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Aparecida Garcia, uma pioneira da patologia pediátrica

Em homenagem à Aparecida Garcia, História, Ciências, Saúde — Manguinhos abre espaço para o depoimento de Dora Menezes, uma de suas companheiras no Serviço de Patologia do Instituto Fernandes Figueira.

A dra. Aparecida Gomes Pinto Garcia foi uma das precurssoras da patologia pediátrica na América Latina. Tive o privilégio de conviver com ela, como amiga, colega e mestra até a data de sua morte, em 25 de abril de 1999, pouco antes de completar 77 anos. Filha de Marta Souza Pinto e Agenor Gomes Pinto, nasceu em Itanhandu, sul de Minas Gerais, em 26 de junho de 1922.

Aos 16 anos, Aparecida transferiu-se para o Rio de Janeiro com a intenção de iniciar os estudos preparatórios para ingressar na Faculdade Nacional de Medicina, então ligada à Universidade do Brasil. Eram ainda poucas as mulheres que escolhiam esta profissão, e a mãe, preocupada, foi aconselhar-se com o padre da cidade para saber se tal decisão seria um pecado grave. Com o apoio do irmão mais velho, Crispim Gomes Pinto, a quem considerava um segundo pai, ela conseguiu desprender-se da família para fazer os estudos superiores. Em conversa com os amigos, relembrava as dificuldades que enfrentou durante o tempo em que viveu num pensionato para moças no Rio de Janeiro, no bairro da Glória. Em 1940, ingressou na faculdade e, cinco anos depois, colou grau.

Já no segundo ano, iniciou um estágio no Instituto Fernandes Figueira (IFF), então vinculado ao Departamento Nacional da Criança, do Ministério da Saúde, onde passou a residir (na época não havia ainda residência médica institucionalizada).1 1 O Fernandes Figueira atende pacientes de nível sócio-econômico baixo, portadores de doenças mais comuns da infância, como infecções, desnutrição etc. É um centro de referência, que desenvolve pesquisas e presta assistência clínica e cirúrgica a mulheres, recém-nascidos e crianças com problemas genéticos ou que necessitem de cirurgias e cuidados especiais. Trabalhou, a princípio, com o dr. Mário Mesquita, depois com o prof. Arlindo de Assis, bacteriologista que muito incentivou o uso da vacina BCG entre os cariocas, e que exerceu grande influência sobre a vida profissional da talentosa estudante que o auxiliava. Mais tarde, ela iria ensinar-me muitas lições de medicina e de vida que aprendeu com ele, e quando me passava trabalhos científicos para ler, citava-o: "separatas de trabalhos científicos só se dão a quem as solicita. Sabemos assim que serão lidas."

Logo após a formatura, a dra. Aparecida Garcia assumiu a chefia do Serviço de Anatomia Patológica do Instituto Fernandes Figueira, onde iria exercer suas atividades durante 58 anos. Mesmo depois da aposentadoria, continuaria a trabalhar lá como pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Sempre muito metódica, disciplinada, exigente em relação a seu trabalho — qualidades que procuraria passar às alunas — deu os primeiros passos em patologia pediátrica, a princípio de forma autodidata, fazendo, por exemplo, necropsia com o livro aberto, ao lado, para conferir a técnica. Nesse árduo início de carreira como especialista, contou com o apoio de um colega de turma, o prof. Manoel Barretto Netto, do Instituto de Neurologia, com quem manteve intercâmbio constante. Tinha grande admiração também pelo dr. Ackerman, a quem citava constantemente. Freqüentava as reuniões semanais de estudo na Santa Casa da Misericórdia, em que apresentava casos para discussão com médicos e residentes do Serviço de Patologia.

Em 1949, o dr. Martagão Gesteira, diretor do Departamento Nacional da Criança do Ministério da Educação e Saúde Pública, trouxe ao Brasil a dra. Edith Potter, chefe do Serviço de Patologia do Chicago Lying Hospital, autora de Pathology of the fetus and the newborn (Year Book Med Publishers, 1975). Ela foi, provavelmente, a primeira médica a se dedicar à patologia pediátrica. Começou, então, uma nova etapa na vida profissional de Aparecida, que teve o privilégio de conviver durante seis meses com essa notável profissional. Junto com a dra. Anadil Roseli e duas outras médicas brasileiras, assistia às necropsias que a norte-americana fazia no Hospital Gaffrée e Guinle (o serviço de patologia do IFF estava em reformas).

Aparecida sempre conservou sobre sua mesa de trabalho as fotografias dos dois mestres que mais a influenciaram, o prof. Arlindo de Assis e a dra. Potter. Com esta, manteve prolongada correspondência e amizade.

Conheci a dra. Aparecida em 1958, quando ingressei no IFF como estágiaria, na quinta enfermaria, então a cargo do prof. César Beltrão Perneta. Lembro-me de que, ao assistir à sessão clínico-patológica do hospital, fiquei entusiasmada com o caso apresentado e o diagnóstico patológico defendido pela dra. Aparecida. Pensei comigo mesma: como uma pessoa tão simples e modesta pode saber tanto?

Pouco tempo depois, fomos apresentadas, e, decorridos alguns dias, ela me convidou a freqüentar o seu serviço, o que prontamente aceitei. Terminava aí minha curta vida de pediatra e iniciava-se a longa vida de patologista. Nosso relacionamento foi, inicialmente, de professora e aluna, em seguida de colegas de profissão e, com o decorrer dos anos, transformou-se em verdadeira amizade, quase de mãe e filha, mesmo depois que deixei o instituto, em 1970, por haver sido aprovada em concurso para a Universidade Federal Fluminense (UFF).

Em 1958, o Laboratório de Anatomia Patológica era simples e com poucos recursos, mas isso não arrefecia nosso entusiasmo. Havia entre nós — e eu incluo aí a secretária, os técnicos, auxiliares de necropsia e serventes — um ambiente de amizade, respeito e considerção.

Apesar das dificuldades, o serviço funcionava e deu origem a muitos trabalhos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, sobre as alterações anatomopatológicas de doenças que mais freqüentemente atingiam as crianças, visando aprimorar a capacidade diagnóstica do corpo médico e reduzir a morbidade e mortalidade infantil e materna.

O arquivo era objeto de preocupação constante da dra. Aparecida. Já na decáda de 1960, possuía um acervo enorme em patologia pediátrica, talvez o maior do país, quiçá da América Latina. A dra. Aparecida sempre nos dizia que um serviço sem arquivo era o mesmo que um homem sem memória. O arquivo era nosológico, por processos e órgãos. Continha material parafinizado e emblocado, assim como fotografias. Com um arquivo bem organizado, o patologiosta pode, a qualquer momento, revisar seus materiais à luz de novos conhecimentos.

Com o passar do tempo e a evolução tecnológica, o serviço foi modernizado, e tornou-se um dos mais respeitados do território nacional, hoje sob a direção competente da dra. Heloisa Outani.

Sempre a primeira a chegar ao hospital, a dra. Aparecida era um exemplo de dedicação ao trabalho e ao estudo. Muito metódica, programava todas as suas horas e minutos.

Foi chefe de escola sem ter feito mestrado ou doutorado, pois esses títulos não existiam em sua época. O CNPq concedeu-lhe o título de pesquisadora-chefe. E o departamento de patologia da UFF, referendado pelo Conselho Universitário, conferiu-lhe o título de "notório saber", só atribuído a personalidades que têm grande conhecimento científico e mérito incontestável. Com isso, ela pôde orientar dissertações e teses de mestrado e doutorado e participar de bancas examinadoras, para as quais era feqüentemente convidada.

Fez parte do corpo docente dos cursos de mestrado e doutorado em saúde da mulher da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Participou de vários grupos de trabalho, tanto no IFF como na Fiocruz. Foram numerosas as aulas e conferências que proferiu em congressos nacionais e internacionais. Em 1993, foi homenageada pela Sociedade Brasileira de Patologia, pelos serviços prestados à especialidade.

Marcou a formação de quase todas as patologistas atuantes no Brasil, se não diretamente, através de suas discípulas, espalhadas por todo o país. Uso o feminino, mas a patologia pediátrica não é absolutamente apanágio das mulheres. No exterior, os homens predominam, mas, aqui no Brasil, a maioria dos profissionais são do sexo feminino. Talvez isso se deva ao fato de a especialidade não favorecer a clínica particular, e os salários não serem muito convidativos. Com o ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho, talvez os homem possam dedicar-se mais a ela.

A dra. Aparecida estudava constantemente, estava sempre em sintonia com os conhecimentos de ponta. Durante anos, resumiu trabalhos originais para o Jornal Brasileiro de Pediatria, contribuindo para o aperfeiçoamento de pediatras e patologistas. Realmente, contagiava com seu entusiasmo a todos que com ela trabalhavam.

Ao fundo, prof. Philippe Nojff, ao lado das doutoras Heloisa Outani e Aparecida Garcia. Em primeiro plano, prof. João Cortes.

Os numerosos trabalhos que publicou em revistas nacionais e estrangeiras converteram seu nome em referência bibliográfica obrigatória de todos os livros de texto dedicados à especialidade. Foi pioneira no estudo das infecções placentárias determinadas por vírus, o que levou à sua inclusão no livro dos recordes, o Who is Who (1964-65).

Ela descreveu pela primeira vez e comprovou a passagem transplacentária dos vírus. Publicado no Pediatrics (32:895-901, 1963), o trabalho (‘Fetal infection in chicken pox and alastrin with a pathological study of the placenta’), mostrava células com corpúsculos de inclusão na decídua placentária em casos de gestantes portadoras de varíola e varicela. Outro trabalho pioneiro, publicado no Arch. Dis. Child (43, pp. 705-10, 1968) versou sobre toxoplasmose congênita em gestações sucessivas.

Aparecida prossegiu as pesquisas sobre a ação dos vírus na placenta, voltando-se pricipalmente para a hepatite B e o HIV. A revisão do seu arquivo levou-a a estudar também as lesões determinadas pelo Toxoplasma gondii ao nível da supra-renal. Este trabalho estava em vias de ser enviado para publicação quando faleceu.

Era a memória viva do Instituto Fernandes Figueira, onde trabalhou mesmo após a aposentadoria, em 1992, durante 58 anos. Participava de todas as reuniões científicas do hospital. Nas últimas quartas-feiras do mês, relizava as sessões clínico-patológicas, às quais comparecia todo o corpo clínico e médicos de outras instituições. Estas reuniões constituíam um marco na programação científica do hospital.

Na década de 1960, fundou o Clube do Feto com a colaboração do dr. João Mário da Silva Pereira, seu amigo, diretor da maternidade Clóvis Corrêa da Costa. Os obstetras que o sucederam na direção da maternidade mantiveram o apoio, e assim o clube reúne-se até hoje com a finalidade de melhorar o padrão de atendimento às gestantes e recém-nascidos e reduzir a morbidade e mortalidade perinatal e infantil.

A dra. Aparecida tinha preocupação constante com sua produção científica, publicando pelo menos dois trabalhos por ano. Em suas lições, insistia sempre em que o trabalho científico pressupõe uma rotina bem-feita. Estava sempre disposta a receber aqueles que a procuravam para tirar dúvidas e aprender com seus ensinamentos e sua experiência pessoal.

Aparecida não foi apenas uma profissional exemplar, mas também mulher e mãe realizada. Foi casada durante mais de cinqüenta anos com o prof. Afrânio Raul Garcia, pediatra, professor da UFF. Começaram a namorar no Instituto Fernandes Figueira e casaram-se em 17 de maio de 1947. Ela dizia freqüentemente: "Com meu marido iniciei a família e com ele seguirei até o fim de nossos dias." O casal teve três filhos, Afrânio Raul, Agenor e Marcio, e oito netos. Aparecida gostava de ser dona de casa, e fazia questão de preparar, ela mesma, os almoços em que, pelo menos uma vez por semana, a família se reunia.

Dra. Aparecida foi minha amiga, colega, mãe profissional. Sentirei saudades dos momentos felizes que passamos juntas, das conversas instigantes, das viagens divertidas para participar de congressos. Conforta-me, porém, a certeza de que permanece viva no pensamento e no coração de todos os que tiveram o privilégio de conhecê-la.

Dora Menezes

Médica patologista

e-mail: menezesd@barralink.com.br

Nota:

  • 1
    O Fernandes Figueira atende pacientes de nível sócio-econômico baixo, portadores de doenças mais comuns da infância, como infecções, desnutrição etc. É um centro de referência, que desenvolve pesquisas e presta assistência clínica e cirúrgica a mulheres, recém-nascidos e crianças com problemas genéticos ou que necessitem de cirurgias e cuidados especiais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Out 1999
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