Acessibilidade / Reportar erro

Biosfera, história e conjuntura na análise da questão amazônica

Biosphere, history, and conjuncture in an analysis of the main Amazon issues

Resumos

Utilizando com liberdade a metodologia concebida por Fernand Braudel para o estudo da região do mar Mediterrâneo, o autor analisa a presença na formação da Amazônia de três grandes dimensões superpostas, dotadas de temporalidades distintas. A dimensão ecológica, de longa duração, possui grande relevância biosférica na floresta amazônica; a dimensão histórica de média duração é entendida como sucessão de padrões de ocupação humana capazes de estabelecer estruturas relativamente estáveis de vida social no ecúmeno da floresta. E, por fim, a dimensão conjuntural corresponde aos movimentos caóticos das últimas décadas voltados para o ganho econômico de curto prazo e para a sobrevivência imediata.

Amazônia; floresta; história ambiental; sustentabilidade


Through a free adaptation of the methodology Fernand Braudel used for the study of the Mediterranean Sea region, the author analyses the three major overlapping dimensions that have shaped the Amazon, each displaying its own temporal pattern. One is the long-term ecological dimension, which in the case of the Amazon forest has great biospheric relevance. Another is the medium-term historical dimension, which encompasses a series of human settlement patterns that have brought the establishment of relatively stable social-life structures within the universe of the forest. Lastly, there is the short-term political and economic dimension, expressed in the chaotic events of recent decades aimed above all at short-term economic gain and immediate survival.

Amazon; forest; environmental history; sustainability


Biosfera, história e conjuntura na análise da questão amazônica

Biosphere, history, and conjuncture in an analysis of the main Amazon issues

José Augusto Pádua

Professor de história e política ambiental da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Rua Marquês de São Vicente, 226/302B

22451-040 Rio de Janeiro — RJ

Padua@ax.apc.org

PÁDUA, J. A.: ‘Biosfera, história e conjuntura na análise da questão amazônica’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI (suplemento), 793-811, setembro 2000.

Utilizando com liberdade a metodologia concebida por Fernand Braudel para o estudo da região do mar Mediterrâneo, o autor analisa a presença na formação da Amazônia de três grandes dimensões superpostas, dotadas de temporalidades distintas. A dimensão ecológica, de longa duração, possui grande relevância biosférica na floresta amazônica; a dimensão histórica de média duração é entendida como sucessão de padrões de ocupação humana capazes de estabelecer estruturas relativamente estáveis de vida social no ecúmeno da floresta. E, por fim, a dimensão conjuntural corresponde aos movimentos caóticos das últimas décadas voltados para o ganho econômico de curto prazo e para a sobrevivência imediata.

PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, floresta, história ambiental, sustentabilidade.

PÁDUA, J. A.: ‘Biosphere, history, and conjuncture in an analysis of the main amazon issues’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI (supplement), 793-811, September 2000.

Biosphere, history, and conjuncture in an analysis of the main Amazon issues

Through a free adaptation of the methodology Fernand Braudel used for the study of the Mediterranean Sea region, the author analyses the three major overlapping dimensions that have shaped the Amazon, each displaying its own temporal pattern. One is the long-term ecological dimension, which in the case of the Amazon forest has great biospheric relevance. Another is the medium-term historical dimension, which encompasses a series of human settlement patterns that have brought the establishment of relatively stable social-life structures within the universe of the forest. Lastly, there is the short-term political and economic dimension, expressed in the chaotic events of recent decades aimed above all at short-term economic gain and immediate survival.

Keywords: Amazon, forest, environmental history, sustainability.

Introdução

Quando os europeus começaram a ocupar o atual território brasileiro, ao longo do século XVI, encontraram dois grandes complexos de florestas tropicais: a Mata Atlântica, que se estendia por cerca de 109 milhões de hectares, e a floresta amazônica, cujo espaço original somava algo em torno de 427 milhões de hectares (Fearnside et al. 1995). O destino diverso destes dois complexos, florestais é um dado muito significativo para o entendimento da história ambiental do país. A concentração demográfica e econômica da sociedade brasileira no espaço de difusão do litoral atlântico, em seu processo de formação colonial e pós-colonial, resultou na quase completa destruição da Mata Atlântica. A soma dos fragmentos ainda existentes não conforma mais do que 7% da sua cobertura original (para uma excelente reconstituição das dinâmicas sociais que produziram esta destruição, ver Dean, 1995).

A floresta amazônica, ao contrário, manteve-se praticamente intacta até poucas décadas atrás. No início da década de 1970, apesar dos séculos de exploração econômica no contexto da moderna economia-mundo, apenas 1% da sua cobertura original havia sido destruída. A sobrevivência histórica desta enorme floresta até o período mencionado, pois sua sobrevivência futura está cada vez mais ameaçada, representa um problema complexo cujas muitas facetas não podem ser abordadas aqui. Alguns elementos básicos, contudo, podem ser mencionados. Como uma fonte de produtos trópico-florestais, em sentido geral, a Amazônia não era particularmente relevante para a economia-mundo. Para o império português fazia sentido concentrar-se nos vastos recursos da Mata Atlântica, mais próximos dos eixos produtivos centrados na extração mineral e na monocultura de exportação. As outras potências coloniais européias possuíam amplo domínio sobre florestas tropicais na Ásia, na África e na região do Caribe. Após a emancipação política de 1822, quando a região amazônica foi incorporada ao novo país através de um processo político complexo e conflituoso, o destino daquela floresta não sofreu mudança significativa. O Brasil, assim como os demais países que compartilham a Amazônia sul-americana, não possuía capitais e tecnologias em escala suficiente para superar as enormes dificuldades antepostas à sua ocupação e exploração econômica. Além disso, a elite política nacional, concentrada na região Sudeste, não assumia esta ocupação como uma verdadeira necessidade. A Mata Atlântica, cuja destruição foi intensificada, continuava a ser fonte permanente de recursos florestais. O principal destes recursos, de fato, era a rica biomassa que, reduzida a cinzas pelas queimadas, fertilizava por alguns poucos anos os solos ocupados pelo avanço nômade e predatório da cultura do café (Pádua, 1998).

Os capitais da Europa e da América do Norte, por outro lado, também não estavam especialmente interessados na região Norte do Brasil. A floresta amazônica, com toda a sua incomensurável riqueza biológica, não apresentava aos setores dominantes da produção nacional, ou ao capitalismo industrial exógeno, benefícios econômicos que fossem potencialmente compensadores em relação aos custos de sua exploração. Este fator foi essencial para explicar a sua sobrevivência futura. Nem fora nem dentro do Brasil se desenvolveu uma efetiva vontade política ou econômica no sentido de ocupá-la. Podemos especular, em termos contrafactuais, sobre o que teria ocorrido se as vicissitudes da história tivessem colocado a floresta amazônica em algum dos países onde emergiram fortes processos de acumulação capitalista nos séculos XVIII e XIX. O mais provável, neste caso, é que a própria expansão interna da economia teria ocasionado a sua destruição incremental (a exemplo do que se passou com as florestas da Europa Central ou da Costa Oeste norte-americana). Um outro cenário de destruição teria sido a sua localização em algum dos espaços de interesse exploratório direto da economia imperialista do século XIX. Nesse caso, como aconteceu com muitas florestas do Caribe ou da Índia, o desflorestamento poderia ter se dado a partir da intensa penetração do capital exógeno. Do ponto de vista estrito da preservação florestal, pode-se dizer que a dupla marginalidade da Amazônia, sendo uma região economicamente marginal situada em um país economicamente marginal, foi a sua grande fortuna.

Esta situação poderia ter-se modificado no final do século XIX, quando a economia-mundo moderna, e mais especificamente o capitalismo industrial europeu e norte-americano, encontrou na biodiversidade amazônica um elemento endêmico essencial para o seu desenvolvimento: a borracha da seringueira. A presença deste recurso natural despertou a vontade econômica e política mencionada anteriormente, na medida em que propiciava forte compensação para os esforços envolvidos na ocupação da floresta. Este estímulo foi suficientemente intenso para, através de uma combinação de capitais endógenos e exógenos, sob o domínio destes últimos, promover a difícil arregimentação da mão-de-obra e da tecnologia necessárias. Este processo envolveu um indescritível sofrimento humano ou, como diria Santos (1980, p. 162), fundamentou-se nele, já que a enorme exploração do seringueiro foi o eixo central da formação do excedente na economia gomífera. No campo de possibilidades que então se abriu, a floresta foi salva exclusivamente por uma casualidade biológico-tecnológica. A violência ecológica, sem dúvida alguma, teria acompanhado a violência social se assim fosse necessário. Mas devido ao delicado detalhe do valor da seringueira encontrar-se na circulação da sua seiva, e não nas entranhas do caule, a extração do látex não requeria a destruição da árvore que, ao contrário, precisava ser mantida o mais possível viva e saudável. Se preciso fosse, para não deixar de aproveitar uma oportunidade de acumulação tão significativa, a racionalidade econômica daquele ciclo de exploração teria justificado o desaparecimento da floresta. O caráter historicamente fugaz do ciclo da borracha, por outro lado, impediu o estabelecimento de estruturas socioeconômicas mais pesadas e permanentes, que poderiam ter promovido a destruição incremental da floresta ao longo do século XX.

A devastação que aquele ciclo econômico não precisou produzir, hoje sabemos, veio a inaugurar-se seis décadas depois do seu fim. A partir a década de 1970 inaugurou-se um processo massivo e predatório de ocupação, dando origem ao que foi chamado de "as décadas da destruição". A região tornou-se cenário de um drama ecológico e social que passou a ser reconhecido, especialmente a partir da década de 1980, como um problema de dimensões planetárias. No período que vai até agosto de 1996, o volume da área desmatada atingiu a cifra dos 51,7 milhões de hectares, algo em torno de 12% da cobertura original. Para entender as origens deste ponto de inflexão, é preciso considerar que o Brasil das últimas décadas, ao contrário dos períodos anteriores, contava com um volume considerável de capitais e recursos tecnológicos para promover a ocupação massiva da Amazônia. Apesar da presença do capital exógeno ter sido relevante, especialmente no setor mineral, a parte mais substantiva destes investimentos veio do poder público, seja de forma direta ou indireta. Dessa vez, no entanto, ao contrário do ciclo da borracha, a vontade política de ocupação e exploração não proveio da esfera econômica, mas sim da esfera política. Este processo não se originou, como procurarei argumentar, de necessidades ou oportunidades socioeconômicas especialmente prementes para o país, mas do cálculo geopolítico dos governos militares, motivados pela vontade de garantir o domínio nacional brasileiro sobre a maior parte da Amazônia. A partir desta decisão, e das políticas públicas que iniciaram a sua implementação, abriu-se espaço para uma constelação de processos sociais e ambientais, muitos dos quais extremamente perversos, que transformaram a região em um dos grandes dilemas históricos deste final de século.

A questão amazônica coloca inúmeros desafios analíticos e políticos. O presente artigo pretende discutir alguns dos seus traços essenciais. Ele parte do princípio de que a formulação de políticas e práticas sociais efetivas para o desenvolvimento sustentável da região, ao contrário da desordem ecológica instaurada nas últimas décadas, requer a elaboração de um quadro conceitual amplo e renovado, que procure basear-se em uma visão integrada e multidimensional. O fracasso de muitas das políticas até agora implementadas tem a ver com a falta desta orientação conceitual mais ampla. Visões fragmentadas tendem a gerar iniciativas parciais que não tocam a raiz do problema, sendo muitas vezes contraproducentes. A construção desta visão integrada, por mais difícil que seja, deve ser parte do esforço coletivo de busca de um futuro benéfico e sustentável para a Amazônia e para o país.

A Amazônia como realidade multidimensional

Para equacionar de forma mais apropriada a problemática da Amazônia, em toda a sua complexidade, é necessário ter sempre em mente que aquela região vive hoje uma situação histórica que pode ser classificada como tipicamente de ‘fronteira’. O que caracteriza uma situação deste tipo é a presença do conflito, ou pelo menos da interação social ainda pouco normatizada, em um grau de intensidade especialmente elevado. É verdade que o conflito está universalmente presente na vida social. Mas é importante considerar que existem sociedades onde a convivência histórica contínua, em um espaço geográfico definido, é antiga e cristalizada. Isso faz com que o comportamento dos atores sociais, assim como dos mecanismos de interação entre eles, seja mais previsível e convencional. O conhecimento das possibilidades e limites colocados pelas regras sociais, construídas historicamente, está socializado de maneira mais uniforme, introjetando-se nos diferentes setores da sociedade. Isso é verdade não apenas no caso das relações no interior da sociedade, mas também das relações entre esta e o espaço natural. Este espaço já foi intensamente mapeado, ocupado e modificado, existindo poucas surpresas quanto ao seu potencial de exploração econômica ou de uso social. A margem de manobra ecológica destas sociedades, que incluem várias das potências econômicas da atualidade, é muito restrita, estimulando a sua busca pelo livre acesso ao espaço ambiental de outras regiões do planeta. Este acesso, no século XX, tornou-se essencialmente comercial, apesar de também possuir um claro potencial para gerar decisões políticas fortes, ou até mesmo dramáticas, como no caso da guerra do Golfo de 1994. É importante observar, no caso dos países que estão sendo discutidos, que o fato de uma ordem social ser historicamente amadurecida não significa que ela seja justa, ou muito menos sustentável. Significa apenas que o grau de previsibilidade no comportamento social e ambiental é relativamente maior.

Tudo isso contrasta de forma quase antitética com a intensa situação de fronteira vivida na Amazônia. Aqui os atores sociais são fluidos e estão em constante movimento. Existe, além disso, uma constante entrada em cena de novos atores que chegam de fora da região, criando uma ordem social onde se superpõem grupos e indivíduos que possuem não apenas interesses diversos como também, o que é ainda mais complicado, vivem em diferentes tempos históricos e culturais (basta pensar na interação entre o povo yanomâmi e os proprietários de aviões que controlam o garimpo do ouro). A apropriação do espaço natural, por outro lado, ainda é relativamente pequena, existindo uma enorme margem de mobilidade e exploração ecológica, inclusive com a existência de realidades naturais surpreendentes e desconhecidas pela ciência.

O intenso conflito presente na atual realidade amazônica, portanto, não se dá apenas entre grupos de interesse e classes sociais. Existe uma relação difícil e pouco amadurecida entre diferentes interesses, propostas sociais, visões de mundo e, até mesmo, dimensões da realidade. Muitas vezes é difícil encontrar uma linguagem comum que unifique essas percepções tão diversificadas. Um mesmo elemento concreto pode significar coisas radicalmente diversas para atores sociais que vivem realidades igualmente diversas. Basta considerar a questão do ouro. Existe na Amazônia o ouro como elemento natural, fruto de processos geológicos objetivos. Existe também o significado mítico do ouro para algumas nações indígenas. Existe o ouro como esperança de fortuna para uma legião de miseráveis e excluídos. Existe o ouro como instrumento de ganho para ‘empresários’ aventureiros que atuam na fronteira da ilegalidade total. Existe o ouro que serve de instrumento de troca no contrabando. Existe o ouro como objeto de desejo na sociedade de consumo. Todos estes significados, e vários outros, estão presentes em um mesmo universo de interações sociais e ecológicas. Em um quadro de tal complexidade, como se pode ver, não é fácil encontrar um fio condutor que nos permita entender a realidade de forma mais ou menos integrada. A busca deste entendimento, porém, não deve ser abandonada, pois esta fragmentação de significados não constitui uma simples curiosidade sociológica, mas um verdadeiro drama social, na medida em que esses atores fragmentados interagem, muitas vezes de maneira caótica, na confluência de um mesmo tempo e lugar. Esta fragmentação dificulta o estabelecimento de canais mais eficazes de comunicação e negociação entre os atores sociais relevantes, inibindo a construção de acordos que garantam um encaminhamento o mais benéfico e não predatório possível para a ocupação da região (que já se tornou historicamente irreversível).

Não se trata, por certo, de combater a heterogeneidade socio-cultural na Amazônia, que apresenta elementos de enorme riqueza. O que se precisa é de uma base conceitual mais ampla e integradora, que ajude na formulação de políticas de sustentabilidade que não se deixem levar pela fragmentação e o caos reinante. Políticas que possam conjugar a conservação da floresta com garantia dos direitos sócioculturais e econômicos dos diferentes setores legitimamente presentes naquele universo (o que necessariamente exclui aqueles que fundamentam sua existência social na violência, na ilegalidade e na destruição ambiental). A existência deste novo plano de visão, a ser construído através de um amplo debate político e científico, é condição necessária mas não suficiente para o enfrentamento da questão amazônica. O passo fundamental terá que ser gestado através da ação política, especialmente por parte daqueles atores cujo interesse histórico-social seja compatível, ou até mesmo sinérgico, com o imperativo da sustentabilidade. Ocorre que a mesma fragmentação que dificulta a análise do problema também dificulta a iniciativa política. Daí a importância da base conceitual mencionada, que pode ajudar a construir um norte para a ação.

É verdade que qualquer perspectiva sintética sobre a Amazônia será necessariamente limitada. O que se segue são apenas algumas reflexões que podem ser úteis ao debate, construídas após anos de análise participante do problema. O ponto de partida é o entendimento de que é possível agregar em três dimensões os elementos presentes na conflituosa interação social e ecológica existente na Amazônia. Denominei essas três dimensões de biosfera, história e conjuntura, inspirando-me livremente nas categorias criadas pelo historiador francês Fernand Braudel na análise de outra importante região do planeta: o mar mediterrâneo. Braudel (1966) analisou a história daquele espaço como ocorrendo através da interação de três dimensões superpostas da realidade, que avançavam no tempo em diferentes velocidades: em primeiro lugar, a dimensão do meio ambiente ou da geoistória, na qual as montanhas, as praias, as ilhas, os climas etc. constroem-se na longa duração. Este processo inclui a presença dos seres humanos como um dos agentes, algo subestimado pelo autor, na dinâmica de criação da base material da existência. Em segundo lugar, a dimensão das estruturas sociais, econômicas e políticas, que configuram padrões mais ou menos estáveis de organização da vida humana ao longo de uma duração média de tempo. Estes padrões delimitam em grande parte o espaço de atuação dos indivíduos, definindo os marcos concretos que moldam a vida coletiva de uma determinada região. Em terceiro lugar, a dimensão dos eventos e acontecimentos conjunturais que se sucedem em grande velocidade, geralmente de forma confusa, fugaz e transitória.

A análise da questão amazônica, em minha opinião, também deve basear-se em um enfoque multidimensional. Existem diferentes dimensões da realidade que, em ritmos diferentes, estão interagindo em um mesmo tempo e lugar no complexo da região, sem que muitas vezes os atores sociais estejam conscientes das mesmas. Em primeiro lugar, é possível pensar a Amazônia como um espaço ecológico dominado por um mosaico de florestas tropicais, ou seja, como uma biorregião inserida no contexto maior das florestas tropicais como bioma planetário. Essa dimensão ecológica da Amazônia é fruto de um longo processo de evolução natural, cuja origem antecede em muito a presença humana. Utilizo a idéia de dimensão biosférica, e não apenas ecológica, para demarcar o fato de que a floresta amazônica possui, como poucos outros ecossistemas, um impacto direto sobre o conjunto do planeta. Ela merece, sob todos os sentidos, a classificação de tesouro biosférico.

Este espaço natural possui algumas características essenciais que adquirem, no contexto histórico da atualidade, um extraordinário sentido geopolítico. O primeiro deles refere-se à sua enorme biodiversidade. Inúmeras projeções indicam que as florestas tropicais, apesar de ocuparem apenas cerca de 7% da superfície do planeta, devem concentrar por volta de 60% do total das espécies de vida que nele existem. Considerando que a Amazônia brasileira representa cerca de 1/3 das florestas tropicais remanescentes, é possível deduzir que nela estão presentes, de forma potencial, de 25 a 40% do total de espécies existentes (uma vez que elas não estão distribuídas de forma uniforme ao longo do bioma planetário). Esse número adquire um valor virtual ainda mais impressionante quando lembramos que o desconhecimento sobre a biodiversidade é bastante grande e que, além dos cerca de 1,4 milhões de espécies registradas até o final da década de 1980, os especialistas admitem a existência possível de um número que vai dos cinco aos trinta milhões (Albagli, 1998).

A presença desta megabiodiversidade, porém, tem ofuscado a existência na ecologia da Amazônia de outros elementos tão significativos quanto esta última (Prance e Lovejoy, 1995). Calcula-se, por exemplo, que a bacia amazônica concentre cerca de 20% da água doce disponível no planeta. Menos de 3% das águas planetárias são doces, sendo que quase 70% deste total está imobilizada em geleiras e neves eternas. A crise mundial de disponibilidade de água vem se desenhando de forma crescente, tendo em vista o desperdício, a poluição e a desigualdade no uso da mesma. Para se ter idéia do potencial geopolítico da água amazônica basta lembrar que apenas três horas da descarga do rio Amazonas, que em média é de 175.000m3 por segundo, seria suficiente para abastecer o estado de Israel por um ano. Uma outra projeção extremamente significativa diz respeito ao fato de a Amazônia concentrar cerca de 20% da biomassa disponível para uso energético no planeta. Esta biomassa se reproduz na floresta em uma taxa de noventa toneladas por hectare/ano. A capacidade energética dessa produtividade biológica é enorme, ainda mais considerando que o uso energético da biomassa constitui um dos horizontes estratégicos mais promissores na busca de fontes limpas e renováveis de energia para o futuro. Um outro elemento essencial, por fim, é o da importância da floresta amazônica como armazenadora de carbono (um total aproximado de cinqüenta bilhões de toneladas). A liberação deste carbono na atmosfera teria um impacto inimaginável sobre o aquecimento global. Isso sem falar no efeito benéfico que a floresta exerce sobre a temperatura e os ciclos hidrológicos no Brasil e no planeta como um todo. Em suma, não haveria como explorar esta realidade de forma mais detalhada, mas o que foi dito já é suficiente para revelar a grandeza ecológica da região.

É importante lembrar que este tesouro biosférico não nasceu pronto, mas é o resultado de um processo vivo e dinâmico de longa duração. Nessa trajetória ocorreram mudanças dramáticas, como, por exemplo, quando a América do Sul começou a se separar da África, há cerca de oitenta a noventa milhões de anos, fazendo emergir o oceano Atlântico. A partir deste movimento geológico começou a ocorrer uma série de arranjos hidrológicos e biológicos no norte da América do Sul, inclusive a sua ocupação por plantas superiores. Um marco importante aconteceu há 15 milhões de anos, quando a elevação da cordilheira dos Andes ajudou a definir o fluxo da corrente do rio Amazonas em direção ao Atlântico (Goulding, 1997). Ao longo de todo este processo apareceram importantes ciclos de mudanças climáticas, com períodos de seca e de avanço das savanas sendo sucedidos por outros onde a floresta chuvosa recuperava espaço. Apesar de a floresta amazônica ter atingido uma certa estabilidade, é fundamental estar consciente de que a sua história natural não acabou. O processo evolutivo que gerou uma realidade ecológica tão complexa segue existindo nos dias de hoje, segundo o seu ritmo próprio, chocando-se com outros ritmos e padrões advindos principalmente da intensificação da presença humana e do seu peso tecnológico.

É justamente neste ponto que podemos falar da segunda dimensão da realidade amazônica, que denomino de ‘histórica’. Por esse conceito entendo os padrões de ocupação humana que foram capazes de estabelecer estruturas relativamente estáveis de vida social no ecúmeno da floresta. Nenhum dos padrões históricos até hoje implantados na região, obviamente, baseou-se em uma visão científica ampla sobre a ecologia dos seus ecossistemas no contexto da biosfera. Até porque esse tipo de visão vem se constituindo de forma mais consistente apenas nas últimas décadas, correspondendo ao significativo avanço do conhecimento ecológico no mundo moderno. O que se pode dizer, contudo, é que de forma prática, baseando-se em observações empíricas, vivências socioculturais e cosmovisões diversas, foi possível estabelecer na Amazônia, em diferentes momentos históricos, padrões de ocupação dotados de diferentes graus de destrutividade ambiental.

É preciso considerar, em primeiro lugar, padrões que foram sendo estabelecidos pelas sociedades paleoindígenas e indígenas. Estes grupos humanos convivem com a floresta amazônica há mais de dez mil anos, acumulando uma enorme gama de conhecimentos sobre o funcionamento da floresta. A ação destas populações, na perspectiva de Braudel (op. cit.), pode ser considerada parte integrante da dinâmica de longa duração da floresta, sobre a qual deixaram marcas significativas. Hoje se discute entre os especialistas o grau de modificação antropicamente produzido na floresta antes da chegada dos europeus, incluindo mudanças na biogeografia de plantas e animais, extinção de algumas espécies, construção de paisagens etc. Segundo Ballée (1989), as paisagens fortemente alteradas somariam pelo menos 11,8% das florestas de terra firme. O mais importante, contudo, é o fato destas alterações não terem sido prejudiciais à sustentabilidade ambiental básica daquelas sociedades. A história deste padrão, com todas as suas grandes variações específicas em termos culturais e sociais, representa "uma bem-sucedida adaptação de longa duração dos povos indígenas ao ambiente tropical" (Roosevelt, 1992, p. 85). Os povos indígenas da atualidade, portanto, não devem apenas ser respeitados nos seus direitos, mas podem também servir de modelo para a construção de novas formas conscientemente elaboradas de relação sustentável com a floresta.

A chegada dos europeus produziu, ao longo de vários séculos, um novo padrão histórico de ocupação e apropriação dos recursos amazônicos. Este padrão, no entanto, como já foi mencionado, foi bastante limitado em termos de impacto destrutivo sobre a floresta. As estruturas sociais estabelecidas desde a chegada dos colonizadores, até o final do século XIX, fundaram-se em três elementos básicos. O primeiro deles foi a garantia de um domínio político-militar centrado na ocupação das vias fluviais. Este domínio foi relativamente leve, até porque não chegou a ser seriamente ameaçado por outras potências. O segundo foi o de subjugar os povos indígenas e estabelecer uma densidade populacional mínima sob o controle do sistema colonial (seja de colonizadores, escravos africanos ou índios aculturados). Os índios foram sendo dizimados pelas epidemias e pela destribalização forçada. No que se refere ao seu reordenamento social, contudo, é possível estabelecer uma diferença entre a política inicial de expansão portuguesa e a política pombalina inaugurada na segunda metade do século XVIII. A primeira repousou em grande parte no aldeamento sob o controle de missionários católicos, enquanto que a segunda baseou-se mais fortemente na atuação do Estado, na fundação de vilas e no incentivo à miscigenação. O terceiro elemento, por fim, foi o estabelecimento de uma economia baseada na extração seletiva de alguns elementos da floresta, como as madeiras e as chamadas "drogas do sertão", e na promoção da pecuária e de algumas culturas de exportação, como a cana-de-açúcar (Oliveira, 1988).

A presença demográfica da sociedade ‘brasileira’ na Amazônia, excluindo os povos indígenas não subjugados, estava na escala das 120 mil pessoas em meados do século passado. Esta presença, por sua vez, foi profundamente abalada pelas violentas guerras civis provocadas pelo conflito político conhecido como Cabanagem, que provocou a morte de mais de trinta mil indivíduos. A penetração de população não nativa na floresta veio se dando de forma rarefeita e pouco destrutiva: pescadores, coletores, pequenos plantadores e comerciantes etc. As vias de entrada eram quase que exclusivamente fluviais. Foi no bojo deste processo que se iniciou a formação de uma população mestiça e de uma cultura cabocla, constituída por índios destribalizados (os chamados tapuios), ribeirinhos e trabalhadores extrativistas que adentraram mais profundamente no interior da bacia amazônica. Uma parte importante dos povos indígenas, por outro lado, procurou afastar-se do eixo do rio Amazonas, fixando-se na parte sul da região, onde a presença brasileira era muito menos intensa.

Esse quadro perdurou até o final do século XIX, quando um novo padrão histórico organizou-se em torno da borracha, o primeiro produto florestal amazônico com grande potencial para produzir renda e acumulação na economia-mundo capitalista. Não existe espaço neste artigo para discutir com profundidade este ciclo econômico (Santos, 1980; Dean, 1989; Weinstein, 1993). Não resta dúvida de que, em outras circunstâncias, seu impacto destrutivo sobre a floresta poderia ter sido considerável. A população não indígena, por exemplo, aumentou de forma significativa, especialmente com a vinda de imigrantes pobres do Nordeste. Em 1910, ela chegou a atingir o total de 1.217.000 pessoas. Desenvolveram-se, além disso, núcleos urbanos importantes, tais como Manaus, Benjamin Constant e Rio Branco, que poderiam ter-se transformado em centros de difusão para diversas atividades potencialmente degradadoras em relação à floresta. Esta perspectiva, porém, não se cumpriu por diferentes motivos. Em primeiro lugar, pelo fato já mencionado de que a retirada do látex dependia da conservação da seringueira e do ecossistema florestal. Em segundo lugar, porque a produção econômica regional foi basicamente unidirecionada, quase não se diversificando para além da coleta e beneficiamento da borracha. As iniciativas de industrialização, por exemplo, foram quase inexistentes. Com a queda do preço da borracha no mercado internacional, a partir da crescente hegemonia das plantações do Sudeste Asiático depois de 1912, ocorreu um ponto de inflexão no processo de ocupação regional, que passou a perder população e capitais em escala crescente.

As décadas posteriores à decadência da borracha costumam ser entendidas, através da lógica economicista convencional, como um tempo de estagnação e decadência. Visto de um outro ponto de vista, porém, também se pode dizer que foi nesse período que vieram amadurecendo os elementos de uma cultura e de um estilo de vida regional. Um tempo de aprendizado sobre como estabelecer uma vida social e uma economia em convivência com a floresta tropical. Não se trata, por certo, de idealizar este período. O fato de o desflorestamento ter sido muito moderado não anula as fortes injustiças sociais que perduraram na ordem dos seringais e castanhais. As economias extrativas voltadas para o mercado interno, efetivamente, continuaram produzindo formas extremas de concentração de renda. A situação de semidecadência vivida por estas grandes unidades fundiárias, no entanto, permitiu maior autonomia e margem de manobra produtiva para a população extrativista e camponesa, que retirava grande parte de seu sustento do contato direto com espaços florestais de uso comum. Penso ser importante, de toda forma, que se conheça melhor este período pouco estudado, para entender as condições de vida da população, inclusive nos núcleos urbanos, para além de esquematismos e preconceitos derivados do evolucionismo econômico.

O entendimento desta ordem regional intermediária, posterior ao auge da economia gomífera, é também importante pelo fato dela ter sido negada, de forma agressiva e até mesmo violenta, pelos modelos de desenvolvimento implantados na década de 1970. Cabe perguntar, por exemplo, até que ponto teria sido possível construir, a partir dos modos de vida estabelecidos no período, modelos de desenvolvimento bastante diferentes dos que foram efetivamente implantados. Esta pergunta, no entanto, situa-se no campo do contrafactual. O que de fato ocorreu nas últimas décadas será sintetizado a seguir, pois é a partir daí que ganha sentido a terceira dimensão mencionada sob o título de ‘conjuntura’.

O reino da conjuntura

A situação de ‘abandono’ das fronteiras geográficas do Centro-Oeste e da Amazônia transformou-se em um espectro geopolítico que rondou o Estado brasileiro ao longo do século XX, especialmente a partir da Revolução de 1930. A construção de Brasília, inaugurada em 1960, e da rodovia Belém—Brasília, no início da década de 1970, inseriu-se fortemente neste referencial. Os governos ditatoriais militares, instaurados a partir de 1964, radicalizaram esta preocupação e a transformaram em um imperativo geopolítico. A reforma das instituições de desenvolvimento regional, com a criação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), do Banco da Amazônia e da Superintendência da Zona Franca de Manaus, indicou a política que seria seguida. Foi a partir do Programa de Integração Nacional de 1970, contudo, no momento em que se vivia uma radicalização da ordem autoritária, que a ocupação econômica massiva da Amazônia começou a ser deslanchada. Esta política fundamentou-se na premissa de que era necessário ocupar a região rapidamente e a qualquer preço, para evitar que no futuro ela escapasse ao controle político nacional. O regime estava preocupado com o "vazio demográfico" existente na Amazônia, dispondo-se a promover o estabelecimento de uma "fronteira viva" composta por contingentes populacionais de fala portuguesa. Para isso era preciso criar condições infra-estruturais e incentivos para a chegada de qualquer tipo de atividade econômica e mão-de-obra que pudesse ser classificada como "presença brasileira" na Amazônia.

Esta visão reducionista, que passava ao largo de avaliações mais refinadas sobre a qualidade social e ecológica dos empreendimentos a serem implantados, acabou por destampar a garrafa que liberou o gênio da ocupação predatória e caótica daquela fronteira. Tal opção ajudou a instaurar uma grande desordem socialecológica, marginalizando as comunidades locais e abrindo espaço para todo tipo de aventureirismo. Os seus resultados manifestam-se hoje no crescimento do narcotráfico, da prostituição infantil e de toda uma gama de atividades predatórias e ilegais, tais como a extração descontrolada de madeira e ouro. É irônico observar, portanto, que esta política acabou por aumentar a insegurança e os riscos políticos na região, pois desagregou formas sociais estáveis e promoveu o crescimento da violência, da criminalidade e da anomia (basta pensar no impacto que a prostituição infantil, incentivada pelo sistema dos garimpos, tem produzido em muitas famílias locais). A ironia continua no que se refere à ideologia nacionalista, pois a abertura da Amazônia ajudou a intensificar fortemente a internacionalização da sua economia, especialmente no rentável setor minero-siderúrgico.

É importante frisar mais uma vez que as motivações que deram origem a este processo não foram dominantemente econômicas, mas geopolíticas. A economia brasileira continuava concentrada no litoral, apesar de se expandir para o Centro-Oeste. O país vivia um forte surto de industrialização e urbanização. A população expulsa do campo, devido ao crescimento das grandes agroindústrias, geralmente seguia o caminho das cidades. Apesar de a fronteira estar bastante fechada na maioria das regiões rurais fora da Amazônia, pela permanência do latifúndio e o avanço da apropriação empresarial da terra, não havia uma situação de conflito rural generalizado. Até mesmo as condições repressivas do regime dificultavam a mobilização camponesa na luta pela terra. Também não existia um fluxo migratório espontâneo em direção à Amazônia. As condições de vida na floresta são duras e difíceis, não constituindo um pólo de atração superior ao das cidades. Pode-se dizer, da mesma forma, que não existia uma pressão espontânea do capital em favor da ocupação da Amazônia. É verdade que muitos grupos econômicos aproveitaram-se das facilidades dadas pelo regime para o investimento na região. Sem subsídios e isenções fiscais, que muitas vezes chegavam a cobrir mais de 80% dos custos do empreendimento, é provável que os empresários não enfrentassem o esforço de explorar a região, até porque existiam opções de menor custo e dificuldade.

A abertura da Amazônia à entrada de empresas e contingentes populacionais não obedeceu a uma causalidade social ou econômica de maior urgência. É verdade que a abertura induzida da fronteira amazônica também serviu como válvula de escape para os camponeses expulsos das suas origens, juntamente com o êxodo rural, aliviando uma possível pressão pela reforma agrária. Isso estava expresso na famosa frase do general Emílio Médici: "levar homens sem terra para a terra sem homens". Mas as dimensões que o problema apresentava na época, em termos objetivos, não eram suficientes para justificar a necessidade de uma abertura tão forte da fronteira amazônica. Pode-se argumentar que o ‘vale tudo’ instaurado foi uma conseqüência não antecipada pelos governos militares. De fato, a política destes últimos estava ancorada em programas bastante detalhados, como foi o caso do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) de 1972-74. A implementação prática destas políticas, no entanto, no contexto de uma região tão complexa, gerou realidades bem mais confusas e caóticas do que se podia imaginar. O que vigorou, de fato, foi uma realidade de facilidades sem cobranças, de prêmios ao capital sem considerar a qualidade social e ecológica das atividades, para não falar no simples cálculo de custo-benefício sobre o retorno dos investimentos. Como praticamente todas as políticas do regime militar, o modelo de ocupação da Amazônia promoveu a concentração de renda em detrimento do bem-estar social, especialmente das comunidades que já existiam na região.

As políticas do regime militar funcionaram como se o importante fosse levar empresas, atividades exploratórias e colonos para a Amazônia, deixando que depois esses agentes sociais sobrevivessem da forma que pudessem, sendo que para os pobres não havia os subsídios que fizeram a fortuna de tantos representantes do capital especulativo. É o caso dos esquemas de colonização ao longo da estrada Transamazônica, ou então do tristemente famoso projeto Polonoroeste, financiado pelo Banco Mundial, que levou centenas de milhares de colonos para Rondônia sem cuidados básicos de planejamento e orientação (Léna e Oliveira, 1991). O objetivo geopolítico de aumentar exponencialmente o povoamento da região, portanto, foi realizado. O custo ecológico e social dessa aventura agora precisa ser enfrentado pela sociedade brasileira. Ainda em 1978, por exemplo, a área total de desflorestamento já havia atingido a marca dos 15,2 milhões de hectares (cerca de 3,5% da cobertura original). Ou seja, em sete anos desflorestou-se 2,5 vezes mais do que em todos os séculos anteriores. Este processo continuou no período posterior, com pequenos subciclos de retração ou expansão, atingindo em 1996, como já foi dito, a cifra dos 51,7 milhões de hectares (12% da cobertura original).

É neste ponto que se torna especialmente importante discutir a terceira dimensão presente na realidade amazônica atual, que denominei de ‘conjuntura’. Essa dimensão, por certo, está sempre presente na vida social. É o conjunto de iniciativas individuais, espontâneas, de busca do ganho de curto prazo pelos agentes privados, sem qualquer preocupação de se orientar por uma racionalidade histórica ou um bem comum superior. Ao longo da história, essas atividades conjunturais costumam adequar-se aos padrões estruturais dominantes. Quando elas divergem do padrão dominante costumam tornar-se historicamente irrelevantes, não deixando impactos estruturais significativos. Ou então, ao contrário, elas podem seguir uma dinâmica de expansão acumulativa que acaba por transformar o próprio padrão dominante.

A presença descontrolada dessas atividades conjunturais é especialmente problemática na Amazônia. Em primeiro lugar, por ser uma região de fronteira, onde o conflito e a violência surgem com facilidade. Em segundo lugar, devido a sua grande importância biosférica. Muitas vezes, observando-se o cotidiano do drama amazônico, surge na mente a imagem de uma partida de futebol em uma sala de cristal. Aparecem movimentos caóticos e desordenados, motivados por ambições e conflitos de curto prazo, sem que os atores tomem consciência do lugar especial onde estão inseridos. Em terceiro lugar, porque o modelo de ocupação mencionado abriu espaço para movimentos conjunturais que se tornaram de difícil reversão, mesmo quando existe consciência do seu caráter danoso.

Um exemplo típico é o que está acontecendo com a pecuária. Hoje em dia existe consenso sobre o fracasso ecológico e econômico desta atividade no contexto da floresta amazônica. A pecuária foi priorizada pela primeira leva de capitalistas aventureiros que invadiu a região na década de 1970, por permitir uma apropriação relativamente fácil e pouco trabalhosa de enormes extensões de terra subsidiada. Os resultados econômicos dessa atividade, no entanto, foram pífios em termos de produtividade e geração de empregos. Seu impacto ambiental, além disso, foi muito ruim, tendo sido responsável por cerca de 80% do desmatamento observado na Amazônia nas últimas décadas. Esta constatação fez com que os governos posteriores ao regime militar buscassem reduzir, ou mesmo eliminar, os incentivos para essa atividade. Com isso muitos analistas pensavam que ela não se sustentaria. O que hoje se observa, porém, é a sua capacidade de crescer por si mesma. Pesquisas realizadas pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostram que é possível obter-se com a pecuária regional uma rentabilidade pequena — de oito a 52 dólares por hectare/ano —, mas que é suficiente para incentivar movimentos conjunturais de queima de floresta para abrir pequenos pastos, inclusive porque essa atividade continua sendo o meio mais rápido de se obter o controle privado da terra (Mattos e Uhl, 1994). Em outras palavras, o modelo provocou o nascimento de uma atividade danosa que passou a caminhar por si mesma, via movimentos conjunturais. Sua interrupção demandará a tomada de decisões políticas de difícil implementação. Processos semelhantes podem ser observados em outros movimentos conjunturais igualmente danosos e até mais violentos, como o garimpo de ouro, a extração descontrolada de madeira nobre ("garimpo de madeira") e o próprio narcotráfico.

Tudo isso revela o quanto é essencial uma mudança qualitativa e quantitativa no padrão histórico, se é que merece receber este nome, desatado nas últimas décadas. O momento é apropriado para fazer uma profunda avaliação política, refletir sobre os erros cometidos, impedir a emergência de tendências ainda mais danosas e buscar caminhos alternativos. É o momento exato para colocar a questão da sustentabilidade.

Conclusão: horizontes de sustentabilidade

Para avaliar a atual situação da Amazônia, analisando as perspectivas de transição para um modelo sustentável de desenvolvimento, é necessário reconhecer uma realidade básica que nem sempre é percebida na visão comum do problema, inclusive em escala internacional. Trata-se do fato de que a luta para salvar a floresta amazônica não se encontra nos estágios finais, mas nos estágios iniciais. Estamos vivendo um momento histórico no qual ainda é possível trabalhar pela conservação de mais de 80% da floresta original. Esse dado de forma alguma deve ser interpretado como significando que houve pouca destruição. Tudo o que foi dito anteriormente, sobre a intensificação histórica do desflorestamento nas últimas décadas, revela o quanto é verdadeiro o risco de o país perder este tesouro de vida em um tempo histórico relativamente pequeno. A constatação de que a destruição da floresta está ainda no início, contudo, deve servir como estímulo para a sociedade brasileira aproveitar a oportunidade histórica que a consciência deste fato representa. No caso da Amazônia, ao contrário da Mata Atlântica ou das florestas temperadas do noroeste dos Estados Unidos, não se está lutando apenas pela sobrevivência dos últimos remanescentes de um ecossistema precioso. Ainda existe espaço para a construção de alternativas inteligentes e benéficas que garantam a sua sobrevivência. Reconhecer a existência desse potencial, contudo, não significa afirmar que ele será realizado. Tal mudança dependerá de uma considerável luta política, já que os setores econômicos e políticos comprometidos com o modelo predatório e os interesses de curto prazo, dentro e fora da região, são muito poderosos.

Com base no que foi exposto, penso que a construção de um modelo de desenvolvimento alternativo para a Amazônia, calcado na sustentabilidade, deve partir de alguns marcos essenciais de orientação.

Em primeiro lugar, é preciso incorporar neste modelo as lógicas e os ritmos específicos da ecologia florestal, inclusive reconhecendo a sua grandeza biosférica. Não existem mais desculpas para ignorar esta realidade. Qualquer atividade sustentável na região precisa adaptar-se à racionalidade ecológica da floresta. Os conhecimentos científicos sobre esta dinâmica acumulam-se constantemente, apesar de ainda existirem muitas áreas de ignorância. Na verdade, muitos destes conhecimentos já estavam presentes na década de 1970, quando se desatou o modelo de ocupação predatório. Isso aumenta ainda mais a irresponsabilidade histórica dos seus promotores.

Em segundo lugar, é necessário examinar que padrão histórico está orientando o comportamento dos diferentes atores sociais que se superpõem na realidade amazônica. Nela convivem grupos formados no milenar padrão de ocupação indígena, grupos formados no padrão colonial de ocupação dos rios, grupos formados no sistema da borracha, grupos levados para a região pelas políticas do regime militar e assim por diante. Estes grupos, de fato, não encontram-se isolados, mas estão interagindo de forma conflituosa em um mesmo espaço e lugar. Tão importante quanto analisar esses padrões, portanto, é disseminar na sociedade brasileira o imperativo político de se construir um novo modelo, um novo padrão histórico de ocupação da Amazônia. Este novo padrão estrutural deve incentivar comportamentos sustentáveis e socialmente benéficos, que estejam imbuídos de uma visão inclusiva, responsável e democrática da vida social. Exatamente o oposto do que foi promovido pelo modelo implantado pelos militares.

Em terceiro lugar, é necessário identificar e isolar os movimentos da conjuntura que sejam especialmente predatórios ou danosos, a maioria dos quais surgidos no caldo de cultura do modelo da ditadura militar. Estes movimentos precisam ser restringidos e transformados através de uma dinâmica política transparente e democrática. Os movimentos conjunturais que não sejam ilegais ou predatórios, por outro lado, devem ser incentivados a se inserir de forma mais consistente no novo padrão histórico já mencionado. Tudo isso requer uma presença mais constante do poder público naquela realidade, de forma a servir de barreira contra a violência e ser um canal de negociação e implementação das mudanças necessárias. A presença do poder público, no contexto atual da Amazônia, é insubstituível. Isso, obviamente, supondo a existência de um poder público diferente daquele que tem sido, na região, um simples instrumento a serviço dos setores sociais dominantes e promotores da iniqüidade social e da destruição ecológica. O poder público de que se necessita é aquele comprometido com a coletividade e o bem comum, além de constituído e controlado pela participação democrática organizada.

Estes princípios gerais, que convergem para a necessidade de se construir um novo modelo histórico que incorpore conscientemente a busca da sustentabilidade na Amazônia, apenas fazem sentido se desdobrados em propostas e programas políticos específicos, de âmbito nacional, regional e sub-regional. Tais programas, para serem efetivos, precisam ser construídos através de um amplo debate democrático. Eles precisam dar respostas realistas para algumas das questões básicas que se colocam para qualquer política de sustentabilidade para a região. Entre estas questões é possível mencionar o problema do controle público ou privado da terra, o problema do aproveitamento das áreas já desflorestadas e do uso adequado dos ecossistemas florestais. Sobre estes temas, assim como sobre muitos outros, já existe um patrimônio coletivo de idéias construídas no debate sobre o futuro da Amazônia. Este debate vem mobilizando, nas últimas décadas, um número considerável de especialistas e representantes de setores sociais preocupados com a busca de alternativas sustentáveis para a região. A perspectiva para os próximos anos é de que se desenvolva ainda mais o grau de profundidade, eficácia e refinamento destas propostas. E também que se acumulem forças políticas e sociais, muitas das quais já estão se manifestando de forma muito concreta em diferentes estados da região, que possam implementar um novo destino para a Amazônia. Um destino consistente com a enorme grandeza ecológica da floresta que as vicissitudes da história colocaram majoritariamente sob a responsabilidade do Brasil.

Recebido para publicação em novembro de 1999.

Aprovado para publicação em janeiro de 2000.

  • Albagli, S. 1997 Geopolítica da biodiversidade Brasília, Ibama.
  • Balée, W. 1989 Cultura na vegetação da Amazônia. Em W. Alves Neves (org.), Biologia e ecologia humana na Amazônia Belém, Museu Emílio Goeldi.
  • Braudel, F. 1966 La Méditerranée et le Monde Méditerranéen à lépoque de Philipe II Paris, Armand Colin.
  • Dean, W. 1995 With broadax and firebrand: the destruction of the Brazilian Atlantic forests Berkeley, Berkeley University Press.
  • Dean, W. 1989 A luta pela borracha no Brasil São Paulo, Nobel.
  • Fearnside et al 1995 Brazil. Em C. Harcourt e J. Sayer. The conservation atlas of tropical forests: the Americas, Londres, Simon & Schuster.
  • Goulding, M. 1997 História natural dos rios da Amazônia Brasília, Sociedade Civil Mamirauá/CNPq/Rainforest Alliance.
  • Léna, P. e Oliveira, A. 1991 Amazônia, a fronteira agrícola 20 anos depois Belém, Museu Emílio Goeldi.
  • Mattos, M. e Uhl, C. 1994 Economic and ecological perspectives of ranching in the Eastern Amazon. World Development, vol. 22, no 2.
  • Oliveira, A. jul 1988 Amazônia: modificações sociais e culturais decorrentes do processo de ocupação humana (séc. XVII ao XX). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, vol. 4, no 1.
  • Pádua, J. A. out. 1998 Cultura esgotadora: agricultura e destruição ambiental nas últimas décadas do Brasil Império. Estudos Agricultura e Sociedade, no 11.
  • Pinto, L. F. 1992 Amazônia: a fronteira do caos. Belém, Falangola.
  • Pinto, L. F. 1977 Amazônia: o anteato da destruição Belém, Grafisa.
  • Prance, G. e Lovejoy, T. (orgs.) 1995 Key environments: Amazonia. Oxford, Pergamon.
  • Roosevelt, A. 1992 Arqueologia Amazônica. Em M. Carneiro da Cunha (org.), História dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras.
  • Santos, R. 1980 História econômica da Amazônia São Paulo, T. A. Queiroz.
  • Weinstein, B. 1993 A borracha na Amazônia São Paulo, Hucitec/Edusp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2000

Histórico

  • Recebido
    Nov 1999
  • Aceito
    Jan 2000
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br