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Amazônia, modernidade e atraso ou o Brasil e seus paradoxos regionais

The Amazon: modernity and backwardness, or Brazil and its regional paradoxes

D E P O I M E N T O

Amazônia, modernidade e atraso ou o Brasil e seus paradoxos regionais

The Amazon: modernity and backwardness, or Brazil and its regional paradoxes

Aproveito para parabenizar a Fundação Oswaldo Cruz por realizar este fórum de debates sobre a minha região, a Amazônia brasileira. Quero me solidarizar com a homenagem que esta instituição presta a dois cientistas brasileiros e amazônides, Leônidas Deane e Maria Deane, dando o nome deles a uma instituição na minha cidade, Manaus.

Leônidas e Maria foram duas pessoas muito queridas para mim. Tive o privilégio de privar da vida dos dois, da casa que eles mantinham em São Paulo antes de saírem para o exílio, no final da década de 1960 e início da de 1970. Eram dois cientistas de uma cepa raríssima que está desaparecendo, de humanistas e de investigadores de ciência. Embora os dois tenham dado à ciência brasileira várias conquistas no campo da medicina tropical e da saúde pública, eles também dominavam os clássicos da literatura universal, o teatro, a música e as artes. Aliavam o rigor da pesquisa ao calor humano da cultura. Mas como todos os cientistas que se prezam, o dr. Deane era o exemplo rematado do cientista distraído. Um dia em que estávamos saindo para o teatro — ele, a dra. Maria, a Luiza, a filha deles, com o namorado — nos apertamos no seu carro. Ele tinha um Gordini. Não sei se vocês lembram desse carro. Diziam que o modelo "desmanchava sem bater", mas não devia ser verdade porque o Gordini do dr. Deane não estava exatamente no topo de suas prioridades e estava sempre precisando de limpeza. Pois foi nesse exato dia o dr. Deane descobriu para que servia o espelho retrovisor. Ele já dirigia há muitos anos, mas pensava que era para as senhoras retocarem a maquiagem. Aliás, o nosso cientista tinha um método muito peculiar para dirigir um carro, por exemplo, nunca entrava em uma rua se não viesse algum carro em direção a ele. A explicação era porque assim não havia surpresa e podia arrancar e entrar na rua. Há dezenas de anedotas sobre as excentricidades do dr. Deane, como puxar do bolso uma cueca e cobrir a cabeça pensando que era um lenço, justamente quando deixava o edifício de uma famosa universidade européia numa tarde chuvosa. Ou a sua defesa contra a memória ardilosa, escrevendo num papel os nomes de seus auxiliares de laboratório e depois não sabendo onde tinha enfiado o papel. Assim era o dr. Leônidas Deane.

Exatamente o oposto era a dra. Maria Deane. Ela era a racionalidade germânica perfeita, que sabia tudo, não esquecia de coisa alguma, ultra-organizada. Mas toda essa precisão vinha mesclada com sensibilidade e hospitalidade paraense. A dra. Maria Deane muitas vezes me surpreendia com a sua cultura, sua paixão pela política e o desejo de mudar o mundo para melhor. Enfim, era um casal que se completava e que muito honrou a cultura e a ciência brasileira. Os dois ficarão, estejam onde estiverem, bastante felizes de darem nome a uma instituição em Manaus.


Maria e Leônidas Deane

Minha conversa hoje poderia ter vários títulos. Um deles é ‘Amazônia, modernidade e atraso', mas poderia também se chamar ‘O Brasil e seus paradoxos regionais’. De qualquer modo, as inúmeras opções de títulos indica que a questão da região amazônica é fundamental para entendermos a diversidade do Brasil. O entendimento da região amazônica não é muito simples. Nós que nos preocupamos em estudar a região sabemos que há uma série de problemas que envolvem qualquer entendimento dela. Se você trabalha, por exemplo, no campo da teoria histórica ou na pesquisa da história do pensamento, ou na área da cultura, você se depara com o problema da dificuldade de acesso à documentação, à bibliografia. Se você vai estudar a literatura da região amazônica, vai ter de lidar com raridade de obras editadas há apenas cinco anos atrás e que tiveram quinhentos exemplares de tiragem. Já eram difíceis de conseguir quando foram editadas.

Portanto, a preocupação com o estudo da região gera um enorme desafio para os pesquisadores, por isso faço questão de chamar atenção para os trabalhos recentes de reestruturação dos arquivos públicos na região, e até da sua organização, especialmente o trabalho feito em Belém, permitindo que os pesquisadores tenham acesso a informações até então inéditas. Há uns quatros anos atrás o governo do Pará investiu na reestruturação do Arquivo Público em Belém, remodelou-o completamente, e não só fisicamente. Contratou também uma série de especialistas e hoje o Arquivo Público do Pará é modelar. Talvez não seja o mais rico. Ele não se compara com o Arquivo Público de São Paulo, não tem o mesmo prédio, a mesma tecnologia, mas com toda certeza o Arquivo Público do Pará hoje é um dos grandes centros de referência internacional para a pesquisa e o conhecimento da história brasileira e da Amazônia.

Começo falando sobre esse aspecto positivo, justamente porque é cada vez mais importante que a gente se debruce sobre a documentação, sobre os fatos da história. Estamos certos de que sem a completa compreensão da Amazônia como uma questão nacional, e não simplesmente regional, fica complicado entender a questão da integração da região amazônica ao Brasil, já que isso é, de fato, uma vertente histórica importante a ser observada e analisada. A própria formação do moderno Estado brasileiro tem relação com a Amazônia.

O Brasil é um país fruto de um conjunto de paradoxos, se me permitem começar por essa figura de retórica. É um país que ao mesmo tempo reúne extraordinárias manifestações de pobreza e riqueza, às vezes num mesmo nicho geográfico. No mesmo nicho o Brasil é capaz de juntar o tempo do século XVI com o tempo do final do século XX. É capaz de juntar, enfim, arcaísmo e modernismo, às vezes num limite estreito. Para entender esse paradoxo e inserir a questão que quero discutir — a da integração da Amazônia ao Brasil — na configuração de um dos paradoxos da formação nacional, eu começaria dizendo que, para compreendermos essa integração, temos que nos reportar brevemente à estratégia e ao modelo colonial portugueses. Acho que aí está o primeiro passo para a compreensão da questão da integração da Amazônia ao Brasil.

Tratar da origem da Amazônia como estratégia colonial faz com que a gente se lembre de que o Brasil — até um certo momento do processo colonial — não era esse país que nós temos hoje no final do século XX. Eu diria que no período colonial esse Brasil que nós conhecemos, do ponto de vista territorial, não existia. Levando em conta essa estrutura territorial, que suscita a palavra "integração" — à qual eu resisti muito durante os anos 60 e 70, por ser utilizada pelo regime militar como explicação da expansão da frente econômica —, a integração da Amazônia ao Brasil começa a fazer sentido. Pois a Amazônia até 1823 não era Brasil, não pertencia ao Brasil.

Na verdade, os portugueses mantiveram aqui duas estruturas. Eu nem vou discutir com os historiadores o que eram, nem como elas se configuravam. Eu aceito o desafio de falar genericamente, até que os historiadores se aprofundem nesse campo e definam para o povo brasileiro o que ocorria aqui nesse bom bocado de América do Sul até 1823. Se era uma administração colonial, se era um Estado colonial, enfim, mas digamos que isso não interessa agora. No entanto, existiam muito claramente duas administrações ou estruturas coloniais na América do Sul, geridas de Lisboa. Ou seja, havia uma colônia portuguesa que foi descoberta, entre aspas, por Pedro Álvares Cabral, em 1500, em 22 de abril de 1500, e uma outra colônia que fora descoberta bem antes pelo espanhol Pinzón, em 1498. Ele esteve navegando ali pelo litoral norte, foi até a costa do Maranhão, chegou ao rio Amazonas, bebeu da água do rio Amazonas, descobriu que ali o mar era doce, era um mar doce. Chamou o rio Amazonas de Mar Dulce.

Esses dois Estados ou estruturas coloniais se desenvolveram de formas bastante distintas, tiveram histórias diferenciadas. A própria estratégia colonial portuguesa era muito diferente da estratégia e do projeto colonial espanhol, tal como estes eram diferentes do projeto colonial dos holandeses, dos alemães, dos ingleses e dos franceses que em algum momento circularam aqui na região amazônica. No caso da administração colonial portuguesa, com todas as suas características próprias (que não vamos discutir aqui), os portugueses diferenciaram as suas duas áreas de domínio colonial.

No caso do Brasil, ocorreram algumas mudanças, tal como iriam ocorrer ao Norte. Mas, mais tarde, com a fixação da capital da colônia Brasil no Rio de Janeiro, de certa forma a opção econômica colonial portuguesa se define, direcionando a colônia para a produção agroindustrial. A partir daí a sociedade brasileira se desenvolve neste eixo, no grande eixo socioeconômico da agroindústria.

Eu estou fazendo largas sínteses, pois não teríamos tempo de descer em detalhes, e nem eu teria dados aqui. No caso da colônia ao Norte, os portugueses tiveram algumas dificuldades de estabelecer a mesma estratégia. Talvez eles não tenham tido grande escolha e tenham sido obrigados a ser mais criativos do que ao Sul. No início tentaram a mesma estratégia econômica. Durante os primeiros dois séculos eles tentaram implantar uma estrutura agroindustrial, especialmente no Maranhão e no litoral paraense. Essa economia se arruinou imediatamente, jamais teve capacidade de se aproximar com a que ocorria ao Sul.

O processo histórico se desenvolve de formas distintas nas duas áreas até justamente 1823. Este é a data em que o Império do Brasil consegue remeter um emissário, um mercenário inglês, num bergantim que ancora em Belém do Pará. Ele levava uma carta de lorde Cochrane, que estava no Maranhão. Esse inglês se chamava John Paschoal Greenfeld. Tinha 23 anos, mas era um homem muito experiente, pois tinha participado de algumas ações contra Napoleão Bonaparte e depois de toda as operações que lorde Cochrane desenvolveu no Chile. O jovem marujo inglês tinha uma experiência muito grande, inclusive no trato de assuntos coloniais. Greenfeld anexa a Amazônia, toda a região amazônica, que em 1823 se chamava estado do Grão-Pará e Rio Negro, com um blefe. Ele diz que o seu navio, ancorado em Belém, era a nau capitânia de uma armada ancorada em Icoarací, que é uma praia próxima. Se fosse hoje ele teria sido desmascarado imediatamente, porque se vai até Icoarací de carro em uma hora e meia, duas horas. Assim, se descobriria que não havia armada alguma. Mas naquela época se teria que ir de navio, não havia passagem por terra. Ele, então, dá um ultimato, ameaçando bombardear a cidade. Os portugueses, o estamento português de Belém, adere e vira brasileiro, adere ao império do Brasil.

Até 1823, então, precisa ficar claro que a Amazônia não era fronteira, a Amazônia era uma outra coisa. Nem era Brasil, nem era fronteira. Esse conceito de fronteira é uma invenção recente, é uma invenção da República e é uma invenção ideológica da teoria dos grandes projetos do regime militar de 1964. Esse é um aspecto fundamental do processo histórico da região amazônica: entender que o conceito de fronteira aplicado hoje, particularmente o de fronteira econômica, é um conceito recente e tem ranço ideológico.

O que ocorre no choque em 1823 ao ponto de provocar uma ruptura e um processo de sistemática provocação das elites do Império do Brasil em relação às elites do Grão-Pará, levando o Grão-Pará a um banho de sangue? Entre 1823 e 1845 a região amazônica entra em convulsão. Há um processo de insurreição popular e uma repressão brutal por parte da regência do Império do Brasil. Essa repressão faz com que o tratamento dado pelo Império à guerra dos Farrapos e aos gaúchos rebelados seja de ‘pão-de-ló’. O processo repressivo é tão brutal que a região amazônica perde, nesse primeiro quartel do século XIX, 30% da população. Essa primeira parte do século XIX segue uma lógica do processo colonial, que é o processo de desabitação, de destruição das populações originárias da região, preparando provavelmente a região para uma segunda ocupação.

Esse primeiro choque é ainda desconhecido no Brasil e pouquíssimo conhecido na região amazônica. Sabe-se muito pouco ainda, não existem grandes trabalhos de investigação sobre o processo político dessa fase. Para se ter uma idéia da precariedade do conhecimento sobre esse período, o maior pensador político e o maior líder político daquele momento, o cônego Batista Campos, não tem sua obra reunida em livro. Ela está dispersa nos anais das assembléias, nos discursos que ele proferiu, nos artigos que escreveu no jornal que editou. Até hoje ninguém se deu ao trabalho de fazer um levantamento dos discursos, dos textos do cônego Batista Campos e inserir o seu pensamento liberal e libertário no conjunto de pensamento progressista que varreu o império do Brasil no seu primeiro momento. Com certeza vamos encontrar parentesco do pensamento do cônego Batista Campos com o de frei Caneca e o de outras lideranças liberais e libertárias do Brasil. Mas essas são hipóteses. Teríamos que levantar e ler os artigos todos, e contextualizá-los.

Portanto, mais uma vez chamo atenção que estou fazendo grandes sínteses. De algum modo estou também provocando um pouco os historiadores, cientistas, investigadores, porque no meu campo, como ficcionista e, portanto, como mentiroso, estou procurando preencher as lacunas, escrevendo os meus romances. Justamente nesse momento trabalho sobre um conjunto de romances que vão pontuar esse período entre o final do século XVIII e meados do século XIX.

Prosseguindo nessa grande síntese, quero introduzir a hipótese que eu proponho para explicar a brutalidade do conflito gerado e para o sistemático processo de provocação do Império do Brasil em relação às elites regionais. O Primeiro Reinado é um período bastante convulsionado na história do Brasil. Todas as províncias tiveram problemas de integração complicadíssimos com as elites e com a tecnocracia de d. Pedro I. Para as elites provinciais era de difícil assimilação essa junção de políticos paulistas e cariocas no primeiro momento da implantação do Império, ditando de suas óticas limitadas o que devia ser o gigante Brasil. Em alguns momentos o próprio d. Pedro I, que era explosivo e arrogante, me parece ter mais sensibilidade política do que a família Andrada, que inicia então uma duradoura tradição de política atrasada, a partir do José Bonifácio. Veja-se o caso de d. Pedro I mandando tirar da prisão o cônego Batista Campos, então na Corte para onde tinha sido enviado preso, e mantém com o líder paraense uma longa conversa política que resultou num período de trégua, até assumir a Regência.

Com a Regência, o processo de provocação sistemática retorna. São nomeações de figuras não queridas no Grão-Pará e Rio Negro para cargos de governo. Figuras que já haviam criado atrito na região eram nomeadas novamente, como que para aprofundar os ferimentos. De certo modo é uma atitude inexplicável e perigosa, revelando uma alta dose de incompetência política por parte da Regência. Qual o interesse do Império em criar uma situação limite que poria — e pôs — em risco a integridade territorial almejada pela Casa de Bragança? A lição que se pode tirar dessa atitude estabanada da Regência é que as duas colônias portuguesas eram diferentes demais para serem integradas pacificamente. As diferenças eram muito profundas, eram diferenças de raiz, impediam que houvesse um diálogo entre as duas colônias.

Tudo se agrava porque a figura mais importante da política desse período do Grão-Pará e Rio Negro, o cônego Batista Campos, provavelmente um dos poucos líderes com cultura, talento e sagacidade política, capaz de gerenciar uma transição e uma negociação com o Império do Brasil, infelizmente teve uma morte prematura. Em 1834, no final do ano, estava clandestino. Ele tinha brigado com o governador geral Lobo de Sousa, estava clandestino e ameaçado de prisão. Ao se barbear, cortou uma espinha, o corte inflamou, ele teve uma contaminação e morreu de tétano, sem poder ser assistido porque estava clandestino. A morte ocorreu em 31 de dezembro de 1934. No ano seguinte o povo se levantou e se lançou numa aventura revolucionária sem futuro. A sua morte prematura lança a região toda no vazio, no vácuo político, e das lideranças que assumem, nenhuma alcançaria a categoria e o conhecimento teórico dele, apesar de todas as contradições da sua personalidade.

Em linhas gerais, são essas as diferenças entre o Império do Brasil e a Amazônia que podem ser traçadas rapidamente. Digamos que o Império do Brasil ou o Vice-Reino do Brasil, antes de virar Império, era uma economia baseada na mão-de-obra escrava, na escravidão, na agroindústria, nos grandes latifúndios, nas grandes propriedades, nas grandes plantations, nas grandes propriedades agrícolas. O setor moderno do Brasil, no final do período colonial é, por isso, justamente o setor de importação-exportação, que se desenvolve basicamente no porto do Rio de Janeiro.

Enquanto isso, a Amazônia transita entre o malogro desse projeto dos primeiros duzentos anos para uma proposta completamente distinta, implantada a partir do marquês de Pombal, em meados do século XVIII. O interesse por esse experimento é tão forte, do ponto de vista do reino de Portugal, que o próprio irmão do marquês de Pombal é nomeado governador geral do Grão-Pará e Rio Negro.

Qual é a experiência que eles buscam no Grão-Pará e Rio Negro? Ao contrário de qualquer outra colônia portuguesa no mundo, tanto na África quanto na Índia ou na Ásia oriental, o Grão-Pará vai desenvolver um projeto econômico e cultural único. Ele vai se desenvolver no campo da agricultura, uma agricultura voltada para pequenos proprietários. E é essa agricultura — implantada na região do rio Negro e nos arredores de cidades grandes como Belém, Santarém e outras pequenas cidades, como Manacapuru, no Amazonas — que surge nessa primeira experiência como área de plantação, primeiro como agricultura de sustentação e depois como produção de algodão e anil.

Esta estrutura de pequenos proprietários introduz no Brasil o plantio e a produção do café, que depois migra para o Império do Brasil, e vai fazer a fortuna e sustentar a monarquia cabocla, tal como a borracha depois vai sustentar a República Velha. Além disso, a produção extrativa vai aos poucos perdendo importância econômica, na medida em que aumentam as exportações dos produtos agrícolas, basicamente o algodão, anil e outros produtos, ao mesmo tempo em que cresce uma forma industrial inusitada que é a manufatura do látex. Nesse período não se vê a exportação do látex como produto in natura, como produto natural. Mesmo porque a segunda revolução industrial ainda não tinha induzido uma utilização maciça da borracha no processo industrial. Os pneumáticos e a produção em massa da indústria automobilística ainda não existiam.

Mas era uma indústria florescente e se você abrisse revistas americanas e européias nesse período, encontraria anúncios dos produtos manufaturados de borracha produzidos na região amazônica, especialmente capas de chuva, chapéus impermeáveis, sapatos, molas para portas, instrumentos cirúrgicos e uma infinidade de outros produtos manufaturados. Vamos lembrar também que esse é um período que antecede a vulcanização, que levou a uma série de adições científicas à utilização industrial da borracha. Era um tipo de indústria bastante primitiva, mas era significativa na pauta econômica da região. Além disso, havia um segmento importantíssimo na economia da região que era a indústria naval, a construção de barcos, que em alguns momentos do século XVIII chegou a ter uma participação significativa na própria economia do reino. Uma parte substancial da frota portuguesa era construída no Grão-Pará e Rio Negro. Era inédito que uma colônia se baseasse na indústria. Todas as colônias portuguesas eram baseadas na produção agrícola de exportação e a Amazônia teve essa experiência no campo da manufatura do látex e na produção naval.

Embora a economia do Grão Para contasse com o estatuto da escravidão, a mão-de-obra escrava não tinha a menor importância econômica. O trabalho nas pequenas propriedades agrícolas era um trabalho livre. Nas frentes extrativistas não havia qualquer possibilidade de trabalho escravo, porque não se conseguiria reter escravos no trabalho da frente extrativista. Disso resultou que grande número de quilombos estava na região amazônica. Durante os primeiros duzentos anos em que se tentou a utilização de mão-de-obra escrava na região acabaram gerando essa série de quilombos, alguns deles ainda hoje formando comunidades originárias desse período.

Um modelo econômico tão ousado só poderia gerar uma sociedade diferente, uma elite política e intelectual distinta da elite e da intelectualidade do Império do Brasil. No Grão-Pará e Rio Negro havia uma mentalidade liberal, um desprezo pela escravidão e, com a tomada da Guiana Francesa e os nove anos de ocupação, uma forçada intimidade com os ideais políticos da Revolução Francesa. Como isso ocorreu? A invasão napoleônica de Portugal em 1808 provocou a fuga da família real para o Brasil. Diga-se de passagem que os "portugueses americanos" — como se auto-intitulavam os habitantes do Grão-Pará e Rio Negro (eles chamavam os brasileiros de "brasileiros") — ficaram estarrecidos pelo fato de a família real não ter ido para Belém, e sim para o Rio de Janeiro. Os portugueses americanos viam o Império do Brasil como um antro de desordem, um futuro Haiti.

Com a chegada da família real no Vice-Reino do Brasil, os portugueses americanos organizam uma força-tarefa militar e invadem a Guiana Francesa. Em 1809 eles tomam Caiena e a ocupam durante nove anos, até o tratado de Fontainebleau. São nove anos de estreito e íntimo contato com todos os ideais da Revolução Francesa. Caiena tinha sido durante a Revolução Francesa uma espécie de delegacia da difusão do pensamento revolucionário francês na América Latina. Ali eles tinham delegacias com tradução para o espanhol e português de documentos, jornais e textos que eram infiltrados na América Hispânica e na América Portuguesa. Comprova-se a existência desse tipo de ação pela legislação bastante radical das autoridades portuguesas no Grão-Pará e Rio Negro contra a circulação desse tipo de literatura. No Vice-Reino do Brasil não ocorreu nada parecido.

No Grão-Pará e Rio Negro, antes da invasão da Guiana, se você fosse encontrado com um exemplar da Declaração dos Direitos do Homem, recebia a pena de morte, sem apelação. Possuir qualquer documento da chamada "infame revolução" significava pena de morte ou prisão perpétua. Ora, esses mesmos líderes políticos, militares, intelectuais vão para Caiena e regressam a Belém com verdadeiras bibliotecas revolucionárias. Daí por que eles começam no processo de luta pela independência — concomitante com os diversos movimentos políticos do resto das colônias portuguesas na América — a propor uma visão de independência muito semelhante à Confederação do Equador e de algumas lideranças do Recôncavo Baiano, contrária à existência de um império que de alguma forma desse continuidade à Casa Real portuguesa. A proposta era da formação de um país independente e republicano, consonante com as tendências dos processos de independência da América Hispânica. Com toda certeza essas duas sociedades não podiam se integrar pacificamente. Não havia diálogo, não era possível o diálogo entre um político do Rio de Janeiro com um político do Grão-Pará e Rio Negro. Acredito que está exatamente nessas diferenças de concepção de mundo a razão da violência com que a Amazônia foi anexada ao Império do Brasil.

Há, no entanto, um outro aspecto curioso que nos remete às questões da modernidade e do atraso. No momento em que a região amazônica passa a ser rotulada de "fronteira", esse rótulo vem precedido de uma série de conceituações da região, segundo as quais, no fim das contas, se pode definir a região apenas com uma palavra, como: "fardo". A Amazônia seria um fardo pesado para o Brasil que a "carrega". A Amazônia seria a região que não dá retorno, a região problemática, vinculada portanto ao Nordeste, que seria outro "fardo" para o país. As duas regiões formam o chamado Brasil do atraso, enquanto o Centro-Sul seria o Brasil do moderno. A dicotomia do país se expressaria em como levar a modernidade para esses rincões, para esses grotões do país.

Mas, frente ao que a história nos mostra, frente a esse confronto que antecede a Amazônia como fronteira, cabe perguntar: Quem era o atraso? Quem era a modernidade? Venceu a modernidade nesse processo? Venceu o atraso nesse processo? Sem querer ser bairrista, mas sendo, eu diria que o processo de integração da região amazônica ao Império significou para o Brasil, grosso modo — e essas comparações são perigosas, eu confesso — algo como se o Sul dos Estados Unidos tivesse vencido a guerra de Secessão. O resultado histórico desta integração forçada é que — e nós temos que nos conscientizar disso — a derrota do Grão-Pará e Rio Negro significou a vitória dos latifundiários, dos senhores de engenho. Imaginem se os senhores confederados do Sul dos Estados Unidos tivessem esmagado o exército de Lincoln e transformado os Estados Unidos numa eterna seqüência inicial de ...E o vento levou. Foi o que nos aconteceu.

Para encerrar, sem querer ser acrimonioso, nem amargo, devo dizer que não há retorno. O Brasil de hoje é fruto desse processo histórico. Agora, o que devemos aprender, nós que somos da região, que lutamos pela nossa região? Primeiro, afirmando nossas peculiaridades culturais ao conjunto dos brasileiros — dos brasileiros que também querem o Brasil íntegro, com a Amazônia fazendo parte dele. Tenho a impressão de que o grande ponto a ser levantado é se a integração da Amazônia continua sendo entendida como era no Primeiro Reinado. Ou seja, até quando a região amazônica continuará a ser tratada como uma região colonial refratária aos princípios modernos, e que por isso mesmo não deve ser consultada sobre nada? E porque a região é um "fardo", será que deve continuar a depender das benesses que os tecnocratas de Brasília inventam para ela?

A única relação possível num processo de integração econômica é a democrática, a do diálogo, não existiu em 1823, e cuja falta levou à uma calamidade? Mas há vontade política para esse diálogo, ou em nome do imediatismo continua sendo alimentada a mesma provocação que só tem levado ao derramamento de sangue, especialmente para aqueles que não têm condições de resistir: os povos indígenas, os pobres, os camponeses, os trabalhadores das frentes extrativistas, os trabalhadores dos distritos industriais, as populações que migraram para a periferia da cidade e transformaram as cidades como Manaus e Belém em grandes cânceres que estão corroendo a região?

Avisei que eu não queria ser acrimonioso nem amargo, mas na verdade não se pode fugir muito dessa realidade. Encerro apontando uma grande culpa da nossa parte, como lideranças regionais. Afirmo que nós não temos sabido conduzir o diálogo no seu devido espaço, no seu devido momento, e exigindo o respeito devido à região. Mas acho que ainda há a possibilidade de consertar isso. Acho que a região não pode continuar sendo esse mito em que as pessoas passam um mês lá e depois montam uma organização não-governamental e levantam milhões de dólares para publicar newsletters em defesa da ecologia. Essa rede de solidariedade é incômoda e oportunista, nunca trouxe nenhum benefício, quase sempre se beneficiando da má consciência que os habitantes dos países industrializados têm em relação a áreas periféricas e exploradas como a Amazônia.

Mas a lição principal que o desaparecimento do Grão-Pará e Rio Negro traz para todos os brasileiros é que é muito difícil construir uma democracia nesse país, porque venceu o atraso, o espírito autoritário e o senso de rapina colonial no pior sentido. Por isso, nossa vigilância tem que ser redobrada, porque sem democracia não é possível se pensar coisa alguma. Chamo atenção — e pode até ser um jargão meio esgarçado essa questão da democracia — que é no campo da cena política e da consolidação da democracia que se resolverá de uma forma adulta a questão da Amazônia. Não se pode esvaziar a Amazônia e transformá-la numa região tribal. A Amazônia hoje representa 15 milhões de eleitores, há um processo político em andamento, há uma luta interna nas lideranças regionais, há uma reconstrução das lideranças políticas regionais. A vitória de novas linhas políticas no Acre e no Amapá, e a seqüência de um governo democrático no Pará apontam uma mudança substancial na política amazônica.

Embora o Brasil seja um país regionalizado e as regiões tenham suas peculiaridades, o milagre é que é um país capaz de se entender. Eu, como escritor do Amazonas, não tenho a menor dificuldade de ser entendido por um leitor gaúcho, e os escritores gaúchos não têm a menor dificuldade de serem entendidos pelos leitores do Amazonas. Essa capacidade do país de ser diferente e ao mesmo tempo tão uno, na sua cultura e na sua linguagem, é que faz com que a gente tenha esperança de que o diálogo entre as regiões seja mais igualitário e mais democrático.

Márcio Souza

escritor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2000
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