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A comunidade científica tem dúvidas

The scientific community is in doubt

P I N G U E - P O N G U E

A comunidade científica tem dúvidas

The scientific community is in doubt

Depoimento de/General comments by Glaci Zancan

Departamento de Bioquímica, Universidade Federal do Paraná
Campus Jardim das Américas, Caixa Postal 19046
81531-990 Curitiba — PR Brasil
zancan@bio.ufpr.br

Tenho recusado os convites para falar sobre organismos modificados geneticamente, pois o assunto deixou de ser racional e passou a ser passional. Nessa medida, já não me interessa. Abro hoje uma exceção.

Desde 1989, quando o então senador Marco Maciel apresentou um anteprojeto no Congresso, nós — o pessoal da Embrapa, da Fiocruz e eu, na época diretora do Centro Brasil-Argentina de Biotecnologia — estivemos envolvidos nessa legislação. Quando montamos a estrutura legal, estávamos preocupados em dotar o país de uma estrutura que pudesse ser racional, ágil, não burocratizada, capaz de cumprir sua finalidade. Na montagem de todo processo, delegaram-se competências. A vigilância, por exemplo, não é feita pela CTNBio, mas pelos órgãos da Vigilância Sanitária.

Estávamos preocupados — e ainda estamos — com o treinamento do pessoal da vigilância, para que possa exercer sua função. Por isso, quando o processo de credenciamento foi acelerado em larga escala, propusemos ao Congresso Nacional uma moratória de cinco anos, para que haja tempo de treinar todo mundo. Não adianta ter uma legislação que vai ser descumprida.

A moratória não era para a pesquisa, mas sim para a comercialização, de forma a dar tempo de se preparar a infra-estrutura necessária. Esta era a nossa posição. Já gastamos dois anos em discussões, só temos mais três pela frente. Espero que todos os técnicos sejam treinados no tempo que resta, para que possamos ter um sistema que funcione da melhor maneira possível.

Por outro lado, quando apareceu o pedido de autorização para a utilização em larga escala da soja modificada, a diretoria da SBPC sentiu-se na obrigação de levantar o problema, pois os ensaios experimentais de campo, que tinham sido autorizados pela comissão (CTNBio), ainda não apresentavam resultados válidos. Eles não estavam sendo feitos no país; todo processo havia sido montado e apresentado com dados colhidos nos Estados Unidos. Era preciso mais tempo. Os únicos dados nacionais eram de produtividade: a soja plantada era competitiva comercialmente. Na ocasião, não se tratava ainda das linhagens cruzadas com linhagens da Embrapa, que só agora estão sendo testadas. Vai ser necessário certo tempo para que se façam as avaliações.

Não esperávamos pela luta política que se armou em torno das posições técnicas que queríamos preservar. As discussões na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul ficaram tão acirradas que ali não se consegue racionalidade. É um desperdício! Em primeiro lugar, porque a tecnologia de DNA recombinante é fantástica, vamos usá-la daqui para a frente permanentemente. Acho uma maravilha ter uma vacina contra a hepatite B feita de maneira recombinante no Brasil. Ela vai ter que passar por critérios de qualidade iguais aos de qualquer outra vacina. É uma beleza que possamos fazer isto em nosso país. Quando não há risco, não deve haver restrição alguma. É uma tecnologia que veio para ficar!

Há, porém, um fato muito importante associado a essa tecnologia: o domínio de empresas privadas na pesquisa em transgenia nos Estados Unidos. Grandes corporações têm realizado investimentos maiores que as instituições públicas. Isso acelera o processo, estabelecendo-se uma corrida para chegar ao mercado sem que tenhamos os respaldos técnicos necessários. Este é o grande problema! Os Estados Unidos não fizeram ensaios de impacto ambiental para a soja. Consideraram que a soja é exótica. Sendo assim, um gene a mais ou a menos não faz diferença. Os ensaios feitos lá referiam-se apenas à composição da soja natural e da transgênica.

O especialista Roy L. Fuchs, que era assessor da Monsanto, realizou ensaios sobre o risco das proteínas alergênicas, mas apenas aquelas encontradas no banco de proteínas. Isto não exclui a possibilidade de que outras proteínas, que não estavam no banco, se expressem. Reforça-se, pois, a importância de que se realizem ensaios no Brasil. Por isso, levantamos a discussão.

Há muitas dúvidas na comunidade científica internacional. O que angustia a comunidade que lida com o problema é a quantidade de dúvidas que restam. Ninguém pode dizer que não há problemas. Em simpósio recente sobre intolerância alimentar, o especialista C. Madsen (1996) afirmou que se desconhecem não só os mecanismos totais de alergia alimentar, mas também os de tolerância de maneira geral. Esta é a grande preocupação com as plantas geneticamente modificadas. A informação do presidente do Instituto de Alergias do National Institutes of Health (NIH), de que eles estão começando um grande programa sobre alergia alimentar, representa o reconhecimento de que o assunto precisa ser exaustivamente estudado, quando se trata de alimentos geneticamente modificados.

Há outro grande problema para o Brasil: uma coisa é fazer teste de resistência à toxina do Bacillus thuringiensis (Bt)* na monarca, uma espécie de borboleta. Outra coisa é fazer teste de resistência à toxina do Bt em um universo de insetos como temos no Brasil. Entre os insetos do Brasil a resistência é completamente desconhecida. É um grande problema! O que vamos fazer, do ponto de vista ecológico, quando tivermos enormes áreas plantadas com milho Bt? Precisamos de ensaios e pesquisas feitas aqui, pois nossa realidade é distinta. É preciso fazer análise de risco no Brasil. Cada caso de transgenia é um caso, e cada caso vai ter de ser estudado.

Agora vou fazer uma cobrança à CTNBio. Nosso pessoal solicitou às companhias, em nome da SBPC, as sementes transgênicas para fazer os ensaios de risco. Não foram fornecidas. Pedimos também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ao Ministério da Ciência e Tecnologia para implantar uma linha de crédito para ensaios de risco. Porque se não houver financiamento, o pesquisador não vai poder fazer os ensaios.

Pessoas ligadas à Environmental Protection Agency (EPA) disseram que 10% da área plantada deveriam ser reservados para refúgio dos insetos no caso do milho contendo Bt. Refúgio é uma área na qual os insetos vão ficar para se proteger da toxina. Se não houver essa área, os que sobrevivem são resistentes à toxina, o que significa que a toxina não os afetará mais. Agora saiu uma resolução que determina que o valor aumente para 20% da área plantada e, ainda, que se avalie a possibilidade de estabelecer um refúgio de 50%. Duvido que algum agricultor possa reservar a metade de sua área para fazer um refúgio desse tipo. Não será economicamente viável.

Além disso, dados apresentados na revista norte-americana Science (286:1662-6, 1999) mostram que a soja Roundup* não dá lucro e o uso de herbicidas não diminuiu. Há outro grande problema. Como alternativa para obter fertilizante nitrogenado, a cultura da soja no Brasil usa bactérias fixadoras de nitrogênio, enquanto a cultura da soja norte-americana utiliza fertilizantes químicos. Por dados experimentais do Centro Nacional de Soja, sabemos que a transgenia reduz o rendimento da fixação do nitrogênio. Se isso é verdade, o rendimento da nossa soja vai diminuir; não será economicamente viável usar as sementes transgênicas. Esses problemas mostram que podemos ir um pouco mais devagar. O país é muito grande, podemos perfeitamente ter áreas experimentais que cultivem plantas com transgenia, definindo os parâmetros de sua cultura, e outras áreas que não envolvam plantas com transgenia, para encontrar uma forma harmônica de convivência.

Do ponto de vista científico, temos muitas indagações. Gostaríamos de vê-las estudadas e respondidas. A CTNBio tem de trabalhar com o máximo de responsabilidade técnica. Não é dela que sai o parecer que libera o plantio, mas sim dos ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura. Mas a comissão precisa levar em consideração o suporte científico produzido no país. Temos infra-estrutura técnica para fazer as análises aqui.

Um dos países que mais investem em análises de risco é a Alemanha. Os Estados Unidos dedicam um percentual ridículo para esse tipo de análise (Nature, 398: 652-3,1999). Por outro lado, se pessoas ligadas a uma empresa norte-americana afirmam para os técnicos do Food and Drug Administration (FDA) que realizaram as análises, eles acreditam. E se você perguntar para a população norte-americana se ela acredita no FDA, pelo menos 80% acreditam (Science, 285: 384-7, 1999). A questão fundamental é que os Estados Unidos têm uma Justiça que funciona: se a empresa mentir, ela vai pagar e ser desmoralizada. Com a nossa Justiça, fica muito difícil ter a mesma segurança. Mais uma razão para que tenhamos prudência, para que entremos com mais calma no processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Madsen, C. (1996) ‘Gastrointestinal tract allergy intolerance’. Em J. G. Vos; M. Younes e E. Smith (orgs.), Allergic hypersensitivies induced by chemicals. Bota Raton, CRC Press

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2000
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