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O imaginário social sobre a Amazônia: antropologia dos conhecedores

The social imaginary of the Amazon: the anthropology of knowledge makers

Resumos

O artigo aborda o tema do imaginário social sobre a Amazônia, e se fundamenta em uma base teórica que vê o imaginário como parcela da realidade social e como meio relevante para formar conhecedores. faz referência a situações e autores que tratam direta ou indiretamente sobre o tema. Um dos aspectos analisados no artigo é a relação da saúde pública com o imaginário. A conclusão destaca a importância do imaginário para que não se importem padrões de comportamento e soluções para problemas locais acriticamente, como uma modalidade de consumismo, mas que se combinem instituições ou soluções de fora e de dentro ou tradições endógenas e exógenas em contínuo reprocessamento.

imaginário social; Amazônia; conhecedores; antropologia dos conhecedores


The text is grounded on a theoretical base that sees the imaginary as a part of social reality and a pertinent way of shaping knowledge makers. Reference is made to situations and authors that address this topic directly or indirectly. One vein also explores the social imaginary regarding public health. The conclusion underscores the importance of the imaginary in averting an a-critical consumer-society importation of solutions. Instead, institutions or solutions should be sourced from both the outside and the inside, or from endogenous and exogenous traditions, as part of a continuous reprocessing.

social imaginary; Amazon; knowledge; anthropology of knowledge makers


O imaginário social sobre a Amazônia: antropologia dos conhecedores

The social imaginary of the Amazon: the anthropology of knowledge makers

Samuel Maria de Amorim Sá

Coordenador do mestrado em antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPa)

Rua Bernal do Couto, 213

66055-080 Belém — PA Brasil

mantropa@libnet.com.br

SÁ, S. M. de A.: ‘O imaginário social sobre a Amazônia: antropologia dos conhecedores’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI (suplemento), 889-900, setembro 2000.

O artigo aborda o tema do imaginário social sobre a Amazônia, e se fundamenta em uma base teórica que vê o imaginário como parcela da realidade social e como meio relevante para formar conhecedores. faz referência a situações e autores que tratam direta ou indiretamente sobre o tema. Um dos aspectos analisados no artigo é a relação da saúde pública com o imaginário. A conclusão destaca a importância do imaginário para que não se importem padrões de comportamento e soluções para problemas locais acriticamente, como uma modalidade de consumismo, mas que se combinem instituições ou soluções de fora e de dentro ou tradições endógenas e exógenas em contínuo reprocessamento.

PALAVRAS-CHAVE: imaginário social, Amazônia, conhecedores, antropologia dos conhecedores.

SÁ, S. M. de A.: ‘The social imaginary of the Amazon: the anthropology of knowledge makers’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI (suplemento), 889-900, September 2000.

The text is grounded on a theoretical base that sees the imaginary as a part of social reality and a pertinent way of shaping knowledge makers. Reference is made to situations and authors that address this topic directly or indirectly. One vein also explores the social imaginary regarding public health. The conclusion underscores the importance of the imaginary in averting an a-critical consumer-society importation of solutions. Instead, institutions or solutions should be sourced from both the outside and the inside, or from endogenous and exogenous traditions, as part of a continuous reprocessing.

Keywords: social imaginary, Amazon, knowledge, anthropology of knowledge makers.

Introdução

Tomamos o imaginário no contexto de um estudo sobre conhecedores. Imaginar ou fabular é um dos papéis de quem busca ou produz conhecimento. Então entendemos inicialmente que o imaginário é muito mais que um produto anônimo, que um processo cognitivo congelado. Nesse muito mais, destacamos componentes que são sujeitos e não objetos, narradores e narratários, como se diz em análise de narrativas. Desse modo, acentuamos uma posição que traz à cena possibilidades intersubjetivas do imaginário. Quer dizer, assumimos que conhecedores são pacientes e agentes em um coral de polifonia (e de polissemia?), em resposta à necessidade de tratar com a realidade objetiva, porém buscando a mediação de representações mutuamente inteligíveis visando à intercomunicação. Para essa abordagem, nos valemos do filósofo Luiz Carlos Bombassaro (1997), em seu estudo sobre ‘As fronteiras do conhecimento’ e em particular quando detalha sua argumentação a respeito das relações entre historicidade e racionalidade. Bombassaro, que se faz apoiar em Habermas e Rorty, destaca, no conhecer, a produção, o produto e o produtor; de certo modo, ele replica o esquema do processo de comunicação, ou seja, a mensagem, as mediações e os interlocutores processadores.

Adicionalmente, tomamos para diálogo o conceito de atos de fala de John R. Searle (1981, pp. 29, 30-1, 27). Neste contexto nos apoiamos em duas referências desse autor: 1) "Freqüentemente, o que dizemos significa mais do que (aquilo que) realmente dizemos"; e 2) "Falar é uma forma de comportamento regida por regras". Na primeira sentença, o que nos interessa? Interessa-nos aquele "mais" (com um al dila da canção italiana de Domenico Modugno). Esse "mais" ou esse al dila transborda a materialidade e a intencionalidade da fala. O imaginário, aqui tomado como equivalente, é "ato de fala" e não ato falhado. Há, por hipótese, uma como "terceira margem", ou seja, um flanco explícito ou implícito, mas aberto, disponível ou para se perder como um "demais" ou para ser recanalizar como uma exuberância de energia, a qual — por analogia da antropóloga Mary Douglas (1998, p. 116), retomando Ilya Prigogine — poderá tanto ser simplesmente "dissipada" ou esquecida, ou até ser "aproveitada" ou "usada em novos padrões de complexidade". Aqui também podemos resumir e assumir o alcance proposto pelo semiólogo Humberto Eco com seu construto de "obra aberta". Ademais, nosso entendimento se constrói na trilha de Cornelius Castoriadis (1980), com o conceito de instituinte. Deste autor, podemos reconceituar hipoteticamente o imaginário social como ato de fala instituído ou ato de fala instituinte como movimentação de tensão do primeiro. Foi esse posicionamento que nos levou a assumir o sentido do imaginário social a ser visto como possibilidade intersubjetiva, já referida — assim há uma possível "colheita" de sentido que o traz, hoje, para os exercícios pré-decisórios, os quais aparecem na construção de cenários para fins de planejamento estratégico tramado em escala regional ou nacional.

Como podemos tornar mais explícito o conceito de imaginário no contexto de um estudo sobre conhecedores? Por contraste, se há conhecimento entendido como produto e objeto, há também conhecedores como sujeitos que observam, indagam, aceitam ou não aceitam, imaginam ao fazer associações e dialogam com outros conhecedores e com outros conhecimentos que equivalem a situações prazerosas e provocadoras de interlocução e admiração. Dialogar quer dizer estabelecer interlocução, ultrapassando o diletantismo do tipo "conhecer por conhecer", supõe articular atos de fala que levam a atos "de fato" presentes ou em vista de ação futura. Desse modo, a realidade nascida em experiências dos outros pode gerar passividade e conformismos, mas pode igualmente provocar avanços no sentido "primeiros passos", "primeiras versões" ou de simulações úteis e práticas. É assim que temos projeções, como são os mapas de geografia, que atualmente já têm em Mercator uma relíquia, e nos de Peters que já se valem de dados tomados por satélites. Gerard Mercator, cartógrafo flamengo sistematizou idéias sobre representação plana de superfícies curvas (Melo, 2000, p. 21), verdadeiras precursoras de cenários de planejamento estratégico, que funcionam como uma representação antecipatória, sob o nome de cenários com obstáculos para situações desejadas ou não desejadas. Como exemplo, podemos citar os ‘Cenários Brasil 2020’, formulados para o Centro de Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia (dez. 1997). Desse modo, o imaginário pode ser uma prisão ou uma construção libertária — em lugar de o congelar admitimos por hipótese que ele é como um porto apenas medianamente seguro e, portanto, aberto a novos sentidos e desdobramentos.

Faz sentido trabalhar com o imaginário se os admitimos na órbita de atos de fala — na trilha de John R. Searle (1984). Searle, filósofo da linguagem, conceitua atos de fala como objetos de várias questões, entre as quais destacamos a seguinte: "Como fazem as palavras as vezes das coisas?" Quer dizer, o imaginário falado ou escrito não é marginal por parecer que nasceu apenas ao acaso, como luxo ou excesso desnecessário e irrelevante. Também, ele não cabe na categoria de maktub, isto é, de ato mágico ou fatalista, pelo contrário, ele é espelho de experiências com e sem datação, com e sem autoria; e poderá ser também um recurso intencional de antecipação e extrapolação visionária. Não esqueçamos esta virada do milênio, quando muitas incertezas tentam ser acolhidas em outro tipo de predição. Se assim for, como pôr os pés no "chão" do imaginário, ou seja, em situações onde ele aparecera antes e aparece agora?

Um acervo

Um acervo do imaginário social sobre a Amazônia assim se apresenta: ora são falas a respeito da Amazônia como "celeiro do mundo" (Humboldt, cientista), paraíso perdido (Euclides da Cunha, geólogo), inferno verde (Alberto Rangel, romancista), El Dorado (conquistadores espanhóis), pulmão do mundo (anônimo contemporâneo), counterfiet paradise (Betty Meggers, arqueóloga). Analiticamente, esses modos de falar são modos de olhar mais de longe que de perto e podem recair em pólos de uma dicotomia que o cientista político José Murilo de Carvalho(1998) expressou para o Brasil, considerando-o como um todo: o ponto de vista edênico e o ponto de vista satânico. Mas é muito limitado permanecer na bipolarização. Será possível não descobrir outras instâncias de presença do imaginário que, sem esquecer o que há de advertência ou de fantasia, embeba de intenção a imaginação para tirar o papel do conhecedor da arena do cálculo diletante ‘sem dono e sem endereço’? José Murilo de Carvalho sente-se instigado quando admite que há um certo sinal relativamente dizível e indizível e que, portanto, transborda o lado cartesiano que pensa a evidência mais delimitada, com fronteiras mais distintas, e resiste em admitir que o imaginário também seja racional. Aqui ocorre o problema de admitir um status de racionalidade para o imaginário.

Na história recente da Amazônia, das tentativas de Henry Ford, de Daniel Ludwig, da Icomi, dos chamados grandes projetos e mesmo de Serra Pelada, todos acabam ligados a uma fugacidade que os faz símbolos de um imaginário meramente econômico e desgarrado do meio e das populações nativas. Salvo colaboradores cooptados no meio local, foi notório o desvio decisório que colocou Daniel Ludwig mais na órbita de Brasília do que do poder local; mesmo a Hidrelétrica de Tucuruí (PA), sabidamente, trabalhou com um conceito de ciências da natureza do qual se excluíam os seres humanos (Monosokwski, 1991). Como abstração, um tal imaginário das ciências da natureza que exclui seres humanos não permanece letra morta, pois teve efeitos perversos: alterou o nicho de insetos como os mosquitos, que, conseqüentemente, alteram a saúde de populações nos arredores da usina hidrelétrica de Tucuruí. Nesse imaginário recente, a memória bem sabe que apenas desejos não carreiam benefícios humanos. Supostamente, mais perto da racionalidade, por falta de consideração aos saberes ou tradições de populações locais (Freire, 1997), essas imaginações levam a insucessos. Mesmo o moderno projeto Radar na Amazônia (Radam, década de 1970) ficou como uma página que está por ser mais útil como empreendimento pago com dinheiro público; as informações de satélites hoje alertam sobre queimadas e desmatamentos; mas será que no conjunto esses alertas têm informado o processo decisório local? Em contraste, o imaginário trabalhado na primeira metade do século XX por ficcionistas estudiosos como Mário de Andrade, em seu Macunaíma, e Monteiro Lobato, em seu Jeca Tatu, resulta de uma busca menos apressada, isto é, o contato de Mário de Andrade com a Amazônia e com boas fontes, bem como o contato de Monteiro Lobato com os "caboclos" de São Paulo põem a imaginação cercada de sentinelas que não a deixam ‘desvairada’. Temos dois tipos de imaginário, então, escapando da dicotomia anterior: um que cavalga um saber alheio à região e que outro, mesmo feito fora da região, bebe em fontes antropológicas ou, pelo menos, em fontes mais próximas do saber e das inquietações das populações humanas.

Diálogos

Dialogar com o imaginário pode ser um exercício unilateral, diletante, sem conseqüências, mas também pode ser conseqüente. Como outros exemplos de diálogos, escutamos vozes como a de Peter Maricourt, que em 1260 anteviu invenções que depois saíram das mãos de Leonardo Da Vinci; ou como a de Ilya Prigogine, que conta seu achado na correspondência de Albert Einstein, que, por sua vez, dizia ter aprendido mais com Dostoievski do que com os físicos; ou como a voz de um historiador da economia da revolução industrial, John U. Neff, que deduz que nos alicerces da civilização industrial havia a influência da arte, da busca de perfeição e uma preocupação com seres humanos. Nem precisamos ampliar o número desses interlocutores, mas podemos digerir boa parte do que eles viram como fruto de conhecedores de mais longe com outros longínquos.

Um corte, inacabado que seja, nos põe à escuta de outras vozes? Por ocasião da Eco-92, uma publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) incluiu cenários de prospecção sobre a Amazônia. Uma publicação do Ministério das Minas e Energia, a respeito de um plano de eletrificação que cobre até 2010, inclui a Amazônia como fornecedora de energia hidrelétrica sem que ela seja beneficiada reciprocamente. Publicação da Secretaria de Estudos Estratégicos (1998), da Presidência da República, propõe um cenário para o Brasil e para a Amazônia. Mas essas encenações passam por um processo decisório centralizado, em que o lado social do imaginário tem a marca da tecnocracia que pouco aprendeu com Mário de Andrade ou Monteiro Lobato ou Einstein ou Ilya Prigogine.

O valor da pergunta-escuta de outras vozes se apóia no benefício da dúvida: o que pode ser conseqüente em termos de ciência, de política e de identidade regional ou nacional? Assim, uma história atual da Amazônia poderá ser escrita, ou reescrita, levando em conta o imaginário ou os imaginários na justa medida em que eles refletem, além de saber exógeno, também saber local de "experiência feito" local e duradouramente.

Podemos voltar à indagação do começo. Além dos lados edênico e satânico dos imaginários sobre a Amazônia, redescobrimos (nas dramatizações para comemorar cinco séculos de Brasil) o desafio da polissemia de outros tipos de imaginário que nos rondam: aquele imaginário exógeno, outro mais literário, aquele ‘imaginário apressado’, aquele ‘imaginário de pé no chão’, aquele ‘imaginário-tecnocrático’. E talvez haja um ‘imaginário militante ou instituinte’, que pode ter tido um precedente em um tipo de imaginário trágico do tipo absolutista e napoleônico de "vencer ou vencer", ou outro, de tipo escatológico das utopias de direita ou de esquerda como Orwell (em seu 1984), ou a liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, ou a "mãe" ou Gorki, ou "o nosso Independência ou Morte". Hoje podemos ainda ter outra versão, na medida em que for possível pensar uma reforma agrária que imagine e também reconheça a curto, médio e longo prazo o saber de índios, caboclos, imigrantes e de populações locais? Assim não ficaremos reféns de imaginários endógenos ou exógenos que especulem sobre uma Amazônia de ‘coitadinhos’, de ‘vítimas’, de ‘cobiçados’, que não ‘redescobriram’ ainda nem a Amazônia nem a si mesmos como sangrados ex-colonizados

Conclusão

Para Searle (op. cit.), as falas são analisadas como ações e não apenas como fenômenos sonoros e, portanto, elas não apenas carregam significados, mas, de certo modo, também criam ou transbordam significados ou podem levar da interpretação a ação e a decisões. A interpretação fantasiosa de Orellana quanto à Amazônia — como país das mulheres amazonas, valentes, de seio amputado —, após sua viagem a partir do Peru, pode ser tomada como um desdobramento desse tipo (Valverde, 1997). Então, Orellana seria um ‘conhecedor fantasioso’. E, mais perto de nós, Gilbert Durand (1997), nos seus estudos sobre o imaginário, resgata a possibilidade analítica a partir do imaginário como parte da realidade das culturas. Durand aviva o status heurístico dos fenômenos que não são realidade do tipo quantificável, mas têm concretude suficiente para merecer atenção e destaque entre os trabalhos de quem for consumidor-interpretador-recriador ou produtor de conhecimentos, de reconhecimentos ou reconfigurações.

Um modo admitido de operar o conhecimento da Amazônia é feito por meio de mapas. A história do tratado de Tordesilhas traz um primeiro sinal de como um território pode ser simplificado por meio do estabelecimento de novas fronteiras, no papel, não obstante o valor geopolítico gerador de realidade. As mitologias podem filtrar um outro tipo de antecipação da realidade — uma versão moderna de mito é dada por imigrantes para o sul do Pará, contando que parte de sua atração vinha da fabulação interpretando a via-láctea, como constelação que aponta para essa região como uma espécie de "terra da promissão contemporânea". Mais um tipo contemporâneo de imaginário pode ser localizado em fabulações como o Jeca de Monteiro Lobato (1918), que tinha, na composição de suas personagens-base, suas observações e inquietações concretas ao ver caipiras transformados em trabalhadores de mérito nas plantações dos trapistas franceses de Tremembé. Ou temos também a imagem de Macunaíma, de Mário de Andrade, envolvendo, além da ‘imaginação’, uma viagem do autor pela Amazônia. No caso do Macunaíma, há um certo ‘retrato’ da Amazônia e uma crítica que aparece no entendimento do personagem admirado sem abdicar de sua maneira de entender a vida e, portanto, sem ser apenas consumidor do modo de vida dos outros — pois também Macunaíma pode ser visto como um ‘protótipo de conhecedor-viajante’: "El hombre sabe por viejo, pero mas sabe por viajero." Viajero, viajante, emigrante, imigrante.

Quando hoje se fala em ‘imaginação científica’, há lugar para um tipo de imaginação que, entre outras elaborações, poderá sair de simulações de computador (como de certo modo o cinema dos efeitos especiais tem aliado significativo na informática, o mesmo uso ocorre com a construção civil ou com a engenharia de aviões). Assim, damos um passo além do imaginário puro e simples e podemos reconhecer no imaginário um poder de antecipação e deleite prático e estético (lembrar Julio Verne), mas ele é também um recurso que valoriza sonhos, desde que estes também sejam ‘analíticos’ e críticos em relação ao que chamamos de realidade factual, por contraste a uma realidade que podemos chamar de emergente (ou de realidade instituinte, na terminologia de Cornelius Castoriadis).

Tomando a saúde como foco do imaginário em algumas aplicações, é bom recordar, como Affonso E. Taunay, autor do romance Inocência, encontra um lugar para o texto de Chernoviz, precursor de tratamentos de saúde que tomaram por base aplicação de conhecimentos disponíveis em um circuito de relações que não era necessariamente o dos médicos. Podemos lembrar o dr. Noel Nutels, sanitarista que trabalhou com populações rurais e indígenas e que envolveu a literatura de cordel e seus cantadores como um veículo para comunicação entre profissionais de saúde e pessoas doentes. Ou tomamos o estudo de Charles Wagley (1988), que esteve nos anos da Segunda Guerra Mundial nas raízes do Serviço Especial de Saúde (hoje Fundação Nacional de Saúde), como parte de um esforço de saúde para populações rurais. O estudo de Wagley inclui um tópico sobre "passagem da magia à ciência" (cap. 7): o autor começa notando a substituição gradual de explicações mágicas em favor de explicações científicas; no caso, Wagley ‘advoga’ a mudança dessas crenças, ou, digamos, desse imaginário. Mas os processos educativos poderão ter sucesso ou insucesso, e em todos os outros capítulos ‘advoga’, com maior ênfase, o respeito ao modo de vida e, portanto, às soluções autóctones — até porque ele reconhece que "crenças e práticas fundem magia com conhecimento empírico" (op. cit., p. 253).

Desdobremos um pouco mais o tema da saúde na referida obra. Durante a guerra de 1939 a 1945, Wagley testemunhou a introdução do DDT, por meio do então Serviço Especial de Saúde Pública em Breves (PA). Nesse momento, era arma de sucesso contra a malária. Mas a visão de Wagley, que fazia antropologia aplicada à saúde, provavelmente mudou, quando chegou o best-seller de Rachel Carson (1962) e com ele a crítica das experiências de aplicação do DDT; porém mudaria muito mais, certamente, quando ele consultasse o texto do Instituto Evandro Chagas, de Belém (1983), que relata a situação da malária na década de 1980 e acentua como a resistência do mosquito transmissor da malária foi desdobrada por meio da resistência de dadas populações humanas, que, entre outros argumentos, enfatizavam que o DDT enfeiava a pintura das casas, matava insetos, que, por sua vez, eram comidos por animais de criação doméstica e que afinal morriam por causa do veneno. Resta acrescentar a imaginação recente que visa ao controle de base ‘biológica’ para os mosquitos, e, nesse sentido, se insere a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com um bioinseticida que age sobre larvas de insetos da malária, dengue e filariose. Nesse caso, o imaginário alcança outra dimensão: ele acumula memória e história de experiências. Enquanto especialistas em comunicação se vêem às voltas com a ‘entropia nos atos comunicativos’ o imaginário também pode reprocessar memórias e tirar conclusões, vestir novas roupagens ou novas ‘máscaras’ (no sentido, de um disfarce que reforça o sentido em lugar de ceder à chamada "entropia dos símbolos").

Um ponto adicional relativo ao imaginário social da Amazônia permite distinguir o imaginário social de nativos da Amazônia daquele de imigrantes ou de outras vivências que vêm desaguar em propostas de solução para problemas amazônicos. Nesse sentido, podemos referir o desastre de Henry Ford com o projeto Fordlândia (Belterra, PA).

Mas há também invenções de fracassos nativos quando estes, como aqueles, abdicam da imaginação e a limitam ‘copiando instituições’ que deram certo em outras localizações: como indústrias de calçados, de cerveja, produtos farmacêuticos, ou mesmo palácios oriundos de tempos coloniais. A margem de adaptação e de enraizamento dessas ‘invenções’ parece ter sido mal calculada ou foi imaginada de modo ‘consumista’, sem considerar o papel das mudanças na sociedade, ao longo do tempo. Mais um tipo desse consumismo acrítico aparece no campo da saúde, nas Santas Casas da Misericórdia de Belém, Manaus, São Luís (PA, AM, MA), abaladas pelas grandes alterações na demanda e na mediação econômica e tecnológica, com os planos de saúde privados e o desgaste das instituições de saúde pública.

Podemos referir ainda a pauta de exportações da Amazônia, que, ainda hoje, envolve majoritariamente matéria-prima incipientemente beneficiada, como uma moldura colonial em tempos que se dizem descolonizados. E daí a tensão: melhor que tudo, poderemos trabalhar para que a relação "espaço e doença na Amazônia" (Rojas, 1997) provoque a promessa e concretização de um imaginário de "reconfiguração" que traga à tona a outra relação, entre "espaço e saúde" na Amazônia.

No ano 2000, na Amazônia e no Brasil, ocorre a presença de um moderno tipo de profissional do imaginário: os que se dedicam a planejamento estratégico. Vale registrar que, no ano de 1998, a Universidade Federal do Pará (UFPa), investiu recursos para que suas autoridades tivessem acesso à teoria e prática de planejamento estratégico; o mesmo pode-se dizer em relação ao Governo do Estado do Pará. Além disso, a Secretaria (Nacional) de Estudos Estratégicos da Presidência da República prepara ‘cenários prospectivos’. Aqui já ocorre uma espécie de imaginário que quer tirar o ‘ranço’ de passado. Fica o problema de que os especialistas do imaginário em antropologia e em sociologia sabem como eles não podem ser infantilizados (ou ignorantes da história e das experiências), como o imaginário não poderá ser um cálculo sem tensão e sem contradições. Durand (1993, p. 107) chega mesmo a fazer referência a uma ‘tensão dialética’ que opera em relação ao imaginário. Essa tensão dialética pode ser um outro conceito para o dinamismo de um imaginário que não é diletante, e sim ‘militante’, pragmático, e que enfrenta o desafio da realidade social operando nas continuidades, descontinuidades, e recontinuidades, filtrado por meio de sujeitos conhecedores, para os quais o imaginário faz sentido e transborda o dito, o falado, o escrito, o instituído.

Nesta análise, são revistas parcelas do imaginário social sobre a Amazônia. Mais propriamente, busco uma abordagem antropológica sobre o imaginário social com seus limites (fracassos potenciais e impossibilidades), mas também como um tipo de ‘saber’ que é semente, flor e fruto de inserção ou não inserção social de atores que o trabalham, pondo à prova as instigações, antecipações, simulações que ele pode oferecer. Vindo quer de nativos quer de imigrantes, o imaginário social pode ser entendido como uma primeira moldura para prospecção de situações viáveis e inviáveis para seres humanos e para toda a natureza na Amazônia. Ele poderá ser visto como imaginário ‘diletante’ ou puramente ficcionista, ou ele poderá ser de outros tipos, entre os quais o ‘imaginário instituinte’, se antecipa situações para além da estreita factualidade e, portanto, transborda as limitações de um positivismo exacerbado, sem contexto, sem horizontes, sem poesia (no sentido estrito do termo), sem seres humanos como parte da natureza, isto é, como sujeitos decisores, "eixo e flecha" da evolução, tomando uma expressão do visionário Teilhard de Chardin (1881-1955), em sua reflexão sobre o "conjunto zoológico humano". Chardin, a seu modo, foi um conhecedor que enfrentou as tensões entre imaginários sociais mascarados em ideologia de uma dada área. Repensar conexões entre perguntas e possibilidades intersubjetivas do imaginário — em relação à Amazônia em geral e à saúde pública em particular — nos leva a destacar, brevemente, as seguintes situações: a) a vertente utópica de Charles Wagley, que ao longo de trinta ou mais anos manteve presença e contatos com a Amazônia de citadinos, índios, caboclos. Wagley sonhou, com sua experiência de antropologia aplicada à saúde pública, um modo de vida em que o bem-estar físico, social, mental, econômico estivesse devidamente contextualizado e enraizado em atores, recursos naturais e saberes autóctones que existem nos trópicos, assim como nas zonas temperadas; b) a utopia de Oswaldo Cruz em suas missões amazônicas: sua lucidez ajudou, mas a Estrada de Ferro Madeira—Mamoré combina as imagens de ‘ferrovia do diabo’, e de tentativa frustrada, com valor atual de objeto de museu em Porto Velho (capital do estado de Rondônia). A febre amarela e a malária ainda são flagelos e no ‘naipe’ atual de mosquitos ainda somamos os vetores da dengue que têm cenário nacional; c) os cenários de planejamento estratégico da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) são exercícios pré-decisórios. Não são uma tentativa de antecipação de situações. Mas quando serão uma tradição eficiente continuada e conseqüente?; d) as utopias mapeáveis de Fordlândia e de Jari (estado do Pará), nos dias de hoje, podem ensinar por meio dos obstáculos? São elas multiplicáveis em suas lacunas, seus efeitos e em suas causas?; e) as outras utopias recentes, como o enclave do manganês no ex-território do Amapá, a mineração da serra de Carajás, e o ouro de Serra Pelada, onde a saúde humana valia menos que qualquer pequeno ou grande risco para bamburrar. De certo modo, todas essas situações, quer como sonhos quer como práticas, têm algo de espetáculo que aglutina, mas também dissipa energias.

Afinal, se o imaginário social é ato de fala — e não ato falhado — as situações referidas não são exaustivas, mas didáticas. Continuando com uma geração de hipóteses, dizemos que cabem em um estudo sobre o imaginário social. Não se trata apenas de rememorar, mas talvez de ativar a memória conectada e apoiada (ou analisada) por estruturas sociais; sem isso a entropia chegará a anular a memória (hipótese da antropóloga Mary Douglas, 1998). Daí a recorrência do imaginário que for aprisionado na narrativa, esta, porém, pode ser desvendada, se for crivada pela orientação dupla de não reeditarmos o mito de Sísifo e, na prática, não reeditarmos o espetacular fatalismo que o perpassa. Então, aqueles pontos serão imaginariamente tratados como ‘primeiras versões’ ou ‘primeiros passos’ que pedem retomadas; recomeçar, repensar em ‘ritmo anti-sísifo, anti-maktub’.

Recebido para publicação em novembro de 1999.

Aprovado para publicação em maio de 2000.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2000

Histórico

  • Recebido
    Nov 1999
  • Aceito
    Maio 2000
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