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Malária em dois tempos

Malaria during two periods

Malária em dois tempos

Malaria during two periods

Lina Rodrigues de Faria

Historiadora, mestre em saúde coletiva, pesquisadora visitante do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz

Av. Brasil, 4365, Prédio do Relógio

21040-360 Rio de Janeiro – RJ Brasil

lina@compuland.com.br

Desde o século XVI várias doenças como a malária, a varíola, o sarampo, a ancilostomíase, a disenteria e a febre amarela acometiam grande parte da população livre e escrava no Brasil. Gilberto Freyre lembra-nos de que essas doenças atingiam tanto as ‘casas-grandes’ como as ‘senzalas’

33. Ainda neste capítulo, a autora descreve, de maneira minuciosa, as fases do programa de erradicação da malária em São Paulo. A fase preparatória requer, a priori, o conhecimento geográfico para definição das área endêmicas. Na fase de ataque, prevalece o trabalho de borrifação com DDT. Na de consolidação, verifica-se o aumento das atividades epidemiológicas e um maior controle dos focos residuais; e, por fim, na fase de manutenção, o objetivo é a prevenção. Finalmente, o terceiro período analisado caracteriza-se pelo modelo focal-preventista. Nesta fase, a transmissão da malária em vários municípios de São Paulo foi praticamente interrompida em virtude do decréscimo acentuado da população rural e do impacto provocado pelas campanhas de erradicação da fase anterior. Segundo a autora, as condições para a ocorrência da malária em São Paulo são outras. A doença deixa de constituir um problema e passa a ser vista como um risco, "é o risco da doença, mais do que sua efetiva presença, que constitui a necessidade socialmente posta" (p. 89). O aumento da incidência em outros estados brasileiros, em especial na Amazônia, representa uma ameaça à bem-sucedida campanha sanitária paulista, na medida em que os trabalhadores migrantes atuam como "focos ativos" de transmissão da malária. A vigilância epidemiológica, ou seja, o controle sobre o surgimento de novos focos de malária, passa a ser a preocupação central dos serviços sanitários estaduais. Ainda nesta parte do trabalho, Rita Barata mostra como a teoria focal-preventista ganha força. O recrudescimento da malária, em várias partes do mundo, requer alternativas e estratégias novas para conter o seu avanço. A produção da doença passa a ser tratada como "problema focal", o que significa, segundo a autora, "abandonar a abstração construída no plano coletivo para a erradicação e buscar abstrações menos generalizadas e mais circunstanciais" (p. 97). A teoria focal leva em consideração as várias manifestações da doença e admite a existência de contextos epidemiológicos distintos. Para finalizar sua análise, faz uma comparação entre a situação sanitária paulista e a verificada nos países desenvolvidos. Nesses, lembra ela, raramente ocorre a reinfestação da doença em áreas onde a transmissão foi interrompida. Este fator é o resultado do desenvolvimento econômico. Nas suas palavras, "a experiência parece indicar que, uma vez obtida a interrupção da transmissão, naquelas áreas em que o desenvolvimento sócio-econômico é suficiente para manter os avanços alcançados, dificilmente a endemia se restabelece" (p. 111). Onde estaria o problema então? Na superação do campanhismo ou na superação do subdesenvolvimento? Soper foi membro da International Health Division da Fundação Rockefeller e representante do Serviço de Febre Amarela na América do Sul. Paul Russel, malariólogo, foi autor de textos importantes sobre malariologia nas décadas de 1940 e 1950. Infelizmente, o texto não traz referências detalhadas sobre os autores.

Vejamos como a autora constrói seu primeiro modelo. No modelo ecológico-ambientalista (1930-50), as questões ambientais dominam as formulações teóricas. Segundo a autora, a necessidade de saúde e a montagem de uma estrutura sanitária estão diretamente vinculadas ao processo de ocupação do território paulista em virtude das condições sociais e econômicas verificadas em determinadas áreas de São Paulo. Nesse sentido, a maior ou menor freqüência de casos de malária remete às "condições de existência" de cada região. Nas áreas onde o movimento migratório é menor e o crescimento urbano-industrial é forte, a reprodução da doença é baixa. Mesmo assim, observa-se a presença de uma estrutura sanitária dinâmica. "Os serviços são em geral instalados nas áreas onde os interesses econômicos mais consolidados determinam a definição de prioridades" (p. 28). A malária era vista como um obstáculo ao desenvolvimento econômico, em especial ao crescimento industrial. Sua ocorrência significava redução da capacidade de trabalho e, conseqüentemente, da produtividade: "A necessidade de saúde traduzida no problema-malária coloca-se como um entrave ao processo de valorização e será nesta dimensão, ligada à limitação da capacidade produtiva, que ela se constituirá em motivação para a ação de órgãos e instituições sociais" (p. 25).

Do modo como a autora apresenta a discussão, o modelo não parece ser ecológico, mas lembra, antes, um modelo ‘funcional’, em que as condições de existência parecem determinar, como em uma relação orgânica, a distribuição das doenças e as políticas sanitárias. Essa relação é até certo ponto previsível para uma explicação econômica, pouco sensível a forças e movimentos de natureza política e à própria atuação das tradições médicas e sanitárias da região. Talvez aqui coubesse melhor a conhecida interpretação de William McNeill, em Plagues and peoples, para quem a geografia econômica (isto é, a zona geográfica de uma sociedade e seus estágios de desenvolvimento) afeta o perfil das doenças e seu controle.

No segundo momento, marcado pelo modelo técnico-campanhista, as estratégias de ação assumidas pelo estado são as campanhas de erradicação e prevenção da malária. Esta fase é marcada, segundo a autora, por forte movimento de urbanização, em virtude do desenvolvimento industrial verificado em São Paulo. As campanhas de combate à doença tornam-se mais dinâmicas e o cuidado com a prevenção é o ponto central das atividades. A atuação do Serviço de Profilaxia da Malária, somada à diminuição do número de trabalhadores rurais e à alteração nas relações de produção, são fatores que contribuem para a redução da incidência da malária. Mas, segundo Rita Barata, a diminuição dos casos de malária em São Paulo não modifica a quadro regional de distribuição da doença, "que continua a refletir as características próprias do desenvolvimento sócio-econômico, em cada região" (p. 56). Um ponto interessante, nesta parte do trabalho, é a discussão das controvérsias entre as teorias de erradicação da malária propostas por Fred Soper, favorável à eliminação do vetor, e por Paul Russel, para o qual a erradicação da doença seria o único meio de se evitar a transmissão
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    No final do século XIX e início do XX, já sob a República, o quadro de insuficiência na saúde pública não havia se alterado, continuavam graves as condições de saúde, diante da ameaça de antigas e novas epidemias. A expedição científica de Carlos Chagas pela Amazônia, realizada entre outubro de 1912 e março de 1913, teve o efeito de colocar o higienista em contato direto com a miséria e as críticas condições de saúde dos seringueiros. No entanto, transcorridos mais de oitenta anos da "pregação salvadora" de higienistas como Carlos Chagas, as condições de saúde da população continuam a desafiar os poderes públicos, atingindo as camadas mais pobres da sociedade brasileira
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    A malária é o caso mais significativo. Na região amazônica, há vastas áreas endêmicas da doença. As populações ribeirinhas são as que mais sofrem sua ação devastadora. A malária voltou a fazer parte das estatísticas do Ministério da Saúde, em vista do seu recrudescimento nessas áreas, durante a década de 1980. Os programas de saúde criados para atender às demandas sanitárias da população não se traduziram em assistência médica de qualidade capazes de melhorar o quadro epidemiológico.
    O aumento da incidência da malária, neste período, foi uma das motivações de Rita Barradas Barata, ao desenvolver um estudo sobre o problema. Em
    Malária e seu controle, a autora recupera a trajetória histórica da doença, as políticas públicas e a formação das práticas sanitárias no estado de São Paulo, no período entre 1930 e 1990. A escolha do caso paulista baseou-se, entre outros pontos, no fato de que as questões suscitadas ou, no dizer da autora, as "verdades estabelecidas" – dificuldades financeiras, técnicas, operacionais e políticas –, para explicar a fragilidade das campanhas de combate à malária em outros estados brasileiros não pareciam válidas para São Paulo.
    O trabalho de Rita Barata é significativo na medida em que traz à tona um problema que ainda hoje desafia a saúde pública: o aumento do número de casos de malária. As fontes que utiliza em seu estudo indicam, entre outros problemas, a fragilidade das ações de controle que visam à prevenção da doença. A lamentar, no entanto, um aspecto que de modo algum compromete o conjunto da obra, mas nos dá a sensação de um quadro explicativo até certo ponto simplificador para analisar o desenvolvimento das políticas sanitárias em São Paulo. Do ponto de vista do processo da reforma sanitária, a análise apresentada tende a um certo economicismo. Nesse processo, destaca-se o papel dinâmico do capitalismo, mas as tradições médicas, a montagem dos serviços de saúde, já na Primeira República, pelo Serviço Sanitário paulista e pela Fundação Rockefeller e movimentos reformistas importantes, tais como a Liga Pró-Saneamento, organizada por sanitaristas e intelectuais como Monteiro Lobato – fatores que deveriam justamente revelar aquele elemento dinâmico – não recebem tratamento adequado.
    O objetivo principal da análise é mostrar de que forma a malária chega a constituir uma "necessidade socialmente percebida", no sentido de demandar práticas institucionais de prevenção e controle da doença, e em que medida o conhecimento epidemiológico ajudou na elaboração dessas práticas. A autora sugere a construção de três modelos teóricos de intervenção que, articulados às necessidades sociais de saúde, à produção de conhecimento científico e às práticas de intervenção e controle, dariam conta da compreensão desse fenômeno. Esses modelos corresponderiam a diferentes momentos históricos: o ecológico-ambientalista, característico da fase entre 1930 e 1950; o técnico-campanhista, entre 1950 e 1970; e o modelo focal-preventista, que abrange o período entre 1970 e 1990.
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    Ainda neste capítulo, a autora descreve, de maneira minuciosa, as fases do programa de erradicação da malária em São Paulo. A fase preparatória requer,
    a priori, o conhecimento geográfico para definição das área endêmicas. Na fase de ataque, prevalece o trabalho de borrifação com DDT. Na de consolidação, verifica-se o aumento das atividades epidemiológicas e um maior controle dos focos residuais; e, por fim, na fase de manutenção, o objetivo é a prevenção.
    Finalmente, o terceiro período analisado caracteriza-se pelo modelo focal-preventista. Nesta fase, a transmissão da malária em vários municípios de São Paulo foi praticamente interrompida em virtude do decréscimo acentuado da população rural e do impacto provocado pelas campanhas de erradicação da fase anterior. Segundo a autora, as condições para a ocorrência da malária em São Paulo são outras. A doença deixa de constituir um problema e passa a ser vista como um risco, "é o risco da doença, mais do que sua efetiva presença, que constitui a necessidade socialmente posta" (p. 89). O aumento da incidência em outros estados brasileiros, em especial na Amazônia, representa uma ameaça à bem-sucedida campanha sanitária paulista, na medida em que os trabalhadores migrantes atuam como "focos ativos" de transmissão da malária. A vigilância epidemiológica, ou seja, o controle sobre o surgimento de novos focos de malária, passa a ser a preocupação central dos serviços sanitários estaduais. Ainda nesta parte do trabalho, Rita Barata mostra como a teoria focal-preventista ganha força. O recrudescimento da malária, em várias partes do mundo, requer alternativas e estratégias novas para conter o seu avanço. A produção da doença passa a ser tratada como "problema focal", o que significa, segundo a autora, "abandonar a abstração construída no plano coletivo para a erradicação e buscar abstrações menos generalizadas e mais circunstanciais" (p. 97). A teoria focal leva em consideração as várias manifestações da doença e admite a existência de contextos epidemiológicos distintos. Para finalizar sua análise, faz uma comparação entre a situação sanitária paulista e a verificada nos países desenvolvidos. Nesses, lembra ela, raramente ocorre a reinfestação da doença em áreas onde a transmissão foi interrompida. Este fator é o resultado do desenvolvimento econômico. Nas suas palavras, "a experiência parece indicar que, uma vez obtida a interrupção da transmissão, naquelas áreas em que o desenvolvimento sócio-econômico é suficiente para manter os avanços alcançados, dificilmente a endemia se restabelece" (p. 111). Onde estaria o problema então? Na superação do campanhismo ou na superação do subdesenvolvimento?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2000
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