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A política contra a dádiva

Politics versus the gift

A política contra a dádiva

Politics versus the gift

Carlos Henrique Assunção Paiva

Doutorando em saúde coletiva

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Rua Padre Francisco Lanna, 33/202

20551-090 Rio de Janeiro — RJ Brasil

Jacques T. Godbout

O espírito da dádiva.

Trad. de Patrice Charles Wuillaume.

Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999, 272p.

O espírito da dádiva, obra do sociólogo canadense Jacques T. Godbout, veio esquentar ainda mais o caloroso debate acerca de questões vitais às ciências sociais. Ao seguir uma linha lévi-straussiana, em que a dádiva não encontra existência concreta, mas tão-somente efeitos disseminados na sociedade, o autor desenvolve convincentes argumentos sobre problemas modernos relacionados ao egoísmo, ao altruísmo, à violência, ao totalitarismo, à democracia e, sobretudo, às políticas públicas.

Godbout não só segue a trilha deixada por Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva como também a renova, sugere uma nova interpretação. O ponto de partida de ambos os autores é justamente a premissa antro-pológica de que a vida social necessita e é constituída por mecanismos de troca. Em Mauss, essas trocas ocorrem em sintonia com uma natureza distinta das sociedades modernas, embora reconheça que determinados traços "primitivos" sobrevivam nas atuais sociedades industriais. Em Godbout, a experiência da troca se universaliza. Há, em certo sentido, uma radicalização do argumento central de seu antecessor.

A obra está dividida em três partes. Na introdução do trabalho, o autor chama atenção para a existência do que considera uma lei fundamental de organização de todas as sociedades. Essa lei, segundo ele, opera de acordo com a idéia de reciprocidade, sem sentido mercantil, mas como troca generalizada que envolve seres sociais: quando alguém recebe, contrai-se imediatamente uma dívida de relação social com o outro. Por isso, em sua abordagem, o mundo moderno não pôde materializar tudo, pois há sempre um campo de significação onde o motor da vida social é justamente estar-se em relação. Esse campo é o reduto da dádiva. Ela se alimenta, num só tempo, da razão e do lúdico. Não há, em sua concepção, uma partilha.

Na primeira parte, o autor apresenta ao leitor algumas das possíveis formas que a dádiva pode assumir nas sociedades modernas, continuando, assim, "o empreendimento de Mauss no ponto em que ele o interrompeu: às portas da modernidade" (p. 33). Ao afirmar a existência e a dinâmica da dádiva no mundo moderno, Godbout imediatamente se opõe aos argumentos utilitaristas que definem as relações sociais como meras relações de interesse e poder. Em seu ponto de vista, a dádiva não é imposta, nem racionalmente negociada, por isso não deve ser confundida com um sistema de direitos, como a seguridade social.

Na segunda parte, mantém intenso diálogo com Mauss ao discutir a presença da dádiva nas sociedades primitivas. O autor retoma os exemplos fundamentais da dádiva do potlach, estudado por Franz Boas; e do kula, por B. Malinowski, e procura desenhar o ato de dar, receber e retribuir como um "fenômeno social total". A partir daí, ele começa a fazer uma distinção qualitativa entre dádiva primitiva e moderna. Na primeira, a sociedade e a coletividade são preservadas em função de limites simbo-licamente definidos para a autonomia das pessoas. Na última, o sistema operaria numa espécie de segundo plano social, sem, contudo, se apresentar como vestígio de um mundo primitivo sobrevivente.

A última parte do livro é inteiramente dedicada a uma reflexão mais geral sobre o tema a partir das noções de gratuidade, liberdade e obrigação. É a essa parte que dedico especial atenção e passarei a comentá-la agora.

Meu interesse pela obra sobre a dádiva se deu não pelas questões antropológicas de Marcel Mauss, cuja obra serviu, como vimos, de ponto de partida para a reflexão de Godbout, mas a partir das questões sociológicas levantadas por Émile Durkheim em Da divisão do trabalho social. Isto porque minha intenção era discutir os vínculos sociais modernos, evitando os tentadores meandros do individualismo metodo-lógico (Paiva, 1999). Queria partir de uma concepção de laço social eminentemente sociológica e nessa empreitada de ordem mais geral e metodológica, Durkheim foi, como se diz, uma mão na roda. Não exatamente pelo fato de ter enaltecido os argumentos que põem em relevo o papel da sociedade sobre o indivíduo, mas, sobretudo, porque, ao fazê-lo, desenha uma nova guinada nas discussões centrais da maioria dos pensadores franceses do século XIX. Estes, em sua maioria, como acentuou Donzelot (1991), imaginavam maneiras de proteger a sociedade das ações e intenções individuais. Em certo sentido, Durkheim reverteu a questão desenvolvida pelos pensadores do século XIX.

Pode-se dizer que a questão central do sociólogo francês não é uma sociedade violentada pelos indivíduos, como alguns de seus contemporâneos se ocuparam em tratar. Em Durkheim, a idéia de ameaça potencial que determinados indivíduos poderiam representar à vida social foi substituída pela preocupação com os eventuais prejuízos que a divisão social do trabalho poderia ocasionar às pessoas, caso certas medidas jurídicas e legais não fossem observadas e levadas a termo. Sua fé está na existência de um amplo sistema de regulamentação jurídica que garantiria as liberdades individuais e, conseqüentemente, a circulação dos bens e o estabelecimento da justiça social.

Durkheim lança luzes sobre a moralidade, o direito e o comportamento social. No processo de divisão do trabalho que concebeu, está presente a idéia de reciprocidade e complementaridade, assim como a idéia de interdependência como elemento que vai cimentar a solidariedade orgânica. Podemos dizer que Godbout segue a trajetória desenhada tanto por Durkheim quanto por Mauss, mas rompe com um certo maniqueísmo durkheimiano que privilegia a razão nas relações sociais. Fazendo isto, ele adiciona de maneira fértil e surpreendente novos tons às luzes que iluminam o atual debate acerca do papel do Estado e das políticas públicas no cenário de uma forte crise social. Faz isso, mas mantém com vigor certas questões levantadas por seus antecessores.

Para começar, Jacques Godbout lança em seu livro uma questão que é abandonada pelos economistas e utilitaristas. Para o autor, foi a sociedade moderna que construiu o mito de que a dádiva não mais existe entre as pessoas: seria, segundo os modernos, um ato absolutamente sincrônico, fechado em si mesmo, sem nenhuma significação exterior e que, portanto, não estabeleceria nenhum laço social. Seria ora um adorável e romântico mito, ora um velado ato de egoísmo.

Na perspectiva do autor, entretanto, a dádiva é vista como uma forte resistência ao utilitarismo nas sociedades modernas, não como resíduo das sociedades passadas, mas sim como elemento estrutural da vida em sociedade. Sua hipótese é que os seres humanos não são homogenea-mente regidos pelo mercado, pois há sempre um valor simbólico que caracteriza a vida social. Esse valor seria constituído, sustentado e orientado pelo sistema de circulação da dádiva. A dádiva vincularia seres sociais e aos seres, as coisas. É o que cimenta a vida em sociedade.

Mas qual a implicação desse sistema ou da negação de sua existência nas ações dos homens em sociedade? O que finalmente tem a ver a dádiva com as políticas públicas instituídas? Antes de irmos ao ponto, abordaremos rapidamente um problema central que o autor levanta em seu livro: os temas da liberdade e da obrigação nas sociedades modernas.

No âmbito da concepção moderna de mercado, Godbout chama aten-ção para o fato de a relação social significar um verdadeiro fardo (uma obrigação) na vida dos indivíduos. Do seu ponto de vista, a idéia moderna de obrigação se vê amplamente contaminada por uma idéia de "liberdade" equivocada ou inconveniente. Segundo o autor, a concepção de liberdade moderna coloca em xeque a sociabilidade e a trama das relações sociais em nome da capacidade ilimitada de autodeterminação dos indivíduos. Sendo assim, ela agiria como negação do sistema social da dádiva.

Ao conceber a família como o locus básico da dádiva, como lugar on-de há o estabelecimento de laços sangüíneos que com mais intensidade transformam o "outro" em membro da comunidade, o autor aponta para a importância das relações de pessoa a pessoa na vida em sociedade. Para ele, é no âmbito das relações pessoais que o 'dar, receber e retribuir' seria executado de forma mais estruturada e prevista. Isto porque os papéis sociais estariam bem definidos e os indivíduos encontrariam algum refúgio na selva da incerteza, diante da previsibilidade do comportamento do "outro".

Nesse caso, quando se esvai a crença pública nos papéis sociais, a execução de certos atos sociais pode, muitas vezes, apresentar um caráter de artificialidade, pois esses papéis sofreram um esvaziamento simbólico. O compromisso político e moral passa a ter motivações nas satisfações meramente individuais. A realidade social, pelo menos do ponto de vista orgânico, não se sustenta diante dos interesses particulares e privados. Há um verdadeiro estilhaçamento. O autor aponta para o fato de os pa-péis serem traduzidos nesse contexto como meras "obrigações" impostas pela vida em sociedade. Assim, o problema moderno da liberdade pode implicar a todo momento risco de abandono.

Na visão do sociólogo, crer nos papéis sociais é crer nas obrigações, mas não como "obrigação" e sim como ato voluntário. Para Godbout, a "obri-gação" não é uma simples tarefa imposta pelas normas e condutas sociais. A obrigação é, para ele, a liberdade de estabelecer relações, de dar, receber e retribuir. Foge, nesse caso, ao sentido fixado pelo utilitarismo moderno.

A tese de Godbout sugere que a constituição do mercado e do Estado conduziu a uma tendência crescente para liberar os membros das sociedades de toda obrigação ligada às relações sociais, a partir do paradigma de que todo lugar obrigatório poderia ser substituído por um bem ou serviço. Desse modo, por exemplo, o papel de um filho que proveria e prestaria assistência social aos pais seria substituído por um leque de profissionais pagos pelo Estado ou pela iniciativa privada. Dessa maneira, o mercado asseguraria a circulação das coisas, estabelecendo relações despersonalizadas entre indivíduos. O que está em voga é a destituição dos papéis sociais em favor de "profissionais" que agiriam via mecanismos de "preços" estabelecidos não pelos agentes, mas pelas próprias leis de mercado.

É uma realidade inteiramente nova se comparada à das chamadas sociedades primitivas. Com a chegada do mercado, as coisas não são mais fabricadas para alguém que necessariamente precisa, mas são fabricadas por serem indiretamente úteis ao fabricante. Necessidades são criadas a milhares de desconhecidos, e o mercado é liberado de toda subordinação pessoal ("amigos, amigos, negócios à parte"). Nas palavras de Godbout, "o grande paradoxo dessa sociedade é que o objetivo de todo produtor é produzir o inútil" (p. 179).

Esse processo histórico de "despersonalização" vai gradualmente, segundo o autor, transformando os sistemas de relações familiares e comunitárias, tornando os laços sociais mais tênues e frágeis. O mercado, a industrialização e a urbanização provocaram uma pane nos papéis e lugares sociais. A liberdade proclamada pelo mercado e sustentada pelo Estado deve ser interpretada, nesse contexto, como mera liberdade econômica para circulação de objetos (e somente objetos). Ela é o direito de fuga frente os laços e vínculos sociais "opressores".

Desse ponto de vista, os que usufruem de aposentadorias, sistemas previdenciários ou de cuidados em lares geriátricos parecem liberar os filhos e familiares da "obrigação" de cuidar deles. A concepção moderna de mercado está, nesse sentido, de acordo com a idéia de liberação do indivíduo para o ato voluntário, para que execute o "verdadeiro papel" escondido, mas predestinado pelo seu próprio self. O indivíduo se "encontraria" ao se destituir de toda carga social (regras, normas e condutas previstas socialmente).

O argumento do autor é que tanto o mercado como o Estado, na acepção ocidental das palavras, foram responsáveis por esta desperso-nalização da vida social a partir do postulado de que qualquer vínculo social poderia ser substituído por um bem ou serviço. Nessa atmosfera de racionalismo e liberalismo econômico predominantes estaria a dádiva condenada como mera estrutura anacrônica de civilizações passadas?

A fé do autor está, nesse caso semelhante a Durkheim, numa certa capacidade de autogerência da vida social. Para ele, a estrutura ou o sistema da dádiva seria capaz de garantir a solidariedade social, mesmo em um período em que a presença e a intervenção do Estado tenham se tornado um elemento essencial para a manutenção das garantias e ordem sociais. O problema que o autor aponta não é a existência do mercado e do Estado em si, mas uma certa cegueira para as implicações da dádiva nesses setores. Segundo ele, o sistema operaria e distribuiria não somente bens e serviços, mas, sobretudo, confiança, lealdade e solidariedade.

O correto seria, do ponto de vista do autor, estar-se atento aos vínculos sociais operantes que se constituem no dia-a-dia de quem oferta e de quem recebe os bens e serviços, antes que agir via medidas impostas "pelo alto" sem nenhuma ou pouca sintonia com a realidade social a que se refere. Para o autor, a prática governamental tenderia a se portar muitas vezes de forma totalitária ao pretender transformar, com um só golpe (freqüentemente de caneta), instituições e organismos sociais em doadores e, eventualmente, certos indivíduos ou populações em receptores. Num mesmo tempo, tal prática, como observa o autor, pretende acabar com as diferenças qualitativas de "quem doa" e de "quem recebe", pois elimina o espaço para o desejo (o desejo de dar, receber e retribuir), despersonaliza a relação social. Nesse caso, a "dádiva" assume a temida perspectiva de gratuidade, perde seu estatuto social e seu caráter simbólico. A relação não se estabelece entre pessoas, mas, em última instância, no caso da assistência médica, por exemplo, somente entre um aparelho burocrático estatal e um doente.

Isto ocorre porque a intervenção estatal (via regulamentação jurídica, decretos ou leis), no âmbito das políticas públicas e sociais no mundo cotidiano das populações, está aquém de sua tentativa de alocar e distribuir bens e serviços. Distribuir segurança e bem-estar escaparia, nesse sentido, ao mero cálculo econômico sustentado pelo mercado.

A proposta de Godbout é relevante se estivermos interessados em observar as sutilezas de cada especificidade cultural que porventura possam influenciar ou mesmo prejudicar o andamento de determinada medida ou política pública global em alguma comunidade ou segmento social. Mas pode ser demasiado ingênua se partirmos do princípio de que existe algo efetivamente agindo de forma universal, estrutural ou metahistórica a favor da sociedade como um todo. Algo que por si só fosse a garantia de solidariedade e coesão social, independentemente dos acontecimentos sociais e históricos que determinada realidade impõe. Não é o que o autor propõe.

Godbout faz ver que os grupos ou segmentos sociais alvos das políticas sociais não deveriam ser interpretados como "sujeitos passivos", muito menos como meros "objetos" de uma intenção política ou econômica. É preciso que estes sejam reconhecidos como "sujeitos ativos" da relação, na mesma medida que tenham a capacidade de reconhecer o Estado ou qualquer outro segmento social não como "alguém" que apenas dá gratuitamente. Nesse caso, o que parece faltar é uma certa consciência de interatividade social e da efetiva existência de um mundo público.

Por isso, segundo o autor de O espírito da dádiva, seria ingênuo reconhecer em um Estado autônomo, perante a passividade das massas (fenômeno típico nas sociedades do Leste Europeu do pós-guerra), o elemento responsável pelo aumento nos índices de qualidade de vida, sobretudo nos países industrializados. Com isso, no entanto, ele não pretende desconsiderar que determinado plano da sociedade ou das relações sociais deve ser regulado pelo contrato social, especialmente quando tratamos a questão da inclusão/exclusão, da convivência ou da coabitação.

Utilizando inteligentemente diversos depoimentos e um franco e excitante debate com a literatura sobre o tema, o autor não só convence o leitor da existência de um algo mais na vida em sociedade, como também produz uma bela obra multidisciplinar ao alcance de todos aqueles interessados em debater não só questões relativas às políticas públicas no mundo moderno, mas também os temas da cultura, arte e linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Donzelot, Jacques 1991 'Le social du troisième type'. Em Face à l'exclusion. Le modèle français. Paris, Éditions Esprit.

Paiva, Carlos H. Assunção 1999 Solidariedade: uma abordagem teórica dos vínculos sociais modernos. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, IMS/UERJ.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Fev 2001
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