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Fragmentos da modernidade nas crônicas folhetinescas do Segundo Reinado

T E S E S

Fragmentos da modernidade nas crônicas folhetinescas do Segundo Reinado

Para conhecer a modernidade e seu processo de inserção e divulgação no Rio de Janeiro no Segundo Reinado, escolhi partir de textos publicados em jornais e/ou revistas conhecidos pelos termos crônicas e/ou folhetins. Entre 1840 e início da década de 1870, estes textos apresentavam-se em forma de comentário sobre os acontecimentos da cidade, desde apresentações teatrais, bailes, moda, política, literatura como também as novidades vindas da Europa pelos "paquetes", os navios a vapor. Alguns dos textos que selecionei tiveram nomes famosos por trás dos seus pseudônimos, como Machado de Assis, José de Alencar, José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio Branco), França Júnior, Francisco Otaviano de Almeida Rosa. Outros permanecem desconhecidos, como "Carlos" e "O Velho", ambos da Revista Popular. Destaca-se também Francisco de Paula Brito, tipógrafo e editor de A Mulher do Simplicio e da famosa série A Marmota. Por conterem características uniformes e marcantes, diferen-ciando-se dos textos também chamados crônicas em período posterior, denominei este material de 'crônicas folhetinescas'.

Partindo, então, das crônicas folhetinescas, procurei analisar a entrada da modernidade no Brasil em meio às idéias de progresso e de civilização que, efetivamente, envolviam a construção de uma nova sociedade forjada pelo capitalismo industrial. Textos praticamente desconhecidos, eles se tornaram fonte de divulgação cultural ao conciliar meios de comu-nicação e comentários sobre os eventos culturais da época. Aliaram bailes e crítica teatral, moda e crítica literária, política e frivolidades, souberam despertar o interesse do leitor, cativar sua atenção e criar uma forma literária própria da nossa linguagem e do nosso país.

Ao retratar a cidade em pequenos fragmentos, as crônicas folhetinescas fornece-ram a possibilidade de vislumbrar uma visão de mundo que se enunciava na cidade do Rio de Janeiro, fosse ela pura imitação européia, fosse ela justificativa para transfor-mar a sociedade de então. Esses textos mostraram o processo de transformação social que atravessou essa cidade no século XIX e como a essência da modernidade germinou entre nós. Com um discurso fundado na simpatia, no humor, na idéia de lealdade pessoal e sinceridade, as crônicas folhetinescas se tornaram reveladoras de valores que correspondiam a uma estratégia 'globalizante' de um sistema econômico e social. Ao mesmo tempo que divertiam e entretinham o leitor carioca, revelavam a essência da modernidade e disseminavam a crença no progresso técnico como meio inevitável de transformação social

As crônicas folhetinescas indicam a necessidade de andar no passo da moderni-dade, ou de outra forma, entrar "nos eixos" de uma nova lógica coordenada pelo que Simmel chamou de "economia monetária". Elas indicam também que, para isso, temos que transformar mentes e corações, modificar os corpos e as necessidades, alterar questões práticas e subjetivas do cotidiano. Mostraram como os seus autores viam o seu mundo, como o descreviam, como falavam sobre ele e o que consideravam prioridade nele. Na relação entre o cronista-folhetinista, seu texto e os leitores, é possível acreditar que as crônicas folhetinescas propiciaram uma "disposição mental" em boa parte da popula-ção carioca para a aceitação da modernidade e que esta recepção na consciência dos leitores certamente efetuou uma mudança na interação entre eles na vida cotidiana.

As crônicas folhetinescas mostraram também que, como acontece em cada época, há sempre um padrão de pensamento dominante. No período estudado, esse padrão estava em torno da idéia de progresso, que se colocava como uma linha contínua e uniforme e sempre em sentido evolutivo. Inventos e máquinas apareciam como desdo-bramento natural desse sentido evolutivo, e o termo industrialização passou a ser apreendido como sinônimo de civilização. É claro que não se pode pensar a sociedade como um "bloco monolítico", unificado. Isso significa que muitos incorporaram e efetiva-mente trabalharam para a construção de uma sociedade ditada nesses moldes, mas também significa que, para muitos outros, essas idéias simplesmente não tinham qualquer ressonân-cia e que para outros ainda, tornaram-se motivo e justificativa para realizarem uma crítica social de oposição a esta lógica dominante.

Pode-se ver, por esse ângulo, que nenhum dos cronistas-folhetinistas tinha interesse em toda a dinâmica social. Na verdade, cada um deles se dirigia a um público específico e se tornava 'porta-voz' dos anseios e desejos, como também de certa aflição, desse público a quem falava, público essencialmente letrado e desejoso de integração e ascensão social. Assim como uma fotografia, cada um desses escritores deixava partes visíveis, bem descritas e destacadas das formas sociais contidas nos eventos abordados, mas deixava também vários outros aspectos da sociabilidade sem qualquer menção. Mesmo assim, suas referên-cias me permitiram vislumbrar o 'espírito' de sua época pois, por mais que restritos que fossem no 'enquadramento' das situações relatadas, não é possível ignorar seu próprio mundo como um todo, ele sempre estará presente.

Por outro lado, o processo de 'apropria-ção' que as crônicas folhetinescas possibilitam, revela-se nos costumes, nos modos de se comportar e de se relacionar uns com os outros, como também na linguagem, nos valores dos objetos que se constituem como pontos de referência da vida em sociedade. É, portanto, no cotidiano do carioca, revisitado através das crônicas folhetinescas, que pude perceber o desenrolar desse processo e onde as idéias de civilização e progresso foram divulgadas na sua forma originariamente européia.

Os conceitos de progresso, civilização, desenvolvimento, evolução e modernidade se tornaram, dessa forma, praticamente equivalentes durante o século XIX e foram aplicados seguindo sua lógica original, adaptada agora à "era do capital". É essa a noção que é reproduzida nas crônicas folhetinescas. Encontrei-a, muitas vezes, intacta, reproduzindo o pensamento do que designei como 'centro' emanador — uma Europa imaginária, e outras vezes ajustada ao pensamento do que chamei de 'periferia' — aqueles que almejam se tornar algo que jamais será: o centro. Para tentar realizar essa utopia a periferia imita, copia, restringindo, mas jamais anulando, sua capacidade criadora. A partir da leitura concomitante dos teóricos do progresso e das crônicas folhetinescas, acredito que pude estabelecer o desenvol-vimento lógico da apropriação que os cronistas-folhetinistas fizeram, enquanto periferia, da idéia de modernidade, reprodu-zindo-as simplesmente ou adequando-as ao clima tropical.

Ariane Patrícia Ewald

Tese de doutoramento, 2000

Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura

da Escola de Comunicação da Universidade Federal

do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rua Renato Meira Lima, 595

22735-120 Rio de Janeiro — RJ Brasil

ariane@unikey.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Fev 2001
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