para a recém-criada Inspetoria Geral de Higiene.

Com a criação da Inspetoria Geral de Higiene, em 1886, foram extintos a Junta Central de Higiene e o Instituto Vacínico, cujas atribuições passaram para a competência da inspetoria. A vacinação antivariólica, no conjunto dessas mudanças, ficou sob a responsabilidade direta da Inspetoria Geral de Higiene e das inspetorias das províncias, acarretando a desestruturação dos parcosserviços existentes. Ao longo desse mesmo ano, verificou-se aumento considerável do número de casos de varíola na capital, chegando-se, no mês de julho, a vinte mortes por dia. Apesar do grave quadro instalado, a inspetoria não o qualificou como surto epidêmico (Relatório da Inspetoria Geral de Higiene, 1887).

No decorrer do ano de 1887, a varíola alcançou no obituário do Rio de Janeiro a taxa de 47%, superando inclusive o já alarmante índice de mortalidade por tuberculose, o que gerou severas críticas à inspetoria por não tomar providências para impedir que a varíola assumisse proporções epidêmicas.

A única proposta da inspetoria no sentido de controlar a epidemia, segundo o Brasil Médico (1887), foi formulada seis meses depois de iniciado o processo epidêmico, com a solicitação ao ministro do Interior para que fossem instalados pequenos hospitais de isolamento nos subúrbios da capital. Essa proposta levou a uma discussão sobre o melhor meio profilático a ser utilizado em épocas de epidemia. A desinfecção, o isolamento nosocomial e a vacinação geravam polêmica; a hospitalização era defendida por alguns somente para o início do surto. Em relação à vacinação e à revacinação, somavam-se às questões habitualmente apontadas dúvidas quanto à propriedade de sua inoculação em pessoas com grande possibilidade de já estarem infectadas em função da disseminação do vírus no período epidêmico. Afirmava-se que, nesses casos, a reação vacínica era intensa e que, se as pessoas chegassem a contrair a doença, isso aconteceria também de forma agravada (Brasil Médico, 1887).

Chegada ao Brasil da vacina antivariólica animal

O ano de 1887, no Brasil, foi marcado por um sério surto epidêmico e por um significativo acontecimento que deu nova feição à ação antivariólica: a vacina cultivada e extraída de vitelos, conhecida como vacina animal, era introduzida no país, por iniciativa particular do médico Pedro Affonso Franco. Esse profilático antivariólico, que já se desenvolvia plenamente na Europa desde meados do século, mostrando-se de maior eficiência do que a vacina jenneriana, ainda não havia alcançado o território brasileiro.

O Brasil do século XIX era um país eminentemente importador de produtos e exportador de matérias-primas. Entre as importações, incluía-se também o ‘conhecimento científico’, que, naquele momento, tinha nos modelos europeus suas principais referências na área da saúde. Entretanto, o que aqui chegava não eram idéias a serem experimentadas, mas tão-somente técnicas a implantar. O método científico de base experimental aplicado à medicina teria sua consolidação no Brasil apenas a partir dos últimos anos do século XIX e início do século XX.

O médico Pedro Affonso Franco, detentor do título nobiliárquico de barão de Pedro Affonso, que ocupava, na ocasião, cargo dedireção na Santa Casa da Misericórdia, solicitou ao Instituto Chambon de Paris amostra da vacina que, segundo ele, "desta vez conseguiu chegar viável ao Brasil", ao contrário do que ocorrera com outras tentativas por ele mesmo anteriormente empreendidas. O dr. Pedro Affonso, com sua constante preocupação com a introdução de técnicas médicas no país, já havia solicitado várias vezes amostras vacinais da Europa. No entanto, não havia ainda alcançado sucesso nas tentativas de inoculação em vitelos. A amostra enviada, enfim, com os cuidados de assepsia e conservação determinados na época, chegou ao Rio de Janeiro em 23 de julho, sendo no mesmo dia inoculada em vitelos, no matadouro do Hospital da Santa Casa da Misericórdia (Franco, 1888, p. 44).

A partir da tentativa vitoriosa de Pedro Affonso com relação à vacina animal e do estabelecimento de contratos entre ele e o governo da União e do Município, a vacinação passou a ser feita, no Distrito Federal, como iniciativa particular, subvencionada e fiscalizada pelo Estado, ou seja, com características muito singulares no que diz respeito ao formato jurídico.

As primeiras vacinações foram realizadas na Santa Casa da Misericórdia, no dia 4 de agosto de 1887, sendo inoculadas 12 crianças, das quais seis eram meninas recolhidas no Hospital da Santa Casa. As demais haviam sido levadas por seus responsáveis, através de convite, ou atraídas pelo anúncio nos jornais. A segunda série de vacinados, já que o sucesso com as ‘cobaias infantis’ estava comprovado, incluía indivíduos adultos. Aos poucos as sessões de vacinação foram se incorporando à rotina da Santa Casa.

Pedro Affonso, nesse momento, significou para o Estado a solução de um importante problema: a dificuldade em organizar, na esfera governamental, uma instituição responsável por uma questão geradora de intensa polêmica, como era o caso da vacina antivariólica. A relação estabelecida entre o governo e Pedro Affonso constituía um vínculo que não se caracterizava propriamente como filantrópico: assemelhava-se ao formato de uma concessão pública, por intermédio da qual o Estado finaciava um emprendimento particular, sem que o instituto fosse considerado um estabelecimento estatal, de acordo com o próprio entendimento de Pedro Affonso (Relatório do Instituto Vacínico Municipal, 1915).

A dificuldade do Estado em enfrentar questões relativas à vacina, tais como vacinação, revacinação e obrigatoriedade, denotava, na realidade, a falta de ‘vontade política’ de intervir nos problemas da saúde pública. O governo imperial, apesar das tentativas de intervenção com a criação dos órgãos que apontamos ao longo do texto, carecia não só de apoio político por parte do poder local, mas também de assessoramento por parte dos médicos, que discordavam entre si sobre essas questões.

Como Pedro Affonso assumiu o serviço de vacinação, o Estado se desencumbiu diretamente dessa tarefa, retomando-a somente em1920, com a reforma dos serviços de saúde, ocasião em que se criou o Departamento Nacional de Saúde Pública. Subsidiado inicialmente pelo governo imperial, posteriormente pelo governo republicano, e mais tarde pela municipalidade, Pedro Affonso tomou para si, até o início da década de 1920, a produção da vacina antivariólica no Distrito Federal e em algumas províncias.

66"destruir os preconceitos e combater as afirmações da seita antivacínica". É interessante observar a reação de certos médicos diante dessa atitude do barão. Em artigo publicado no Brasil Médico (no 38, 13.10.1887), J. Monteiro, defendendo a idéia de que esse assunto deveria ser reservado a especialistas, expressava atitude corporativa com relação à categoria médica e seu conhecimento científico. Em 1888, esses artigos foram reunidos em um livro, em que eram apresentados também os resultados de inquérito a respeito da vacinação, realizado por Pedro Affonso entre alguns representantes da categoria médica que, para ele, constituíam-se na "elite da classe médica do Rio de Janeiro". Os principais depoimentos foram assinados por barão de Torres Homem, barão do Lavradio, Ferreira dos Santos, Cypriano de Abreu, Hilário de Gouveia, Barata Ribeiro, que descreveram suas experiências clínicas em relação à vacinação e teceram elogios à iniciativa de Pedro Affonso. Como o próprio Pedro Affonso reconhecia, sua intenção era buscar legitimidade junto a seus pares, declarando que tinha a "sanção da autoridade, da ciência e da ilustração" daqueles médicos a quem se referia também como "os príncipes da medicina do Império" (Franco, 1888, p. 71). Esses mesmos textos foram também anexados ao Relatório de 1916 do Instituto Vacínico Municipal, com o título ‘Golpe de vista retrospectivo sobre a varíola e a vacina no Rio de Janeiro (1887-1917)’. No início de 1888, Pedro Affonso encaminhou proposta ao governo do Império para que este subvencionasse o serviço de vacinação sob sua responsabilidade, aproveitando assim a conjuntura favorável decorrente do surto recente de varíola na capital. Com essa iniciativa, desencadeou um processo de negociação política que viabilizou a criação, alguns anos mais tarde, do Instituto Vacínico Municipal. A produção da vacina manteve-se nas dependências da Santa Casa até 1894, recebendo subsídios do governo republicano a partir de maio de 1890. Os primeiros anos do governo republicano foram marcados por significativo aumento demográfico, que contribuiu para o surgimento de novas epidemias, como a ocorrência, em 1891, de um dos mais fortes surtos de varíola e febre amarela descritos até então. A situação sanitária refletia o caos com que se deparava a cidade, principalmente diante do aumento do custo de vida e da desvalorização da moeda. Ao longo do primeiro decênio republicano, vários órgãos públicos foram criados, refletindo conjunturalmente as propostas de centralização e descentralização que se alternavam. A responsabilidade pelos serviços de saúde, no Distrito Federal e nos outros estados, era transferida da União para os governos municipais e estaduais, e destes para o governo central, provocando situações administrativas bastante confusas. Na tentativa de equilibrar essas propostas antagônicas, prevaleceu o controle federal sobre as organizações locais de saúde. A expectativa de Pedro Affonso em criar um instituto vacínico não encontrou, então, dificuldades de viabilização. A legislação de 1890, que criou as inspetorias locais, estabeleceu que Pedro Affonso receberia subvenções do governo federal para produzir a vacina e para ceder vitelos vacinados à Inspetoria Geral de Higiene, a fim de que esta procedesse à vacinação com a linfa extraída diretamente do animal. Em 1891, essas subvenções foram substituídas por um contrato com o governo da União para o fornecimento de vacina ao Distrito Federal, através da Inspetoria Geral de Saúde Pública. A partir desse contrato, as vacinas chegariam à inspetoria em tubos com linfa glicerinada, em observação à importante descoberta quanto à ação conservante e purificante da glicerina. Com isso, não havia mais necessidade de a vacinação ser aplicada diretamente do vitelo aohomem: podia ser transportada com relativa segurança, uma vez que estava garantida a manutenção de seu poder imunizante. Com a criação da prefeitura do Distrito Federal, em 1892, os serviços de saúde pública da capital sofreram nova reestruturação. No entanto, normas elaboradas com esse intuito, tanto na esfera municipal como federal, não se referiam aos serviços de higiene defensiva da capital. Mesmo sem respaldo legal, a prefeitura acabou assumindo a responsabilidade por esses serviços, posteriormente solicitados pela União e para ela transferidos de forma definitiva em 1904. Ainda em 1892, diante do fato de a municipalidade ter assumido os serviços de higiene da capital republicana, Pedro Affonso, para não perder a subvenção que vinha recebendo — garantia da continuidade da produção da vacina –, procurou imediatamente o governo municipal, a quem cabia, naquele momento, administrar os serviços de saúde da cidade. As negociações no sentido da organização de um laboratório de sua propriedade, subvencionado pelo governo municipal, estenderam-se até 1894, quando o senador Abdom Milanez apresentou projeto de criação de um instituto dedicado à fabricação da vacina antivariólica vinculado ao governo federal. Apesar desse projeto e do questionamento formulado por parte do senador Milanez, a proposta de Pedro Affonso foi aceita pela prefeitura. A derrota do senador fortaleceu Pedro Affonso, na medida em que o governo, diante da dissensão dos médicos e da carência de recursos humanos capacitados, não conseguia formular uma proposta viável. Com essa vitória, Pedro Affonso conquistou o apoio político decisivo para criar um instituto vacínico. Estes recortes estão incorporados ao acervo da Casa de Oswaldo Cruz (COC) em livro de recortes com data de 1887.

As primeiras vacinações do vitelo ao homem

A magnitude do surto de varíola que acometeu a cidade do Rio de Janeiro em 1887 exigia do governo um posicionamento mais concreto em relação à vacinação. Isso fortaleceu a posição de Pedro Affonso, que vinha desenvolvendo suas experiências na Santa Casa, mas ainda de forma tímida. Assim sendo, as ambições de Pedro Affonso em criar um instituto vacínico iam ao encontro das necessidades do governo de resolver um problema, agravado ao desativar os órgãos que se responsabilizavam, até então, pela vacinação.

Como parte de sua estratégia para consolidar a vacina animal e para se manter à frente do serviço de vacinação, o barão buscou, por diversas formas, ampliar a aceitação dessa vacina como método profilático antivariólico, divulgando-a e promovendo discussões através da Câmara Municipal, da imprensa, de espaços acadêmicos e de órgãos governamentais.

Logo após as primeiras inoculações da vacina, do final do mês de setembro até os últimos dias de outubro de 1887, Pedro Affonso publicou cerca de vinte artigos no Jornal do Commercio, abordando o tema desde as práticas anteriores à descoberta de Jenner, até as primeiras inoculações da vacina animal no Brasil. A publicação desses artigos foi justificada por Pedro Affonso como um "desejo de vulgarizar ... os conhecimentos de modo a habilitar a todos a formar por si juízo sobre a vacina e sua utilidade", e como uma tentativa de
O Instituto Vacínico Municipal: Pedro Affonso alcança sua meta

Em setembro de 1982, o prefeito, através de decreto municipal, foi autorizado a assinar o contrato que criava o Instituto Vacínico Municipal (IVM), a ser instalado em um prédio à rua do Catete, 197, pertencente ao próprio Pedro Affonso.

Como ‘solução’ governamental, o IVM rompeu a inércia do Estado diante das questões relativas à vacinação, o que significava uma alteração do status quo que outras instituições criadas ao longo do governo imperial não tinham logrado obter. Por outro lado, verificava-se um impasse científico decorrente da ausência de consenso da classe médica quanto às medidas que se deveriam adotar sobre a vacinação. O IVM criou um novo debate, atualizando o já existente, com a introdução da vacina animal no país em substituição à vacina humanizada.

O período correspondente à sobrevivência do IVM, de 1894 a 1920, traduz-se, no âmbito da saúde pública, em várias tentativas de reestruturação dos serviços de saúde, num momento em que diferentes propostas formuladas oscilavam entre centralização edescentralização dos poderes públicos na direção desses serviços. Apesar do processo centralizador que se acentuou a partir de 1903, com Oswaldo Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública, o IVM manteve seu perfil original de instituição privada subvencionada pelo Estado, ou seja, pelos governos municipal e federal, o que a caracterizava como exceção e foco de polêmicas.

Todavia, é importante assinalar que, no momento em que foi criado, como instituição particular subvencionada pelo Estado, o IVM afinava-se com a lógica vigente: o Estado incentivava, principalmente através de subvenções e da liberação de impostos, as iniciativas particulares, como é o caso também da Políclínica do Rio de Janeiro e de algumas clínicas da Faculdade de Medicina. O próprio Pedro Affonso definiu essa relação, afirmando que o IVM "foi criado por nossa iniciativa particular e nos pertence. Não é um estabelecimento oficial nem de caridade" (Instituto Vacínico Municipal, Relatório dos Trabalhos, 1915, p. 6).

O contrato inicialmente estabelecido para o funcionamento do IVM se constituía numa proposta de trabalho, cujos pontos básicos foram sustentados ao longo do período de manutenção do instituto. O decreto legislativo que autorizava o prefeito a aceitar a proposta formulada por Pedro Affonso definia que o instituto seria considerado uma repartição municipal, funcionando sob inspeção da Diretoria de Higiene, isento do pagamento de impostos e dos gastos com gás, água e artigos de escritório. Para Pedro Affonso, a ‘repartição municipal’, conforme descrita no contrato, certamente não simbolizava uma instituição oficial. Ainda de acordo com esse contrato, os funcionários do corpo técnico seriam nomeados pelo prefeito por intermédio da Diretoria de Higiene.

Embora o contrato tenha sido firmado no âmbito municipal, era intenção de Pedro Affonso divulgar a vacina para outros estados. Quanto a essa proposição, afirmava ele:

Desde 1887, época em que introduzi a vacina animal entre nós, até 1895, forneci gratuitamente ao público e a todos os estados da União a vacina preparada a expensas minhas nos institutos por mim criados e mantidos. Esforcei-me por obter que todos os estados montassem institutos vacínicos seus, enviei para isso emissários que percorreram nosso país do Norte ao Sul, praticando a vacinação e ensinando a fazer a cultura da vacina animal, para generalizá-la (Franco, 1917, p. 59).

De fato, Pedro Affonso em diversos momentos enviou comissários aos estados para transmitir os conhecimentos sobre a vacinação; entre eles identificamos Dodsworth, Paulino Werneck, Arthur da S. Pereira e S. Thiago. Como parte dessa estratégia empreendida por Pedro Affonso, foram criados institutos vacínicos em vários estados: São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco (idem, ibidem, p. 38)

Para viabilizar a difusão da vacina em todo o país, Pedro Affonso, conforme já mencionado, procurou firmar um convênio com o governo federal, paralelamente ao já estabelecido com a municipalidade.

No ano de 1897, o instituto passou a receber subvenções e indenizações do governo federal, ou dos estados, pela vacina que fornecesse. O instituto deveria empregar essa verba na manutenção do seu pessoal, no pagamento de trabalho extra, ou na contratação de novos comissários vacinadores. Essa mudança acarretava nova relação empregatícia no interior do instituto, que passava a ser sustentado por verbas extramunicipais que remuneravam diretamente alguns funcionários.

77Revolta da Vacina, cuja discussão até hoje provoca opiniões diferentes sobre sua motivação. Apesar de promulgada, a legislação referente à obrigatoriedade não foi implementada, em função da intensa reação social provocada por sua divulgação. Para Pedro Affonso, a Revolta da Vacina provocou descrédito em relação à vacinação, diminuindo consideravelmente sua procura. Em agosto de 1904, a diretoria de Saúde Pública havia solicitado ao Instituto Vacínico cerca de 24 mil doses de vacina; em dezembro, foram 1.360 solicitações. E durante todo o ano de 1905, a Diretoria utilizou apenas 7.800 frascos de vacina. Em 1906, chegava-se à estagnação quase total. Em 1908, novo surto de varíola acometeu a cidade do Rio de Janeiro, trazendo, pela primeira vez, dúvidas acerca da qualidade da vacina produzida por Pedro Affonso. Este, mais uma vez, após momentos de tensão, conseguiu manter seu instituto sob sua guarda. Os relatórios do IVM tentam refletir uma possível resposta imediatada instituição ao surto e à demanda espontânea da população, que buscava a vacinação no instituto e na Diretoria de Saúde Pública. A estratégia política adotada pelo barão, dessa vez, foi realizar ampla divulgação do trabalho do instituto na Exposição Nacional de Higiene, que ocorreu no Rio de Janeiro em Sobre este episódio existem trabalhos bastante significativos como os de Sevcenko (1984); Pôrto (1985); Carvalho (1987, 1984); e Chalhoub (1996).

881909, convidando, inclusive, os congressistas a visitar suas instalações. Os Relatórios do Instituto Vacínico por nós localizados não acompanham uma rotina anual. Somente a partir de 1913, verificamos periodicidade nestes documentos. Um estudo comparativo da resposta vacinal aos surtos periódicos de varíola, ao longo do período, seria extremamente interessante, porém esse tema não se constitui em objeto de nossa investigação.

O IVM e a reestruturação dos serviços de saúde

A duração do contrato original do Instituto Vacínico com a prefeitura estava prevista para um prazo de dez anos, a findar em 1904. Por coincidência, esse veio a ser um momento de profundas discussões acerca da reestruturação dos serviços de saúde da capital republicana.

Desde 1900, paralelamente ao trabalho desenvolvido no IVM, Pedro Affonso dirigia o Instituto Soroterápico Federal, em Maguinhos, dedicado ao controle da peste, criado por ele através de proposta acatada pelo governo federal. Esse instituto antipestoso ficou sob sua direção até 1902, quando passou a ser dirigido por Oswaldo Cruz, a quem ele convidara para integrar a equipe técnica. Ao longo de dois anos, Pedro Affonso e Oswaldo Cruz desenvolveram uma relação extremamente conflituosa, que culminou com a saída de Pedro Affonso do Instituto Soroterápico de Manguinhos (Fernandes, 1989).

Os dois personagens, através dos institutos que permaneceram dirigindo, continuaram acirrando suas discussões não mais sobre a gestão do Instituto de Manguinhos, mas em torno da responsabilidade pela produção da vacina antivariólica. Oswaldo Cuz insistia que essa responsabilidade deveria ser transferida para o Instituto Soroterápico Federal e o barão defendia, alegando risco de contaminação, que a produção da vacina antivariólica não poderia se juntar à de outras vacinas. Embora a defesa feita por Pedro Affonso da manutenção do Instituto Vacínico sob sua guarda possa ser considerada tecnicamente frágil, seu prestígio junto a políticos e médicos garantiu-lhe sustentação como responsável pela vacinação. Apesar da vitória de Pedro Affonso naquele momento, Oswaldo Cruz passou a representar uma ameaça constante ao Instituto Vacínico (Fernandes, 1991, 1989; Benchimol, 1990).

Oswaldo Cruz, mesmo acumulando, a partir de 1903, a direção dos serviços sanitários federais e do Instituto Soroterápico, não conseguiu, naquele momento, viabilizar a transferência do Vacínicopara Manguinhos. O poder político que Pedro Affonso havia angariado para si, desde o império, garantiu-lhe a permanência do Instituto Vacínico fora da estrutura do Instituto Soroterápico Federal, até o início da década de 1920.

Na realidade, a polêmica estabelecida entre Pedro Affonso e Oswaldo Cruz, que envolvia os dois institutos, a vacina antivariólica e os serviços sanitários, deu vez a opiniões divergentes, extrapolando o espaço dos laboratórios e envolvendo médicos e políticos. O projeto de reestruturação dos Serviços da Capital da República — que visava à centralização e ao controle destes pelo governo federal — formulado por Oswaldo Cruz e encaminhado ao Congresso Nacional, em 1903, por Mello Mattos, gerou polêmica: era condenado e defendido nos meios acadêmicos, políticos e na imprensa. O Apostolado Positivista também se pronunciou, caracterizando a proposta como Código de Torturas, fruto de "despotismo sanitário" (Pôrto, 1985; Fernandes, 1991).

Outra questão bastante relevante nesse contexto foi a inclusão da obrigatoriedade da vacinação como a medida mais eficaz para o controle da varíola no Projeto de Reestruturação dos Serviços de Saúde em tramitação. Após intenso debate, esse ponto foi retirado do projeto, voltando a ser proposto quando da epidemia que se instalou na capital ao longo de 1904. A obrigatoriedade da vacinação antivariólica foi sugerida em mensagem enviada pelo presidente da República ao Congresso, que a transformou em projeto legislativo. A divulgação da lei que regulamentava tal obrigatoriedade acirrou a mobilização social na capital não só pelo teor autoritário dessa medida — apregoado principalmente pela Liga Contra a Vacinação criada pelos membros do Apostolado Positivista —, mas também pelo contexto sócio-econômico adverso em que se encontrava o país. Instalou-se, então, em novembro de 1904, a manifestação conhecida como
De Instituto Vacínico Municipal a Instituto Vacinogênico Federal

Apesar da renovação do contrato municipal, previsto para vigorar no período de 1912 a 1921, o contrato não chegou, no entanto, a ser cumprido integralmente. Diante da polêmica encaminhada no final da década de 1910 pelos seguidores de Oswaldo Cruz sobre os rumos que a saúde pública deveria adotar, verificou-se uma tendência à mudança, que se concretizou com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920. Essa proposta implicava a impossibilidade de manutenção do formato institucional, sustentado, até aquele momento, por Pedro Affonso no Instituto Vacínico. A partir daí, rompeu-se uma tensão de quase duas décadas: foram centralizados os serviços sanitários no âmbito do governo federal, e o Instituto Vacínico foi definitivamente incorporado ao Instituto Oswaldo Cruz.

Oswaldo Cruz, que faleceu em 1917, não assistiu à centralização dos serviços, por ele proposta em 1904. Também não chegou a participar da incorporação, que pleiteara, do Instituto Vacínico ao Instituto de Manguinhos, denominado, desde 1907, Instituto Oswaldo Cruz (IOC). A transferência do Instituto Vacínico para o IOC ocorreu em 1920. Passou a se chamar Instituto Vacinogênico Federal e ficou sob a responsabilidade de Jorge e Paulo Affonso Franco, filhos de Pedro Affonso, que já trabalhavam no IVM.

Esse deslocamento de esferas de governo foi complexo, na medida em que significava o rompimento do contrato municipal com o Instituto Vacínico, o que requeria uma delicada negociação com Pedro Affonso. A prefeitura acabou arcando com a indenização, prevista no contrato, e o instituto permaneceu alojado em seu prédio original, à rua do Catete, até sua instalação, mais tarde, no terreno de Manguinhos.

A transferência da vacina antivariólica para o IOC exigiu sua adaptação aos padrões adotados por aquela instituição, tais como a vinculação da produção à pesquisa e a conseqüente geração de textos acadêmicos, representando uma novidade nos padrões previstos por Pedro Affonso para aquela instituição.

Conclusão

Ao longo deste artigo, buscamos analisar, de forma sintética, algumas questões relativas à vacina antivariólica no Brasil, preocupando-nos com o processo de organização institucional da vacinação no âmbito técnico-científico, político e administrativo.

Verificamos que, em nosso país, durante o período abordado — de 1808 a 1920 —, a organização de instituições responsáveis pela vacinação antivariólica não possibilitou o controle da varíola em seu aspecto endêmico e epidêmico, mantendo-se aquém dos avanços técnico-científicos observados nos países europeus. Várias foram as causas dessa ineficácia dos serviços, constantemente questionados e substituídos, sem que esses questionamentos acarretassem mudanças no quadro epidemiológico.

Durante o Brasil Império, as duas instituições criadas — Junta Vacínica da Corte (1811) e Instituto Vacínico do Império (1846) — justificavam-se por apresentarem propostas diferenciadas, apesar de terem em comum a preocupação com a incorporação de uma prática já legitimada na Europa, que simbolizava a absorção dos progressos da ciência. A centralização, presente na condução do governo de forma mais nítida a partir de meados do século XIX, é a principal característica da proposta que buscava a solução de um problema já apontado como de âmbito nacional. Na prática, no entanto, essa proposta prevista na criação do Instituto Vacínico do Império não correspondeu sequer às necessidades da corte.

Alguns fatores podem ser determinantes desse quadro. Como pudemos observar, as propostas formuladas acabavam por se inviabilizar, uma vez que iam de encontro aos interesses da estrutura oligárquica de poder local, responsável pela execução das ações comandadas pelo governo central. Além disso, mesmo no nível central, as propostas sanitárias eram obstaculizadas pela carência de um corpo técnico capaz de conduzi-las e, principalmente, pela falta de consenso entre os médicos sobre as medidas que deveriam ser adotadas.

No final do século XIX, começamos a nos aproximar dos conhecimentos científicos gerados nos países europeus. No que diz respeito à saúde pública em nosso país, essa aproximação é marcada, principalmente, pela introdução da vacina antivariólica animal em 1887.

A criação do IVM, em 1894, não só contribuiu para as ações de controle da varíola, como fomentou as discussões acerca da organização dos serviços de saúde no país. É importante, no entanto, chamar atenção para o fato de que esse instituto somente se transformaria em instituição geradora de conhecimento científico no âmbito da medicina experimental a partir de 1920, ao ser incorporado ao IOC. Os agentes dessa mudança foram os próprios filhos de Pedro Affonso. A partir de então, várias pesquisas passaram a serrealizadas, visando à atualização do tema da produção da vacina no Brasil e à busca de um novo imunoterápico, cuja adoção, no entanto, não foi assumida como procedimento prioritário, determinando, assim, a continuidade do uso de vitelos como suporte para a produção do imunoterápico. A erradicação plena da doença, finalmente, só veio acontecer na década de 1970.

Documentos oficiais (Relatórios)

Diretoria Geral de Saúde Pública;

Inspetoria Geral de Higiene;

Instituto Vacínico do Império;

Instituto Vacínico Municipal;

Instituto Vacinogênico Federal.

Recebido para publicação em setembro de 1997.

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  • Vallery-Radot, P. (org.) 1922 Oeuvre de Pasteur Paris, Massom et Cie, 7 vols.
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    passando-se a utilizar vitelos para esse fim, com o emprego da vacina animal.
    Este acontecimento significou não só um avanço para o controle da doença, como um importante impulsionador de discussões que, no Brasil, levaram ao alinhamento de grupos médicos e políticos em torno das opiniões divergentes de Oswaldo Cruz e do barão de Pedro Affonso, dr. Pedro Affonso Franco (Fernandes, 1991, 1989).
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    em pessoas sadias, com a finalidade de reproduzir esse fenômeno (Jenner, 1798).
    A partir da pústula desenvolvida na vaca, Jenner obteve um produto que passou a denominar vacina (‘da vaca’) que, ao ser inoculado no homem, fazia surgir, no local das inoculações, erupções semelhantes à varíola. Dessas erupções era retirada a "linfa" ou "pus variólico", utilizado para novas inoculações. Formava-se assim uma cadeia de imunização entre homens, funcionando o
    cow-pox da vaca como um primeiro agente imunizador, e o homem como produtor e difusor da vacina. Essa vacina ficou conhecida como "vacina jenneriana" ou "humanizada".
    Os testes de Jenner vieram alterar uma prática bastante remota, a ‘variolização’, que se baseava na constatação de que os indivíduos que sobreviviam à varíola não mais a contraíam, e que a implantação artificial de sua forma benigna (variolóide) poderia provocar defesa contra a doença. Julgava-se possível reproduzir a doença em sua expressão similar, igualmente benigna. A ampla propagação da técnica de variolização acabou mostrando que esse processo permitia o desenvolvimento das diferentes manifestações da doença, independentemente da forma original, redundando, de sua aplicação, altos índices de mortalidade nos indivíduos inoculados. Cada inoculação poderia, na realidade, originar um doente, que além dosriscos da varíola em sua forma confluente e letal tornava-se um agente de difusão da doença (Darmon, 1986; Chalhoub, 1996; Moulin, 1996).
    A diferença entre a variolização e a vacina de Jenner é que a primeira tentava implantar a forma benigna da varíola, e a segunda buscava evitar a varíola através do acometimento de doença não letal.
    É preciso destacar que o conceito de imunidade que explicaria o fenômeno da vacina criada por Jenner não havia sido ainda elaborado e que o instrumental responsável pela comprovação de sua hipótese resumia-se na reprodução de ‘fatos’ observados, em condições naturais, pela inoculação em indivíduos. Dessa forma, a experiência detinha-se numa tentativa de reprodução da natureza (Darmon, 1986).
    A vacina jenneriana foi, inicialmente, recebida com descrédito e receio, que acabaram sendo relativamente superados: a vacina difundiu-se por todo o mundo, ao mesmo tempo em que novos estudos vinham somar-se aos originais. Propagou-se pela Europa e, posteriormente,
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    pela América do Norte, tendo chegado ao Brasil ainda no século XVIII.
    Cerca de vinte anos depois da descoberta da vacina, percebeu-se que, algum tempo após a inoculação, seu efeito imunitário era perdido. Isso gerou discussões e novas experiências na tentativa de reativação da vacina. Em 1840, como resultado desse processo de investigação, o
    cow-pox original foi localizado, iniciando uma nova etapa da imunização antivariólica, com a utilização da vacina retirada diretamente da pústula da vaca e inoculada no homem. Quebrava-se assim a cadeia de imunização conhecida como ‘de braço a braço’, iniciando-se a era da ‘vacina animal’.
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    considerada fundamental para a efetivação das medidas propostas.
    Apesar do projeto ambicioso de d. João no sentido da difusão plena da vacina antivariólica, a atuação da junta foi muito inexpressiva diante da magnitude dos problemas decorrentes da doença, tanto na capital como nas demais províncias, o que era constantemente ressaltado nas publicações oficiais.
    A Constituição de 1824 e a lei de 1828 (Campanhole e Lobo, 1971; Neder, 1981, pp. 31-3) estabeleceram a criação e as atribuições das câmaras municipais. Foi extinta a Fisicatura, e os exíguos serviços de saúde, até então a ela vinculados, passaram a ser da competência das câmaras municipais. Essa alteração não trouxe mudança substancial aos serviços, pois atendia, na realidade, à proposta de descentralização do poder estatal em função da consolidação das relações locais regidas pela ascendente "classe senhorial" (Mattos, 1987). Esse processo, associado às iniciativas particulares de vacinação jenneriana no âmbito das localidades, impulsionou a criação de instituições que se voltavam para a tentativa de controle da varíola em nível local.
    No município do Rio de Janeiro, o Código de Posturas, elaborado em 1832, estabeleceu pela primeira vez no Brasil a obrigatoriedade da vacina, limitando-a às crianças e estabelecendo multa para aqueles que infringissem a legislação. A obrigatoriedade, apesar de restrita a apenas uma fração da população, não se fez cumprir. A única obrigatoriedade efetivamente cumprida foi a relacionada à escravidão nas fazendas, para onde o vacinador era deslocado por solicitação dos proprietários de escravos.
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    Com isso, alcançava-se cerca de 40% da vacinação em relação aos demais vacinados.
    No âmbito da população em geral, o uso da vacina era muito desacreditado e temido, conforme afirmam os responsáveis pela vacinação e estudiosos do assunto, através de vários ofícios e publicações específicas (Guarany, 1863; Lee, 1863; Moreira, 1862).
    Ao longo do período de 1834-35, o Rio de Janeiro enfrentou forte epidemia de varíola. Foram, então, consultados órgãos como a Academia de Medicina e as faculdades de medicina quanto à ação governamental a ser tomada. A consulta do governo federal a essas instituições referia-se, principalmente, à revacinação, que estava sendo apontada na Europa como uma das ações a serem tomadas diante de uma epidemia. As discussões encaminhadas nessas instituições e na própria Junta Vacínica entendiam a revacinação como forma de consolidação da imunidade, o que não ia ao encontro das constatações feitas nos países europeus, que previam a perda do poder imunizante em pessoas já vacinadas.
    A mudança da ação estatal, que marcou o período iniciado na década de 1840, apresentou alterações às medidas sanitárias vigentes, forçadas pelas exigências de uma resposta política às epidemias de varíola e febre amarela. Ao contrário da Fisicatura, que se voltava estritamente para a fiscalização, as organizações criadas a partir de 1840 calcavam-se nos conhecimentos da higiene, atuando diretamente no campo médico e não somente no exercício de fiscalizar a medicina. A incipiente racionalidade administrativa buscaria também introduzir, ideologicamente, a ação de controle sanitário, anteriormente incumbência policial, através da articulação entre Fisicatura e Intendência Geral de Polícia.
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    "destruir os preconceitos e combater as afirmações da seita antivacínica".
    É interessante observar a reação de certos médicos diante dessa atitude do barão. Em artigo publicado no
    Brasil Médico (n
    o 38, 13.10.1887), J. Monteiro, defendendo a idéia de que esse assunto deveria ser reservado a especialistas, expressava atitude corporativa com relação à categoria médica e seu conhecimento científico.
    Em 1888, esses artigos foram reunidos em um livro, em que eram apresentados também os resultados de inquérito a respeito da vacinação, realizado por Pedro Affonso entre alguns representantes da categoria médica que, para ele, constituíam-se na "elite da classe médica do Rio de Janeiro". Os principais depoimentos foram assinados por barão de Torres Homem, barão do Lavradio, Ferreira dos Santos, Cypriano de Abreu, Hilário de Gouveia, Barata Ribeiro, que descreveram suas experiências clínicas em relação à vacinação e teceram elogios à iniciativa de Pedro Affonso. Como o próprio Pedro Affonso reconhecia, sua intenção era buscar legitimidade junto a seus pares, declarando que tinha a "sanção da autoridade, da ciência e da ilustração" daqueles médicos a quem se referia também como "os príncipes da medicina do Império" (Franco, 1888, p. 71). Esses mesmos textos foram também anexados ao Relatório de 1916 do Instituto Vacínico Municipal, com o título ‘Golpe de vista retrospectivo sobre a varíola e a vacina no Rio de Janeiro (1887-1917)’.
    No início de 1888, Pedro Affonso encaminhou proposta ao governo do Império para que este subvencionasse o serviço de vacinação sob sua responsabilidade, aproveitando assim a conjuntura favorável decorrente do surto recente de varíola na capital. Com essa iniciativa, desencadeou um processo de negociação política que viabilizou a criação, alguns anos mais tarde, do Instituto Vacínico Municipal. A produção da vacina manteve-se nas dependências da Santa Casa até 1894, recebendo subsídios do governo republicano a partir de maio de 1890.
    Os primeiros anos do governo republicano foram marcados por significativo aumento demográfico, que contribuiu para o surgimento de novas epidemias, como a ocorrência, em 1891, de um dos mais fortes surtos de varíola e febre amarela descritos até então. A situação sanitária refletia o caos com que se deparava a cidade, principalmente diante do aumento do custo de vida e da desvalorização da moeda.
    Ao longo do primeiro decênio republicano, vários órgãos públicos foram criados, refletindo conjunturalmente as propostas de centralização e descentralização que se alternavam. A responsabilidade pelos serviços de saúde, no Distrito Federal e nos outros estados, era transferida da União para os governos municipais e estaduais, e destes para o governo central, provocando situações administrativas bastante confusas. Na tentativa de equilibrar essas propostas antagônicas, prevaleceu o controle federal sobre as organizações locais de saúde. A expectativa de Pedro Affonso em criar um instituto vacínico não encontrou, então, dificuldades de viabilização.
    A legislação de 1890, que criou as inspetorias locais, estabeleceu que Pedro Affonso receberia subvenções do governo federal para produzir a vacina e para ceder vitelos vacinados à Inspetoria Geral de Higiene, a fim de que esta procedesse à vacinação com a linfa extraída diretamente do animal.
    Em 1891, essas subvenções foram substituídas por um contrato com o governo da União para o fornecimento de vacina ao Distrito Federal, através da Inspetoria Geral de Saúde Pública. A partir desse contrato, as vacinas chegariam à inspetoria em tubos com linfa glicerinada, em observação à importante descoberta quanto à ação conservante e purificante da glicerina. Com isso, não havia mais necessidade de a vacinação ser aplicada diretamente do vitelo aohomem: podia ser transportada com relativa segurança, uma vez que estava garantida a manutenção de seu poder imunizante.
    Com a criação da prefeitura do Distrito Federal, em 1892, os serviços de saúde pública da capital sofreram nova reestruturação. No entanto, normas elaboradas com esse intuito, tanto na esfera municipal como federal, não se referiam aos serviços de higiene defensiva da capital. Mesmo sem respaldo legal, a prefeitura acabou assumindo a responsabilidade por esses serviços, posteriormente solicitados pela União e para ela transferidos de forma definitiva em 1904.
    Ainda em 1892, diante do fato de a municipalidade ter assumido os serviços de higiene da capital republicana, Pedro Affonso, para não perder a subvenção que vinha recebendo — garantia da continuidade da produção da vacina –, procurou imediatamente o governo municipal, a quem cabia, naquele momento, administrar os serviços de saúde da cidade. As negociações no sentido da organização de um laboratório de sua propriedade, subvencionado pelo governo municipal, estenderam-se até 1894, quando o senador Abdom Milanez apresentou projeto de criação de um instituto dedicado à fabricação da vacina antivariólica vinculado ao governo federal. Apesar desse projeto e do questionamento formulado por parte do senador Milanez, a proposta de Pedro Affonso foi aceita pela prefeitura. A derrota do senador fortaleceu Pedro Affonso, na medida em que o governo, diante da dissensão dos médicos e da carência de recursos humanos capacitados, não conseguia formular uma proposta viável. Com essa vitória, Pedro Affonso conquistou o apoio político decisivo para criar um instituto vacínico.
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    Revolta da Vacina, cuja discussão até hoje provoca opiniões diferentes sobre sua motivação.
    Apesar de promulgada, a legislação referente à obrigatoriedade não foi implementada, em função da intensa reação social provocada por sua divulgação.
    Para Pedro Affonso, a Revolta da Vacina provocou descrédito em relação à vacinação, diminuindo consideravelmente sua procura. Em agosto de 1904, a diretoria de Saúde Pública havia solicitado ao Instituto Vacínico cerca de 24 mil doses de vacina; em dezembro, foram 1.360 solicitações. E durante todo o ano de 1905, a Diretoria utilizou apenas 7.800 frascos de vacina. Em 1906, chegava-se à estagnação quase total.
    Em 1908, novo surto de varíola acometeu a cidade do Rio de Janeiro, trazendo, pela primeira vez, dúvidas acerca da qualidade da vacina produzida por Pedro Affonso. Este, mais uma vez, após momentos de tensão, conseguiu manter seu instituto sob sua guarda. Os relatórios do IVM tentam refletir uma possível resposta imediatada instituição ao surto e à demanda espontânea da população, que buscava a vacinação no instituto e na Diretoria de Saúde Pública. A estratégia política adotada pelo barão, dessa vez, foi realizar ampla divulgação do trabalho do instituto na Exposição Nacional de Higiene, que ocorreu no Rio de Janeiro em
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    1909, convidando, inclusive, os congressistas a visitar suas instalações.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 1999

    Histórico

    • Recebido
      Set 1997
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