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Teoria social e biologia: perspectivas e problemas da introdução do conceito de história nas ciências biológicas

Social Theories and Biology: perspectives and problems of the introduction of the historical concept into biological sciences

Resumos

A teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin, ao relacionar os seres vivos genealogicamente, interpreta as espécies e sua fantástica diversidade como uma história de transformações lentas e graduais. Embora as descobertas de Darwin sejam importantíssimas e continuem a ser corroboradas pelas novas teorias e técnicas da biologia molecular, a teoria (sintética) da evolução é pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos. Nesse sentido são de grande relevância as novas abordagens que tentam estabelecer elos consistentes entre a teoria social e a teoria (neo)evolutiva. Para que essa ponte possa tornar-se ainda mais sólida, seria importante derrubar as barreiras que separam o público em geral, e o escolar em particular, da perigosa mensagem de Darwin, que afirma serem nossas capacidades sociais e mentais originadas no reino animal sem interferência alguma de forças especiais.

história; neodarwinismo; seleção natural; apropriação do conhecimento


By establishing genealogical relations among living beings, Charles Darwin's theory of evolution through natural selection interprets species and their fantastic diversity as a long history of slow and gradual transformation. Although Darwin's discoveries are of extreme importance and, as a whole, remain scientifically valid, being corroborated by the new theories and techniques emerged from molecular biology, the (synthetic) theory of evolution is little known outside the most academically strict circles. In this sense, there is great relevance in the new approaches that try to establish consistent links between social theory and the (neo)evolutionary theory. In order to reinforce and make this bridge even more feasible, it would be important to knock down the barriers that separate the general public -- students specially -- from Darwin's dangerous message that our social and mental capacities have originated from the animal kingdom without the interference of any special forces.

History; neo-Darwinism; natural selection; education


Teoria social e biologia: perspectivas e problemas da introdução do conceito de história nas ciências biológicas

Social Theories and Biology: perspectives and problems of the introduction of the historical concept into biological sciences

Ricardo Waizbort

Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz

Rua das Laranjeiras, 210 ap. 1010

22240-000 Rio de Janeiro — RJ Brasil

ricwrlk@terra.com.br

WAIZBORT, R.: 'Teoria social e biologia: perspectivas e problemas da introdução do conceito de história nas ciências biológicas'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Vol. VIII(3): 632-53, set.-dez. 2001.

A teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin, ao relacionar os seres vivos genealogicamente, interpreta as espécies e sua fantástica diversidade como uma história de transformações lentas e graduais. Embora as descobertas de Darwin sejam importantíssimas e continuem a ser corroboradas pelas novas teorias e técnicas da biologia molecular, a teoria (sintética) da evolução é pouco conhecida fora dos círculos acadêmicos. Nesse sentido são de grande relevância as novas abordagens que tentam estabelecer elos consistentes entre a teoria social e a teoria (neo)evolutiva. Para que essa ponte possa tornar-se ainda mais sólida, seria importante derrubar as barreiras que separam o público em geral, e o escolar em particular, da perigosa mensagem de Darwin, que afirma serem nossas capacidades sociais e mentais originadas no reino animal sem interferência alguma de forças especiais.

PALAVRAS-CHAVE: história, neodarwinismo, seleção natural, apropriação do conhecimento.

WAIZBORT, R.: 'Social Theories and Biology: perspectives and problems of the introduction of the historical concept into biological sciences'.

História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Vol. VIII(3): 632-53, Sept.-Dec. 2001.

By establishing genealogical relations among living beings, Charles Darwin's theory of evolution through natural selection interprets species and their fantastic diversity as a long history of slow and gradual transformation. Although Darwin's discoveries are of extreme importance and, as a whole, remain scientifically valid, being corroborated by the new theories and techniques emerged from molecular biology, the (synthetic) theory of evolution is little known outside the most academically strict circles. In this sense, there is great relevance in the new approaches that try to establish consistent links between social theory and the (neo)evolutionary theory. In order to reinforce and make this bridge even more feasible, it would be important to knock down the barriers that separate the general public ¾ students specially ¾ from Darwin's dangerous message that our social and mental capacities have originated from the animal kingdom without the interference of any special forces.

KEYWORDS: History, neo-Darwinism, natural selection, education.

11, a pergunta que logo me ocorreu foi: que contribuições a biologia atual poderia oferecer para problemas que afligem as ciências sociais? Essa pergunta implicava imediatamente a seguinte: que problemas sociais ou humanos clamam por uma luz vinda das ciências biológicas? Note-se que essas questões não admitem respostas simples. Antes de mais nada, tanto a biologia como a teoria social são ciências com inúmeras ramificações. De que biologia se fala: da embriologia, da anatomia, da fisiologia, da paleontologia, da evolução, da psicologia animal, da biologia molecular? De que teoria social se fala: da sociologia, da historiografia, da filosofia, dos estudos literários? Sem querer cair em problema de definição, a questão que nos concerne aqui hoje diz respeito à teoria biológica que se conhece como teoria da evolução, também chamada de neo-evolucionismo ou teoria sintética da evolução. Para meus fins me dirigirei a essa doutrina como a atualização crítica do darwinismo que hoje se aplica a todas as ciências biológicas. Entretanto, o neo-evolucionismo não é uma teoria consensual. Existe, no mínimo, uma polarização entre aqueles que crêem que a seleção natural é o único ou o mais importante mecanismo causal e direcional, e aqueles que crêem que a evolução estará sempre encoberta por mistérios e que a mente humana jamais terá capacidade para explicar a história da vida na Terra por inteiro. Embora esse quadro seja declaradamente esquemático, é possível preenchê-lo colocando Richard Dawkins e Daniel Dennett de um lado e Stephen Jay Gould, Richard Lewontin e Noam Chomsky do outro (Dennett, 1998). Gostaria de deixar claro que a história do debate acerca das causas da evolução compreende um sem-número de outros cientistas e filósofos importantes, sobretudo, mas não exclusivamente, da Europa e dos Estados Unidos. Sublinho uma trivialidade: o homem é um animal social. A expressão 'animal social' possui obviamente dois termos. A aceitação de que o homem é um animal é muito antiga e talvez seja anterior a Aristóteles (o homem é um animal político). Mas a idéia de que o homem compartilha com 'todos' os animais e plantas 'um' ancestral comum data de aproximadamente 140 anos. A origem das espécies de Charles Darwin, que completou silenciosamente essa idade no dia 24 de novembro de 1999, é certamente um marco nesse assunto. Entre as questões que podem ser derivadas da teoria de Darwin está aquela que raciocina que, se o homem é um animal social, se também divisamos outros animais sociais na natureza, então a socialização do homem poderia ser estudada biologicamente, evolutivamente, naturalisticamente, como a de um animal qualquer. Ocorre que assim caímos num intrincado paradoxo circular, pois trata-se da mente humana procurando descobrir como a própria mente humana emergiu e funciona. As idéias de Darwin continuam válidas hoje? O que é exatamente o evolucionismo? E o neodarwinismo? Qual é a causa ou quais são as causas da evolução? Qual o estatuto ontológico da seleção natural? Que papel ocupa o acaso nas teorias evolucionistas? Como se explicam os processos cognitivos do homem e de outros animais? Essas perguntas, entre outras, têm sido feitas há dois anos pelo grupo de estudos 'O darwinismo em questão', que faz parte do Núcleo de Filosofia das Ciências da Vida e da Saúde, coordenado pela filósofa dra. Vera Vidal. Resultados concretos dessas atividades podem ser constatados nos artigos dessa seção da revista Manguinhos, nas palestras proferidas gravadas em fitas cassete (ainda indisponíveis) ao longo dos anos de 1999 e 2000, nos encontros regulares e trabalhos finais dos inscritos no referido grupo de estudos. O número de publicações direta e indiretamente ligadas ao tema do darwinismo é impressionante. Na rede internacional de comunicações (Internet), o nome "Charles Darwin" dá acesso a 66.786 sites. Se podemos medir a vitalidade e a fertilidade de uma teoria científica e filosófica pelo volume de textos que induz, então a idéia fundamental de Darwin continua mais viva do que nunca. Ao mesmo tempo, o próprio mercado brasileiro tem se empenhado em traduzir, em muitos casos pela primeira vez, clássicos da literatura da biologia evolutiva, como uma seleção de cartas de Darwin (2000a), sua autobiografia (2000b) e sua obra sobre a expressão das emoções no homem e nos animais (2000c). Entretanto, as dificuldades de estudar as idéias de Darwin dentro de seu próprio contexto são muitas. Embora a medula da teoria seja simples e possa ser resumida em um silogismo muito econômico, baseado em duas premissas e uma conclusão, Este artigo resulta de meu pronunciamento no encontro Teoria Social e Biologia, que ocorreu em 2.12.1999, por iniciativa da Casa de Oswaldo Cruz, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais. O objetivo do encontro era "formular uma agenda de questões para a teoria social, considerando a importância crescente da biologia e das hipóteses que o neoevolucionismo tem sugerido para a integração das diferentes disciplinas científicas". No presente artigo desenvolvo dois pontos: a importância crescente da biologia na sociedade moderna, com especial ênfase no desenvolvimento das técnicas da biologia molecular; a importância do neoevolucionismo para a integração de diferentes disciplinas científicas, levando em conta o poder explicativo do algoritmo "descendência (hereditariedade) com modificação (mutação) mais seleção natural", a perigosa idéia de Darwin (Dennett, 1998).

22 as idéias de Darwin pululam em seu texto e não é fácil destrinchar os nós desse labirinto, sobretudo quando muitos darwinistas e antidarwinistas se apropriaram dessas idéias de forma equívoca, para fins ideológicos muito distintos. Além disso, não se trata especificamente da importância da idéia de um homem transformado em herói ou santo, Charles Darwin, mas de uma reflexão que ocorre em torno da idéia de uma explicação causal, a seleção natural, acerca da diversidade e da adaptação dos seres vivos aos seus ambientes naturais, sem interferência de poderes divinos. Isso é o que o filósofo da ciência Imre Lakatos (apud Regner, 1994, p. 108) chamaria de história interna da ciência: a parte lógica e epistemológica de uma teoria, a face objetiva da empresa científica. Por outro lado, o contexto social, econômico e político no qual se insere o personagem histórico Darwin é extremamente mais complexo, brilhante e irracional, como demonstra, por exemplo, já pelo título, a famosa biografia Darwin: a vida de um evolucionista atormentado (Desmond e Moore, 1995). Essa obra apresenta, desde o início, o entrelaçamento inexorável entre o trabalho científico de Darwin e sua inserção em um contexto histórico específico e em mutação. Uma imagem que fica dessa obra é a da tensão instável e crítica entre as descobertas de um homem, as resistências de outros, as aderências de terceiros, as críticas amigáveis e as destrutivas, os desenvolvimentos e apropriações da perigosa idéia de que há uma explicação natural para a diversidade de seres vivos e de suas estruturas adaptativas. A descoberta de Darwin não é a obra de um homem, mas uma descoberta feita por gerações que lutaram e lutam contra o preconceito e o dogmatismo, para tentar tirar a humanidade das trevas da ignorância e olhar para além de espelhos circulares ou divinos. Gould (1987, p. 1). Primeira premissa: "Os organismos variam, e essas variações são herdadas (pelo menos em parte) por seus descendentes." Segunda premissa: "Os organismos produzem mais descendentes do que aqueles que podem sobreviver." Conclusão: "Na média, a descendência que varia com mais intensidade em direções favorecidas pelo meio ambiente sobreviverá e se propagará. Variações favoráveis, portanto, crescerão na população através da seleção natural."

33 Darwin afirmou que, como todas as outras formas de vida, o ser humano também é um produto histórico e contingente da luta pela sobrevivência que se trava entre as espécies próximas e, principalmente, entre indivíduos de uma mesma espécie e de uma mesma população. Essa luta, entretanto, no mais das vezes, não é um combate corporal direto contra um oponente ou inimigo, mas uma luta silenciosa pelos recursos naturais disponíveis que, embora sejam fartos, pela extensão da matéria viva, tornam-se logicamente limitados. O recurso natural talvez mais importante, bastante disponível mas limitado na natureza, são os parceiros sexuais. Estamos falando aqui, é claro, daquelas espécies que se reproduzem sexualmente. É a partir da possibilidade do acasalamento e da procriação que se consegue contar uma história de parentescos, de genealogias, história que pode ser descoberta, recuperada, com trabalho e sorte, tanto por meio do estudo e da classificação dos fósseis, como pela comparação da embriologia de diversos grupos (de animais e plantas), assim como pela comparação das seqüências de bases nitrogenadas dos genes das mais diferentes espécies. Embora alguns historiadores e filósofos da ciência considerem a evolução por seleção natural o mero reflexo da competitiva sociedade vitoriana em que Darwin viveu, a verdade talvez esteja mais próxima de ser encontrada a meio caminho entre as teses que crêem que a teoria de Darwin apenas espelha a sociedade de sua época e aquelas que acreditam que a hipótese de Darwin se refere a algo objetivo, que se encontra decididamente na realidade (e não apenas na mente humana). Darwin relacionou os seres vivos não pelas características semelhantes ou diferentes que os indivíduos possuíam entre si (conceito tipológico ou essencialista de espécie), mas por suas relações de descendência hereditária, por seu parentesco ou genealogia (Mayr, 1987; Ghiselin, 1987; Hull, 1987). Darwin estava trabalhando sobre o problema da origem das espécies, no sentido de buscar uma explicação natural para a talvez incomensurável diversidade de espécies que se pode observar no mundo vivo. Desmond e Moore (1995, pp.359-70) contam que, quando Darwin foi estudar os cirripédios ¾ pequenos crustáceos que vivem nas crostas rochosas do mar ¾, pensou que os indivíduos e as espécies deveriam ser muito parecidos. Para seu espanto, descobriu que as diferenças entre os indivíduos e entre os diferentes grupos desse pequeno artrópode com concha eram imensas, o que lhe rendeu um trabalho muito mais longo e fastidioso do que a princípio previra. Darwin advogou em A origem das espécies (p. 78) que "variedades são espécies incipientes". A fonte primária da evolução para ele são as sutis diferenças que existem mesmo entre dois seres vivos de uma mesma ninhada, ou seja, mesmo entre dois irmãos. Darwin afirma em sua obra magna que lhe importam 'apenas' as variações que são hereditárias. Estudiosos da história das ciências biológicas sabem que Charles Darwin não possuía uma teoria da herança aceitável. Darwin desenvolveu a idéia, em escritos posteriores a A origem das espécies, de que as características adquiridas durante a vida seriam representadas em gêmulas que migrariam para as gônadas feminina e masculina no período reprodutivo, passando assim para a próxima geração. A hipótese segundo a qual todas as partes do corpo fornecem material genético, sob a forma de gêmulas, para os órgãos reprodutores e, particularmente, para os gametas é chamada de pangênese (Mayr, 1998, p. 1.085). Os experimentos de Weissman, cortando o rabo de camundongos machos e fêmeas e os cruzando durante várias gerações, demonstram que a herança dos caracteres adquiridos não é uma teoria empiricamente aceitável. O problema da circularidade do conhecimento nas ciências sociais e naturais é de extrema importância aqui. Uma pergunta não pode ser adiada pois tem conseqüências epistemológicas e pedagógicas: todo conhecimento humano é fruto da projeção nas coisas da estrutura da mente ou do espírito humano? O escritor argentino Jorge Luis Borges, em muitos de seus contos, jogou com essa pergunta. Um exemplo se encontra em 'A busca de Averróis', no qual o narrador conta a saga do comentarista árabe da Poética de Aristóteles, que aparece no título do conto, enfrentando os conceitos de tragédia e comédia sem conhecer a tradição clássica da literatura ocidental. O narrador coloca-se na mesma situação que o personagem criado por ele: "Senti, na última página, que minha narrativa era um símbolo do homem que eu fui enquanto escrevia, e que para escrever essa narrativa fui obrigado a ser aquele homem, e que, para ser aquele homem, tive de escrever essa narrativa, e assim até o infinito" (Borges, 1982, p. 71-80).

44 Como para o bíblico Jacó, cujas ovelhas listradas eram o resultado de seus progenitores ovinos olharem para um bambuzal enquanto copulavam, a explicação lamarckista para a adaptação dos seres vivos tornou-se quase um mito. A modificação a partir do uso e do desuso é uma intuição que vemos confirmada no mundo mais imediato e cotidiano: os desportistas são muito musculosos, animais mantidos em cativeiros sofrem atrofia nos membros, aqueles de nós que praticam a matemática e o hábito da leitura ficam cada vez mais desenvolvidos nessas atividades intelectuais. Entretanto, a redescoberta da genética de Mendel no raiar do século XX cerrou para sempre a direção fenótipo-genótipo para a modificação hereditária. Ou seja, caracteres adquiridos durante a vida não são herdáveis. A chamada segunda lei de Lamarck está errada. Aquele rabo decepado durante a perseguição, aquele dedo perdido em um acidente, aqueles músculos conquistados pela luta contínua não são transmitidos aos filhos. As modificações que um corpo individual sofre em sua passagem pela vida não são preservadas nos indivíduos que lhe sucedem. O que é reproduzido nas gerações seguintes é o plano ou receita básica para construir cada novo organismo. A história da biologia mostra que inicialmente mendelianos e darwinistas se opuseram como o fogo à água (Bowler, 1989, pp. 246-81; Mayr, 1998, pp. 601-13). A teoria de Darwin explicava a evolução, a mudança dos seres vivos; a teoria de Mendel explicava a permanência: como uma característica 'reaparecia' na geração seguinte. Mendel queria saber como as características se transmitiam dos ascendentes para os descendentes. Darwin explicou como as espécies de seres vivos mudavam a partir da acumulação hereditária (histórica) das diferenças entre indivíduos. A variação individual para ele era a matéria-prima da seleção natural e da evolução. Ocorre que a genética alcançou um desenvolvimento técnico espetacular no século XX. Os achados de Darwin viram-se confirmados na linguagem das seqüências de citosinas, timinas, adeninas e guaninas, que fazem parte do DNA. A descoberta do código genético não só corroborou, no nível molecular, a idéia evolutiva de Darwin como consubstanciou quimicamente os 'fatores' de Mendel. Entretanto, as conseqüências do darwinismo são menos pragmáticas do que verdadeiramente filosóficas. Hoje em dia, são as práticas espetaculares das clonagens, do projeto Genoma Humano, das terapias gênicas, dos animais e plantas transgênicos, que chegam ao público em geral. Ovelhas clonadas a partir de células de outras, ratos com orelhas, porcos com genes humanos, o cenário é bem Blade Runner. 'Blackmore (1999, p. 60) argumenta que Lamarck defendia que os organismos individuais lutavam para melhorar, e os camundongos de Weissman não estavam em nenhuma disputa quando tiveram seus rabos amputados. Portanto, a teoria de Weissman não poderia refutar, nos termos propostos, a de Lamarck.

Podemos comparar o registro geológico de que dispomos a uma história do mundo elaborada de maneira imperfeita e escrita num dialeto em extinção, e da qual possuímos apenas o último volume, relativo a somente dois ou três países. Deste volume, apenas se preservaram alguns capítulos soltos, e de cada página apenas umas poucas linhas.

(Darwin, 1985, p. 251)

Crise, ciências humanas e ciências biológicas

A vida nas sociedades humanas do Ocidente se encontra em evidente ameaça. Convivemos com uma situação grave: desemprego, fome, doenças, miséria, extermínios, guerras são palavras que apenas resvalam na radicalidade dos problemas sociais. O contexto é crítico. Quando fui convidado a participar do encontro Teoria Social e Biologia

55 Mas não é apenas isso: os genes carregam informações para construir proteínas. As proteínas são as moléculas que, essencialmente, formam a estrutura física de nosso corpo e de todos os outros animais e plantas (e também dos microrganismos, de células e de estruturas celulares): ossos, sangue, pele, pêlo, unha, galhos, flores, raízes, membranas, mitocôndrias e um número virtualmente infinito de outras estruturas físicas macroscópicas e microscópicas. Além disso, existe uma classe especial de proteínas com propriedades catalíticas, as enzimas, que, embora não constituam a estrutura física dos corpos, são responsáveis por acelerar reações químicas vitais. Sem as enzimas, essas reações seriam tão lentas que a vida não existiria. Assim, todo o mundo orgânico é feito de proteínas e depende delas. Todo aluno de ensino médio (antigo segundo grau) deveria saber isso. A questão é que a descoberta do DNA como a molécula responsável pela transmissão das características hereditárias é contada topicamente, desvinculada de tudo mais, do darwinismo, do mendelismo, do neo-evolucionismo, como uma mônada inarticulada no espaço e no tempo. A informação genética é transferida do gene para a proteína, o que torna ilegítimo o tipo de herança lamarckista. Por meio das moléculas de DNA contidas no espermatozóide e no óvulo dos progenitores, a prole herda a receita genética para produzir as proteínas que a formarão. O meio ambiente não informa ao corpo como devem ser os corpos nas gerações futuras. As gerações não evoluem, as espécies não se transformam umas nas outras, de nenhum modo, por algum esforço ou necessidade de adaptação dos seres individuais às condições do entorno. Pelo menos em um primeiro momento. Note-se que essa afirmação não implica nem uma definição de gene nem uma de fenótipo. É importante, mais uma vez, ressaltar que o fenótipo é a interação entre o genótipo, a expressão dos genes, e o meio ambiente. O meio ambiente aqui deve ser compreendido de forma integrativa, pois se refere tanto ao meio ambiente ecológico em que se encontra um ser vivo como o ambiente nuclear dos genes eucariotos, o ambiente tissular das células, e assim por diante.

66 De fato, o DNA é uma molécula altamente conservadora. Sua lógica algorítmica é produzir cópias absolutamente idênticas de si a partir de si. Todavia, ocorrem nesse processo erros de cópia. Se não fosse assim, a vida não teria evoluído, não existiriam insetos e aves, baleias e peixes, anêmonas e árvores. A reprodução dos seres vivos, mesmo dos mais simples, não é exata. Erros de cópia por definição são chamados de mutação. Uma vez que o DNA possui estrutura física bem definida, as modificações que por acaso ocorram são cegas. Isso significa que uma mudança de base nitrogenada ocorre independentemente das necessidades externas e macroscópicas (e às vezes subjetivas) do organismo em questão. Para compreender a estrutura molecular que nos faz matéria foi necessário romper com o mito da descontinuidade entre o orgânico e o inorgânico. Até as primeiras décadas do século XIX, acreditava-se que as chamadas substâncias orgânicas (aquelas cuja estrutura é uma cadeia de átomos de carbono, como as proteínas) só poderiam ser produzidas como resultado de processos que ocorriam por intermédio dos seres vivos. Entretanto, em 1828, Friederich Wöhler conseguiu sintetizar uréia (um excreto orgânico de diversos animais presente também no leite e no sangue) a partir de substâncias inorgânicas (Ronan, 1987, pp. 42-3). A barreira entre orgânico e inorgânico, entre o mundo animado e inanimado começava a ser derrubada. Tal descoberta serviu de base para Oparin (1963), quase cem anos depois, supor que, se os químicos são capazes de sintetizar substâncias orgânicas em laboratório, é possível que, na Terra primitiva, átomos de certas substâncias simples pudessem se ligar de maneira a formar compostos orgânicos mais complexos. É a idéia de evolução pré-biótica. Dado um tempo geológico verdadeiramente longo, digamos quinhentos milhões de anos (5 x 108 anos), a matéria orgânica poderia surgir da matéria inorgânica. Note-se que é uma tentativa de contar uma história de como a vida poderia ter se originado. Ainda hoje, o salto das moléculas orgânicas para a vida não é compreendido completamente. As teorias que discutem a origem da vida sobre a Terra são todas bastante conjecturais e nunca poderão ser diretamente testadas, pois a origem da vida na Terra foi um fenômeno histórico e, como tal, único e irrepetível. Os coacervados de Oparin não gozam atualmente de prestígio científico, mas eles abriram uma passagem para se imaginar o cenário de uma Terra primitiva, com uma atmosfera quimicamente distinta da nossa, na qual pequenas substâncias se combinavam devido a circunstâncias históricas específicas. Voltando um pouco no tempo, a partir talvez dos experimentos cuidadosos e simples, Mendel descobriu, na segunda metade do século XIX, que existiam 'fatores' responsáveis pela transmissão das características hereditárias e como eles se distribuíam de geração em geração. Mendel não estudou os fatores no nível molecular, que era inacessível à sua época. O termo 'gene' foi adotado mais tardiamente, em um tempo em que 'o pai da genética' já havia morrido. Durante cerca de cinqüenta anos perduraram as dúvidas acerca de qual seria a base química dos 'fatores' mendelianos. Provavelmente sem suspeitar sequer da existência dos trabalhos de Mendel, em 1869, um médico suíço de 22 anos, Friederich Miescher, isolou dos núcleos de células de pus, "obtido de ataduras usadas na guerra franco-prussiana", e de esperma de salmão uma molécula que ainda não fora identificada. Miescher deu a essas moléculas o nome de nucleínas (Burns, 1984, p. 318). Mais tarde, o nome dessa entidade química seria universalmente adotado como ácido desoxirribonucléico ou DNA (ou ADN). Assim como as proteínas, os DNAs são polímeros, só que estes são polímeros de nucleotídeos aminoácidos, enquanto as proteínas são cadeias de aminoácidos. Ocorreu um lapso de quase cem anos entre essa descoberta e a correlação entre o DNA e a transmissão das características genéticas ou hereditárias. As proteínas foram consideradas fortes candidatas para a função da transmissão do código capaz de produzir um novo corpo a partir da fecundação, pois estavam presentes em todos os organismos vivos, e isto era logicamente essencial se se desejava descobrir a molécula que transmitisse o código hereditário universal, ou seja, presente em todos os seres vivos. Entretanto, o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sofisticadas, provenientes da física e da química, permitiu não só comprovar que os ácidos nucléicos também eram universalmente encontrados no reino dos vivos, mas também que o DNA era a molécula química em que se localizavam os fatores de Mendel, os genes. Em 1928, o microbiologista Frederick Griffith inoculou camundongos saudáveis com uma cepa não-virulenta de bactérias da espécie Diplococus pneumoniae, mas que tinham tido contato com extratos de cepas de Diplococus pneumoniae mortas por calor. O resultado foi a morte dos camundongos. A explicação foi que as bactérias não-virulentas foram 'transformadas' por uma substância que deveria estar ainda intacta e ativa no citoplasma das bactérias virulentas mortas pelo aquecimento. O experimento ficou conhecido como 'transformação de bactérias' ou 'efeito Griffith' e é considerado o primeiro passo na identificação do material genético (Burns, 1984, p. 318). Apesar de extremamente elegante e promissor, o efeito Griffith não respondia qual substância teria sido responsável pela transformação do Diplococus pneumoniae não-virulento em virulento. Dezesseis anos depois, em 1944, três cientistas — Avery, MacLeod e McCarty — repetiram com sucesso a experiência de Griffith. Só que, em vez de trabalharem com um modelo animal, trabalharam in vitro, e foram capazes de identificar a 'substância transformante', o DNA (Burns, 1984, p. 319; Stahl (1970, pp. 27-8); Petit e Prévost (1970, pp. 20-1, 31). Em 1953, James Watson e Francis Crick propuseram um modelo molecular para o DNA após um ano e meio de trabalho na Universidade de Cambridge. O modelo foi tão importante para a biologia que Watson e Crick dividiram mais tarde o prêmio Nobel de medicina. O avanço da biologia molecular após a descoberta da estrutura do DNA foi extraordinário. A replicação do DNA foi estudada nos laboratórios, assim como o processo de 'expressão' gênica ('transcrição' do DNA em RNA e 'tradução' do RNA em proteínas). Hoje em dia, pode-se determinar o código genético de todas as proteínas cuja seqüência de aminoácidos é conhecida empiricamente. São conhecidas também as alterações (mutações) nas proteínas que causam inúmeras doenças. Decifrar todo o código genético humano foi um sonho que está prestes a se realizar. Entretanto, uma vez mapeado o genoma de nossa espécie, o que fazer com essa fantástica descoberta? Essa é uma pergunta extensamente debatida, como demonstram, por exemplo, as atas do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, de 1998, e o Dossiê Genética da Universidade de São Paulo (USP), de 1994. A questão do mapeamento do genoma humano é algo que, assim como as questões do conhecimento e da linguagem, interessa a todos os homens, e não apenas aos especialistas. A descoberta da estrutura do DNA foi possível devido a uma série de desenvolvimentos teóricos e tecnológicos que permitiram um mergulho no mundo molecular, invisível ao olho desarmado. O DNA encontra-se, na maior parte do tempo, no interior do núcleo de uma determinada célula. Células não vivem sozinhas. Mas estão estruturadas em tecidos que por sua vez dão origem a órgãos, estes a sistemas (nervoso, cardiovascular, esquelético, digestivo); por sua vez estes estruturam organismos que podem se agrupar em populações e até em sociedades. As conseqüências sociais e científicas da descoberta das duas funções básicas do DNA, replicação e síntese, são indisputáveis. O avanço na detecção de doenças genéticas, o tratamento por meio de terapias gênicas, o desenvolvimento de vacinas de DNA, o melhoramento alimentar (animal e vegetal) por técnicas moleculares permitem hoje uma abordagem interventora que revoluciona as relações sociais. Entretanto, a compreensão da base científica e filosófica desses achados está restrita a um público pequeno e no mais das vezes acadêmico, e infelizmente não é proposto até aqui o amplo e desejável debate com outros setores da sociedade. Hoje, a engenharia biológica pode fazer um tecido orgânico doente expressar a proteína cuja ausência o condena. A intervenção humana permite que algo que não trazemos dentro do núcleo de nossas células seja ali alocado. Genes de uma espécie expressam suas proteínas no corpo celular de outra espécie. O conceito de identidade biológica se vê questionado. A ciência também tem descoberto que, na natureza, o material genético de 'todos' os seres vivos não é tão idêntico a si mesmo, durante toda a vida do indivíduo que o transporta. Vírus, plasmídeos bacterianos e transposons são exemplos de partículas de DNA capazes de se integrar nos cromossomos de animais e plantas. Além do mais, um tempo após ficar ali residindo, essas partículas podem abandonar sua morada "levando pedaços do DNA-hospedeiro junto" (Shapiro, 1999). Entretanto, todas essas maravilhas não significam que agora sabemos tudo sobre a natureza dos seres vivos em seus vários níveis de organização. Muito pelo contrário. Somente nas últimas décadas as ciências biológicas têm interferido diretamente, em termos moleculares e físicos, no curso dessa história. Mas o homem em sociedade sempre se interessou em produzir de forma artificial uma melhor colheita de trigo e um melhor rendimento de seus rebanhos. Como dependemos da vida de outros seres vivos para nossa sobrevivência, os mecanismos pelos quais a vida se perpetua sempre nos interessaram. Ao engenheirar geneticamente um organismo, e sobretudo o próprio homem, a interação entre o gene que entra e o genoma 'selvagem' como um todo não pode ser prevista. Não há sequer uma história acerca dessa interferência, uma vez que a descoberta dos processos epigenéticos é apenas incipiente. As interações entre genótipo e fenótipo, a epigênese, estão longe de ser completamente desvendadas. A biologia do desenvolvimento está apenas na infância. Aprendemos que o fenótipo é o produto da interação entre o genótipo e o meio ambiente. Todavia, essa interação é extremamente complexa. Os genes se encontram em ambientes de genes, de DNA (em ambientes atômicos e subatômicos). Ao mesmo tempo o DNA está localizado no núcleo das células eucarióticas (e no citoplasma das procarióticas), mergulhado em um minúsculo oceano protéico. As células se encontram reunidas em tecidos. Os tecidos estruturam órgãos. E assim por diante. A questão que estou querendo propor aqui é a da relação que pode existir entre genes e a cultura humana. É certo que o crescimento do cérebro no gênero Homo nos últimos sete milhões de anos foi algo extraordinário. É claro que a cultura humana deve muito à linguagem articulada, ao relato de mitos, à conversa cotidiana, à elaboração de livros. O difícil é saber quem cria quem, em que medida o cérebro constrói a linguagem (as linguagens) ou a linguagem constrói o cérebro. Pois trata-se de um processo de retroalimentação positiva em que o estímulo de um dos lados favorece o estímulo do outro. Atualmente, o lamarckismo tem revivido com força inusitada. Não se trata, entretanto, do lamarckismo histórico, do início do século XIX. A partir da descoberta do efeito Baldwin, começou-se a desconfiar da importância da aprendizagem na evolução. A questão é complexa e remeto o interessado a textos que tratam do assunto (Dennett, 1998, cap. 13, pp. 386-418; Blackmore, 1999, cap.9, pp. 108-20; Jablonka et alii , 1998).

A importância crescente da biologia na sociedade moderna

Uma das realizações mais importantes da biologia do século XX foi a descoberta da molécula química responsável pela transmissão das características hereditárias nos seres vivos da Terra, o DNA. Como Charles Darwin, o DNA sozinho não é nada. Apenas no contexto citológico, mergulhado no nucleoplasma eucarioto ou no citoplasma bacteriano, interagindo com várias outras moléculas, o DNA exibe seu significado. Ademais, o DNA como um todo aparentemente nada significa. Estamos interessados a princípio nos genes, pequenas frações de DNA, que podem ter alguns milhares de pares de bases, mas que representam apenas 10% do DNA total.

Os genes têm papel fundamental na estrutura física dos seres vivos. Eles são os responsáveis pela transmissão das características hereditárias dos pais para os filhos.

77 Ele tenta estabelecer criticamente uma relação entre genes e memes, entre a biologia e a cultura, sem tentar reduzir gananciosamente uma à outra. A questão, no entanto, começa a se mostrar mais complexa, pois o darwinismo, reinterpretado dessa maneira, ameaça invadir outras áreas do conhecimento com sua concepção genealógica, histórica. A evolução cultural é o desenvol-vimento de idéias e, sobretudo, de práticas associadas a essas idéias. É uma história de concepções de mundo que se modificam com o passar do tempo, tanto que, ao olharmos, através dos textos, para civilizações passadas, no mais das vezes não apreendemos de imediato seus significados. A perspectiva histórica, o reconhecimento de que a vida de ontem pode ter sido muito diferente da de hoje, a cautela para não projetar rápido demais preconceitos atuais sobre outras épocas são antídotos admissíveis, embora falíveis, para não promover uma antropomorfização do universo e de fenômenos que gostaríamos de compreender. Existem historiadores e filósofos da ciência que acreditam que a biologia nasce como ciência, estruturando-se, profissionalizando-se, institucionalizando-se, a partir de Darwin (Caron, 1988). Talvez a biologia tenha nascido algumas décadas antes de Darwin, ou alguns anos depois dele. O que importa é que o estudo da biologia ganha com Darwin, a partir dele, uma perspectiva 'histórica' jamais vista antes. Trazemos talvez de nosso passado escolar a idéia de que a história começa com o registro escrito; a pré-história é obviamente tudo o que vem antes dela. Todavia, estudos teóricos e práticos da biologia evolutiva têm demonstrado que esse 'antes' é muito mais profundo e complexo do que se pensava. Esse passado biológico também padece do problema da reconstrução histórica, que é trabalhar sempre a partir de informações fragmentadas e insuficientes. Querendo descobrir a história pela qual os seres vivos se originaram e evoluíram sobre a Terra, o cientista quer conhecer um processo que foi multidimensional. Seu significado talvez resida na relação entre vários e múltiplos níveis de visão (e de interpretação). Seja partindo do registro fóssil, da comparação entre embriões de várias espécies, da distribuição geográfica dos seres vivos, da composição genética de animais, plantas, microrganismos e fungos, o que importa é descobrir se existe a possibilidade de uma narrativa científica consistente que possa ser contada a "partir desses dados insuficientes". De qualquer forma, trata-se de recuperar um tempo profundo, de dezenas e centenas de milhões de anos, às vezes bilhões de anos, para reconstruir os passos e os processos que levaram à emergência de formas vivas que, por sua vez, se ramificam. Os seres vivos transformam-se acompanhando as ondas de mudanças ambientais profundas, alteradas por sua vez por fenômenos geológicos monótonos ou por catástrofes imprevistas. A biologia, desde seu início, estabelece um diálogo com a geologia, com a meteorologia e, mais tarde, com a química e a física. Naturalmente a história do próprio homem, interesse da antropologia, é uma ponte entre as chamadas ciências biológicas e as ciências sociais. Dado que a emergência e o desenvolvimento do homem a partir de suas raízes primatas são aceitos entre cientistas, sociólogos e filósofos, a pergunta 'de onde viemos?' está obviamente respondida: viemos de um ancestral comum entre os homens, os chimpanzés e os gorilas. Entretanto, a questão não está resolvida, sobretudo porque desejaríamos descobrir como viemos parar aqui, em meio a tantas conquistas e tantos conflitos. Existem inúmeras teorias que tentam explicar como o homem evoluiu, ou seja, como chegou a ser o que é hoje. O dr. Hector Seuánez (1979, p. 3), professor do Departamento de Genética da UFRJ apresenta o paradoxo do crescimento rápido do cérebro humano: A memética é a ciência que estuda as idéias como se elas fossem memes ou unidades de imitação cultural. Tais partículas ou átomos culturais seriam análogos aos genes. Há estudos tentando modelar as idéias tendo como base tanto a genética de populações como a epidemiologia. Em todos os casos, trata-se da tentativa de estudar a cultura de um ponto de vista darwinista, vale dizer, como a história do embate entre concepções rivais e de coalizões de entidades visando a sobrevivência e a reprodução. Para os interessados vale uma visita à página do Jornal of Research in Memetics (url:www.mmu.ac.uk/jom-emit)

A importância do neo-evolucionismo para a integração de diferentes disciplinas científicas

O ramo da biologia que investiga o comportamento social humano como uma espécie de estrutura animal evolutivamente derivada é conhecido como sociobiologia. O problema de fundo que se coloca nessa questão é se o comportamento animal, e em especial o comportamento humano, pode ser reduzido à expressão dos genes. Existem genes que determinam a agressividade e a propensão ao assassinato, assim como existem genes que determinam a cor dos olhos? Ernst Mayr (1998, p. 667), que decididamente não é um sociobiólogo, defende que há poucas dúvidas de que grande parte, senão a quase totalidade, do comportamento social dos animais tem um forte componente genético. Como negar que o fato de termos cinco dedos, com um polegar opositor, influencia profundamente nosso comportamento, assim como o leão ter garras e dentes afiadíssimos modela o comportamento dele?

O filósofo da mente Daniel Dennett (1998, pp. 85-6) chama a atenção para uma distinção importante dentro do programa reducionista: existiriam os reducionistas gananciosos e os metodológicos. Os metodológicos concebem os fatores genéticos como importantes, mas não únicas peças no esquema de explicação; os gananciosos acreditam que devem reduzir toda explicação na biologia (e por extensão no comportamento animal) a explicações físicas. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que Richard Dawkins, o autor do tão criticado O gene egoísta, é, antes de tudo, um zoólogo que estuda o comportamento animal, um cientista que trabalha com organismos no nível macroscópico.

Dawkins propõe que os corpos de todos os seres vivos, e por extensão os de todos os seres humanos, nada mais são do que máquinas de sobrevivência para perpetuar genes que são muito mais longevos que os indivíduos que os transportam e os transmitem, e que as próprias espécies que compõem esses indivíduos. Segundo Dawkins, a evolução biológica obedece à lógica egoísta dos genes. Isso nada mais é que o mais puro darwinismo exposto em termos moleculares. E segue a ortodoxia que assimilou criticamente os achados da genética de populações e da genética molecular. Existe uma competição no nível dos genes, genes disputando entre si quais felizardos entrarão nas fendas cromossômicas das células dos indivíduos das próximas gerações.

Dawkins despende várias páginas no seu texto tentando demonstrar que a metáfora do genoma, como uma biblioteca, tem várias limitações. Aliás, caberia um estudo da construção e da desconstrução de metáforas pelo próprio Richard Dawkins, mas vamos adiante. Ele discute que a expressão 'gene egoísta' não é muito adequada, pois não se trata de genes isolados, mas de complexos gênicos integrados pela evolução, durante centenas e centenas de milhões de anos. Nossos corpos são a expressão de interações complexas entre os genes que recebemos de nossos pais e o meio ambiente em que estamos encerrados como em uma cela. Não podemos deixar de comer, de beber água, de amar, de nos locomover, pois o espaço e o tempo nos quais nascemos exigem todos esses movimentos. E somos providos pela natureza, por mais distante que ela pareça estar no cenário urbano, de uma estrutura óssea e sangüínea, nervosa e muscular, perceptiva e intelectual. A estrutura física de todas essas partes do ser humano está codificada, pelo menos em grande parte, nos genes. Hoje não parece mais ficção científica saber sobre o estado de saúde de um futuro filho, estudando o mapa genético dos pais. Também podemos planejar intervenções moleculares e genéticas capazes de suprimir uma deficiência enzimática fatal. Devemos estar preparados para enfrentar o desafio de um mundo onde as empresas deterão as patentes de vários genes, o que significa dizer, de várias proteínas e enzimas que podem se tornar importantíssimas social e politicamente. Tais conquistas são também perigosas. Quem hoje se permite ser tão ingênuo a ponto de imaginar que a revolução genética transformará também as relações sociais no sentido de promover a democracia? Ou essas técnicas estarão disponíveis, ao menos a princípio, para aqueles poucos, que conhecemos, que podem pagar por elas? Ou cairão nas mãos de inescrupulosos empresários, que desejarão fazer dinheiro com os genes, assim como fazem com os remédios, ou seja, à custa da doença alheia? A idéia de eugenia, é claro, também está no horizonte: o sonho (ou será o pesadelo?) de melhorar a raça humana, a perigosa idéia de que possa haver algo como raças superiores e inferiores, e que por meio de um processo genético qualquer se possa purificar ou aperfeiçoar a espécie.

No segundo semestre de 1999, o amargo tema da eugenia foi revivido pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk (2000) em uma palestra na Baviera intitulada 'Regras para o parque humano', gerando uma aguda polêmica com outro filósofo alemão, Jürgen Habermas. Retomando Nietzsche para criticar Heidegger, Sloterdijk argumenta que a sociedade ocidental desde Platão tem sido o resultado da domesticação do homem pelo homem. Partindo de uma seleção psicológica e da lição escolar, o humanismo teria construído artificialmente uma cultura que preza a inibição das forças destrutivas que também compõem o homem. A cultura humanista estaria hoje vencida, aparentemente soterrada no lixo midiático produzido pelas novas formas de dar vazão à barbárie, como a televisão e a Internet.

"Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: 'cultura.'" "O que esta surpreendente variedade sugere é que o modo de vida do homem é em grande parte determinado pela cultura, e não pelo genes." Essas não são as palavras de um sociólogo ou de um historiador, mas de Richard Dawkins (1979, pp. 211, 186). Como considerá-las o discurso de um reducionista, de um determinista ou de um sociobiólogo? A meu ver, O gene egoísta é um livro escrito para chegar à emergência evolutiva de um segundo tipo de replicador. O gene é o primeiro replicador fundamental, que tem mantido a chama da vida acesa sobre a Terra desde que ela espontaneamente apareceu. Através das gerações, os genes transmitiram a informação química e genética para a construção de novos corpos. Assim como os genes ou genomas, providos de suas máquinas de sobrevivência, lutam para que cópias suas sejam transmitidas para as gerações seguintes, uma idéia, ou meme, luta para alcançar outros cérebros e neles viver. Assim como a luta entre os genes (genomas) é inconsciente, irracional e sem intencionalidade, também o é a luta entre os memes.

O programa de pesquisa dos memes é um novo ramo das ciências sociais ou do espírito, a memética.

O homem é uma espécie relativamente nova, porque, embora o primeiro presumido hominídeo tenha aparecido há uns 15 milhões de anos, os remanescentes dos seres que podem ser propriamente considerados Homo sapiens não são mais antigos do que 250 mil anos. A emergência do homem como o mais bem-sucedido de todos os seres vivos foi alcançada em um número surpreenden-temente pequeno de gerações. Tomando 15 anos como o tempo médio necessário para que os seres humanos atinjam a puberdade, e extrapolando um período similar para nossos ancestrais hominídeos, o tempo transcorrido desde a ramificação dos primeiros hominídeos do estoque comum homem-macaco até os dias de hoje representa 1 x 106 (um milhão) de gerações. Esse número a princípio pode parecer grande. Entretanto, o mesmo número de gerações cobriria 250 mil anos no caso de um mamífero menor, como um camundongo, que pode se reproduzir com a idade de três meses. Além disso, no caso das bactérias, capazes de se dividir a cada vinte minutos, 106 gerações tomariam cerca de uns 76 anos.

O cérebro humano cresceu cerca de três vezes, em pouco mais de 15 milhões de anos, época em que a linhagem que veio dar na nossa espécie divergiu filogeneticamente do tronco comum homem — macaco. Um milhão (106) de gerações, a princípio, representa um tempo relativamente muito curto para que qualquer mudança profunda possa ocorrer em uma espécie. Não estou querendo, em absoluto, sugerir que haja alguma força sobrenatural intervindo na emergência do homem sobre a Terra. Existem várias explicações religiosas, míticas, filosóficas, literárias, científicas para a origem do homem no planeta. A interpretação que quero indicar aqui é que as idéias, os memes, sob as mais variadas formas, podem ter contribuído para guiar a evolução do cérebro humano, o que significa dizer que o cérebro humano cresceu para acompanhar o que se pode chamar de evolução cultural (Blackmore, 1999, pp. 67-81). Não ouso estabelecer aqui uma relação de causalidade linear como 'a cultura causou o crescimento do cérebro'. Curiosamente, invertendo o sujeito e o predicado dessa frase, ela também parece verdadeira. A questão é que a relação entre o cérebro e a cultura, assim como entre esses e a linguagem, é bastante intrincada e não deixou impressões nos registros fósseis. Estou defendendo então que não pode haver uma compreensão mais profunda da história e da crise do presente se não olharmos ao mesmo tempo para o nosso passado cultural e para nosso passado biológico, evolutivo.

88 Entretanto, na medida em que o Homo sapiens foi se tornando uma criatura cultural, com várias instituições, como a Igreja, o Estado, os partidos políticos, a escola etc., a luta pela sobrevivência deixou de se dar no cenário natural. O homem não vive mais na natureza, mas em sociedade, em cultura. Não é a lógica dos genes que impera, mas uma lógica gravada em linguagem — quer seja essa linguagem a da estrutura primitiva dos mitos, quer seja a da propaganda, da moda, da política ou da Academia. Todas essas linguagens vivem em um ambiente que ignora a natureza selvagem e se torna civilizada e urbana. Acordamos diariamente para ir ao trabalho, discutimos política e futebol, almoçamos em restaurantes a peso, e nada disso pode ser encontrado no estado natural. Segundo muitos adeptos da teoria dos memes, o que é fundamental na cultura, aquilo mesmo que está na sua origem ou raiz, é a capacidade de imitação. Um meme é uma unidade de imitação. Estou tentando mimetizar o darwinismo aqui porque acredito que sua compreensão conduz a uma forma de interpretar a natureza que sugere olhar a ciência não apenas como o produto de nossas limitações, mas também como expressão da riqueza dos seres que habitam a Terra. Nessa direção acredito que nossa curta participação na história deste planeta é tudo que temos, o maior dos tesouros. A evolução biológica implica o reconhecimento de um tempo histórico muito, mas muito mais vasto do que a história humana. A teoria da evolução é produto da mente humana. O homem emergiu tarde na história evolutiva. Os grandes répteis, por exemplo, dinossauros, tiranossauros e brontossauros, desapareceram da Terra há 65 milhões de anos. A família hominidae, da qual bem mais tarde se originaria o Homo sapiens sapiens, apareceu há cerca de sete milhões de anos. O homem moderno atual, tal qual poderia ser reconhecido por qualquer um como ser humano no meio da rua, apareceu apenas há quarenta mil anos! A Terra existe há uns cinco bilhões de anos e a vida há uns quatro bilhões e meio. Durante muito mais da metade desse tempo este planeta foi povoado apenas por organismos microscópicos. Somente nos últimos seiscentos milhões de anos emergiram criaturas pluricelulares mais complexas, como os moluscos, os artrópodes, os anelídeos, os equinodermos, entre outros. A história da vida é profunda e cheia de falhas no registro mais substancial e importante, o registro fóssil. Mas o que se sabe a partir do registro fóssil, por exemplo, de nossa própria espécie, indica uma narrativa consistente (Leakey, 1995; Leakey e Lewin, 1988), embora coalhada de lacunas importantes. As forças evolutivas que fizeram o homem emergir foram forças cegas, segundo Darwin e todos os biólogos que acreditam em uma interpretação realista da evolução. Todavia, é profundamente equivocado pensar, como pensam alunos do ensino médio, que a evolução do homem (e de outras espécies) ocorreu ao acaso. Muitos filósofos e cientistas que tentam compreender o fenômeno biológico afirmam que a seleção natural é o elemento antiacaso da evolução. Em Levando Darwin a sério, Michael Ruse (1995) sugere que, para fins de compreensão, a evolução biológica pode ser dividida em três partes: evolução como fato (o fato de que a vida na Terra vem se modificando profundamente em seus cinco bilhões de anos de existência); evolução como caminho (a história dos grandes grupos taxionômicos, como os mamíferos, ou as plantas; ou a história específica de cada espécie: por exemplo, a evolução do gênero Homo a partir do gênero Australopitecus); a evolução como causa (ou as causas da evolução: seleção natural, deriva [neutralismo], efeito do fundador, equilíbrio pontuado, deriva ontogenética, cladismo). O último item, a causa ou causas da evolução, é o que oferece maiores dificuldades, sobretudo porque ainda hoje existem grandes controvérsias filosóficas acerca da importância e do status ontológico da seleção natural. Mesmo entre cientistas debate-se se a seleção natural é necessária e suficiente para explicar a grande diversidade e variedade de formas vivas. Entretanto, embora a teoria da seleção natural seja criticada por todos os lados, ninguém estuda a evolução biológica sem utilizar esse conceito. Dobzhansky (1973) afirmou que "nada faz sentido em biologia senão à luz da evolução". Embora essas sejam as palavras de um evolucionista, e portanto devam ser relativizadas, os alunos que abandonam o ensino médio e ingressam nas universidades do Brasil e do mundo provavelmente levam para a vida acadêmica e profissional uma imagem no mínimo distorcida da teoria da evolução. Em meados de 1999 a mídia divulgou a disputa jurídica que culminou com a eliminação da obrigatoriedade de se ministrar a teoria da evolução no ensino médio das escolas do Kansas e de outros estados norte-americanos. Essa disputa reedita outras que ocorreram no passado e reflete a resistência dos chamados 'criacionistas' em aceitar a evolução como um fato cientificamente corroborado. Embora no Brasil o problema religioso não seja tão acentuado, a teoria da evolução não recebe a ênfase que reclama para ela vários filósofos e cientistas. É o lugar do homem na história da vida na Terra que está em jogo. E que lugar esse animal social ocupa na história da vida e da natureza? Estudos feitos em várias partes do mundo com alunos que já tinham passado pelo ensino formal da evolução darwiniana, na verdade pelo ensino da teoria sintética da evolução, demonstram que eles pouco absorveram dessas teorias, apresentando especial dificuldade para promover a síntese entre a teoria da mudança de Darwin, a teoria da permanência de Mendel e a teoria molecular do gene. E levam sobretudo para a vida profissional e acadêmica a idéia de que o homem é o ápice da evolução, de que o mundo é feito para as nossas necessidades, do eu, do indivíduo atomizado na sociedade de consumo. Uma visão lamarckista e cartesiana, sem dúvida. Os alunos de ensino médio confundem ainda evolução biológica com evolução cultural, além de interpretarem a ciência como um conjunto de regras fixas para chegar a um resultado verdadeiro e definitivo. Sugiro que uma possível origem do problema da má assimilação de teorias evolutivas (históricas) por parte de alunos de segundo grau está enraizada, pelo menos no Brasil, na fragmentação do conhecimento, um grande problema de nossos currículos de ensino fundamental, da quinta à oitava série. Na quinta série estudamos o planeta Terra, um pouco de sua geologia, um pouco da evolução de sua vida, a transformação dos climas, um pouquinho de física, um outro tanto de química, e uma série de outras informações 'científicas'. Na sexta série estudamos a evolução dos seres vivos, mas o foco ainda está na descrição e nomeação de espécies, estruturas e funções, sem muita atenção ao processo evolutivo, que se desdobra por dezenas e centenas de milhões de anos. A evolução é ensinada como um assunto a mais, perdido no meio de nomes e de nomes de estruturas. Na sétima série ensinamos o corpo humano, mas continuamos a incentivar a concepção de ciência como memorização, em vez de investir no espírito aventuresco da descoberta científica, vertiginoso e autocrítico. Note-se que a biologia é um dos focos fundamentais dessas três séries consecutivas de 'ciências'. Na oitava série, o estudo da biologia e do homem é incrivelmente interrompido, substituído pelo estudo da física e da química, como se essas disciplinas pouco ou nada tivessem a ver com as ciências da vida. A fragmentação não poderia ser mais dramática. Sobretudo quando, na primeira série do ensino médio, a biologia volta com toda força reduzida ao estudo da célula invisível e de suas estruturas e processos microscópicos. As leis que regem o ensino da biologia prevêem que no estudo dessa ciência a ecologia e a evolução ocupem um lugar primordial. Infelizmente, a realidade das salas de aula é outra. Existe uma grande dificuldade em lidar com um volume de conhecimentos muito grande, pois na verdade a biologia atual exige que se saiba pelo menos, em uma boa base, um pouco de química, de física, de matemática (principalmente estatística), de geologia, de paleontologia, e também de história e de geografia. Não há disposição e tempo requeridos para o professor se manter atualizado. Vivemos nesses tempos de crise, em que a ciência que procura descobrir as raízes do homem e de seu comportamento é encarada como uma disciplina teórica qualquer e ensinada aos futuros dirigentes das nossas cidades e da nação sem uma pergunta mais profunda sobre o lugar da espécie humana e de cada um de nós na "economia da natureza", para usar as palavras de Darwin. Como já foi referido em nota anteriormente, esse não é o fim da história. Nos últimos anos, inspirado principalmente por Baldwin e depois por Waddington, o lamarckismo tem revivido, embora em uma reinterpretação heterodoxa (Jablonka, 1998). Vários cientistas têm demonstrado que, apesar de as necessidades dos indivíduos não poderem alterar propriamente o código genético, a necessidade e também o próprio comportamento podem contribuir para um fenômeno de amplificação, por meio da seleção natural, da expressão de um determinado fenótipo, acelerando a evolução enquanto o entorno se mantiver aproximadamente constante.

A má assimilação do neo-evolucionismo entre alunos do ensino médio

Para as ciências biológicas, o darwinismo permanece vivo muito após o desaparecimento de Darwin. O meme evolucionista continua progredindo. Todavia, muitas pessoas instruídas continuam cartesianamente agindo no mundo como se ele fosse modelável por nós, enquanto o revolucionário e subversivo é que os genes (e também os memes) podem ser interpretados como egoístas, irracionais e inconscientes e agem a despeito de nossa vontade ou conhecimento. Os genes são egoístas no sentido de que sua lógica própria de reprodução, desconhecendo qualquer intencionalidade, favorece justamente aquelas máquinas de sobrevivência mais aptas para propagar os próprios genes. Nós somos máquinas de reprodução dos genes. Nesse sentido, a atual propaganda sobre o sexo não faz mais do que reforçar uma velha receita evolutiva. Há sem dúvida um mundo além da razão e dos sentimentos, e esse mundo não é necessariamente bonito nem bom. Todavia, sua realidade (histórica) gravada nas rochas, no DNA, nas relações de parentesco, na estrutura da sociedade globalizada, nas bibliotecas do labirinto, sugere que o fenômeno complexo que chamamos vida engloba a vida em sociedade, e não o contrário. Não é o caso de reduzir gananciosamente a sociologia à biologia, mas reconhecer que a biologia é estrutural para a sociologia. Assim como a física e a química são estruturais para a biologia. Não se trata exatamente de redução, mas de causação descendente (Popper, 1995, p. 39). Os homens em sociedade (ou mesmo em uma imaginável situação em que estariam fora dela) são feitos de carne, copulam para procriar (por puro prazer ou por dinheiro também), têm uma dezena de bilhões de neurônios, dois olhos, ossos, células... E é no código genético das células sexuais, os espermatozóides e os óvulos, que está gravada quimicamente a receita para reproduzir corpos.

É claro que a origem de um fenômeno não explica seu desenvolvimento — devemos evitar o que ficou conhecido como a falácia genética. A origem de um fenômeno não explica seu desenvolvimento nem tampouco seu estado atual. Não podemos explicar toda a história por genes, mas os genes são ao menos personagens muito importantes. Darwin não se preocupou exatamente com a teoria da herança genética, e sim com o processo de transformação das espécies. Isso não o impediu de chegar à engenhosa teoria da evolução por seleção natural, em que a descendência com modificações ao acaso era a base material sobre a qual operava a seleção natural, gerando assim, dado o vasto tempo geológico, a diversidade de espécies que ele desejava explicar. A chamada teoria sintética de evolução, como o nome indica, postula uma espécie de complementaridade entre o darwinismo e as leis da genética clássica de Mendel e o seu desenvolvimento no século XX. O que é mais importante nessa asso-ciação entre genética e evolução, que apresenta várias nuanças entre personagens históricos e idéias científicas, é que a herança dos caracteres adquiridos, a genial teoria de Lamarck, adotada muitas vezes pelo próprio Darwin, foi finalmente banida da ciência e hoje faz parte da história.

Recebido para publicação em outubro de 2000.

Aprovado para publicação em fevereiro de 2001.

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    , a pergunta que logo me ocorreu foi: que contribuições a biologia atual poderia oferecer para problemas que afligem as ciências sociais? Essa pergunta implicava imediatamente a seguinte: que problemas sociais ou humanos clamam por uma luz vinda das ciências biológicas?
    Note-se que essas questões não admitem respostas simples. Antes de mais nada, tanto a biologia como a teoria social são ciências com inúmeras ramificações. De que biologia se fala: da embriologia, da anatomia, da fisiologia, da paleontologia, da evolução, da psicologia animal, da biologia molecular? De que teoria social se fala: da sociologia, da historiografia, da filosofia, dos estudos literários? Sem querer cair em problema de definição, a questão que nos concerne aqui hoje diz respeito à teoria biológica que se conhece como teoria da evolução, também chamada de neo-evolucionismo ou teoria sintética da evolução. Para meus fins me dirigirei a essa doutrina como a atualização crítica do darwinismo que hoje se aplica a todas as ciências biológicas. Entretanto, o neo-evolucionismo não é uma teoria consensual. Existe, no mínimo, uma polarização entre aqueles que crêem que a seleção natural é o único ou o mais importante mecanismo causal e direcional, e aqueles que crêem que a evolução estará sempre encoberta por mistérios e que a mente humana jamais terá capacidade para explicar a história da vida na Terra por inteiro. Embora esse quadro seja declaradamente esquemático, é possível preenchê-lo colocando Richard Dawkins e Daniel Dennett de um lado e Stephen Jay Gould, Richard Lewontin e Noam Chomsky do outro (Dennett, 1998). Gostaria de deixar claro que a história do debate acerca das causas da evolução compreende um sem-número de outros cientistas e filósofos importantes, sobretudo, mas não exclusivamente, da Europa e dos Estados Unidos.
    Sublinho uma trivialidade: o homem é um animal social. A expressão 'animal social' possui obviamente dois termos. A aceitação de que o homem é um animal é muito antiga e talvez seja anterior a Aristóteles (o homem é um animal político). Mas a idéia de que o homem compartilha com 'todos' os animais e plantas 'um' ancestral comum data de aproximadamente 140 anos.
    A origem das espécies de Charles Darwin, que completou silenciosamente essa idade no dia 24 de novembro de 1999, é certamente um marco nesse assunto. Entre as questões que podem ser derivadas da teoria de Darwin está aquela que raciocina que, se o homem é um animal social, se também divisamos outros animais sociais na natureza, então a socialização do homem poderia ser estudada biologicamente, evolutivamente, naturalisticamente, como a de um animal qualquer. Ocorre que assim caímos num intrincado paradoxo circular, pois trata-se da mente humana procurando descobrir como a própria mente humana emergiu e funciona.
    As idéias de Darwin continuam válidas hoje? O que é exatamente o evolucionismo? E o neodarwinismo? Qual é a causa ou quais são as causas da evolução? Qual o estatuto ontológico da seleção natural? Que papel ocupa o acaso nas teorias evolucionistas? Como se explicam os processos cognitivos do homem e de outros animais? Essas perguntas, entre outras, têm sido feitas há dois anos pelo grupo de estudos 'O darwinismo em questão', que faz parte do Núcleo de Filosofia das Ciências da Vida e da Saúde, coordenado pela filósofa dra. Vera Vidal. Resultados concretos dessas atividades podem ser constatados nos artigos dessa seção da revista
    Manguinhos, nas palestras proferidas gravadas em fitas cassete (ainda indisponíveis) ao longo dos anos de 1999 e 2000, nos encontros regulares e trabalhos finais dos inscritos no referido grupo de estudos.
    O número de publicações direta e indiretamente ligadas ao tema do darwinismo é impressionante. Na rede internacional de comunicações (Internet), o nome "Charles Darwin" dá acesso a 66.786
    sites. Se podemos medir a vitalidade e a fertilidade de uma teoria científica e filosófica pelo volume de textos que induz, então a idéia fundamental de Darwin continua mais viva do que nunca. Ao mesmo tempo, o próprio mercado brasileiro tem se empenhado em traduzir, em muitos casos pela primeira vez, clássicos da literatura da biologia evolutiva, como uma seleção de cartas de Darwin (2000a), sua autobiografia (2000b) e sua obra sobre a expressão das emoções no homem e nos animais (2000c).
    Entretanto, as dificuldades de estudar as idéias de Darwin dentro de seu próprio contexto são muitas. Embora a medula da teoria seja simples e possa ser resumida em um silogismo muito econômico, baseado em duas premissas e uma conclusão,
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    as idéias de Darwin pululam em seu texto e não é fácil destrinchar os nós desse labirinto, sobretudo quando muitos darwinistas e antidarwinistas se apropriaram dessas idéias de forma equívoca, para fins ideológicos muito distintos. Além disso, não se trata especificamente da importância da idéia de um homem transformado em herói ou santo, Charles Darwin, mas de uma reflexão que ocorre em torno da idéia de uma explicação causal, a seleção natural, acerca da diversidade e da adaptação dos seres vivos aos seus ambientes naturais, sem interferência de poderes divinos. Isso é o que o filósofo da ciência Imre Lakatos (
    apud Regner, 1994, p. 108) chamaria de história interna da ciência: a parte lógica e epistemológica de uma teoria, a face objetiva da empresa científica.
    Por outro lado, o contexto social, econômico e político no qual se insere o personagem histórico Darwin é extremamente mais complexo, brilhante e irracional, como demonstra, por exemplo, já pelo título, a famosa biografia
    Darwin: a vida de um evolucionista atormentado (Desmond e Moore, 1995). Essa obra apresenta, desde o início, o entrelaçamento inexorável entre o trabalho científico de Darwin e sua inserção em um contexto histórico específico e em mutação. Uma imagem que fica dessa obra é a da tensão instável e crítica entre as descobertas de um homem, as resistências de outros, as aderências de terceiros, as críticas amigáveis e as destrutivas, os desenvolvimentos e apropriações da perigosa idéia de que há uma explicação natural para a diversidade de seres vivos e de suas estruturas adaptativas. A descoberta de Darwin não é a obra de um homem, mas uma descoberta feita por gerações que lutaram e lutam contra o preconceito e o dogmatismo, para tentar tirar a humanidade das trevas da ignorância e olhar para além de espelhos circulares ou divinos.
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    Darwin afirmou que, como todas as outras formas de vida, o ser humano também é um produto histórico e contingente da luta pela sobrevivência que se trava entre as espécies próximas e, principalmente, entre indivíduos de uma mesma espécie e de uma mesma população. Essa luta, entretanto, no mais das vezes, não é um combate corporal direto contra um oponente ou inimigo, mas uma luta silenciosa pelos recursos naturais disponíveis que, embora sejam fartos, pela extensão da matéria viva, tornam-se logicamente limitados. O recurso natural talvez mais importante, bastante disponível mas limitado na natureza, são os parceiros sexuais. Estamos falando aqui, é claro, daquelas espécies que se reproduzem sexualmente. É a partir da possibilidade do acasalamento e da procriação que se consegue contar uma história de parentescos, de genealogias, história que pode ser descoberta, recuperada, com trabalho e sorte, tanto por meio do estudo e da classificação dos fósseis, como pela comparação da embriologia de diversos grupos (de animais e plantas), assim como pela comparação das seqüências de bases nitrogenadas dos genes das mais diferentes espécies.
    Embora alguns historiadores e filósofos da ciência considerem a evolução por seleção natural o mero reflexo da competitiva sociedade vitoriana em que Darwin viveu, a verdade talvez esteja mais próxima de ser encontrada a meio caminho entre as teses que crêem que a teoria de Darwin apenas espelha a sociedade de sua época e aquelas que acreditam que a hipótese de Darwin se refere a algo objetivo, que se encontra decididamente na realidade (e não apenas na mente humana).
    Darwin relacionou os seres vivos não pelas características semelhantes ou diferentes que os indivíduos possuíam entre si (conceito tipológico ou essencialista de espécie), mas por suas relações de descendência hereditária, por seu parentesco ou genealogia (Mayr, 1987; Ghiselin, 1987; Hull, 1987). Darwin estava trabalhando sobre o problema da origem das espécies, no sentido de buscar uma explicação natural para a talvez incomensurável diversidade de espécies que se pode observar no mundo vivo. Desmond e Moore (1995, pp.3
    59-70) contam que, quando Darwin foi estudar os cirripédios ¾ pequenos crustáceos que vivem nas crostas rochosas do mar ¾, pensou que os indivíduos e as espécies deveriam ser muito parecidos. Para seu espanto, descobriu que as diferenças entre os indivíduos e entre os diferentes grupos desse pequeno artrópode com concha eram imensas, o que lhe rendeu um trabalho muito mais longo e fastidioso do que a princípio previra.
    Darwin advogou em
    A origem das espécies (p. 78) que "variedades são espécies incipientes". A fonte primária da evolução para ele são as sutis diferenças que existem mesmo entre dois seres vivos de uma mesma ninhada, ou seja, mesmo entre dois irmãos. Darwin afirma em sua obra magna que lhe importam 'apenas' as variações que são hereditárias. Estudiosos da história das ciências biológicas sabem que Charles Darwin não possuía uma teoria da herança aceitável. Darwin desenvolveu a idéia, em escritos posteriores a
    A origem das espécies, de que as características adquiridas durante a vida seriam representadas em gêmulas que migrariam para as gônadas feminina e masculina no período reprodutivo, passando assim para a próxima geração. A hipótese segundo a qual todas as partes do corpo fornecem material genético, sob a forma de gêmulas, para os órgãos reprodutores e, particularmente, para os gametas é chamada de pangênese (Mayr, 1998, p. 1.085). Os experimentos de Weissman, cortando o rabo de camundongos machos e fêmeas e os cruzando durante várias gerações, demonstram que a herança dos caracteres adquiridos não é uma teoria empiricamente aceitável.
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    Como para o bíblico Jacó, cujas ovelhas listradas eram o resultado de seus progenitores ovinos olharem para um bambuzal enquanto copulavam, a explicação lamarckista para a adaptação dos seres vivos tornou-se quase um mito.
    A modificação a partir do uso e do desuso é uma intuição que vemos confirmada no mundo mais imediato e cotidiano: os desportistas são muito musculosos, animais mantidos em cativeiros sofrem atrofia nos membros, aqueles de nós que praticam a matemática e o hábito da leitura ficam cada vez mais desenvolvidos nessas atividades intelectuais. Entretanto, a redescoberta da genética de Mendel no raiar do século XX cerrou para sempre a direção fenótipo-genótipo para a modificação hereditária. Ou seja, caracteres adquiridos durante a vida não são herdáveis. A chamada segunda lei de Lamarck está errada. Aquele rabo decepado durante a perseguição, aquele dedo perdido em um acidente, aqueles músculos conquistados pela luta contínua não são transmitidos aos filhos. As modificações que um corpo individual sofre em sua passagem pela vida não são preservadas nos indivíduos que lhe sucedem. O que é reproduzido nas gerações seguintes é o plano ou receita básica para construir cada novo organismo.
    A história da biologia mostra que inicialmente mendelianos e darwinistas se opuseram como o fogo à água (Bowler, 1989, pp. 246-81; Mayr, 1998, pp. 601-13). A teoria de Darwin explicava a evolução, a mudança dos seres vivos; a teoria de Mendel explicava a permanência: como uma característica 'reaparecia' na geração seguinte. Mendel queria saber como as características se transmitiam dos ascendentes para os descendentes. Darwin explicou como as espécies de seres vivos mudavam a partir da acumulação hereditária (histórica) das diferenças entre indivíduos. A variação individual para ele era a matéria-prima da seleção natural e da evolução.
    Ocorre que a genética alcançou um desenvolvimento técnico espetacular no século XX. Os achados de Darwin viram-se confirmados na linguagem das seqüências de citosinas, timinas, adeninas e guaninas, que fazem parte do DNA. A descoberta do código genético não só corroborou, no nível molecular, a idéia evolutiva de Darwin como consubstanciou quimicamente os 'fatores' de Mendel. Entretanto, as conseqüências do darwinismo são menos pragmáticas do que verdadeiramente filosóficas. Hoje em dia, são as práticas espetaculares das clonagens, do projeto Genoma Humano, das terapias gênicas, dos animais e plantas transgênicos, que chegam ao público em geral. Ovelhas clonadas a partir de células de outras, ratos com orelhas, porcos com genes humanos, o cenário é bem
    Blade Runner.
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    Mas não é apenas isso: os genes carregam informações para construir proteínas. As proteínas são as moléculas que, essencialmente, formam a estrutura física de nosso corpo e de todos os outros animais e plantas (e também dos microrganismos, de células e de estruturas celulares): ossos, sangue, pele, pêlo, unha, galhos, flores, raízes, membranas, mitocôndrias e um número virtualmente infinito de outras estruturas físicas macroscópicas e microscópicas. Além disso, existe uma classe especial de proteínas com propriedades catalíticas, as enzimas, que, embora não constituam a estrutura física dos corpos, são responsáveis por acelerar reações químicas vitais. Sem as enzimas, essas reações seriam tão lentas que a vida não existiria. Assim, todo o mundo orgânico é feito de proteínas e depende delas. Todo aluno de ensino médio (antigo segundo grau) deveria saber isso. A questão é que a descoberta do DNA como a molécula responsável pela transmissão das características hereditárias é contada topicamente, desvinculada de tudo mais, do darwinismo, do mendelismo, do neo-evolucionismo, como uma mônada inarticulada no espaço e no tempo.
    A informação genética é transferida do gene para a proteína, o que torna ilegítimo o tipo de herança lamarckista. Por meio das moléculas de DNA contidas no espermatozóide e no óvulo dos progenitores, a prole herda a receita genética para produzir as proteínas que a formarão. O meio ambiente não informa ao corpo como devem ser os corpos nas gerações futuras. As gerações não evoluem, as espécies não se transformam umas nas outras, de nenhum modo, por algum esforço ou necessidade de adaptação dos seres individuais às condições do entorno. Pelo menos em um primeiro momento.
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    De fato, o DNA é uma molécula altamente conservadora. Sua lógica algorítmica é produzir cópias absolutamente idênticas de si a partir de si. Todavia, ocorrem nesse processo erros de cópia. Se não fosse assim, a vida não teria evoluído, não existiriam insetos e aves, baleias e peixes, anêmonas e árvores. A reprodução dos seres vivos, mesmo dos mais simples, não é exata. Erros de cópia por definição são chamados de mutação. Uma vez que o DNA possui estrutura física bem definida, as modificações que por acaso ocorram são cegas. Isso significa que uma mudança de base nitrogenada ocorre independentemente das necessidades externas e macroscópicas (e às vezes subjetivas) do organismo em questão.
    Para compreender a estrutura molecular que nos faz matéria foi necessário romper com o mito da descontinuidade entre o orgânico e o inorgânico. Até as primeiras décadas do século XIX, acreditava-se que as chamadas substâncias orgânicas (aquelas cuja estrutura é uma cadeia de átomos de carbono, como as proteínas) só poderiam ser produzidas como resultado de processos que ocorriam por intermédio dos seres vivos. Entretanto, em 1828, Friederich Wöhler conseguiu sintetizar uréia (um excreto orgânico de diversos animais presente também no leite e no sangue) a partir de substâncias inorgânicas (Ronan, 1987, pp. 42-3). A barreira entre orgânico e inorgânico, entre o mundo animado e inanimado começava a ser derrubada. Tal descoberta serviu de base para Oparin (1963), quase cem anos depois, supor que, se os químicos são capazes de sintetizar substâncias orgânicas em laboratório, é possível que, na Terra primitiva, átomos de certas substâncias simples pudessem se ligar de maneira a formar compostos orgânicos mais complexos. É a idéia de evolução pré-biótica. Dado um tempo geológico verdadeiramente longo, digamos quinhentos milhões de anos (5 x 10
    8 anos), a matéria orgânica poderia surgir da matéria inorgânica. Note-se que é uma tentativa de contar uma história de como a vida poderia ter se originado.
    Ainda hoje, o salto das moléculas orgânicas para a vida não é compreendido completamente. As teorias que discutem a origem da vida sobre a Terra são todas bastante conjecturais e nunca poderão ser diretamente testadas, pois a origem da vida na Terra foi um fenômeno histórico e, como tal, único e irrepetível. Os coacervados de Oparin não gozam atualmente de prestígio científico, mas eles abriram uma passagem para se imaginar o cenário de uma Terra primitiva, com uma atmosfera quimicamente distinta da nossa, na qual pequenas substâncias se combinavam devido a circunstâncias históricas específicas.
    Voltando um pouco no tempo, a partir talvez dos experimentos cuidadosos e simples, Mendel descobriu, na segunda metade do século XIX, que existiam 'fatores' responsáveis pela transmissão das características hereditárias e como eles se distribuíam de geração em geração. Mendel não estudou os fatores no nível molecular, que era inacessível à sua época. O termo 'gene' foi adotado mais tardiamente, em um tempo em que 'o pai da genética' já havia morrido. Durante cerca de cinqüenta anos perduraram as dúvidas acerca de qual seria a base química dos 'fatores' mendelianos.
    Provavelmente sem suspeitar sequer da existência dos trabalhos de Mendel, em 1869, um médico suíço de 22 anos, Friederich Miescher, isolou dos núcleos de células de pus, "obtido de ataduras usadas na guerra franco-prussiana", e de esperma de salmão uma molécula que ainda não fora identificada. Miescher deu a essas moléculas o nome de nucleínas (Burns, 1984, p. 318). Mais tarde, o nome dessa entidade química seria universalmente adotado como ácido desoxirribonucléico ou DNA (ou ADN). Assim como as proteínas, os DNAs são polímeros, só que estes são polímeros de nucleotídeos aminoácidos, enquanto as proteínas são cadeias de aminoácidos.
    Ocorreu um lapso de quase cem anos entre essa descoberta e a correlação entre o DNA e a transmissão das características genéticas ou hereditárias. As proteínas foram consideradas fortes candidatas para a função da transmissão do código capaz de produzir um novo corpo a partir da fecundação, pois estavam presentes em todos os organismos vivos, e isto era logicamente essencial se se desejava descobrir a molécula que transmitisse o código hereditário universal, ou seja, presente em todos os seres vivos. Entretanto, o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sofisticadas, provenientes da física e da química, permitiu não só comprovar que os ácidos nucléicos também eram universalmente encontrados no reino dos vivos, mas também que o DNA era a molécula química em que se localizavam os fatores de Mendel, os genes.
    Em 1928, o microbiologista Frederick Griffith inoculou camundongos saudáveis com uma cepa não-virulenta de bactérias da espécie
    Diplococus pneumoniae, mas que tinham tido contato com extratos de cepas de
    Diplococus pneumoniae mortas por calor. O resultado foi a morte dos camundongos. A explicação foi que as bactérias não-virulentas foram 'transformadas' por uma substância que deveria estar ainda intacta e ativa no citoplasma das bactérias virulentas mortas pelo aquecimento. O experimento ficou conhecido como 'transformação de bactérias' ou 'efeito Griffith' e é considerado o primeiro passo na identificação do material genético (Burns, 1984, p. 318).
    Apesar de extremamente elegante e promissor, o efeito Griffith não respondia qual substância teria sido responsável pela transformação do
    Diplococus pneumoniae não-virulento em virulento. Dezesseis anos depois, em 1944, três cientistas — Avery, MacLeod e McCarty — repetiram com sucesso a experiência de Griffith. Só que, em vez de trabalharem com um modelo animal, trabalharam
    in vitro, e foram capazes de identificar a 'substância transformante', o DNA (Burns, 1984, p. 319; Stahl (1970, pp. 27-8); Petit e Prévost (1970, pp. 20-1, 31).
    Em 1953, James Watson e Francis Crick propuseram um modelo molecular para o DNA após um ano e meio de trabalho na Universidade de Cambridge. O modelo foi tão importante para a biologia que Watson e Crick dividiram mais tarde o prêmio Nobel de medicina. O avanço da biologia molecular após a descoberta da estrutura do DNA foi extraordinário. A replicação do DNA foi estudada nos laboratórios, assim como o processo de 'expressão' gênica ('transcrição' do DNA em RNA e 'tradução' do RNA em proteínas). Hoje em dia, pode-se determinar o código genético de todas as proteínas cuja seqüência de aminoácidos é conhecida empiricamente. São conhecidas também as alterações (mutações) nas proteínas que causam inúmeras doenças. Decifrar todo o código genético humano foi um sonho que está prestes a se realizar. Entretanto, uma vez mapeado o genoma de nossa espécie, o que fazer com essa fantástica descoberta? Essa é uma pergunta extensamente debatida, como demonstram, por exemplo, as atas do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, de 1998, e o Dossiê Genética da Universidade de São Paulo (USP), de 1994. A questão do mapeamento do genoma humano é algo que, assim como as questões do conhecimento e da linguagem, interessa a todos os homens, e não apenas aos especialistas.
    A descoberta da estrutura do DNA foi possível devido a uma série de desenvolvimentos teóricos e tecnológicos que permitiram um mergulho no mundo molecular, invisível ao olho desarmado. O DNA encontra-se, na maior parte do tempo, no interior do núcleo de uma determinada célula. Células não vivem sozinhas. Mas estão estruturadas em tecidos que por sua vez dão origem a órgãos, estes a sistemas (nervoso, cardiovascular, esquelético, digestivo); por sua vez estes estruturam organismos que podem se agrupar em populações e até em sociedades. As conseqüências sociais e científicas da descoberta das duas funções básicas do DNA, replicação e síntese, são indisputáveis. O avanço na detecção de doenças genéticas, o tratamento por meio de terapias gênicas, o desenvolvimento de vacinas de DNA, o melhoramento alimentar (animal e vegetal) por técnicas moleculares permitem hoje uma abordagem interventora que revoluciona as relações sociais. Entretanto, a compreensão da base científica e filosófica desses achados está restrita a um público pequeno e no mais das vezes acadêmico, e infelizmente não é proposto até aqui o amplo e desejável debate com outros setores da sociedade.
    Hoje, a engenharia biológica pode fazer um tecido orgânico doente expressar a proteína cuja ausência o condena. A intervenção humana permite que algo que não trazemos dentro do núcleo de nossas células seja ali alocado. Genes de uma espécie expressam suas proteínas no corpo celular de outra espécie. O conceito de identidade biológica se vê questionado. A ciência também tem descoberto que, na natureza, o material genético de 'todos' os seres vivos não é tão idêntico a si mesmo, durante toda a vida do indivíduo que o transporta. Vírus, plasmídeos bacterianos e transposons são exemplos de partículas de DNA capazes de se integrar nos cromossomos de animais e plantas. Além do mais, um tempo após ficar ali residindo, essas partículas podem abandonar sua morada "levando pedaços do DNA-hospedeiro junto" (Shapiro, 1999). Entretanto, todas essas maravilhas não significam que agora sabemos tudo sobre a natureza dos seres vivos em seus vários níveis de organização. Muito pelo contrário.
    Somente nas últimas décadas as ciências biológicas têm interferido diretamente, em termos moleculares e físicos, no curso dessa história. Mas o homem em sociedade sempre se interessou em produzir de forma artificial uma melhor colheita de trigo e um melhor rendimento de seus rebanhos. Como dependemos da vida de outros seres vivos para nossa sobrevivência, os mecanismos pelos quais a vida se perpetua sempre nos interessaram. Ao engenheirar geneticamente um organismo, e sobretudo o próprio homem, a interação entre o gene que entra e o genoma 'selvagem' como um todo não pode ser prevista. Não há sequer uma história acerca dessa interferência, uma vez que a descoberta dos processos epigenéticos é apenas incipiente. As interações entre genótipo e fenótipo, a epigênese, estão longe de ser completamente desvendadas. A biologia do desenvolvimento está apenas na infância. Aprendemos que o fenótipo é o produto da interação entre o genótipo e o meio ambiente. Todavia, essa interação é extremamente complexa. Os genes se encontram em ambientes de genes, de DNA (em ambientes atômicos e subatômicos). Ao mesmo tempo o DNA está localizado no núcleo das células eucarióticas (e no citoplasma das procarióticas), mergulhado em um minúsculo oceano protéico. As células se encontram reunidas em tecidos. Os tecidos estruturam órgãos. E assim por diante.
    A questão que estou querendo propor aqui é a da relação que pode existir entre genes e a cultura humana. É certo que o crescimento do cérebro no gênero
    Homo nos últimos sete milhões de anos foi algo extraordinário. É claro que a cultura humana deve muito à linguagem articulada, ao relato de mitos, à conversa cotidiana, à elaboração de livros. O difícil é saber quem cria quem, em que medida o cérebro constrói a linguagem (as linguagens) ou a linguagem constrói o cérebro. Pois trata-se de um processo de retroalimentação positiva em que o estímulo de um dos lados favorece o estímulo do outro.
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    Ele tenta estabelecer criticamente uma relação entre genes e memes, entre a biologia e a cultura, sem tentar reduzir gananciosamente uma à outra. A questão, no entanto, começa a se mostrar mais complexa, pois o darwinismo, reinterpretado dessa maneira, ameaça invadir outras áreas do conhecimento com sua concepção genealógica, histórica. A evolução cultural é o desenvol-vimento de idéias e, sobretudo, de práticas associadas a essas idéias. É uma história de concepções de mundo que se modificam com o passar do tempo, tanto que, ao olharmos, através dos textos, para civilizações passadas, no mais das vezes não apreendemos de imediato seus significados. A perspectiva histórica, o reconhecimento de que a vida de ontem pode ter sido muito diferente da de hoje, a cautela para não projetar rápido demais preconceitos atuais sobre outras épocas são antídotos admissíveis, embora falíveis, para não promover uma antropomorfização do universo e de fenômenos que gostaríamos de compreender.
    Existem historiadores e filósofos da ciência que acreditam que a biologia nasce como ciência, estruturando-se, profissionalizando-se, institucionalizando-se, a partir de Darwin (Caron, 1988). Talvez a biologia tenha nascido algumas décadas antes de Darwin, ou alguns anos depois dele. O que importa é que o estudo da biologia ganha com Darwin, a partir dele, uma perspectiva 'histórica' jamais vista antes. Trazemos talvez de nosso passado escolar a idéia de que a história começa com o registro escrito; a pré-história é obviamente tudo o que vem antes dela. Todavia, estudos teóricos e práticos da biologia evolutiva têm demonstrado que esse 'antes' é muito mais profundo e complexo do que se pensava. Esse passado biológico também padece do problema da reconstrução histórica, que é trabalhar sempre a partir de informações fragmentadas e insuficientes. Querendo descobrir a história pela qual os seres vivos se originaram e evoluíram sobre a Terra, o cientista quer conhecer um processo que foi multidimensional. Seu significado talvez resida na relação entre vários e múltiplos níveis de visão (e de interpretação). Seja partindo do registro fóssil, da comparação entre embriões de várias espécies, da distribuição geográfica dos seres vivos, da composição genética de animais, plantas, microrganismos e fungos, o que importa é descobrir se existe a possibilidade de uma narrativa científica consistente que possa ser contada a "partir desses dados insuficientes". De qualquer forma, trata-se de recuperar um tempo profundo, de dezenas e centenas de milhões de anos, às vezes bilhões de anos, para reconstruir os passos e os processos que levaram à emergência de formas vivas que, por sua vez, se ramificam.
    Os seres vivos transformam-se acompanhando as ondas de mudanças ambientais profundas, alteradas por sua vez por fenômenos geológicos monótonos ou por catástrofes imprevistas. A biologia, desde seu início, estabelece um diálogo com a geologia, com a meteorologia e, mais tarde, com a química e a física. Naturalmente a história do próprio homem, interesse da antropologia, é uma ponte entre as chamadas ciências biológicas e as ciências sociais. Dado que a emergência e o desenvolvimento do homem a partir de suas raízes primatas são aceitos entre cientistas, sociólogos e filósofos, a pergunta 'de onde viemos?' está obviamente respondida: viemos de um ancestral comum entre os homens, os chimpanzés e os gorilas.
    Entretanto, a questão não está resolvida, sobretudo porque desejaríamos descobrir como viemos parar aqui, em meio a tantas conquistas e tantos conflitos. Existem inúmeras teorias que tentam explicar como o homem evoluiu, ou seja, como chegou a ser o que é hoje. O dr. Hector Seuánez (1979, p. 3), professor do Departamento de Genética da UFRJ apresenta o paradoxo do crescimento rápido do cérebro humano:
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    Entretanto, na medida em que o
    Homo sapiens foi se tornando uma criatura cultural, com várias instituições, como a Igreja, o Estado, os partidos políticos, a escola etc., a luta pela sobrevivência deixou de se dar no cenário natural. O homem não vive mais na natureza, mas em sociedade, em cultura. Não é a lógica dos genes que impera, mas uma lógica gravada em linguagem — quer seja essa linguagem a da estrutura primitiva dos mitos, quer seja a da propaganda, da moda, da política ou da Academia. Todas essas linguagens vivem em um ambiente que ignora a natureza selvagem e se torna civilizada e urbana. Acordamos diariamente para ir ao trabalho, discutimos política e futebol, almoçamos em restaurantes a peso, e nada disso pode ser encontrado no estado natural.
    Segundo muitos adeptos da teoria dos memes, o que é fundamental na cultura, aquilo mesmo que está na sua origem ou raiz, é a capacidade de imitação. Um meme é uma unidade de imitação. Estou tentando mimetizar o darwinismo aqui porque acredito que sua compreensão conduz a uma forma de interpretar a natureza que sugere olhar a ciência não apenas como o produto de nossas limitações, mas também como expressão da riqueza dos seres que habitam a Terra. Nessa direção acredito que nossa curta participação na história deste planeta é tudo que temos, o maior dos tesouros.
    A evolução biológica implica o reconhecimento de um tempo histórico muito, mas muito mais vasto do que a história humana. A teoria da evolução é produto da mente humana. O homem emergiu tarde na história evolutiva. Os grandes répteis, por exemplo, dinossauros, tiranossauros e brontossauros, desapareceram da Terra há 65 milhões de anos. A família
    hominidae, da qual bem mais tarde se originaria o
    Homo sapiens sapiens, apareceu há cerca de sete milhões de anos. O homem moderno atual, tal qual poderia ser reconhecido por qualquer um como ser humano no meio da rua, apareceu apenas há quarenta mil anos! A Terra existe há uns cinco bilhões de anos e a vida há uns quatro bilhões e meio. Durante muito mais da metade desse tempo este planeta foi povoado apenas por organismos microscópicos. Somente nos últimos seiscentos milhões de anos emergiram criaturas pluricelulares mais complexas, como os moluscos, os artrópodes, os anelídeos, os equinodermos, entre outros. A história da vida é profunda e cheia de falhas no registro mais substancial e importante, o registro fóssil. Mas o que se sabe a partir do registro fóssil, por exemplo, de nossa própria espécie, indica uma narrativa consistente (Leakey, 1995; Leakey e Lewin, 1988), embora coalhada de lacunas importantes.
    As forças evolutivas que fizeram o homem emergir foram forças cegas, segundo Darwin e todos os biólogos que acreditam em uma interpretação realista da evolução. Todavia, é profundamente equivocado pensar, como pensam alunos do ensino médio, que a evolução do homem (e de outras espécies) ocorreu ao acaso. Muitos filósofos e cientistas que tentam compreender o fenômeno biológico afirmam que a seleção natural é o elemento antiacaso da evolução. Em
    Levando Darwin a sério, Michael Ruse (1995) sugere que, para fins de compreensão, a evolução biológica pode ser dividida em três partes: evolução como fato (o fato de que a vida na Terra vem se modificando profundamente em seus cinco bilhões de anos de existência); evolução como caminho (a história dos grandes grupos taxionômicos, como os mamíferos, ou as plantas; ou a história específica de cada espécie: por exemplo, a evolução do gênero
    Homo a partir do gênero
    Australopitecus); a evolução como causa (ou as causas da evolução: seleção natural, deriva [neutralismo], efeito do fundador, equilíbrio pontuado, deriva ontogenética, cladismo).
    O último item, a causa ou causas da evolução, é o que oferece maiores dificuldades, sobretudo porque ainda hoje existem grandes controvérsias filosóficas acerca da importância e do status ontológico da seleção natural. Mesmo entre cientistas debate-se se a seleção natural é necessária e suficiente para explicar a grande diversidade e variedade de formas vivas. Entretanto, embora a teoria da seleção natural seja criticada por todos os lados, ninguém estuda a evolução biológica sem utilizar esse conceito.
    Dobzhansky (1973) afirmou que "nada faz sentido em biologia senão à luz da evolução". Embora essas sejam as palavras de um evolucionista, e portanto devam ser relativizadas, os alunos que abandonam o ensino médio e ingressam nas universidades do Brasil e do mundo provavelmente levam para a vida acadêmica e profissional uma imagem no mínimo distorcida da teoria da evolução. Em meados de 1999 a mídia divulgou a disputa jurídica que culminou com a eliminação da obrigatoriedade de se ministrar a teoria da evolução no ensino médio das escolas do Kansas e de outros estados norte-americanos. Essa disputa reedita outras que ocorreram no passado e reflete a resistência dos chamados 'criacionistas' em aceitar a evolução como um fato cientificamente corroborado. Embora no Brasil o problema religioso não seja tão acentuado, a teoria da evolução não recebe a ênfase que reclama para ela vários filósofos e cientistas. É o lugar do homem na história da vida na Terra que está em jogo.
    E que lugar esse animal social ocupa na história da vida e da natureza? Estudos feitos em várias partes do mundo com alunos que já tinham passado pelo ensino formal da evolução darwiniana, na verdade pelo ensino da teoria sintética da evolução, demonstram que eles pouco absorveram dessas teorias, apresentando especial dificuldade para promover a síntese entre a teoria da mudança de Darwin, a teoria da permanência de Mendel e a teoria molecular do gene. E levam sobretudo para a vida profissional e acadêmica a idéia de que o homem é o ápice da evolução, de que o mundo é feito para as nossas necessidades, do eu, do indivíduo atomizado na sociedade de consumo. Uma visão lamarckista e cartesiana, sem dúvida. Os alunos de ensino médio confundem ainda evolução biológica com evolução cultural, além de interpretarem a ciência como um conjunto de regras fixas para chegar a um resultado verdadeiro e definitivo.
    Sugiro que uma possível origem do problema da má assimilação de teorias evolutivas (históricas) por parte de alunos de segundo grau está enraizada, pelo menos no Brasil, na fragmentação do conhecimento, um grande problema de nossos currículos de ensino fundamental, da quinta à oitava série. Na quinta série estudamos o planeta Terra, um pouco de sua geologia, um pouco da evolução de sua vida, a transformação dos climas, um pouquinho de física, um outro tanto de química, e uma série de outras informações 'científicas'. Na sexta série estudamos a evolução dos seres vivos, mas o foco ainda está na descrição e nomeação de espécies, estruturas e funções, sem muita atenção ao processo evolutivo, que se desdobra por dezenas e centenas de milhões de anos. A evolução é ensinada como um assunto a mais, perdido no meio de nomes e de nomes de estruturas. Na sétima série ensinamos o corpo humano, mas continuamos a incentivar a concepção de ciência como memorização, em vez de investir no espírito aventuresco da descoberta científica, vertiginoso e autocrítico. Note-se que a biologia é um dos focos fundamentais dessas três séries consecutivas de 'ciências'. Na oitava série, o estudo da biologia e do homem é incrivelmente interrompido, substituído pelo estudo da física e da química, como se essas disciplinas pouco ou nada tivessem a ver com as ciências da vida. A fragmentação não poderia ser mais dramática. Sobretudo quando, na primeira série do ensino médio, a biologia volta com toda força reduzida ao estudo da célula invisível e de suas estruturas e processos microscópicos.
    As leis que regem o ensino da biologia prevêem que no estudo dessa ciência a ecologia e a evolução ocupem um lugar primordial. Infelizmente, a realidade das salas de aula é outra. Existe uma grande dificuldade em lidar com um volume de conhecimentos muito grande, pois na verdade a biologia atual exige que se saiba pelo menos, em uma boa base, um pouco de química, de física, de matemática (principalmente estatística), de geologia, de paleontologia, e também de história e de geografia. Não há disposição e tempo requeridos para o professor se manter atualizado. Vivemos nesses tempos de crise, em que a ciência que procura descobrir as raízes do homem e de seu comportamento é encarada como uma disciplina teórica qualquer e ensinada aos futuros dirigentes das nossas cidades e da nação sem uma pergunta mais profunda sobre o lugar da espécie humana e de cada um de nós na "economia da natureza", para usar as palavras de Darwin.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2001
    • Recebido
      Out 2000
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