A corografia medieval e a cartografia renascentista: testemunhos iconográficos de duas visões de mundo
Medieval chorography and Renaissance cartography: iconographic testimonies of two worldviews
A análise histórica de documentos iconográficos é um fato recente, não tendo sido utilizada antes do início do século XX. Quase cem anos depois, na era da informática e da globalização, é ainda interessante observar as cartas medievais e renascentistas, representantes de duas visões de mundo completamente distintas. As primeiras, marcadas pela circularidade e pelo predomínio do ideal sobre o real, de alguma maneira possibilitaram favorecendo e desfavorecendo alternadamente a descoberta das novas terras, a abertura do mundo e a conseqüente confecção das novas cartas renascentistas.
Considerando que muitas das cartas do período se perderam pela precariedade de condições em que foram mantidas, ou por terem sido vítimas dos estragos materiais das duas grandes guerras, o estudo da cartografia torna-se fundamental não só por representar a conhecida história das mentalidades, mas por ser uma importante fonte da história da ciência.
Neste último campo, pouco trabalhado nas universidades do Rio de Janeiro, podem-se destacar as cartas de marear portuguesas, parte do grande acervo de cartas da Biblioteca Nacional. Através dessas e de outras cartas, já bastante conhecidas e divulgadas, tem-se uma visão de mundo informada pela nova ciência dos séculos XV e XVI, pela perda do geocentrismo a aceitação da teoria heliocêntrica de Copérnico. As divergentes teorias sobre os cosmos, retomadas de Aristóteles (sobretudo na península ibérica), ou da tradição ptolomaica (especialmente na Itália), demonstram quão rico é o material cartográfico no que diz respeito à cultura científica renascentista.
A corografia medieval vale dizer, a representação em mapa de uma pequena parcela do mundo foi marcada por características singulares. As cartas medievais seguem um padrão bastante significativo. Quase todas são circulares, desenhadas segundo o modelo TO, através do qual o artista buscava objetivar o mundo conhecido Europa, Ásia e África como uma massa compacta, sendo os três mundos separados apenas por massas de água que eram então representadas como rios: o Mediterrâneo, o Nilo e o Don. Ao centro do mapa, a Jerusalém terrestre, perdida para os muçulmanos. A Europa, continente povoado pelo pálido Jafé, primogênito de Noé, pode ser encontrada no terceiro quadrante, sendo a cidade de Roma geralmente representada como uma fortaleza bélica.
Seguindo no sentido horário, no segundo e no primeiro quadrantes encontra-se a Ásia, região dos filhos de Sem, netos de Noé, localizando-se Jerusalém ao centro, à beira do mar Negro, e o Paraíso Terrestre ao topo, tão longe dos homens quanto poderia estar, perdido pelo pecado original. A arca de Noé aparece perto da Torre de Babel, entre a Ásia e a África. No quarto quadrante aparece o continente negro e monstruoso, a África, povoado por Ham, o mais moreno dos filhos de Noé. Neste continente figuram elefantes, dragões, monstros e ainda, como um oásis de cristandade em meio aos infiéis, o reino do lendário Preste João, hoje conhecido como Etiópia.
TO, Orbis Terrarum. A nomenclatura TO sugere o Cristo crucificado (T) e o oceano (O) que circunscreve todo o orbe. Além disso, o mundo terreno se representa por suas iniciais, T e O, de acordo com o modelo etimológico que Isidoro de Sevilha defende ardentemente: cada coisa deve ser representada por um nome que contenha sua essência. Além de ensinamentos bíblicos, de teorias acerca do homem enquanto microcosmo e acerca do espaço terreno plano e discóide, a corografia medieval se caracteriza pela beleza dos ideogramas e pictogramas que fogem, e muito, à realidade. Um elefante é representado pelo artista corográfico inglês como um cachorro gigante, o que parece inexplicável, uma vez que Henrique III da Inglaterra de fato abrigou um elefante na Torre de Londres por quatro anos (1255-59) antes que o animal morresse de maus-tratos involuntários (Alington, s. d., p. 40). A experiência do sensível, o viver no mundo eram, enfim, pouco importantes para a representação do mundo (Jacob, 1992, p. 445 e ss.).
O fato de que o elefante não se parecesse com um elefante verdadeiro não diminuía o valor da carta. Ao contrário, mesmo sendo o elefante conhecido pelos ingleses no século XII, as cartas continuariam a representá-lo no Continente Negro de forma idealizada, havendo geralmente a inscrição Hic sunt elephantes como forma de garantir que os mistérios da África e das outras regiões maravilhosas seriam mantidos. O maravilhoso medieval que figura nas cartas não exige rótulo ou decifração imediata, sendo aceito e visualizado como mais uma das coisas que o homem não pode compreender, cujo acesso está vedado aos mortais, exceto pelo caminho da fé (Kappler, 1994; Giucci, 1992): novas representações das maravilhas cristãs povoam as cartas medievais, denotando que, de fato, conforme afirma o dito popular, a fé nas obras se vê.
Já as cartas renascentistas não mais devem ser chamadas como teleologicamente o foram as cartas medievais corográficas. Elas já não representam apenas uma parte do mundo. Elas o representam inteiro, mesmo que desde 1492 até meados de 1750 ainda apresentem imprecisões na demarcação das fronteiras das terras novas as Américas, Austrália, Antártica e Groenlândia. Mas é evidente, como, por exemplo, na carta de Alberto Cantino (1502), que o mundo definitivamente se expandira para os homens do século XVI. O orbe não mais é visto como uma figura discóide, mas já se admite que a Terra é esférica, e, horror dos horrores, que ela não se localiza no centro do universo (Randles, 1994, pp. 88-107). A Jerusalém terrestre também se desloca para o leste, enquanto no oeste surgem novas terras que suscitam questões diversas, tais como qual dos três filhos de Noé, em uma curta viagem, teria tido tempo para povoá-las. Era isto ou imaginar que um bastardo qualquer as teria povoado, o que já de início não deporia a favor das terras do Novo Mundo. Ou ainda, a pior das hipóteses, podia-se também admitir que esta quarta região fora de fato povoada pelo Demônio (Giucci, 1992, pp. 65-100; Greenblatt, 1996, p. 75 e ss.).
Através das representações cartográficas, percebe-se que a polêmica acerca da natureza das terras descobertas passou por três estágios distintos: o primeiro, de absoluto maravilhamento, levou os cartógrafos a objetivar lindos papagaios e uma vegetação exuberante no que já se conhecia do Novo Mundo. O Brasil vira Terra Papagalli em uma carta de 1507. Transforma-se, pela necessidade da conversão dos infiéis, em Terra Sancte Crucis ainda em 1508. Já em 1519, o segundo momento se sobrepõe ao primeiro, e o maravilhamento cede lugar ao medo e à desconfiança: um dragão considerado um dos receptáculos mais comuns do Demônio cuspindo chamas é representado em uma das capitanias centrais. Uma mulher nua sentada sobre um lagarto olha furtivamente, do canto inferior esquerdo da carta, para todo o continente americano. Uma palhoça aparece no centro do que hoje é a Bahia com a inscrição canibalis. Na África, negros de tangas aparecem colhendo pepitas de ouro como frutos do chão. O que nos leva, para o terceiro momento.
Nas cartas de fins do século XVI, o que predomina não é encantamento ou medo, mas a objetividade como critério na representação das rotas comerciais. No Brasil, um índio corta madeira e colhe frutos perto do litoral. Na carta de Mercator, a Europa se desloca para o centro do mapa, tomando o lugar da já então bastante diminuída Jerusalém. A perspectiva do cartógrafo Mercator permaneceria por mais trezentos anos (Dreyer-Eimbcke, 1992, p. 220 e ss.). De acordo com o mapa de Bünting, de 1581, no centro do mundo se localiza a península ibérica, as coroas de Castela e Portugal unidas e soberanas com seus impérios. O critério da cristandade ainda não fora suplantado, pois os reis católicos tinham como um dos pressupostos da colonização a conquista de novos cristãos. Mas já era evidente, a partir de 1560, a preocupação com a esfera econômica, com as raridades que as novas terras poderiam fornecer.
E foi assim que o mundo circular medieval se abriu como uma flor, flor que se tornou também comum para representar alegoricamente o Velho Mundo. A Rainha Europa reinava soberana, sua cabeça era Castela e Portugal, seu orbe as cidades italianas, e seu campo de visão, abarcava tudo o que o século XVI produziu em termos de descobertas e inovações tecnológicas, sobretudo para o Novo Mundo.
Isabel Noronha
Graduação em história pelo Departamento
de História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
- Alington, G. s. d. The hereford mappamundi Londres, Grace.
- Arnaud, P. 18 printemps 1990 Plurima Orbis Imago: lectures conventionelles des cartes au Moyen Âge. Em Medievales: langue, textes, histoire: espaces du Moyen Âge.
- Belluzzo, A. M. 1994 O imaginário do novo mundo. Săo Paulo, Odebrecht.
- Broc, N. 1986 La géographie de la renaissance. Paris, C. T. H. S.
- Dreyer-Eimbcke, O. 1992 O descobrimento da Terra: história e histórias da aventura cartográfica. Săo Paulo, Edusp.
- Edson, E. 1996 Mapping time and space: how medieval mapmakers viewed the world. Londres, The British Library.
- Giucci, G. 1992 Viajantes do maravilhoso Săo Paulo, Companhia das Letras.
- Greenblatt, S. 1995 Possessőes maravilhosas. Săo Paulo, Edusp.
- Groschens, J. (org.) 1980 Cartes et figures de la Terre. Paris, Pompilou.
- Jacob, C. 1992 L empire des cartes. Paris, Albin Michel.
- Kappler, C. 1994 Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média. Săo Paulo, Martins Fontes.
- Lestringant, F. 1991 Latelier du cosmographe Paris, Albin Michel.
- Pelletier, M. (org.) 1989 Géographie du monde au moyen age et ŕ la renaissance Paris, C. T. H. S.
- Randles, W. G. L. 1994 Da terra plana ao globo terrestre Săo Paulo, Papirus.
- Stewart, D. (org.) 1985 The discovery of the world: maps of earth and cosmos. Quebec, University of Chicago Press.
- Tucci, U. 1984 Atlas. Em Enciclopédia Einaudi Lisboa, Casa da Moeda, vol. 1.
- Whitfield, P. 1997 The image of the world Londres, The British Library.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Maio 2006 -
Data do Fascículo
Fev 2000