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O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do Império português

The role of overseas Misericórdias in the formation of the Portuguese Empire

Resumos

O objetivo deste artigo é mostrar que, tal como no Portugal metropolitano, também no ultramar as Misericórdias foram instituições fundamentais como instâncias de garantia do sistema de assistência pública, instrumentos moralizadores das comunidades, núcleos de poder local e, portanto, estruturas homogeneizadoras de um império espacialmente descontínuo e com especificidades tão diversas como as que se refletem nos modelos institucionais e administrativos adotados. Analisa-se ainda os conflitos vividos pelas Misericórdias do "além-mar" ao procurarem defender o monopólio da prática da assistência, sempre com o auxílio do Estado que, assim, garantia a sua soberania sobre instituições que eram centros de efetivo poder e, por isso, assediados pelos representantes da Igreja. Contudo, nem o apoio régio seria capaz de travar o declínio das Misericórdias que, em todo o reino - à exceção do Brasil - entraram no século XVIII em declarada agonia.

império português; Misericórdias; assistência pública


The aim of this article is to show that overseas, as well as in metropolitan Portugal, the Misericórdias (Catholic lay assistance orders) were fundamental institutions, which played several relevant roles. They came to be guarantors of a public assistance system, moralizing instruments for the communities, local power nuclei and, consequently, homogenizing structures of an empire geographically discontinuous and whose specific characteristics were as varied as those found in its institutional and administrative models. This article also analyzes the conflicts that overseas Misericórdias went through when they tried to keep the monopoly of assistance activities, always with the help of the government, which could so guarantee its sovereign power over institutions that were real centers of power and, consequently, constantly beset by representatives of the Catholic Church. However, not even royal support was capable of keeping the Misericórdias from declining or starting the 18th century in death agony everywhere in the empire, but in Brazil.

Portuguese Empire; Misericórdias; Catholic lay assistance orders; public assistance


O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do Império português

The role of overseas Misericórdias in the formation of the Portuguese Empire

Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na Universidade de Los Angeles, em abril de 2000, no 23o Symposium on Portuguese Traditions.

Laurinda Abreu

Departamento de História,

Universidade de Évora, Portugal

Quinta do Vale do Grou, lote 13

2950-067 Palmela Portugal

np21hc@mail.telepac.pt

ABREU, L.: 'O papel das Misericórdias dos "lugares de além-mar" na formação do Império português'.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos,vol. VIII(3): 591-611, set.-dez. 2001.

O objetivo deste artigo é mostrar que, tal como no Portugal metropolitano, também no ultramar as Misericórdias foram instituições fundamentais como instâncias de garantia do sistema de assistência pública, instrumentos moralizadores das comunidades, núcleos de poder local e, portanto, estruturas homogeneizadoras de um império espacialmente descontínuo e com especificidades tão diversas como as que se refletem nos modelos institucionais e administrativos adotados. Analisa-se ainda os conflitos vividos pelas Misericórdias do "além-mar" ao procurarem defender o monopólio da prática da assistência, sempre com o auxílio do Estado que, assim, garantia a sua soberania sobre instituições que eram centros de efetivo poder e, por isso, assediados pelos representantes da Igreja. Contudo, nem o apoio régio seria capaz de travar o declínio das Misericórdias que, em todo o reino — à exceção do Brasil — entraram no século XVIII em declarada agonia.

PALAVRAS-CHAVE: império português, Misericórdias, assistência pública.

ABREU, L.: 'The role of overseas Misericórdias in the formation of the Portuguese Empire'.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos,vol. VIII(3): 591-611, Sept.-Dec. 2001.

The aim of this article is to show that overseas, as well as in metropolitan Portugal, the Misericórdias (Catholic lay assistance orders) were fundamental institutions, which played several relevant roles. They came to be guarantors of a public assistance system, moralizing instruments for the communities, local power nuclei and, consequently, homogenizing structures of an empire geographically discontinuous and whose specific characteristics were as varied as those found in its institutional and administrative models. This article also analyzes the conflicts that overseas Misericórdias went through when they tried to keep the monopoly of assistance activities, always with the help of the government, which could so guarantee its sovereign power over institutions that were real centers of power and, consequently, constantly beset by representatives of the Catholic Church. However, not even royal support was capable of keeping the Misericórdias from declining or starting the 18th century in death agony everywhere in the empire, but in Brazil.

KEYWORDS: Portuguese Empire, Misericórdias, Catholic lay assistance orders, public assistance.

Em agosto de 1498, alguns meses após a chegada de Vasco da Gama à Índia, nascia em Lisboa, sob a égide da proteção real, a confraria da Santa Casa da Misericórdia. Um século depois, contava-se mais de uma centena de Misericórdias espalhadas por Portugal continental, e mais de cinqüenta nos territórios ultramarinos. Ou seja, no espaço de cem anos, num tempo que foi, também, o da construção do Estado moderno e o da consolidação do império português, erguera-se uma gigantesca rede de confrarias, protegidas pela Coroa e pela casa-mãe de Lisboa, que assumiu as funções de arquiconfraria onde todas as 'filiais' iam buscar os privilégios, os poderes e até os estatutos que superintendiam sua instalação e organização nos diferentes espaços de acolhimento.

Este artigo pretende apenas reconstruir uma pequena parte desse tecido confraternal a partir da identificação do modo como as Misericórdias se implantaram no além-mar, das funções que assumiram e das relações que estabeleceram com as instituições similares. Seu principal objetivo é demonstrar que, num império espacialmente descontínuo e com especificidades tão diversas como as que se refletem nos modelos institucionais e administrativos adotados (Thomaz, 1994), as Misericórdias, a par de outras entidades, foram elementos de identidade nacional que tiveram papel importante na estruturação do império1 1 Faziam parte das estruturas de homogeneização instaladas nos espaços coloniais portugueses, para utilizar uma expressão de Joaquim Romero de Magalhães (1985), quando se refere à organização municipal ultramarina . e que, assim como participaram nas suas grandezas, haveriam de declinar com o seu ocaso.

Da fundação da Misericórdia de Lisboa à expansão das Misericórdias

Apesar dos múltiplos estudos surgidos nos últimos anos sobre Misericórdias, o processo que levou ao seu aparecimento e a forma como decorreram as suas primeiras décadas de vida continuam, nas palavras avisadas de António de Oliveira (2000), envoltos em muita névoa. Uma das poucas certezas que se tem, quanto aos seus primórdios, é a de que se formaram como associações de leigos, por leigos governadas, e a de que encontraram eco junto à Corte, a aferir-se tanto pelos privilégios e prerrogativas com que a monarquia as distinguiu, quanto pelo empenho que demonstrou, no sentido de que em todas "as cidades, vilas e lugares principais" do reino se estabelecessem idênticas confrarias (Silva, 1854, p. 318).

A rápida implantação urbana das Misericórdias e a insistência que D. Manuel I colocou no seu efetivo funcionamento — de que o exemplo da Santa Casa do Porto é paradigmático (Basto, 1934, p. 235) —, explicitam claramente a vontade da Coroa de responder de forma organizada às necessidades assistenciais do tempo, potenciando os recursos existentes e apelando para o envolvimento dos fiéis nesse processo. Retomando um dos valores essenciais do cristianismo — o que encara a assistência como uma das mais importantes manifestações da espiritualidade —, essas novas confrarias permitiam a integração de todos os que se quisessem unir no espírito da fraternidade e que por ele se sentissem compelidos ao exercício das obras de misericórdia. Na prática, as Misericórdias primitivas estavam literalmente abertas a toda a sociedade, que, através delas, se transformava numa enorme confraria, benquista da monarquia e do papado. De tudo isso, dá conta o Livro de Registo de Irmãos, da Misericórdia de Évora, onde várias centenas de confrades se inscreveram sem outra ordem que não fosse o local de residência e a constituição do núcleo familiar.

Mas o espírito inovador dessas confrarias não se esgotava ali. Com competências tão abrangentes no campo da assistência como as que derivavam do cumprimento das 14 obras de misericórdia inscritas nos seus compromissos, e com uma composição social tão heterogênea como a que decorria do fato de não haver restrições ao ingresso de confrades, a operacionalidade das Misericórdias foi assegurada pela constituição de uma irmandade dentro da confraria.2 2 Arquivo Distrital de Évora ( doravante ADE) liv. 49. A formulação dessa conclusão surge no seguimento de uma primeira aproximação ao problema, realizada por Sousa (1999, pp. 148-9), mas nunca teria sido possível sem o avanço interpretativo feito pelo prof. António de Oliveira, a quem devo a sugestão de confirmar aquilo que lhe parecia evidente: o de estarmos perante um instituto que era, simultaneamente, confraria e irmandade. A seleção dos irmãos fazia-se entre os confrades — "título dos confrades que se fizeram irmãos"(ADE, 1499-1540, liv. 49) — e o seu número estava fixado nos estatutos, devendo ser preenchido por homens "bons e virtuosos e de boa fama". Dentre estes, se elegeriam os melhores, elite de virtudes, socialmente paritária entre os de maior e menor condição, compondo-se com ela a mesa de 13 irmãos, que tinha como missão conduzir os destinos da confraria e da irmandade.

Ainda não é possível identificar o exato momento em que as Misericórdias deixaram de ser simultaneamente irmandades e confrarias. Em 1588, quando o papa Sisto V agraciou a Misericórdia de Évora com um breve de indulgência plenária, ainda se podia ler que a graça contemplava todos os confrades, "assim homens como mulheres que verdadeiramente arrependidos e confessados entrarem na mesma confraria"(ADE, 1557-59, liv. 48, ff. 547-547v.). Mas o processo que conduziu à mudança já estava em curso e corria em simultâneo com a reestruturação da assistência pública que levaria as Misericórdias a assumirem, pela anexação dos hospitais, o controle da reformada assistência hospitalar.

O movimento de transferência dos hospitais para a tutela das Misericórdias, antecedido pela padronização hospitalar tardo-medieval, que remontava ao próprio D. Manuel I, em 1521 (Sá, 1998a, p. 49), fora implantado de forma sistemática nas terras do duque de Bragança desde 1524 (Goodolphim, 1897, pp. 187-8), e registrara um forte incentivo ao tempo de D. Henrique e D. Sebastião (Abreu, 1990, pp. 30-1). Todavia, o enquadramento jurídico das Santas Casas era agora diferente, uma vez que o concílio de Trento, ao ceder às pressões portuguesas reconhecendo as Misericórdias como instituições de "imediata proteção régia" (Bigotte, 1994, pp. 157-8), excluíra-as da alçada do Ordinário (Abreu, 2000b). O que significava que, sob o controle das Misericórdias, a assistência hospitalar escaparia ao controle da Igreja. Ao arrepio das grandes linhas programáticas conciliares, que procuraram inverter o caminho da racionalização e da laicização por onde Vives e Giginta encaminhavam a assistência, "recolocando-a" na dependência moral da Igreja (Castro, 1945, p. 362), Portugal investia num sistema assistencial próprio, centralizando vários serviços em instituições que, embora funcionassem de forma autônoma, se regiam por estatutos basicamente iguais, e que só tinham obrigação, pelo menos teórica, de prestar contas à Coroa. Tratava-se de um projeto a ser acompanhado de legislação própria, que permitiria às Misericórdias, e em geral a todos os administradores dos hospitais, a "conversão'' dos rendimentos deixados pelos crentes para a celebração das missas do Purgatório, em maior número depois de Trento, em dotações hospitalares. Garantia-se dessa forma — ainda que por caminhos escusos, mas seguramente mais pacíficos do que se tivessem assumido a forma de tributos obrigatórios às populações — o autofinanciamento dos hospitais (Abreu, 1999). 3 3 Não oferece hoje qualquer dúvida de que, ainda que indiretamente, esse sistema acabou por fazer com que as populações se responsabilizassem pelos seus pobres (ou, pelo menos, por aqueles que recorriam à assistência pública), fixando nas comunidades locais uma parte significativa da riqueza nelas gerada. Aumentada, não raras vezes, por heranças ultramarinas provenientes dos filhos da terra que, à hora da morte, faziam reverter os seus bens para as Misericórdias.

É nessa conjuntura que deve ser avaliada a grande reforma dos estatutos das Misericórdias, codificada no compromisso de 1618, que foi, sob várias perspectivas, um documento de primordial importância para essas instituições. E o foi não só porque afunilou as condições de acesso às confrarias, ampliando e depurando as segregações já impostas nos estatutos de 1577 (Sá, 1997, p. 93), mas, sobretudo, porque, contra-riando a paridade sócio-administrativa constante do compromisso inicial, oficializou a "nobilitação" da administração das Misericórdias nos dois cargos que, a par do de provedor, constituíam o núcleo gestor central: o de escrivão e o de tesoureiro.4 4 A paridade estamental mantinha-se apenas no nível dos mordomados, embora, regra geral, o irmão oficial assumisse o cargo menor de companheiro do nobre. E também porque fez desaparecer a expressão "hua irmandade e confraria" constante de todos os compromissos que o antecederam.5 5 Nomeadamente no de 1577 (ver Compromisso da Irmandade da Sancta Casa da Misericórdia da cidade de Lisboa, 1600). Doravante, as Santas Casas seriam apenas "irmandades", onde os irmãos e os confrades — um vocábulo agora despojado dos atributos de antanho —, exercitavam obras de misericórdia. Nessa altura, a maior parte dos hospitais do país já estava sob a sua administração — um processo que contou com grande empenho da parte do governo filipino —,6 6 Segundo os índices das Chancelarias Filipinas, ao tempo de Filipe I foram anexados às respectivas Misericórdias locais os hospitais de Abiul, Alenquer, Atalaia, Barreiro, Campo Maior, Cascais, Cóz, Erra, Lourinhã, Messejana, Tancos, Cela, Maiorca, Tentúgal, Vila Verde. Já no reinado de Filipe II, seriam anexados os de Alcanede, Moncarrapacho, Amarante e Ponte de Lima. Ao tempo de Filipe III, a situação mais emblemática é a de Vila Nova de Anços, que recebeu, simultaneamente, o alvará que autorizou a sua fundação e o que lhe permitiu a anexação do hospital da vila (IANT/TT, liv. 1, f. 293). e os seus gestores circulavam entre as mesas das Misericórdias e os cargos da administração pública, com particular destaque para os do poder local: num tempo de reconfiguração dos poderes, é impossível ignorar o caráter político de todas essas movimentações.7 7 Nesse sentido, à lei do poder local, de 1611, e ao Compromisso da Misercórdia de Lisboa, de 1618, deve juntar-se a análise dos novos estatutos das Ordens de Cristo, Santiago e Avis, promulgados por Filipe IV em Madri, em maio de 1627. Sobre esses últimos, ver Dutra (1999).

A criação das Misericórdias ultramarinas

A expansão da fé cristã, ou a "redução do gentio à fé católica" —8 8 Expressão recolhida no regimento dirigido ao governador e capitão geral do Estado do Brasil, em 1671 (já indicado no regimento dado ao governador de Pernambuco no ano anterior), onde o príncipe D. Pedro lembrava que a "redução do gentio" à fé católica era o principal motivo do povoamento das capitanias das terras de Vera Cruz. Cf. Manuscristos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, 1956, pp. 200-7 (Pernambuco), pp. 211- 29 (Estado do Brasil). uma das idéias legitimadoras da colonização(Godinho, 1990, pp. 84 e ss.), é uma presença recorrente em toda a documentação relativa ao império. Numa relação de causa-efeito, o sucesso econômico do em-preendimento surgia como recompensa da atuação dos monarcas no domínio espiritual — como administradores da Ordem de Cristo (Alves, 1998), alargada depois com o Padroado Régio que superintenderia toda a política eclesiástica ultramarina (Lopes, 1993) —, conforme reconhecia D. Manuel, em 1503 (Luz, 1992, p. 147), e justificava que os poderes civis e eclesiásticos fossem inseparáveis companheiros de viagem.9 9 Ver, a propósito, os discursos de Diogo do Couto e do franciscano Paulo da Trindade. Ainda que as observações dos dois autores se reportem ao Oriente, sabemo-las com plena aplicação para a generalidade do ultramar português (ver Boxer, 1981, p. 224).

A responsabilidade pela organização religiosa das terras conquistadas obrigava a Coroa portuguesa a financiar as estruturas eclesiásticas que se implantavam nos territórios ultramarinos, dotando igrejas paroquiais e conventos, concedendo esmolas a frades e a missionários, pagando o vencimento dos clérigos, do meirinho e do pai dos cristãos.

Sintomaticamente, nos documentos que melhor organizam essas atribuições, os Orçamentos do Estado da Índia(Matos, 1999), o título das despesas que a Coroa realizava com a Igreja inclui as verbas destinadas aos hospitais e às Misericórdias.10 10 Também presentes nos regimentos do Brasil, onde as Casas da Misericórdia e os hospitais eram recomendados ao governador, que deveria "mandar pagar as ordinárias dos seus oficiais, assim como as dívidas e legados que lhes pertencessem, para que não deixassem de cumprir as suas obrigações" ( Manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, op. cit., p. 201). Num plano simbólico, esse fato poderia significar que os hospitais e as Misericórdias mantinham ligações muito fortes com a Igreja e que os princípios que norteavam a prática da assistência continuavam imbuídos dos atributos do sagrado. Porém, uma leitura mais direta indica o que é óbvio: a monarquia tinha interesse em que houvesse Misericórdias no ultramar, caso contrário não as financiaria. E só o apoio régio ajuda a explicar a rápida disseminação dessas instituições pelos diferentes espaços do império.

A começar pelos Açores: Angra e Vila da Praia têm Misericórdias logo em 1498; Ponta Delgada, em 1500 (Correia, 1999, p. 562); Velas, em 1543; Vila Franca do Campo, Vila de São Sebastião, Vila Nova, Horta, Santa Cruz, Vila do Porto e Lajes do Pico, antes de 1570 (Sá, 1998b, p. 365); Madeira e Funchal, em 1511; Faial, em 1528; Santa Cruz (Funchal), em 1529, e outros "lugares de além", que eram, em finais de julho de 1502, Arzila, Tânger, Alcácer Ceguer e Ceuta.11 11 Todas elas recebiam uma esmola anual de vinte mil-réis e 36 arrobas de açúcar (IAN/TT, liv. 4, fl. 27). A essas juntava-se a Misericórdia de Azamor e a de Safim, talvez antes de 1520.12 12 Data em que são contempladas com, respectivamente, quatro e seis arrobas de açúcar, segundo o Regimento que D. Manuel deu aos oficiais da Casa da Mina sobre as ordinarias do açucar que havião de pagar a certos conventos, misericordias, hospitais e recolhimentos (IAN/TT, nº 16, f. 174). Esse texto permite corrigir algumas datas da criação de várias Misericórdias apresentadas por Fernando Correia, que, aliás, já chamara atenção para as imprecisões contidas no texto de Costa Goodolphim, em que se baseara, e que alguns investigadores continuam a reproduzir sem atestar a sua veracidade (o que seria evitável, em alguns casos, através da consulta das várias monografias já realizadas. Ainda que não indique o ano do seu nascimento, o documento manuelino informa que as Misericórdias de Alenquer, Crato, Castelo de Vide, Estremoz, Campo Maior, Monforte, Arronches, Moura, já existiam em 1520, sendo, portanto, bastante anteriores às datas mencionadas por Goodolphim e por aqueles que repetem as suas informações. Embarcadas na carreira da Índia a caminho do Oriente, encontramos a Misericórdia de Goa a funcionar em 1519 (IAN/TT, liv. 41, f. 75v.), e é possível atestar a sua presença em Cochim em 1527,13 13 Datada pela carta em que o seu provedor pediu ao rei que obtivesse do bispo do Funchal licença para que o capelão da confraria pudesse absolver os pobres na hora da morte dos pecados reservados (IAN/TT, parte 2, maço 145, doc. 151). a de Diu terá sido fundada em 1535 (Moura, 1905) e a de Baçaim, em 1540 (Rossa, 1999, p. 116).14 14 Em outubro de 1548, já a mesa da confraria se queixava ao rei da sua pobreza, aproveitando para pedir que lhe fossem entregues as esmolas "que muitos lhes deixavam em seus testamentos" (IAN/TT, parte 1, maço 81, doc. 72). Na década seguinte, o Tombo da Índia de Simão Botelho referia já a existência de Misericórdias em Malaca,15 15 A sua não inclusão nos orçamentos posteriores deve-se ao fato de a Misericórdia não receber qualquer verba do Estado, conforme Felner (1868). em plena atividade já em 1547, se acreditarmos em Pinto (1985, p. 644),16 16 Aliás, às palavras de Romero de Magalhães (1994, p. 72), de que "parece que Fernão Mendes Pinto não pode dispensar o quadro político e social do município para nos contar as suas aventuras", acrescentaríamos: nem as estruturas que enquadravam a organização da assistência. Senão, veja-se o relato que Fernão Mendes Pinto (1985, p. 240) faz dos "homes honrados" que lhe prestaram assistência em Nanquim. Ormuz,17 17 Despesa não referida no orçamento de 1581 transcrito por Matos (1982). Chaul e Cananor (Santos, 1995). Pouco depois, o Orçamento do Estado da Índia de António de Abreu dava conta de que a recém-conquistada praça de Damão fundara a sua Misericórdia.18 18 Mas exclui, no entanto, a Misericórdia de Cananor (ver Aubin, 1959). Num futuro muito próximo, todas as Misericórdias do Estado da Índia seriam colocadas sob a "proteção" e controle da de Goa, que parece ter estendido seu raio de ação às Santas Casas de "Bengala, Colombo, Jafanapatão, Mahim, Manar, Mangalor, Manila, Mascate, Mombaça, Moçambique, Negapatão, Onor, Suma, Taná, São Tomé e Trapor" (Moura, 1905, p. 197). Mas, talvez não tenha estendido à de Macau — criada em 1569 pelo bispo jesuíta D. Belchior Carneiro19 19 Ver IV centenário da Santa Casa da Misericórdia de Macau, 1569-1969. Macau, Ed. da Provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Macau, 1969. — como pretende o autor que identifica as "filiais" da Misericórdia de Goa, nem às do Japão,20 20 E muito menos à da cidade de Liampó, situada algures na longínqua costa da China, onde, entre os dois hospitais e a Misericórdia, Fernão Mendes Pinto (op. cit., p. 699) fazia despender mais dinheiro do que a totalidade das verbas que os orçamentos quinhentistas distribuíam por todos os hospitais e Misericórdias do Estado da Índia. onde, em 1561, se encontra uma confraria de Misericórdia em Funai, outra no ano seguinte na localidade de Hirado, em 1583 e 1584, respectivamente, em Nagasaki e Shimabara, e, em 1600, em Kyoto (Kataoka, 1998).

No outro extremo do império, no Brasil, a Misericórdia de São Salvador da Bahia surgira, provavelmente, em 1542, seguida da de Santos, talvez, em 1543 (Pinto, 1958, p. 25), e da do Rio de Janeiro, menos de duas décadas depois. Em 1584, segundo o testemunho do padre Anchieta, já havia Misericórdias em todas as capitanias brasileiras(Harold e Nizza da Silva, 1986, pp. 531-2). Nas ilhas de Cabo Verde nascera, em meados deste mesmo século XVI, a de Santiago, e, em 1576, a Misericórdia de Luanda marcava a chegada das Misericórdias a Angola (Brásio, 1959).

Os tempos e os agentes da fundação das Misericórdias do império

Ainda que as informações disponíveis não sejam suficientes para elaborar uma síntese sobre o movimento de fundação das Misericórdias no além-mar, já há alguns elementos que permitem avançar no trabalho, nomeadamente no que diz respeito à sua chegada aos novos territórios. Assim, e numa visão global, constata-se que, apesar de terem sido criadas em tempos muito próximos, a sua implantação obedeceu a dois modelos distintos: o que foi seguido nas ilhas atlânticas, Norte de África e Oriente, e o que foi posto em prática no Brasil e na costa africana. No primeiro caso, o processo que levou à criação das Misericór-dias é praticamente coevo do seu aparecimento na metrópole ou, como aconteceu na Índia, acompanhou a "instalação" dos portugueses nesses espaços ainda tão mal dominados. Pelo contrário, no segundo caso, só depois de os territórios terem sido valorizados e economicamente rentabilizados, com conseqüente implantação de uma estrutura administrativa e institucional, é que se fundaram as Misericórdias.

O melhor exemplo desse modelo é dado pela Misericórdia cabo-verdiana da Ribeira Grande, onde o povoamento sistemático e o incremento da exploração econômica remontam a 1462, a formação do município data dos finais de quatrocentos, e a Misericórdia surge em meados do século XVI.21 21 Pode ser acompanhado em Albuquerque (1991, pp. 41-123). E, mesmo assim, só duas décadas volvidas é que receberia os privilégios que garantiriam o seu 'normal' funcionamento: o que autorizava o seu escrivão a fazer sinal público (IAN/TT, liv. 11, f. 52, 8.7.1575), o que obrigava os tabeliões das justiças e do judicial e todos os testamenteiros da cidade e ilha a apresentar-lhe, no prazo de trinta dias, os testamentos em que a insti-tuição fosse contemplada, o que isentava os irmãos do acompanha-mento das procissões que se realizassem na cidade, o que os libertava das penas pecuniárias em caso de condenação32 32a 32b É conhecido o testemunho de Pietro della Valle, datado de 1623, que apresenta as Misericórdias que encontra no império português como detentoras do monopólio da prática da assistência ( apud Sá, 1997, p. 158). , o que os isentava da prestação de contas ao provedor da Comarca. A esses juntar-se-iam ainda uma série de outros privilégios comuns à generalidade das Misericórdias, destacando-se entre eles o direito de precedência no açougue local e o monopólio da prestação de assistência aos condenados a degredo que não tivessem posses para se sustentar (idem, f. 50v, 6.7.1575, f. 51v, 8.7.1575 e 5.7.1575, ff. 52-52v, 10.7.1575, f. 50, 9.7.1575).

Ainda que sem suporte documental seguro que permita exemplificar a situação, não há dúvida de que o processo de implantação das Misericórdias no Brasil não diferiu do de Cabo Verde, sendo mesmo possível acompanhar a fundação das Misericórdias, à medida que, mercê da intervenção régia, o território se organizou e desenvolveu a partir da Bahia, que é, aliás, o caso que melhor exemplifica o que foi dito: primeiro foram criadas as estruturas políticas, econômicas e sociais, que fizeram de São Salvador o centro político-administrativo, e depois apareceu a Misericórdia (Ott, 1960).

A lógica que se pressente nesses dois modelos, particularmente visível no segundo, que é contemporâneo da mudança de rumo da política ultramarina da Coroa portuguesa, então em pleno processo de "atlantização" (na designação de Mauro, 1989), suscita uma questão que lhe é conexa que é a de saber quais foram os responsáveis pela criação dessas Misericórdias. A resposta é simples, e a mesma para o ultramar e para a metrópole: se, de fato, as Misericórdias eram confrarias de leigos, criadas por leigos, na sua retaguarda esteve a Coroa. Se não diretamente, por interposta pessoa: o vice-rei Afonso de Albuquerque, na de Goa; o governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, na da Bahia;22 22 No campo das hipóteses, mas de fácil aceitação, Ott (1960, pp. 17-8) afirma que Tomé de Sousa terá chamado os homens mais importantes da sua armada que ali pretendiam se estabelecer para, sob a direção do padre Manuel da Nóbrega, fundarem a Misericórdia, dando preferência aos que já pertenciam à Santa Casa do Reino e escolhendo entre estes o provedor, o tesoureiro, o escrivão e alguns mesários. o primeiro governador de Angola, Paulo Dias de Novais, na de Luanda. Poder-se-á argumentar que a criação das Misericórdias de Macau e de Santiago foram obra de bispos. É verdade, como também não é menos correto que eram bispos nomeados pelo Padroado Régio, atuando sob as ordens do monarca.23 23 O bispo de Macau, apoiante de Filipe I, além do hospital e da Misericórdia, terá construído um hospício para leprosos e a ermida consagrada a Nossa Senhora da Esperança. ( IV centenário da Santa Casa da Misericórdia de Macau.op.cit.). O bispo de Santiago, d. frei Francisco da Cruz, foi o "responsável pela construção da Sé, Casa da Misericórdia e Paço Episcopal" ( Albuquerque p. 123).

É nessa perspectiva que deve ser explicada a centralidade da Misericórdia de Goa,24 24 Não consta que o reordenamento político do Estado da Índia operado ao tempo de d. Sebastião ou a posterior desanexação de Moçambique tivessem provocado alterações na relação das Misericórdias do Oriente com a de Goa. que assumia para com as demais Misericórdias do Estado da Índia a maior parte das funções que a de Lisboa exercia em relação às da metrópole e à Santa Casa goesa. Esse papel era justificado oficialmente em 1772 pelo fato de a Misericórdia de Goa ser "a mais antiga do Estado, e procederem dela as que posteriormente se erigiram assim como procedem da Misericordia de Lisboa as mais que se fundaram no reino". O que, lembrava o monarca, não implicava qualquer laço de dependência entre elas, "pois sendo todas as Misericordias do reino e suas conquistas da imediata proteção de Sua Majestade, e sendo separadas, distantes e independentes umas das outras, e não tendo pessoa alguma jurisdição sobre elas, não havendo maior diferença e precedência entre (elas)"(Martins, 1914, pp. 459-60).

Contudo, e ao contrário do que D. José I pretendia demonstrar, o problema não se resumia a uma questão de antiguidade. Afinal era em Goa que estava o vice-rei, e Goa era, desde a criação do arcebispado metropolitano (1557), o centro religioso do Estado da Índia, a que os outros territórios deviam obediência. Era, nesse contexto, pólo intermediário que estabelecia a ligação entre os dispersos espaços do império e Lisboa, funcionando como cabeça de uma gigantesca cadeia de delegação de poderes e privilégios que, em última instância, remetia ao rei. As atribuições que foram conferidas à Misericórdia de Goa e as relações que mantinha com os outros órgãos de representação social tinham-na transformado num centro de efetivo poder, onde a antiguidade não jogava, com certeza, o papel principal. Isso, apesar de cada uma das suas filiais representar um elo dessa enorme teia, sendo, por isso, e à sua escala, outros tantos pólos de poder.25 25 Esta consciência da sua situação de privilégio está bem patente num documento de 1771, quando os moradores de Sena, ao pretenderem reedificar a sua Misericórdia, atribuem a decadência da mesma à "negligência dos seus antecedentes e falta de conhecimento preciso das regalias e isenções, e daquele esforço que lhe deviam dar com imediata proteção de Sua Majestade os que governam esta conquista indultos que logram todas as Santas Casas de Misericórdia em os domínios da mesma Majestade" (Martins, 1914 , p. 265). E eram tão mais importantes quanto se sabia que a entrada nessas associações tinha sido condicionada por sucessivas depurações estatutárias que, desde o primeiro compro-misso impresso em 1516 até a grande reforma de 1618, foram limitando o leque dos possíveis eleitores e elegíveis, acabando por quase o circunscrever aos que possuíssem as características exigidas aos indivíduos que podiam tomar assento nos bancos do poder concelhio: gente com capacidade econômica e reconhecido prestigio social.26 26 No entanto, torna-se necessário salientar que essa convivência nem sempre foi pacífica, sobretudo quando, em comunidades de maior dimensão, o exercício do poder era disputado por mais de um grupo. Em sentido inverso, a ocupação desses lugares podia conceder o prestígio que a sociedade ainda não reconhecera: em 1752, António Varela, natural e morador em Macau, que tinha sido provido no posto de ajudante da praça da mesma cidade, pedia ao rei que lhe concedesse o privilégio "de que gozam os próprios portugueses naturais destes reinos para que possa servir todos os empregos nobres da dita cidade, tanto na Câmara como na Misericórdia" (Arquivo Histórico Ultramarino, Macau, caixa 5, doc. 35-Anterior a 1752.1.19). A dificuldade em preencher tais requisitos acabou por facilitar a constituição de um grupo que tendeu a se fechar em oligarquia dominante, com competências em dois campos complementares — da administração e da assistência concelhias — concentrando, assim, boa parte dos poderes que localmente moldavam o cotidiano das populações.27 27 Ao que parece, em Moçambique, em 1606, a Misericórdia assumiu funções de almotaçaria. A ter sido verdade, é de crer que a arrecadação das rendas daí provenientes revertesse a favor da confraria (Martins, op. cit ., vol. III, pp. 460-1). Também Moura (1905 , pp. 44-57) informa que a Misericórdia de Diu "foi a primeira corporação eletiva, com ação administrativa, que aqui houve e por privilégio real foi permitido que a Casa da Misericórdia de Diu assumisse as funções de Senado fazendo as suas vezes". Diz ainda que, depois de 1615, a Misericórdia "elegia anualmente uma Comissão de Administração de Polícia, os seus membros almotaceis faziam a vigilância da limpeza da Praça, fiscalização dos gêneros dos mercados e lojas de víveres, polícia sanitária etc.". Esperamos, no entanto, que os documentos utilizados por esses autores não tenham sofrido das mesmas deficiências interpretativas que o regimento de nomeação de Amador Gomes Raposo como provedor dos órfãos e capelas de Cabo Verde, que os autores da História Geral de Cabo Verde (cit., vol. II, p. 469) identificaram com provedor da Misericórdia. Ressalve-se, contudo, que a fonte consultada (Brásio, 1587, pp. 145-8, 27 de julho de 1587), faz uma leitura correta do documento (ver IAN/TT , liv. I, fls.182v-184). E se isso não significou, bem entendido, o encerramento dos corpos dirigentes das Misericórdias e das Câmaras a outras elites, particularmente desejadas quando se movimentavam nos escalões mais elevados do poder (Martins, 1914; Sá, 1997; A. J. R., 1968), em termos gerais assistiu-se a um cerrar de fileiras por parte de um reduzido número de indivíduos que, quase sempre em alternância, pelos benefícios que daí decorriam, serviam como mesários das Santas Casas e como vereadores municipais.

Recorde-se, a propósito, que, se no Brasil a criação das primeiras Misericórdias parece ter seguido o ritmo da exploração econômica do território, em outros lugares a fundação dessas confrarias coincidiu com a conquista da capacidade representativa e interventora de um determinado grupo de homens na vida da sua comunidade. Foi o que aconteceu em Cabo Verde. Naquela ilha os armadores eram "homens poderosos" que participavam ativamente nas Câmaras das ilhas, manipulando-as em defesa dos seus interesses. Em permanente confronto com os representantes do poder central, eliminavam os que ousavam enfrentar o seu poderio econômico, acusando-os de cristãos-novos.28 28 História Geral de Cabo Verde, (op. cit., vol. I, pp. 390 e ss., vol. II, p. 232). Os armadores de Cabo Verde foram ultrapassados pelos "filhos da terra", "baços e pretos" incluídos, a quem o rei permitira que ocupassem os "ofícios do conselho da Câmara", mercê que eles de imediato "estenderam" à Misericórdia, como se tal estivesse subentendido na carta régia (Vale, 1999, p. 205).29 29 Não deixa de ser relevante o fato de esse processo correr em simultâneo com o reforço da intervenção da Coroa na administração local que conduziu à nomeação do juiz de fora em 1566.

Processo semelhante foi o de Macau, onde, logo após a constituição da Câmara, os vereadores tomaram conta da Misericórdia (IAN/TT, liv.2, f. 237v, 30.5.1560). E se aqui a confraria precedeu o município, vários são os casos em que o nascimento das Misericórdias se deu por vontade expressa dos homens "da governança", como aconteceu, por exemplo, na vila de Velas, nos Açores, em 1543 (Sá, 1997, p. 122). Um fato que, se for analisado à luz da célebre missiva que D. Manuel I dirigiu aos vereadores da cidade do Porto em 1499 — onde ficava claro que se esperava do poder local o apoio necessário à criação de confrarias iguais à de Lisboa —, nada tem de extraordinário. Pelo contrário, serve para dar ainda maior consistência à ideia de que as Misericórdias permitiram estreitar as relações entre os órgãos do poder local e a Coroa, que, apesar de nem sempre estar presente, não se escusava a acudir às "suas" confrarias quando "outros" poderes as ameaçavam, pondo em causa o poder régio. Aos casos já inventariados para a metrópole, pode juntar-se uma mão cheia de exemplos ultramarinos. Nomeadamente, quando, em novembro de 1645, o monarca admoestou o vice-rei da Índia que, segundo a queixa apresentada pelo provedor da Misericórdia de Goa, tentou imiscuir-se no governo da Santa Casa, ordenando-lhe "que nos particulares dessa casa senão intrometa, deixando-a obrar na forma que no governo dela dispõem o seu compromisso e em suas eleições" (Ayalla, 1905, pp. 285-6). Ou ainda quando, nos primeiros anos do século XVIII, e mais tarde no governo pombalino, recordou aos bispos em causa que as Misericórdias de Luanda e de Sena eram, como todas as outras, da sua imediata proteção, reafirmando aquilo que a Igreja tendia a "esquecer" com freqüência: não deveria haver lugar para mistura de jurisdições, e nas Misericórdias mandavam os mesários e o rei.30 30 Como bem sintetiza, em 1671, o regimento do governador do Brasil: "por ser conveniente que cada um se conservasse dentro dos limites da sua jurisdição, não consentiria que os eclesiásticos interviessem em qualquer assunto que lhes não dissesse estritamente respeito" ( Manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, 1956, ff. 262-9).

A assistência praticada pelas Misericórdias

Poucas confrarias tiveram estatutariamente as suas funções tão bem definidas como as Misericórdias. Poucas foram, também, aquelas que, privilegiando a assistência ao outro, mais do que aos confrades e seus familiares, ambicionaram cuidar de todos os que necessitassem de auxílio, incluindo-se aqui a ajuda espiritual consubstanciada na celebração de missas que retirariam as almas pecadoras do Purgatório. Todavia, por razões de natureza econômica e política, a maior parte das Misericórdias acabou por restringir o seu campo de intervenção aos presos, às mulheres que em situações tão diversas como a viuvez ou a orfandade se encontravam desamparadas, aos doentes e, às vezes, às crianças abandonadas. Com a sistemática anexação dos hospitais, e com os elevados custos econômicos que essa valência acarretou, as Santas Casas tenderam a circunscrever ainda mais os alvos da sua caridade. No final do século XVI, a esmagadora maioria das Misericórdias já tinha o seu futuro traçado e "hipotecado" aos doentes, embora a passagem dos hospitais para a sua tutela fosse justificada pela necessidade de as dotar com fundos que lhes permitissem cumprir as obras determinadas nos seus compromissos.31 31 Conforme se encontra bem explícito nas anexações realizadas às Misericórdias de Cascais e Tancos (IAN/TT, liv. 2, fls. 52-52v Cascais, e ff. 114v-115 Tancos).

No ultramar, no essencial, o processo não diferiu do da metrópole, apesar de se ter desenvolvido em articulação com os rumos da política nacional que, como se viu, condicionaram o movimento de instalação das Misericórdias.32b 32a 32b É conhecido o testemunho de Pietro della Valle, datado de 1623, que apresenta as Misericórdias que encontra no império português como detentoras do monopólio da prática da assistência ( apud Sá, 1997, p. 158). No Estado da Índia, nas localidades onde se erigiram Misericórdias, a administração hospitalar parece ter sido rapidamente transferida para as Santas Casas, como se depreende das informações contidas no orçamento de Simão Botelho. De fato, e destacando a especificidade de Goa, onde a gestão do Hospital Real foi repartida entre a Misericórdia e os jesuítas (Gracias, 1994) — tendo a Santa Casa criado o seu próprio "complexo" hospitalar de que fazia parte um espaço destinado "aos pobres cristãos da terra", "retirado" aos padres da Companhia de Jesus,33 33 Viram o seu hospital ser transferido para as terras de Salsete, segundo o orçamento de 1581 (Matos, op. cit. 1980), desfazendo-se, assim, a dúvida levantada por Gracias (1994, pp. 132-3). os hospícios construídos pelo arcebispo D. Fr. Aleixo de Menezes (Moura, 1905), e o hospital da Piedade —, em 1554 já encontramos as Misericórdias gerindo, para além do de Goa, os hospitais de Cochim — pelo menos desde 1543 (Vaz, 1991-92, p. 331) —, de Ormuz, de Malaca e de Chaul. É provável que também administrassem os hospitais de Baçaim e de Diu, ainda que o documento não o refira — omissão generalizada nos orçamentos seguintes —, uma vez que os Tombos seis-centistas voltam a "recolocar" os hospitais sob a alçada das Misericórdias.

Para as restantes partes do império, encontram-se notícias relativas à gestão hospitalar exercida pelas Misericórdias do Brasil em 1584 — quando a de São Salvador da Bahia se queixou ao Estado de que os cerca de três mil cruzados anuais que recebia não cobriam as despesas que tinha com os militares — confirmando, nesse sentido, a afirmação proferida nesse mesmo ano pelo padre Anchieta de que as Misericórdias eram verdadeiras unidades hospitalares, "edificadas e sustentadas pelos moradores da terra com muita devoção, em que se dão muitas esmolas, assim em vida como em morte, e se casam muitas órfãs, curam os enfermos de toda sorte e fazem outras obras pias, conforme o seu instituto e a possibilidade de cada uma e anda o regimento delas nos principais da terra" (Harold e Nizza da Silva, 1986, pp. 531-2).

Registros semelhantes surgem, pela mesma altura, para Angola — reclamando a Santa Casa de Luanda de que os duzentos mil-réis que a Fazenda Real lhe pagava para gastos no hospital eram insuficientes para fazer face a despesas orçadas entre os oito e dez mil cruzados —,34 34 Um desacerto que a levou a tentar impor um tributo extraordinário aos negros, que seria desaconselhado pelo provedor da Fazenda em Angola, Dr. Bento Teixeira de Saldanha, numa opinião secundada pelo procurador da Fazenda Real, alertando ambos para a injustiça que tal representaria sobre gente tão pobre, não havendo qualquer fundamento para "se impor um tributo com injustiça, a título de ser para uma obra de misericórdia", quando, como se sabia, a maior parte dos enfermos eram soldados. Mais misericórdia encontraram os oficiais régios quando, à queixa apresentada em 1695 contra o miserável estado do hospital e aumento das despesas "com os soldados enfermos daquela praça, e com os que vêm dos presídios de toda aquela conquista", a mesa solicitou que "lhes fosse dada em cada ano uma preferência de quinhentas cabeças de escravos, para serem arrematadas e vendidas", sendo o seu pedido deferido, por ser "aplicação tão pia e tão do serviço de Deus" (Brásio, 1959, pp. 114-8). dando conta de que as Misericórdias em questão só recentemente tinham sido imbuídas de tais atribuições. Uma asserção que tem toda razão de ser tendo em vista a situação de guerra que assolava as colônias portuguesas e que tornava imperiosa a rentabilização das condições assistenciais existentes, apelando à generosidade dos crentes no momento em que procuravam proteger a sua alma através dos sufrágios perpétuos que as Misericórdias prometiam celebrar. Ainda que referente a outro quadrante geográfico, o caso de Ceuta é elucidativo do que se acaba de dizer: o processo tendente à construção de um hospital, desencadeado em 1593 pela Misericórdia em cumprimento de uma ordem régia (Rio, 1996, p. 324), foi acompanhado por um imediato aumento de doações testamentárias que repartiam os bens entre as missas pelas almas do Purgatório e a cura dos enfermos hospitalizados.35 35 Segundo Serrão (1987, pp. 401-3), logo nesse mesmo ano, o monarca dotou o hospital com uma tença perpétua de quatrocentos mil-réis (carta de Filipe II aos governadores, São Lourenço, 27.9.1593, Biblioteca da Marquesa de Cadaval, Muge, 795 A. 85).

O que começa por distinguir as Misericórdias ultramarinas das da metrópole é o fato de que, enquanto no continente a administração hospitalar se tornava eixo central na vida dessas instituições, transformando-as nas principais gestoras dos bens do Purgatório,36 36 Ainda que os contratos com a assistência aos militares tivessem arruinado muitas Misericórdias, conforme se pode confirmar em vários estudos monográficos que têm surgido. nos "lugares de além" — pelo menos na Índia —, como os hospitais inicialmente serviam sobretudo aos militares, as Misericórdias assumiram a sua responsabilidade em sistema de prestação de um serviço público que, como tal, lhes era remunerado — como fica bem explícito nas contas de Cochim, em 1554, quando se informa que "por ese trabalho lhe (provedor e irmãos da Santa Misericórdia) pagam seus soldos e mantimentos". Função que era claramente diferenciada da sua vocação de instituições de "solidariedade social" eminentemente civil e que lhe era reconhecida através da atribuição de "esmolas" a serem repartidas pelos seus pobres: segundo o orçamento de Simão Botelho, a Misericórdia de Goa recebia, para esse efeito, 540 mil-réis;37 37 Valor que baixa substancialmente no orçamento seguinte, mantendo-se depois até 1611, assim como o de Ormuz e Cochim, segundo a ' Relação do rendimento e despesas de todo o estado da India com outras advertencias de muita conçideração tocantes ao serviço de Sua Magestade', existente na Biblioteca Pública de Évora. (BPE). a de Ormuz, 180 mil-réis; a de Cochim, 108 mil-réis; a de Diu, 69 120 réis; a de Chaul, 86 400 réis; e a de Baçaim, 79 200 réis. Incomparavelmente superiores, as verbas canalizadas para os hospitais dão conta da entrega de mais de 1 500$000 réis para a gestão do de Goa, oitocentos mil-réis para o de Malaca, mais de seiscentos mil-réis para o de Ormuz, mais de quatrocentos mil-réis para o de Chaul trezentos-mil réis para o de Cochim, mais um conto de réis para o de Diu, perto de seiscentos-mil réis para o de Baçaim. "Às vezes mais, às vezes menos, segundo sam as naus", as necessidades dos portugueses assistidos, e "aquilo que o provedor e irmãos da Misericórdia pedirem pera guasto d'iso".

Uma análise comparativa aos Orçamentos da Índia de 1554, 1571, 1574, 1581, 1607, 1611-12, 162038 38 Não é possível saber quanto lhes cabia por volta de 1620, uma vez que as despesas não aparecem discriminadas nesse orçamento. Apesar de tudo, os valores mantêm-se elevados: uma receita de 1.082.466 xerafins para uma despesa de 1.061.235 xerafins (BPE, CV/2-7, f. 45-7v). e 1688 permite concluir que entre 1554 e 1581 não se verificaram alterações substantivas nas verbas destinadas às Misericórdias e aos hospitais, exceto o de Goa, que terminou o século XVI com dotação superior a dois contos de réis — embora as de 1554 já refletissem os gastos provocados pelo cerco de Diu, por exemplo, no hospital de Baçaim e no de Chaul. Apesar das fragilidades desses documentos, pode-se concluir que as despesas com a assistência pouco ultrapassavam os 3% das receitas e das despesas.

Dobrado o século, e pelas razões conhecidas, a situação alterou-se radicalmente: a distinção entre Misericórdias e hospitais é cada vez mais tênue, e as verbas despendidas passaram a representar cerca de 11% das receitas do Estado da Índia e 17% das suas despesas,39 39 O que não é fácil de avaliar, dada a imprecisão das verbas envolvidas, sendo freqüente a indicação de que as mesmas poderão ser aumentadas sempre que as despesas o justificarem: em 1607, para uma receita de 217 milhões de réis, e uma despesa de duzentos milhões de réis, o dinheiro atribuído às Misericórdias e aos hospitais ultrapassou os quarenta milhões de réis. (Silva, 1977). valor que baixou inevitavelmente nos anos seguintes, regressando à casa dos 3% na década de 1680.40 40 Precisamente quando a receita subira aos 799 407$309 réis e a despesa a 868 571$150 réis (IAN/TT, t. 3 E caixa 6, ff. 228-76). Esmolas "oficiais", no caso das Misericórdias, o seu real valor só poderá ser analisado quando se souber a sua representatividade no orçamento de cada uma das instituições mencionadas. Só depois se poderá fazer uma correta avaliação do papel social desempenhado pelas Santas Casas ultramarinas nos "diferentes espaços do império".

O relacionamento das Misericórdias com as outras instituições

A prosperidade econômica decorrente da situação de monopólio da assistência, sobretudo quando incluía os hospitais, foi tenazmente defendida pelos gestores das Misericórdias que, a todo custo, tentaram evitar a concorrência não só de entidades ligadas à Igreja como até de outras Misericórdias. Do Brasil a Goa, nem os argumentos dirimidos nem os objetivos que se pretendiam alcançar diferiam no essencial.

E, se no que concerne à Igreja, de início, não deveria haver lugar para o confronto de interesses, uma vez que a Igreja privilegiava o trabalho missionário e a prestação de cuidados espirituais — que ora se dividia ora se complementava pela ação do clero secular e das ordens religiosas —, enquanto as Misericórdias se concentravam sobretudo na assistência física, "reservando" os cuidados espirituais às almas dos defuntos, a partilha das doações pias e a prestação dos serviços funerários acabaram por funcionar como focos de contencioso permanente, especialmente problemáticos quando os agentes religiosos se organizavam em confrarias e tentavam conquistar o espaço das Santas Casas.

A abundante documentação apresentada por Rocha (1973) ilustra bem a dificuldade de relacionamento da Misericórdia de Goa com os representantes da Igreja e com as confrarias por eles promovidas. E se os jesuítas se apresentaram, desde a primeira hora, como seus potenciais concorrentes, também os dominicanos enfrentaram a Santa Casa, conseguindo, inclusive, alcançar, em 1596, um breve em que Roma, contradizendo decisões recentes (1593), terminava com o monopólio da Misericórdia na realização dos enterros. Nesse jogo de forças, que se arrastou nas décadas seguintes, a Misericórdia acabou por sair vencedora, como dá conta a carta que, em 1630, o procurador da mesma Ordem de São Domingos, frei Manuel do Rosário, enviou ao rei solicitando autorização para que os irmãos das Misericórdias do Estado da Índia também pudessem servir na confraria de Nossa Senhora do Rosário. O monarca anuiu, depois de consultar a Misericórdia de Lisboa, mas recordava "que nas confrarias do Rosario se não exercite nenhuma das obras em que se emprega a Misericordia".41 41 Idêntico pedido tinha sido realizado dois anos antes para a localidade de Machão (IAN/TT, liv. 26, fls. 66v-67 e 94). Contudo, o que aqui estava verdadeiramente em causa — e é por isso que esse processo merece especial relevo — era a defesa da jurisdição civil diante das constantes ameaças do poder eclesiástico, bem mais preocupantes desde a chegada dos missionários diretamente dependentes da Congregação Romana de Propagande Fide, recentemente criada na Santa Sé (1622), que, por diversas formas, tentavam fragilizar a autoridade do Padroado português.

Mas, se em Goa a Misericórdia procurou afastar todas as instituições que pudessem prejudicar os seus rendimentos e limitar o seu raio de ação, na África e no Brasil, os conflitos mais importantes de que há registro foram protagonizados por Misericórdias já instaladas que tentaram evitar o surgimento de novas Santas Casas e a conseqüente partilha das esmolas dos fiéis. Em Angola, o destaque vai para a Misericórdia de Massangano, criada em finais de 1660, que contou, desde logo, com a fortíssima oposição da Misericórdia de Luanda, que não a poupa nos "elogios" quando a ela se refere nas missivas que envia ao rei: "uns ruins moradores do presídio de Massangano, que se intitula vila sem V. Majestade o haver por bem, haviam feito naquele sítio Casa de Misericórdia só a fim de lhe tirar as esmolas que por aquela conquista se dão, com que se curam e conserva a desta cidade".

Inquiridos sobre o caso, os poderes instituídos — governador e Câmara Municipal — tomaram o partido da Misericórdia de Luanda e aconselharam o encerramento da "concorrente" pelas razões que já eram conhecidas: perder as esmolas daquela vila, "que eram consideráveis", escreve o governador, seria retirar à Santa Casa Luandense uma fatia importante da sua capacidade de intervenção social.42 42 A Câmara apelida os de Massangano de "revéis" e aconselha o rei a desfazer a povoação mantendo apenas o presídio com os seus soldados e enviando os moradores para Luanda.

Defenderam-se os mesários da novel Misericórdia informando que o seu objetivo era apenas assistir os necessitados da terra à custa das esmolas locais. Um ato louvável, segundo os próprios, uma vez que Luanda não prestava o necessário auxilio aos seus duzentos vizinhos e mais de mil almas brancas. Contudo, haveriam de cometer um erro gravíssimo na sua exposição ao confessarem que tinham fundado a confraria com a licença do Ordinário e só então solicitavam a confirmação régia. Foi quanto bastou à vereação e ao procurador da Coroa para os acusar de usurpadores da autoridade real, que, em 1662, os intima a cerrarem as portas. Em boa hora desobedeceram, a fazer fé na documentação subseqüente, uma vez que, pouco depois, o poder central agradecia a ação humanitária da Santa Casa de Massangano, durante a guerra com os holandeses (Brásio, 1959).

Exemplos idênticos a esse encontram-se no Brasil, estando melhor documentado o processo desencadeado, em 1748, pela Misericórdia de Olinda (Guerra, 1969, p. 61) contra a criação da Santa Casa do Recife. Contudo, tal como nos demais casos conhecidos, também o projeto da Misericórdia do Recife haveria de vingar.43 43 Aliás, o fato de já possuírem os terrenos para a construção da sua sede, doados para esse fim em 1684 pelo governador de Pernambuco, D. João de Sousa, deu força ao seu protesto junto do rei, que acompanharam com a recomendação de que a Coroa não só deveria deferir a sua pretensão, como apoiá-la economicamente (Guerra, 1969, p. 112). Um processo que, contudo, deverá ser analisado no contexto mais amplo que é o da própria autonomização do Recife. Sem querer subestimar o fato de algumas comunidades terem plena consciência de que a estrutura assistencial que as servia já não se ajustava aos tempos correntes, sendo necessário alterá-la, é indiscutível que essa questão só poderá ser devidamente avaliada se for sociopoliticamente contextualizada. Aliás, nenhum caso é tão elucidativo desse fato como o Brasil, onde se assistiu a um movimento fundacional ao longo do século XVIII, que acompanha pari passer os ritmos do seu desenvolvimento econômico e social. 44 44 Como acontece em Minas Gerais, só para mencionar um caso, onde ao longo do Setecentos são criadas as Misericórdias de Ouro Preto, Vila Rica e Vila de São João d'el-Rei. (Boschi, 1998).

Todavia, na esmagadora maioria dos casos, não se poderá esquecer que, sendo recorrentes ao longo da vida das Misericórdias, a situação de conflito dentro e fora das confrarias, tendeu a agudizar-se à medida que os problemas financeiros se acentuavam— o que aconteceu a partir dos finais da centúria de Seiscentos, agravando-se no começo do século XVIII, todo ele ensombrado pelo espectro da drástica diminuição das doações pias e pelos Breves de Redução e Perdão, sendo impossível ignorar a reciprocidade entre esses dois elementos (Abreu, 2000b). Esse movimento foi, simultaneamente, acompanhado pelo aumento das despesas hospitalares, a que se juntaram as dívidas crônicas e as acusações de irregularidades administrativas.

Os resultados da combinação desses fatores foram os mesmos em quase todo o Reino. No continente, os exemplos de agonia das Misericórdias são quase tantos quantas as monografias que vão trazendo à luz os seus espólios arquivísticos. No Brasil, a Misericórdia da Bahia definhava devido aos problemas financeiros provocados pelos empréstimos ruinosos que sucessivas administrações tinham realizado em benefício próprio ou dos que lhe eram próximos (Ott, 1960, pp. 216-21). Em Luanda, a concorrência da Misericórdia de Massangano apenas piorara o que era uma situação calamitosa. Os moradores recusavam-se a servir a instituição, e o bispo da diocese aproveitava o momento para estender até ela o seu poder.45 45 Como dá conta o padre Brásio (op. cit., pp. 122, 126 e ss). Atente-se especialmente no testemunho do conde do Lavradio, também governador e ouvidor de Angola, que critica "os desmanchos e irregularidades com que se administram os bens da Casa, e da mesma forma se assistiam aos enfermos, sem consciência nem zelo, erro já mui antigo, e inveterado." Os soldados queixavam-se dos maus-tratos e da fome que passavam no hospital, que se refletiam nos elevados índices de mortalidade. Só a ameaça de perderem o controle a favor dos jesuítas travou, ainda que apenas por uns tempos, a ruína da confraria. Por seu turno, a própria Misericórdia de Massangano, também ela reduzida a hospital militar, sentia os mesmos problemas, agravados pelo isolamento da povoação, que fazia com que não houvesse médicos ou cirurgiões dispostos a servi-la.

Do lado do Índico, em Moçambique, à queixa da Misericórdia de que o Senado da Câmara deixara de estar presente na festa do dia 2 de julho, consagrado a Nossa Senhora da Visitação, respondia o capitão geral, em 10 de junho de 1776, que tal só se verificava pelo "total desprezo em que se achava esta casa da Misericórdia, não havendo quem pugnasse não só pela autoridade dos seus cultos, mas nem ainda pelo público dos seus santos oficios".46 46 Relevante, nessa missiva, a promessa que o capitão faz à confraria: "verão que os senados não faltarão daqui em diante em ir assistir e autorizar a festividade de Nossa Senhora da Visitação". E na carta que remete ao Senado avisa que a participação na referida festividade era obrigação que lhe estava superiomente acometida (Martins, op. cit . vol. III, pp. 457-8). Mais longe, no ambiente de decadência que caracterizava o império do Oriente, é bem conhecido o caso de Goa, onde a crise começou cedo e se refletiu nas crescentes dificuldades em encontrar quem quisesse assumir o lugar de provedor. Em Diu, em 1765, é sem qualquer surpresa, que encontramos a Misericórdia "em precipitada ruina", reduzida, em 1784, a uma receita de 16 mil xerafins. Afinal, aqueles que ela servia — as "viúvas de portugueses aqui falecidos, os seus órfãos, , a mendicidade cristã" — tinham-se extinto com o desaparecimento da última família européia. E "os naturais da terra", a quem agora prestava assistência, não se mostravam particularmente generosos com a Santa Casa (Moura, 1905, p. 52). Esse era, na verdade, um comportamento comum à maioria das Misericórdias do Reino.

Em síntese, criadas há quinhentos anos à sombra da monarquia portuguesa, as Misericórdias ajudaram a construir a imagem que Portugal quis deixar no Império. À parte as diferenças resultantes das especificidades locais a que tiveram de se adaptar, todas elas transportaram consigo os ideais religiosos legitimadores da colonização a que davam corpo através das 14 obras de misericórdia. Ao reproduzirem os modelos de funcionamento da própria sociedade portuguesa, as Misericórdias ultramarinas reforçavam a eficácia que o poder político pretendia imprimir à sua atuação. Muitas delas, ao sobreviverem à queda do império, haveriam de perpetuar alguns dos valores que tinham fundamentado o seu aparecimento. Afinal, como afirmavam os habitantes de Sena, em Moçambique, em 1771, as "colônias católicas não podem existir sem se exercitarem nelas as obras de Misericórdia pelos fiéis de Deus na observância dos indispensáveis compromissos".47 47 Também ela em plena recuperação nos finais do século XVIII, "considerada a necessidade que havia da mesma Casa na referida Vila" ( Arquivo das Colónias, jul.-dez. 1917, vol. 1, pp. 263-88). Estudá-las é a melhor homenagem que os historiadores lhes podem prestar.

NOTAS

FONTES ARQUIVÍSTICAS

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IAN/TT, Chancelaria de D. Filipe I, liv.2, ff. 52-52, 114v-115.

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Manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, Acta Universitatis Conimbrigenses, vol. 1. Coimbra, 1956

Recebido para publicação em junho de 2000.

Aprovado para publicação em outubro de 2000.

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  • Vaz, Miguel, 1991-92 Documentação para a história das missões do Padroado Português do Oriente, ed. António da Silva Rego, Fundação Oriente/CNCDP, vol. II.
  • 1
    Faziam parte das estruturas de homogeneização instaladas nos espaços coloniais portugueses, para utilizar uma expressão de Joaquim Romero de Magalhães (1985), quando se refere à organização municipal ultramarina
    .
  • 2
    Arquivo Distrital de Évora ( doravante ADE) liv. 49. A formulação dessa conclusão surge no seguimento de uma primeira aproximação ao problema, realizada por Sousa (1999, pp. 148-9), mas nunca teria sido possível sem o avanço interpretativo feito pelo prof. António de Oliveira, a quem devo a sugestão de confirmar aquilo que lhe parecia evidente: o de estarmos perante um instituto que era, simultaneamente, confraria e irmandade.
  • 3
    Não oferece hoje qualquer dúvida de que, ainda que indiretamente, esse sistema acabou por fazer com que as populações se responsabilizassem pelos seus pobres (ou, pelo menos, por aqueles que recorriam à assistência pública), fixando nas comunidades locais uma parte significativa da riqueza nelas gerada. Aumentada, não raras vezes, por heranças ultramarinas provenientes dos filhos da terra que, à hora da morte, faziam reverter os seus bens para as Misericórdias.
  • 4
    A paridade estamental mantinha-se apenas no nível dos mordomados, embora, regra geral, o irmão oficial assumisse o cargo menor de companheiro do nobre.
  • 5
    Nomeadamente no de 1577 (ver
    Compromisso da Irmandade da Sancta Casa da Misericórdia da cidade de Lisboa, 1600).
  • 6
    Segundo os índices das Chancelarias Filipinas, ao tempo de Filipe I foram anexados às respectivas Misericórdias locais os hospitais de Abiul, Alenquer, Atalaia, Barreiro, Campo Maior, Cascais, Cóz, Erra, Lourinhã, Messejana, Tancos, Cela, Maiorca, Tentúgal, Vila Verde. Já no reinado de Filipe II, seriam anexados os de Alcanede, Moncarrapacho, Amarante e Ponte de Lima. Ao tempo de Filipe III, a situação mais emblemática é a de Vila Nova de Anços, que recebeu, simultaneamente, o alvará que autorizou a sua fundação e o que lhe permitiu a anexação do hospital da vila (IANT/TT, liv. 1, f. 293).
  • 7
    Nesse sentido, à lei do poder local, de 1611, e ao Compromisso da Misercórdia de Lisboa, de 1618, deve juntar-se a análise dos novos estatutos das Ordens de Cristo, Santiago e Avis, promulgados por Filipe IV em Madri, em maio de 1627. Sobre esses últimos, ver Dutra (1999).
  • 8
    Expressão recolhida no regimento dirigido ao governador e capitão geral do Estado do Brasil, em 1671 (já indicado no regimento dado ao governador de Pernambuco no ano anterior), onde o príncipe D. Pedro lembrava que a "redução do gentio" à fé católica era o principal motivo do povoamento das capitanias das terras de Vera Cruz. Cf.
    Manuscristos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, 1956, pp. 200-7 (Pernambuco), pp. 211- 29 (Estado do Brasil).
  • 9
    Ver, a propósito, os discursos de Diogo do Couto e do franciscano Paulo da Trindade. Ainda que as observações dos dois autores se reportem ao Oriente, sabemo-las com plena aplicação para a generalidade do ultramar português (ver Boxer, 1981, p. 224).
  • 10
    Também presentes nos regimentos do Brasil, onde as Casas da Misericórdia e os hospitais eram recomendados ao governador, que deveria "mandar pagar as ordinárias dos seus oficiais, assim como as dívidas e legados que lhes pertencessem, para que não deixassem de cumprir as suas obrigações" (
    Manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, op. cit., p. 201).
  • 11
    Todas elas recebiam uma esmola anual de vinte mil-réis e 36 arrobas de açúcar (IAN/TT, liv. 4, fl. 27).
  • 12
    Data em que são contempladas com, respectivamente, quatro e seis arrobas de açúcar, segundo o
    Regimento que D. Manuel deu aos oficiais da Casa da Mina sobre as ordinarias do açucar que havião de pagar a certos conventos, misericordias, hospitais e recolhimentos (IAN/TT, nº 16, f. 174). Esse texto permite corrigir algumas datas da criação de várias Misericórdias apresentadas por Fernando Correia, que, aliás, já chamara atenção para as imprecisões contidas no texto de Costa Goodolphim, em que se baseara, e que alguns investigadores continuam a reproduzir sem atestar a sua veracidade (o que seria evitável, em alguns casos, através da consulta das várias monografias já realizadas. Ainda que não indique o ano do seu nascimento, o documento manuelino informa que as Misericórdias de Alenquer, Crato, Castelo de Vide, Estremoz, Campo Maior, Monforte, Arronches, Moura, já existiam em 1520, sendo, portanto, bastante anteriores às datas mencionadas por Goodolphim e por aqueles que repetem as suas informações.
  • 13
    Datada pela carta em que o seu provedor pediu ao rei que obtivesse do bispo do Funchal licença para que o capelão da confraria pudesse absolver os pobres na hora da morte dos pecados reservados (IAN/TT, parte 2, maço 145, doc. 151).
  • 14
    Em outubro de 1548, já a mesa da confraria se queixava ao rei da sua pobreza, aproveitando para pedir que lhe fossem entregues as esmolas "que muitos lhes deixavam em seus testamentos" (IAN/TT, parte 1, maço 81, doc. 72).
  • 15
    A sua não inclusão nos orçamentos posteriores deve-se ao fato de a Misericórdia não receber qualquer verba do Estado, conforme Felner (1868).
  • 16
    Aliás, às palavras de Romero de Magalhães (1994, p. 72), de que "parece que Fernão Mendes Pinto não pode dispensar o quadro político e social do município para nos contar as suas aventuras", acrescentaríamos: nem as estruturas que enquadravam a organização da assistência. Senão, veja-se o relato que Fernão Mendes Pinto (1985, p. 240) faz dos "homes honrados" que lhe prestaram assistência em Nanquim.
  • 17
    Despesa não referida no orçamento de 1581 transcrito por Matos (1982).
  • 18
    Mas exclui, no entanto, a Misericórdia de Cananor (ver Aubin, 1959).
  • 19
    Ver
    IV centenário da Santa Casa da Misericórdia de Macau, 1569-1969. Macau, Ed. da Provedoria da Santa Casa da Misericórdia de Macau, 1969.
  • 20
    E muito menos à da cidade de Liampó, situada algures na longínqua costa da China, onde, entre os dois hospitais e a Misericórdia, Fernão Mendes Pinto (op. cit., p. 699)
    fazia despender mais dinheiro do que a totalidade das verbas que os orçamentos quinhentistas distribuíam por todos os hospitais e Misericórdias do Estado da Índia.
  • 21
    Pode ser acompanhado em Albuquerque (1991, pp. 41-123).
  • 22
    No campo das hipóteses, mas de fácil aceitação, Ott (1960, pp. 17-8) afirma que Tomé de Sousa terá chamado os homens mais importantes da sua armada que ali pretendiam se estabelecer para, sob a direção do padre Manuel da Nóbrega, fundarem a Misericórdia, dando preferência aos que já pertenciam à Santa Casa do Reino e escolhendo entre estes o provedor, o tesoureiro, o escrivão e alguns mesários.
  • 23
    O bispo de Macau, apoiante de Filipe I, além do hospital e da Misericórdia, terá construído um hospício para leprosos e a ermida consagrada a Nossa Senhora da Esperança. (
    IV centenário da Santa Casa da Misericórdia de Macau.op.cit.). O bispo de Santiago, d. frei Francisco da Cruz, foi o "responsável pela construção da Sé, Casa da Misericórdia e Paço Episcopal" (
    Albuquerque p. 123).
  • 24
    Não consta que o reordenamento político do Estado da Índia operado ao tempo de d. Sebastião ou a posterior desanexação de Moçambique tivessem provocado alterações na relação das Misericórdias do Oriente com a de Goa.
  • 25
    Esta consciência da sua situação de privilégio está bem patente num documento de 1771, quando os moradores de Sena, ao pretenderem reedificar a sua Misericórdia, atribuem a decadência da mesma à "negligência dos seus antecedentes e falta de conhecimento preciso das regalias e isenções, e daquele esforço que lhe deviam dar com imediata proteção de Sua Majestade os que governam esta conquista indultos que logram todas as Santas Casas de Misericórdia em os domínios da mesma Majestade" (Martins, 1914
    , p. 265).
  • 26
    No entanto, torna-se necessário salientar que essa convivência nem sempre foi pacífica, sobretudo quando, em comunidades de maior dimensão, o exercício do poder era disputado por mais de um grupo. Em sentido inverso, a ocupação desses lugares podia conceder o prestígio que a sociedade ainda não reconhecera: em 1752, António Varela, natural e morador em Macau, que tinha sido provido no posto de ajudante da praça da mesma cidade, pedia ao rei que lhe concedesse o privilégio "de que gozam os próprios portugueses naturais destes reinos para que possa servir todos os empregos nobres da dita cidade, tanto na Câmara como na Misericórdia" (Arquivo Histórico Ultramarino,
    Macau, caixa 5, doc. 35-Anterior a 1752.1.19).
  • 27
    Ao que parece, em Moçambique, em 1606, a Misericórdia assumiu funções de almotaçaria. A ter sido verdade, é de crer que a arrecadação das rendas daí provenientes revertesse a favor da confraria (Martins, op. cit
    ., vol. III, pp. 460-1). Também Moura (1905
    , pp. 44-57) informa que a Misericórdia de Diu "foi a primeira corporação eletiva, com ação administrativa, que aqui houve e por privilégio real foi permitido que a Casa da Misericórdia de Diu
    assumisse as funções de Senado fazendo as suas vezes". Diz ainda que, depois de 1615, a Misericórdia "elegia anualmente uma Comissão de Administração de Polícia, os seus membros
    almotaceis faziam a vigilância da limpeza da Praça, fiscalização dos gêneros dos mercados e lojas de víveres, polícia sanitária etc.". Esperamos, no entanto, que os documentos utilizados por esses autores não tenham sofrido das mesmas deficiências interpretativas que o regimento de nomeação de Amador Gomes Raposo como provedor dos órfãos e capelas de Cabo Verde, que os autores da
    História Geral de Cabo Verde (cit., vol. II, p. 469) identificaram com provedor da Misericórdia. Ressalve-se, contudo, que a fonte consultada (Brásio, 1587, pp. 145-8, 27 de julho de 1587), faz uma leitura correta do documento (ver IAN/TT
    , liv. I, fls.182v-184).
  • 28
    História Geral de Cabo Verde, (op. cit., vol. I, pp. 390 e ss., vol. II, p. 232).
  • 29
    Não deixa de ser relevante o fato de esse processo correr em simultâneo com o reforço da intervenção da Coroa na administração local que conduziu à nomeação do juiz de fora em 1566.
  • 30
    Como bem sintetiza, em 1671, o regimento do governador do Brasil: "por ser conveniente que cada um se conservasse dentro dos limites da sua jurisdição, não consentiria que os eclesiásticos interviessem em qualquer assunto que lhes não dissesse estritamente respeito" (
    Manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, 1956, ff. 262-9).
  • 31
    Conforme se encontra bem explícito nas anexações realizadas às Misericórdias de Cascais e Tancos (IAN/TT, liv. 2, fls. 52-52v Cascais, e ff. 114v-115 Tancos).
  • 32a 32b
    É conhecido o testemunho de Pietro della Valle, datado de 1623, que apresenta as Misericórdias que encontra no império português como detentoras do monopólio da prática da assistência (
    apud Sá, 1997, p. 158).
  • 33
    Viram o seu hospital ser transferido para as terras de Salsete, segundo o orçamento de 1581 (Matos, op. cit. 1980), desfazendo-se, assim, a dúvida levantada por Gracias (1994, pp. 132-3).
  • 34
    Um desacerto que a levou a tentar impor um tributo extraordinário aos negros, que seria desaconselhado pelo provedor da Fazenda em Angola, Dr. Bento Teixeira de Saldanha, numa opinião secundada pelo procurador da Fazenda Real, alertando ambos para a injustiça que tal representaria sobre gente tão pobre, não havendo qualquer fundamento para "se impor um tributo com injustiça, a título de ser para uma obra de misericórdia", quando, como se sabia, a maior parte dos enfermos eram soldados. Mais misericórdia encontraram os oficiais régios quando, à queixa apresentada em 1695 contra o miserável estado do hospital e aumento das despesas "com os soldados enfermos daquela praça, e com os que vêm dos presídios de toda aquela conquista", a mesa solicitou que "lhes fosse dada em cada ano uma preferência de quinhentas cabeças de escravos, para serem arrematadas e vendidas", sendo o seu pedido deferido, por ser "aplicação tão pia e tão do serviço de Deus" (Brásio, 1959, pp. 114-8).
  • 35
    Segundo Serrão (1987, pp. 401-3), logo nesse mesmo ano, o monarca dotou o hospital com uma tença perpétua de quatrocentos mil-réis (carta de Filipe II aos governadores, São Lourenço, 27.9.1593, Biblioteca da Marquesa de Cadaval, Muge, 795 A. 85).
  • 36
    Ainda que os contratos com a assistência aos militares tivessem arruinado muitas Misericórdias, conforme se pode confirmar em vários estudos monográficos que têm surgido.
  • 37
    Valor que baixa substancialmente no orçamento seguinte, mantendo-se depois até 1611, assim como o de Ormuz e Cochim, segundo a '
    Relação do rendimento e despesas de todo o estado da India com outras advertencias de muita conçideração tocantes ao serviço de Sua Magestade', existente na Biblioteca Pública de Évora. (BPE).
  • 38
    Não é possível saber quanto lhes cabia por volta de 1620, uma vez que as despesas não aparecem discriminadas nesse orçamento. Apesar de tudo, os valores mantêm-se elevados: uma receita de 1.082.466 xerafins para uma despesa de 1.061.235 xerafins (BPE, CV/2-7, f. 45-7v).
  • 39
    O que não é fácil de avaliar, dada a imprecisão das verbas envolvidas, sendo freqüente a indicação de que as mesmas poderão ser aumentadas sempre que as despesas o justificarem: em 1607, para uma receita de 217 milhões de réis, e uma despesa de duzentos milhões de réis, o dinheiro atribuído às Misericórdias e aos hospitais ultrapassou os quarenta milhões de réis. (Silva, 1977).
  • 40
    Precisamente quando a receita subira aos 799 407$309 réis e a despesa a 868 571$150 réis (IAN/TT, t. 3 E caixa 6, ff. 228-76).
  • 41
    Idêntico pedido tinha sido realizado dois anos antes para a localidade de Machão (IAN/TT, liv. 26, fls. 66v-67 e 94).
  • 42
    A Câmara apelida os de Massangano de "revéis" e aconselha o rei a desfazer a povoação mantendo apenas o presídio com os seus soldados e enviando os moradores para Luanda.
  • 43
    Aliás, o fato de já possuírem os terrenos para a construção da sua sede, doados para esse fim em 1684 pelo governador de Pernambuco, D. João de Sousa, deu força ao seu protesto junto do rei, que acompanharam com a recomendação de que a Coroa não só deveria deferir a sua pretensão, como apoiá-la economicamente (Guerra, 1969, p. 112). Um processo que, contudo, deverá ser analisado no contexto mais amplo que é o da própria autonomização do Recife.
  • 44
    Como acontece em Minas Gerais, só para mencionar um caso, onde ao longo do Setecentos são criadas as Misericórdias de Ouro Preto, Vila Rica e Vila de São João d'el-Rei. (Boschi, 1998).
  • 45
    Como dá conta o padre Brásio (op. cit., pp. 122, 126 e ss). Atente-se especialmente no testemunho do conde do Lavradio, também governador e ouvidor de Angola, que critica "os desmanchos e irregularidades com que se administram os bens da Casa, e da mesma forma se assistiam aos enfermos, sem consciência nem zelo, erro já mui antigo, e inveterado."
  • 46
    Relevante, nessa missiva, a promessa que o capitão faz à confraria: "verão que os senados não faltarão daqui em diante em ir assistir e autorizar a festividade de Nossa Senhora da Visitação". E na carta que remete ao Senado avisa que a participação na referida festividade era obrigação que lhe estava superiomente acometida (Martins, op. cit
    . vol. III, pp. 457-8).
  • 47
    Também ela em plena recuperação nos finais do século XVIII, "considerada a necessidade que havia da mesma Casa na referida Vila" (
    Arquivo das Colónias, jul.-dez. 1917, vol. 1, pp. 263-88).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2000
    • Aceito
      Out 2000
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