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Razão, pluralismo e argumentação: a contribuição de Chaim Perelman

Reason, pluralism, and argumentation: Chaim Perelman’s contribution

Resumos

O artigo aborda a revalorização da busca de adesão por meio da retórica propiciada, em meados de nosso século, pela obra de Chaim Perelman. Este autor critica o expansionismo indevido de um tipo de razão - dedutiva, demonstrativa - que acabou por se impor como modelo de verdade para todos os campos do conhecimento. Traçam-se paralelos entre a teoria da argumentação e temas da filosofia e da história da ciência, sobretudo a noção de razão que vem balizando as considerações sobre o conhecimento científico nos últimos séculos. Perelman classifica como monismo metodológico a escolha de um tipo de razão como necessária, e mostra que condiciona uma visão de mundo, trazendo, inclusive, conseqüências políticas já que legitima uma forma de exercício autoritário do poder.

filosofia; Chaim Perelman; argumentação; razão; pluralismo


Starting in the mid-twentieth century, the works of Chaim Perelman played an important role in renewed esteem for the use of rhetoric in wining adherents. Perelman’s criticisms focused on what he considered the undue expansionism of one type of reason - that is, deductive, demonstrative - which eventually prevailed as the model of truth for all fields of knowledge. Parallels are drawn between argumentation theory and themes within philosophy and the history of science, most particularly the notion of reason that has underlain thoughts on scientific knowledge in recent centuries. According to Perelman, electing one type of reason to be necessary constitutes methodological monism. He demonstrates how this approach molds a particular world view and, since it legitimizes an authoritarian form of power, it also has political consequences.

philosophy; Chaim Perelman; argumentation; reason; pluralism


Razão, pluralismo e argumentação: a contribuição de Chaim Perelman

Reason, pluralism, and argumentation: Chaim Perelman’s contribution

Márcio Silveira Lemgruber

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de fora (UFJF) e doutorando em educação da UFRJ

Rua Ferreira Viana, 36/603

22210-040 Rio de Janeiro — RJ Brasil

e-mail: marciosl@iis.com.br

LEMGRUBER, M. S.: ‘Razão, pluralismo e argumentação: a contribuição de Chaim Perelman’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, VI (1):101-11, mar.-jun. 1999.

O artigo aborda a revalorização da busca de adesão por meio da retórica propiciada, em meados de nosso século, pela obra de Chaim Perelman. Este autor critica o expansionismo indevido de um tipo de razão — dedutiva, demonstrativa — que acabou por se impor como modelo de verdade para todos os campos do conhecimento. Traçam-se paralelos entre a teoria da argumentação e temas da filosofia e da história da ciência, sobretudo a noção de razão que vem balizando as considerações sobre o conhecimento científico nos últimos séculos. Perelman classifica como monismo metodológico a escolha de um tipo de razão como necessária, e mostra que condiciona uma visão de mundo, trazendo, inclusive, conseqüências políticas já que legitima uma forma de exercício autoritário do poder.

PALAVRAS-CHAVE: filosofia, Chaim Perelman, argumentação, razão, pluralismo.

LEMGRUBER, M. S.: ‘Reason, pluralism, and argumentation: Chaim Perelman’s contribution’. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, VI(1):101-11, Mar.-Jun., 1999.

Starting in the mid-twentieth century, the works of Chaim Perelman played an important role in renewed esteem for the use of rhetoric in wining adherents. Perelman’s criticisms focused on what he considered the undue expansionism of one type of reason — that is, deductive, demonstrative — which eventually prevailed as the model of truth for all fields of knowledge. Parallels are drawn between argumentation theory and themes within philosophy and the history of science, most particularly the notion of reason that has underlain thoughts on scientific knowledge in recent centuries. According to Perelman, electing one type of reason to be necessary constitutes methodological monism. He demonstrates how this approach molds a particular world view and, since it legitimizes an authoritarian form of power, it also has political consequences.

KEYWORDS: philosophy, Chaim Perelman, argumentation, reason, pluralism.

Um dos momentos marcantes da inauguração da civilização, já dizia Freud, foi aquele em que um ser humano, ainda na pré-história, ao se desentender com outro, em lugar de dar-lhe uma paulada ou pedrada, esbravejou algo. Desde então, há milênios, desenvolve-se este substitutivo da violência física para conseguir com que outrem faça ou deixe de fazer alguma coisa: a argumentação. No presente estudo, aborda-se a revalorização da busca de adesão por meio da retórica, em meados de nosso século, com a obra de Chaim Perelman, traçando-se paralelos entre sua teoria da argumentação e temas da filosofia e da história da ciência, sobretudo a noção de razão que vem balizando as considerações sobre o conhecimento científico nos últimos séculos.

A obra de Perelman, apesar de sua importância, que pode ser aferida pela quantidade cada vez maior de trabalhos que vem suscitando nos campos filosófico, sociológico e jurídico, era, até bem recentemente, quase desconhecida no Brasil. Encontrava-se apenas, em língua portuguesa, seu verbete ‘argumentação’ que integra a edição lusa da Enciclopédia Einaudi. Somente a partir de 1996 foram editados em nosso país o Tratado da argumentação e as coletâneas Ética e direito e Retóricas. Entre nós, seu grande divulgador, em cursos e conferências, foi o saudoso professor e filósofo José Américo Pessanha, que lhe dedicou o brilhante artigo ‘A teoria da argumentação ou nova retórica’ (1989).

Chaim Perelman (1912-84) nasceu na Polônia, mas, já aos 12 anos, foi viver na Bélgica. Jurista e filósofo, tratou neste último campo inicialmente de questões ligadas à lógica formalizada e matematizada. Sua tese de doutoramento versou sobre Frege, o fundador da lógica formalizada. Foi integrante, juntamente com Gaston Bachelard, do chamado Grupo de Zurique, que editava a revista Dialética, sob a liderança intelectual do filósofo F. Gonseth. Abordou em diversas obras as limitações internas e os paradoxos da lógica expressos em teoremas como os de Russell e Gödel. Dessas reflexões, teve início sua aproximação com a retórica de Aristóteles, na busca de uma alternativa racional que se aplicasse ao que não fosse aprisionável pela formalização pura. A sólida formação em lógica e matemática conferiu grande autoridade a seus questionamentos, pois, ao menos, não se podia desqualificá-los pelo fato de partirem de alguém que não dominava o difícil e árido campo da linguagem inteiramente formalizada.

O primeiro trabalho de Perelman sobre o tema da argumentação foi uma conferência, ‘Logique et rhétorique’, pronunciada em 1949 incorporada a sua primeira obra de vulto sobre o assunto, Rhétorique et philosophie (1952). Seis anos mais tarde, publicou seu trabalho principal, o Traité de l’argumentation, juntamente com a colaboradora Lucie Olbrechts-Tyteca. Na década de 1970, foram editados Le champ de l’argumentation, que reúne diversos artigos publicados em revistas, e Logique juridique (nouvelle rhétorique).

Nesta trajetória, Perelman foi muito além da discussão das limitações internas à construção dos sistemas formalizados, pois ao abordar estas limitações externas, decorrentes da inevitável polissemia da linguagem verbal, apontou o imenso campo onde não se aplicam a razão necessitária e a prova demonstrativa. Ao fazer tal demarcação de fronteiras, ‘bateu de frente’ com toda uma tradição do pensamento ocidental, constitutiva mesmo de sua identidade.

Para que se possa compreender o contexto filosófico em que (e contra que) se deu a contribuição de Perelman, faz-se necessária uma abordagem, ainda que superficial, de alguns aspectos da construção do paradigma científico da modernidade no século XVII e, já no final do século XIX e início do XX, de sua crise.

Trazemos tão profundamente arraigada a visão de mundo que se formou com a revolução científica pós-renascentista que é difícil perceber sua historicidade. Assim, sentimos como se fossem naturais, inevitáveis, modos de viver e agir tais como uma relação utilitarista com a natureza, ou, ainda, "a crença na descoberta contínua da verdade objetiva e inquestionável, ou seja, a utopia do conhecimento absoluto proporcionado pela ciência ocidental" (Soares, 1994, p. 212). É quase surpreendente que, quando confrontados com os estudos históricos, tais posturas e procedimentos apresentem-se como invenções. Mais ainda, longe de serem ‘naturais’, constituíram-se em radical oposição a outras maneiras de sentir e pensar secularmente hegemônicas.

Podemos eleger como marco dessas rupturas a afirmação de Galileu Galilei de que o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos. É significativo o título da obra em que ela se situa: Il saggiatore (O experimentador, 1623), pois é precisamente a experimentação uma das características fundamentais da ciência moderna, na qual repousa seu empirismo. Por seu turno, Descartes, como o ‘administrador’ filosófico da ‘nova física’ de Galileu, entende que também Deus se expressa matematicamente na Criação. Isto porque o bon Dieu não faria um mundo ininteligível para seus filhos, pois não poderia ser um Dieu trompeur (mentiroso, enganador). Portanto, pela intuição religiosa, o "filósofo da razão" confirma a máxima de Galileu, matematizando, geometrizando, mecanizando enfim uma natureza que até então era vista em termos orgânicos por homens que se sentiam como parte inseparável dela. Estão aí colocados os elementos essenciais que balizarão os destinos do conhecimento científico ocidental: objetivação do meio físico e o método racional dedutivo como acesso seguro à Verdade.

Quando Isaac Newton publica em 1687 seus Princípios matemáticos de filosofia natural, este modelo parece atingir sua perfeição, levando a extremos a crença num saber absoluto, sem limites, que traria o progresso e resolveria todos os problemas da humanidade. As ‘luzes’ (da razão) se encarregariam de resolver misérias, penúrias, as quais seriam, em última análise, conseqüências de ignorâncias, superstições, de formas de saber primitivas, isto é, não-científicas. O Éden retornaria à Terra, trazido pela ciência. Tal crença se reforçou nos séculos seguintes, chegando a assumir caráter verdadeiramente religioso com o positivismo, no oitocentos. Japiassu (s. d.), em texto em que destaca o caráter machista do projeto da modernidade de dominação da natureza, reúne algumas citações que expressam in extremis este ponto de vista. Eis duas delas:

Virá um dia em que a humanidade não mais crerá, mas saberá; um dia em que saberá o mundo metafísico e moral, como já sabe o mundo físico; um dia em que o governo da humanidade não será mais entregue ao acaso e à intriga, mas à discussão racional; do melhor e dos meios mais eficazes para atingi-lo. Organizar cientificamente a humanidade, eis a última palavra da ciência moderna, eis sua audaciosa, porém legítima pretensão. Somente a ciência pode fornecer ao homem as verdades vitais sem as quais a vida não seria suportável nem tampouco a sociedade possível (Renan, L’avenir de la science, 1890).

A ciência é o que há de mais sublime no mundo. Ela é nossa última instância. Nada há acima dela. Para os espíritos populares, ela é como a mais elevada das deusas. Felizmente, para o gênero humano, o prestígio da ciência aumenta todos os dias. E certamente, quanto mais avançar a civilização, mais ela avançará. Em primeiro lugar, porque a ciência fará descobertas sempre mais numerosas, mais profundas e mais surpreendentes; em seguida porque os homens, libertos das concepções mitológicas e infantis, terão os espíritos melhor preparados para receber os ensinamentos provenientes de pesquisas positivas, precisas e exatas ... Em breve, a autoridade da ciência se imporá de modo completo no domínio dos conhecimentos sociais. Então, chegaremos a fazer uma política racional, como já fazemos máquinas elétricas racionais, porque construídas unicamente sobre dados positivos, e não sobre tendências subjetivas (Novicow, 1910).

Porém, concomitantemente à apologia da "ciência positiva", começam a se ouvir vozes que lançam contundentes libelos contra o monopólio de um tipo de razão tida como única e necessária. Apesar das resistências e tentativas de desqualificação de que são alvo, tais vozes ganham terreno, entre outros campos, na filosofia, na psicanálise, na história, e — suprema heresia — na física e mesmo nas ciências exatas como a matemática e a geometria. Assim foi que, no âmbito da filosofia, Nietzsche desnudou as relações entre razão e poder político, sustentando que a verdade é uma invenção que muda de concepção ao longo do tempo, e estabeleceu a crítica de uma história interna da verdade. Cabe mencionar que, nesta linha de análise, Foucault (1974) evidenciou as estreitas relações entre os modelos jurídicos e as formas de verdade admitidas nas distintas épocas.

Com a psicanálise, Freud nos mostra que a todo-poderosa razão é, na verdade, subordinada à pulsão, ou, como escreveu, não somos amos sequer em nossa própria casa. Jacques Lacan, posteriormente, subverteu Descartes contrapondo ao famoso "penso, logo existo" uma formulação derivada da teoria psicanalítica: "existo onde não penso".

No próprio âmbito das ciências exatas e naturais, vieram se gestando refutações ao paradigma dominante, inaugurando-se uma nova revolução científica com as propostas de geometrias não-euclidianas (Rieman e Lobatchevsky) e a crítica às limitações da mecânica newtoniana, evidenciadas no domínio do infinitamente grande (astrofísica), com a teoria da relatividade, e do infinitamente pequeno (microfísica), com a teoria quântica.

A mudança no panorama intelectual que essas novas teorias causam, mesmo para um não integrante da comunidade das ciências ‘duras’, pode ser aquilatada pelo testemunho do historiador Marc Bloch (s. d., p. 22), pouco antes de sua morte em um campo de concentração nazista:

Ora a nossa atmosfera mental já não é a mesma. A teoria cinética dos gases, a mecânica einsteiniana, a teoria dos quanta alteraram profundamente a idéia que ainda ontem toda a gente formava da ciência. Não a apoucaram. Mas tornaram-na mais flexível. Substituíram em muitos pontos o certo pelo infinitamente provável; o rigorosamente mensurável pela noção da eterna relatividade da medida. A sua ação fez-se mesmo sentir sobre os inúmeros espíritos — tenho, ai de mim!, de me contar entre eles — aos quais as debilidades da inteligência ou da educação impediram acompanhar, a não ser de longe e de algum modo por reflexo, essa grande metamorfose. Estamos, portanto, doravante, muito mais preparados para admitir que um conhecimento merece o nome de científico ainda que não seja suscetível de demonstrações euclidianas ou de imutáveis leis de repetição. Aceitamos muito mais facilmente fazer da certeza e do universalismo uma questão de grau. Não sentimos já a obrigação de procurar impor a todos os objetos do saber um modelo intelectual uniforme, haurido nas ciências da natureza física; pois que até nesse domínio tal modelo deixou de ser inteiramente aplicado. Ainda não sabemos bem o que virão um dia a ser as ciências do homem. Sabemos que para existirem — continuando, é claro, a obedecer as regras fundamentais da razão — não terão de renunciar a sua originalidade, nem envergonhar-se dela.

Inaugura-se o que Bachelard chama de "novo espírito científico", caracterizado por racionalismos setoriais, dinâmicos e abertos, concebendo a atividade científica como a constante "reformulação de ilusões", pois não há a segurança de verdades primeiras, mas tão-somente primeiros erros.

Perelman vê na filosofia de Bachelard um exemplo de filosofia regressiva, que serviria para embasar sua teoria da argumentação: filosofia que, ao contrário das filosofias primeiras — que simplesmente extraem conseqüências de princípios postos como pontos de partida absolutos e inalteráveis — avançam pela reformulação de seus princípios" (Pessanha, 1989, p. 227).

Numa filosofia regressiva, segundo Perelman, os princípios fundamentais, em lugar de serem iluminados por alguma intuição que precede os fatos e independe deles, são, ao contrário, aclarados pelos fatos que coordenam e explicam, sendo, por isso, solidários a suas conseqüências. O que ele combate na tradição filosófica hegemônica na modernidade é "a restrição do conceito de razão, a redução do racionalismo a um de seus tipos, devido à identificação de prova racional com prova analítica. Mas isso não significa o desaparecimento de outra forma de provar, que apenas é desprestigiada como não-científica, pois permanece no âmbito do argumentativo e do provável, jamais pretendendo a certeza definitiva (idem, ibidem, p. 229).

É por isso que o alvo principal de sua "nova retórica" é a concepção de razão que teve origem com o pensamento cartesiano, ao qual dedica a primeira e a última frase do Traité de l’argumentation. Isto porque Descartes tem quase por falso tudo o que não é mais que verossímil:

As filosofias monistas procuram sempre reduzir a pluralidade de opiniões opostas à unicidade da verdade. Para conseguir, eles imaginaram uma razão divina, garantia do verdadeiro e do justo, onde a razão humana seria só um reflexo. Esta razão eterna e invariável, reconhecendo a evidência de certas proposições, garantiria pelo fato em si sua verdade, que se imporia a todo ser racional. É assim que, para os racionalistas, tais como Descartes ou Spinoza, o método dos geômetras que procede por intuição e por demonstração serviria de modelo a todos os problemas humanos, as regras válidas em matemática se impondo em todos os domínios (Perelman, 1994).

A teoria perelmaniana da argumentação ou nova retórica representa uma revitalização e reformulação de aspectos fundamentais da razão grega. Perelman retoma uma concepção de racionalidade que, como lembra Jean-Pierre Vernant, prevalecia na Grécia antiga. Trata-se de uma razão destinada não a transformar as coisas, pela objetivação da natureza, mas a influir sobre as pessoas pelas técnicas de persuasão. O problema apontado por Perelman não traduz uma discordância em relação à primeira idéia de razão, mas põe em relevo a incompreensão que se estabelece quanto ao lugar e utilidade da segunda. A retórica, a partir da modernidade, conheceu um longo período de desprestígio, ficando associada simplesmente a um rebuscamento de figuras de linguagem ou, ainda pior, a um artifício para ludibriar, enganar através do discurso. Inegavelmente, a história da filosofia ocidental foi escrita deformando-se e marginalizando-se importantes tradições intelectuais vencidas: "Os sofistas, contra os quais Platão moveu cerrada luta, passaram à posteridade — mesmo os da estatura de Górgias e Protágoras — como mestres falaciosos, criadores de raciocínios falsos com aparência de verdadeiros (sofismas). Desta má fama só o século XX começa a livrá-los" (Brito, 1989, p. 10). Um sintoma, ainda hoje, do desprestígio da retórica é sua ausência na obra de Lalande (1968).

No entanto, Perelman não se limita a resgatar a retórica grega. Esta se prestava a buscar a adesão por meio do discurso verbal, na presença das pessoas. A nova retórica amplia o conceito de auditórios, isto é, a quem a argumentação se dirige, estudando sobretudo os casos de argumentação através da palavra escrita, principal meio de persuasão no mundo contemporâneo. Por sinal, Perelman deplora o esquecimento da retórica justamente no século da propaganda e da psicologia comportamental, lembrando que os antigos tratados de retórica eram verdadeiras obras de psicologia. Isto porque toda argumentação tem que estar adequada a seu auditório, pois ela não pode se desenvolver, senão a partir do que é admitido por esse último. Disso não se deve inferir, entretanto, como levantaram muitos detratores da retórica, que é forçoso submeter-se aos valores dos ouvintes, sejam quais forem. A razão argumentativa pressupõe também a liberdade do auditório, que pode aderir ou não às teses ou valores defendidos. Neste ponto se estabelece a distinção entre a retórica e o modelo dialético de Platão, que pretende, através do diálogo, obter uma adesão necessária do interlocutor, visto que suas teses corresponderiam à verdade. Para a teoria da argumentação, a razão histórica,

pelo fato de não lidar com a linguagem inteiramente formalizada da lógica matemática, construída com base na univocidade de signos convencionais, antes utilizando os recursos da linguagem natural, marcados pela ambigüidade e pela polissemia, não pode contar com a adesão universal, embora em certos casos possa pretendê-la. É que se constrói entre o lógico e o psicológico, jamais se desprendendo das condições e circunstâncias das pessoas que interagem argumentativamente. ... Os pressupostos — freqüentemente implícitos — dos auditórios colocam a teoria da argumentação, inevitavelmente, em estreita conexão com a sociologia do conhecimento e com a análise das ideologias (Pessanha, 1989, pp. 232-3).

Assim, a posição do auditório ou do auditor assemelha-se à de um juiz, que pondera, pesa os argumentos, antes de dar ou negar seu assentimento. A razão argumentativa segue o modelo jurídico e não o modelo matemático, pois, não podendo recorrer à evidência da prova demonstrativa, que se impõe a todos, tem que deixar a possibilidade de revisão das decisões e adesões. Assim como existem instâncias de julgamento para as quais se apela de uma sentença, o campo do argumentativo deve possibilitar a reabertura da discussão, propiciando, se for o caso, a mudança de opinião. Ainda mais radicalmente do que na esfera do jurídico em que, esgotadas algumas apelações, declara-se o trânsito em julgado de uma questão, para a própria segurança das partes. Na esfera do argumentativo não é necessário o encerramento definitivo de uma pendência, podendo sempre ser reaberta a questão. Não se concebe uma tal quantidade de precauções em matemática ou nas ciências naturais. O modelo da razão argumentativa é o que se aplica não apenas à defesa, mas à construção das teses nas diversas ciências humanas e sociais, onde a comprovação é sinônimo de argumentação.

Na amplitude que confere ao universo da argumentação, Perelman indica três tipos de auditório: o especializado, o universal e o de elite, sendo o primeiro constituído por especialistas de determinada área, nos moldes da "cidade científica" de Bachelard. Já o auditório universal é típico da filosofia, pois

cada pensador — desde que defenda alguma forma de racionalismo — procura construir uma argumentação capaz de persuadir e conquistar a adesão, em princípio, de todos os espíritos racionais. Embora efetivamente o acordo total jamais ocorra, a argumentação filosófica não renuncia à pretensão de se dirigir à universalidade dos espíritos. ... A pretensão de universalidade pode levar, porém, à afirmação dos auditórios de elite, constituídos segundo critério qualitativo. Esses auditórios comportam apenas os ‘normais’, os ‘sábios’, os ‘competentes’, os ‘beneficiados pela graça’, os ‘eleitos’ etc. — enfim, aqueles que, por algum motivo, se destacariam do restante dos homens, mostrando-se aptos a receber a verdade que escapa aos demais. ... Permitem esses auditórios também repudiar o oponente como incapacitado, anormal ou recalcitrante, num tipo de intolerância autoritária que acompanha freqüentemente as concepções monistas — teológicas, filosóficas, políticas etc. — e a noção de verdade única (idem, ibidem, p. 237).

Os diversos tipos de monismos por ele criticados em nome do pluralismo filosófico — ontológico, religioso, axiológico, metodológico, sociológico, político — têm em comum o fato de trazerem como premissa a superioridade quer seja de um tipo de Ser, de uma crença, de um valor social, de um método, de um grupo social ou de um partido político. Esse monopólio, por definição, da virtude e da verdade é um artifício, qualquer que seja a razão que invoque, para escapar aos riscos das disputas:

Pretende entrever uma solução única e verdadeira a todos os conflitos de opinião e a todas as divergências. ... Os monismos favorecem um reducionismo às vezes dificilmente tolerável. Quando as ideologias monistas não conseguem fazer prevalecer seus pontos de vista, elas podem justificar em nome de Deus, da razão, da verdade, do interesse do Estado ou do partido, o recurso da violência. Os que resistirem deverão ser reeducados.

Como vimos, a teoria da argumentação é essencialmente pluralista. Sua constituição se deu no combate ao monismo metodológico, que sustenta que só há um método a seguir para atingir a verdade, o método demonstrativo, e que se deveria, em todos os domínios, procurar o mesmo gênero de certeza que aquela que procura o conhecimento matemático. O pluralismo, tal como se manifesta em política, em direito e em moral, não se concebe sem o pluralismo metodológico. À pluralidade das disciplinas corresponde uma pluralidade de métodos. Aristóteles, pai da lógica formal, punha em evidência, ao lado dos raciocínios analíticos utilizados nas demonstrações, os raciocínios dialéticos utilizados nos diálogos e controvérsias. Em sua Ética a Nicômaco, escreve que o marceneiro e o geômetra procuram todos os dois o ângulo reto, mas não da mesma maneira: o primeiro procura o ângulo mais ou menos reto que é útil a sua obra, o segundo procura a essência do ângulo reto em si, pois ele é um contemplador do verdadeiro.

O monismo metodológico tem uma clara implicação de dominação social. A desqualificação da política expressa nas citações transcritas anteriormente para ilustrar o cientificismo positivista tem a mesma matriz de uma declaração de Mário Henrique Simonsen (em Horta, 1985, p. 225) no auge da ditadura militar brasileira: "A evolução da técnica econômica não mais permite que os destinos de um país que necessita se desenvolver urgentemente — e modernizar suas estruturas — fiquem sujeitos a decisões ditadas por critérios políticos. Critérios técnicos e científicos é que devem ser levados em conta unicamente, de acordo com os interesses da sociedade."

Apesar da distância de quase um século, essas afirmações guardam muita semelhança pois revelam a intenção política do monismo metodológico cientificista de querer se passar por apolítico. Apresentam-se como uma superação de etapas confusas, imprecisas, onde imperam desejos, interesses, paixões. Vendem a idéia de, por meio da objetividade científica, poder proferir juízos imparciais que se tornem a base de intervenções que hão de ser indiscutivelmente as melhores, pois visarão estritamente ao "interesse nacional". Mas quem define as prioridades ditadas pelos "interesses da sociedade"? O debate político democrático? Claro que não. Tecnocratas como Simonsen estarão sempre dispostos a poupar-nos desta perda de tempo, com a vantagem adicional de nos garantirem, graças à objetividade do conhecimento científico, as melhores soluções de acordo com o interesse geral.

O ressurgimento da retórica está, portanto, estreitamente relacionado com circunstâncias políticas e sociais. Perelman (1979, p. 13) denuncia que filosofias primeiras, absolutistas, dedutivistas sempre prevaleceram ao longo da história em períodos caracterizados por estruturas dogmáticas, autoritárias, antidemocráticas enfim. Por outro lado, em épocas de grandes transformações, onde prevalecem os impulsos de descentralização e democratização do poder político, florescem as filosofias regressivas, abertas, dialógicas. Assim, situa sua nova retórica ou teoria da argumentação no contexto da luta pelos direitos do homem que incitou os pensadores do século XX a opor, às filosofias monistas, filosofias de inspiração pluralista que fazem do indivíduo concreto o ponto de partida de suas investigações. Em suas palavras, o pluralismo filosófico "recusará a conceder a qualquer indivíduo ou grupo, qualquer que seja ele, o privilégio exorbitante de fornecer o único critério do que é válido e do que é oportuno, privilégio que só pode levar à desmesura e ao totalitarismo, pois ele se arrisca a sufocar e a oprimir outros indivíduos e outros grupos igualmente respeitáveis".

Diante da questão "é então preciso que a filosofia pluralista dispense a idéia de verdade e a de razão?", Perelman deixa claro que trilha uma terceira via, entre o irracionalismo e a racionalidade matemática ou silogística. Não dispensa a idéia de razão. Apenas opta por "outra forma de racionalidade, igualmente legítima e insubstituível sobretudo nos campos do singular, do contingente, do histórico e do axiológico: a racionalidade construída no âmbito do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que escapa às certezas do cálculo. Esse é o território da teoria da argumentação" (Pessanha, 1989, p. 231).

A grande lição de Perelman é que razão necessitária — com pretensão de universalidade e atemporalidade — e razão argumentativa — imersa na contingência, na temporalidade, na história — não são excludentes, mas contrapõem-se complementarmente. Talvez a dificuldade que o pensamento ocidental tem para aceitar esta convivência esteja no arraigamento milenar de uma maneira maniqueísta de ver o mundo. Pensamos sobretudo em termos de lógica binária, há 25 séculos, desde Parmênides. Sem dúvida, é difícil nos descondicionarmos de uma herança de mais de dois milênios. Mas é preciso tentar.

Recebido para publicação em novembro de 1997.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 1999

Histórico

  • Recebido
    Nov 1997
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