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As pessoas mais frágeis

The weakest persons

As pessoas mais frágeis

The weakest persons

Ricardo Waizbort

Biólogo, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz

Av. Brasil 4365

21045-900 Rio de Janeiro — RJ Brasil

ricw@coc.fiocruz.br

Nas últimas décadas, o desenvolvimento do debate sobre o direito dos animais tem levado pesquisadores de todo mundo a refletirem sobre a ética do uso de seres vivos em experimentos científicos. O parente mais próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem somos, de Roger Fouts, leva essa discussão às suas conseqüências filosóficas e morais mais agudas. Embora seja uma magnífica obra de divulgação científica, e tenha ficado umas poucas semanas entre os livros mais vendidos na categoria não-ficção, tudo que é sólido desmancha no ar: atualmente seus argumentos pouco despertam comentários, tanto entre os estudiosos de biologia e antropologia, quanto em outras áreas do conhecimento humano. O pretensioso alvo dessa nota é tentar sacudir o público dessa sonolência.

Produzido em parceria com o escritor de divulgação científica Stephen Tukel Mills, O parente mais próximo narra a trajetória do graduado em psicologia infantil Roger Fouts (e tangencialmente também a trajetória de sua esposa e as dos seus três filhos) desde que ele próprio se engajou no Projeto Washoe, em 1967, como estudante de pós-graduação que almejava ajudar crianças autistas. Washoe é a chimpanzé (Pan troglodytes) que Allan e Trixie Gardener adotaram em 1966 quando o bebê não-humano tinha cerca de dez meses de idade. O projeto: ensinar-lhe uma linguagem de sinais, ao contrário dos severos paradigmas behavioristas, em um ambiente rico em estímulos. Não era exatamente o trabalho que Fouts procurava na época, mas ele tinha que pagar a universidade em que estudava, e Washoe literalmente atirou-se nos braços dele quando o viu pela primeira vez.

Desde pelo menos Platão e Aristóteles os seres humanos se consideraram como as únicas criaturas da Terra capazes de desenvolver uma linguagem. Até aproximadamente metade do século passado, muitos europeus e americanos cientificamente cultos acreditavam que animais e plantas estavam todos organizados em uma grande cadeia de seres construída por Deus, direta ou indiretamente. Naturalmente o ser humano ocuparia o ápice dessa cadeia, no cume da perfeição e da complexidade. Somente a ele teria sido dado o dom da inteligência (atributo da divindade) e da fala. Deduz-se então que seria tolice imaginar que macacos pudessem falar, pensar ou se emocionar pois eles pertenceriam ao reino das bestas brutas, das máquinas cartesianas feitas por Deus para proveito humano.

Em 24 de novembro do ano de 1999, A origem das espécies de Charles Darwin completou 140 anos: vida longa para essa alta realização do espírito humano! A obra é considerada um marco nas ciências biológicas não apenas por aprofundar vertiginosamente nosso conhecimento sobre o incomensurável fenômeno da evolução, mas também porque pela primeira vez um texto nas ciências biológicas ofereceu uma explicação causal e mecânica sobre a origem e a diversidade das espécies, sem apelar para qualquer raciocínio que envolva a idéia de Deus. Um corolário da idéia darwinista de evolução por seleção natural é que a própria espécie humana descenderia de outra espécie, muito provavelmente extinta há alguns milhões de anos.

Muitos cientistas e filósofos da ciência têm reexaminado o darwinismo sob uma aguda visão crítica praticamente desde que a idéia de evolução foi promulgada à época da primeira edição de A origem das espécies. Existe muita discordância acerca da teoria da evolução, sendo talvez a mais notória a controvérsia sobre a seleção natural como causa da evolução. A seleção natural é uma causa suficiente e necessária à evolução? A seleção natural é apenas a projeção subjetiva da mente humana ao problema da diversidade das espécies? As respostas a essa questão são por vezes contraditórias. Atualmente os darwinistas mais ortodoxos (os neodarwinistas e os adeptos da teoria sintética da evolução) afirmam que a seleção natural é uma causa importantíssima, no mínimo, enquanto outros cientistas (biólogos, antropólogos etc.) negam uma função primordial para esse mecanismo. Note-se que ninguém nega que a evolução tenha existido, mas se discute muito, nem sempre educadamente, sobre sua causa (seleção natural) ou causas (seleção natural, mutação, deriva genética, catástrofes, divisões geográficas no espaço). A evolução é um fato para os cientistas. É também um fato a tentativa científica de descobrir, a partir de registros fósseis e outras informações imperfeitas, uma história narrativa que descreva como uma determinada espécie ou linhagem se originou de outra mais antiga. Além da evolução dever ser interpretada como fato e como história, como já se disse, a teoria da evolução também é uma teoria sobre as causas da evolução.

Antropólogos e biólogos reconhecem atualmente que há cinco ou seis milhões de anos os ascendentes do que seriam os homens e os chimpanzés de hoje começaram a se separar. As causas dessa separação são muito controvertidas. A história narrativa hoje paradigmática conta que por causa de uma drástica mudança de clima no Nordeste africano o ambiente em que vivia o ancestral comum do homem e dos chamados grandes macacos africanos (chimpanzés e gorilas) teria se modificado. Um novo cenário se originou: à antiga floresta tropical, no litoral Nordeste da África, se sobrepõem lentamente as savanas abertas. Imagina-se que pelo menos uma população do suposto ancestral comum que vivia mais próximo ao litoral foi obrigada a descer das árvores das florestas (que rareavam à medida que o clima ia se modificando) e ir viver nessas savanas abertas. No interior, onde o aparecimento progressivo da barreira geográfica não alterou em profundidade o ambiente florestal, evoluíram, a partir do mesmo ancestral, os atuais gorilas e chimpanzés. Darwin alegou em A origem do homem, publicado em 1871, que poderíamos encontrar rudimentos de linguagem nesses grandes primatas além da fabricação de ferramentas rudimentares.

As idéias darwinistas sobre o fato da evolução (a constatação que as espécies não são fixas, que estão se modificando no tempo geológico) e sobre a historicidade da evolução (a descoberta de uma classificação natural para os seres vivos baseada em uma perspectiva histórica, ou seja, por relações de parentesco) são amplamente aceitas. Entretanto, fora dos meios acadêmicos e profissionais mais restritos, o homem continua agindo cartesianamente como se animais e plantas, e outros recursos vivos e inanimados, estivessem no mundo à mercê dessa mesma humanidade. Nesse contexto, O parente mais próximo leva a sério as questões darwinistas para provar que os chimpanzés também são pessoas, com personalidade e sentimentos diferenciados em cada um dos indivíduos.

Ao contrário dos behavioristas, os pais adotivos de Washoe, Allan e Trixie Gardener (Fouts se considerava como um irmão mais velho da chimpanzé), acreditavam que os chimpanzés poderiam aprender uma linguagem de sinais se não fossem privados de calor social (com membros de sua própria ou de outra espécie próxima, como a dos humanos). A tese era a de que os chimpanzés estavam justamente fazendo isso, sinalizando, muito antes, milhões de anos antes do homem utilizar a linguagem verbal.

Quando Fouts conheceu Washoe ela vivia em um quintal no fundo da casa dos Gardener há pouco mais de um ano. Washoe já tinha aprendido cerca de duas dúzias de sinais em ASL (American Signal Language — linguagem norte-americana de sinais ou ainda Ameslan). A pequena macaca já sinalizava com alguma desenvoltura. A linguagem americana dos sinais é uma linguagem de gestos feitos pelas mãos. Uma das principais tarefas de Fouts, como aluno de pós-graduação, era ensinar mais ASL para Washoe. E Fouts acabou tornando-se um estudioso em comunicação animal, com artigos publicados em revistas importantes e especializadas. Tornou-se também um grande amigo e admirador de Washoe, sem nenhuma ironia. Durante toda sua vida, Washoe dominaria mais de uma centena de signos com uma sintaxe bastante bem elaborada, sendo capaz de criar novos significados para as palavras, assim como produzir variações pessoais do modo de representar determinadas idéias.

Embora a narrativa da vida de Washoe seja divertida e dramática, sua história ganha cores muito mais vivas quando ela é transferida do quintal dos Gardener para Oklahoma, para a ilha do dr. Lemmon. Experimentos científicos utilizam chimpanzés em testes muitas vezes perversos e o dr. Lemmon era um dos inúmeros adeptos da crença de que "os animais são criaturas sem mente, cujo comportamento rígido, ao contrário dos seres humanos, é controlado pelos instintos" (p. 21). Conseqüência desse modo de ver as coisas é que animais como chimpanzés, mas também centenas de espécies de animais (mamíferos e outros), são submetidos a toda sorte de sofrimento. Eis um breve resumo:

Ao longo dos últimos quarenta anos, rodopiamos chimpanzés em aparelhos de força centrífuga e os lançamos no espaço. Esfacelamos seus crânios com barras de aço e os usamos como bonecos em testes de acidentes. E os privamos de qualquer contato materno, levando-os à psicose. Eles foram usados para testar pesticidas mortíferos e solventes industriais causadores de câncer. Foram também inoculados com doses maciças de poliomielite, hepatite, febre amarela, malária e HIV (p. 367).

A luta de Fouts pode ser interpretada como uma tentativa de resolver alguns dos problemas da utilização de chimpanzés em experimentos. Uma investigação na estrutura superficial do livro, sua estrutura de três partes, revela a posteriori a evolução dos lares de Washoe e dos Fouts. Primeira parte: o quintal da casa dos Gardener para Washoe na cidade de Reno, estado de Nevada (1966-70); a ilha do dr. Lemmon, cidade de Norman no estado de Oklahoma (1970-80); o Centro de Pesquisa na cidade de Ellensburg, no estado de Washington (1989-97).

Apesar de suas condições brutais, é na ilha do dr. Lemmon que Washoe faz seus primeiros contatos com outros de sua espécie. Até partir do quintal dos Gardener em Reno, ela conhecera apenas humanos. Quando Washoe chega a essa cruel morada, ela e Fouts encontram outros chimpanzés que também sinalizavam em ASL. Esses são os tempos mais sombrios para Fouts: os tempos do fim da infância e o início da adolescência de Washoe; do conflito com o dr. Lemmon (que constrangia física e moralmente os macacos para que eles o temessem e obedecessem, como o personagem do inumano cientista que dá seu nome para A ilha do dr. Moreau); da batalha com as agências de financiamento do governo e com as instituições que utilizam chimpanzés para testes em suas pesquisas; de seu próprio mergulho na escuridão e no álcool. Mas é também esse o tempo em que Fouts abandona a perspectiva de ser um grande cientista e torna-se, depois de superada intensa crise, um lutador da causa de que não temos o direito de infligir dor física e moral aos chimpanzés ou a qualquer outra animal. É durante a permanência de Washoe na ilha que Fouts compreende estar em jogo muito mais do que apenas a sua carreira profissional, mas a vida, e talvez a morte, de indivíduos não-humanos capazes de sentir, pensar e sofrer como ele mesmo. Nessa altura emergem a complexidade, a plasticidade e a unicidade da mente animal e de sua profunda ligação biológica e cultural com a mente humana.

Felizmente Washoe vive hoje em um ambiente social mais rico e menos constrangedor do que a ilha do dr. Lemmon. Os Fouts conseguiram adotar um bebê chimpanzé para ela, depois que ela perdeu sucessivamente duas crias na ilha (uma das quais, por responsabilidade direta do dr. Lemmon). Washoe e Loului mais três outros chimpanzés, Dar (macho), Moja e Tatu (fêmeas), vivem em um ambiente certamente artificial, mas muito menos opressivo.

Mas o final da história não é feliz. Ademais, como se trata da narrativa de uma história real, não há um final para ela. A luta dos Fouts continua e vem dando resultados. Eles conseguiram criar o Instituto de Comunicação Chimpanzé e Humana onde vivem atualmente Washoe e sua família. O instituto possui um teto de tela metálica, com a altura de três pavimentos, ao ar livre, que permite que os chimpanzés se balancem por cima do espaço em que vivem, como fazem na floresta tropical úmida. Mas Fouts sabe que conseguiu salvar cinco chimpanzés de um negro futuro. Todavia, quantos chimpanzés hoje, agora, estarão sendo tirados ainda filhotes de suas mães para os fins mais escusos? Quantos outros animais estão sendo torturados sem nenhuma consideração por sua dor física e quem sabe psicológica? Temos razão para nos acharmos, humanos, os únicos possuidores de mente sobre a terra?

As respostas de Fouts são darwinistas, ou melhor, neodarwinistas. Os chimpanzés são nossos parentes mais próximos e mais frágeis. Muito do que julgamos específico da humanidade deve ter lentamente emergido do mundo animal. Se Washoe é capaz de sinalizar em ASL é porque os gestos fazem parte de uma herança que ela trouxe da selva, como demonstram observações feitas sobre chimpanzés selvagens, como o livro Uma janela para a vida: 30 anos com os chimpanzés da Tanzânia, de Jane Goodall (Rio de Janeiro, Zahar, 1999).

Ao demonstrar que Washoe e sua família ampliada não só usam ASL como desenvolvem um pensamento abstrato, um raciocínio lógico, uma sintaxe elaborada, além de estratégias imprevistas para combinar os signos gestuais de forma inesperada, Fouts sustenta de forma irrefutável que Washoe e os chimpanzés em geral, não privados de contato social e condições dignas, são mestres na arte da comunicação simultânea (gestual).

Para Darwin, a linguagem estaria firmemente enraizada na anatomia, na cognição e no comportamento neuromuscular de nossos ancestrais primatas em comum. Como bebês, começamos gesticulando, não falando. A origem da fala está nos gestos, segundo Fouts. Todavia, nós seres humanos desenvolvemos espetacularmente a linguagem seqüencial (verbal, linear). Essa é uma linguagem que certamente nem os chimpanzés selvagens nem nenhum outro animal além de nós conseguiu desenvolver. Em nome dessa diferença ergueremos de novo uma barreira entre nós e o mundo vivo dizendo que a linguagem verbal, linear, nos foi dada como um dom divino, nos isentando da responsabilidade da dor alheia?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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