Acessibilidade / Reportar erro

A difusão da doutrina da circulação do sangue: a correspondência entre William Harvey e Caspar Hofmann em maio de 1636

The unfolding of the blood circulation doctrine: the correspondence between William Harvey and Caspar Hofmann in May 1636

Resumos

O artigo analisa a correspondência trocada entre Caspar Hofmann e William Harvey em 1636, onde se delineiam as principais objeções e respostas à teoria da circulação do sangue. A primeira parte do artigo apresenta a concepção da circulação do sangue segundo a fisiologia da época; a segunda, as mudanças introduzidas por Harvey; finalmente, na terceira parte, apresento o debate entre Hofmann e Harvey.

filosofia natural; história da medicina; William Harvey


The present article analyzes the letters exchanged by Caspar Hofmann and William Harvey in 1636 and the delineation of the main questions and answers on the blood circulation theory. The first part of the article presents concepts about blood circulation according to the time's physiology; the second part presents the changes introduced by Harvey; the third and last part presents the debate between Hofmann and Harvey.

natural philosophy; history of medicine; William Harvey


A difusão da doutrina da circulação do sangue: a correspondência entre William Harvey e Caspar Hofmann em maio de 1636

The unfolding of the blood circulation doctrine: the correspondence between William Harvey and Caspar Hofmann in May 1636

Regina André Rebollo

Professora titular da Universidade Braz Cubas

Rua Núrcia, 304

02524-020 São Paulo — SP Brasil

haniger@usp.br e haniger@hotmail.com

REBOLLO, R. A.: 'A difusão da doutrina da circulação do sangue: a correspondência entre William Harvey e Caspar Hofmann em maio de 1636'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 9(3): 479-513, set.-dez. 2002.

O artigo analisa a correspondência trocada entre Caspar Hofmann e William Harvey em 1636, onde se delineiam as principais objeções e respostas à teoria da circulação do sangue.

A primeira parte do artigo apresenta a concepção da circulação do sangue segundo a fisiologia da época; a segunda, as mudanças introduzidas por Harvey; finalmente, na terceira parte, apresento o debate entre Hofmann e Harvey.

PALAVRAS-CHAVE: filosofia natural, história da medicina, William Harvey.

REBOLLO, R. A.: 'The unfolding of the blood circulation doctrine: the correspondence between William Harvey and Caspar Hofmann in May 1636'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 9(3): 479-513, Sept.-Dec. 2002.

The present article analyzes the letters exchanged by Caspar Hofmann and William Harvey in 1636 and the delineation of the main questions and answers on the blood circulation theory. The first part of the article presents concepts about blood circulation according to the time's physiology; the second part presents the changes introduced by Harvey; the third and last part presents the debate between Hofmann and Harvey.

KEYWORDS: natural philosophy, history of medicine, William Harvey.

Introdução1 1 Este artigo é uma versão ampliada da minha participação no III Colóquio Internacional de Estudos do Século XVII, cujo tema foi 'Cartas Filosóficas, Científicas e Literárias: o Papel da Correspondência', realizado no Centro Universitário Maria Antonia em São Paulo, de 16 a 20 de agosto de 1999. Ele é fruto de quatro anos de estudos sobre William Harvey desenvolvidos ao longo do meu doutorado (defendido em 1998) no Departamento de Filosofia da USP e na Universidade de Paris VII — Dennis Diderot junto à equipe REHSEIS (UPR 318, CNRS) — DEA d'Epistemologie et d'Histoire des Sciences — Formation doctorale en Epistémologie et Histoire des Sciences.

Ao publicar o Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (Frankfurt, 1628) William Harvey (1578-1657), médico e anatomista inglês, postulou um novo movimento para o sangue, negando dessa forma a concepção essencialmente galênica aceita até então. A novidade, como era de se esperar, deu origem a um número considerável de comentários, na sua maioria, objeções veiculadas através de uma rede de correspondência extremamente eficiente entre filósofos naturais e médicos anatomistas. Em maio de 1636, acompanhando o conde de Arundel em suas atividades diplomáticas, Harvey visitou a cidade de Nuremberg e travou conhecimento com o respeitado professor de medicina da Universidade de Altdorf, Caspar Hofmann (1594-1648), um dos mais fortes oponentes alemães da doutrina da circulação do sangue postulada por Harvey.

No dia 18 de maio, a pedido da comunidade médica local, Harvey promoveu uma demonstração pública da circulação do sangue no Teatro Anatômico de Altdorf, na Suíça. Tal demonstração teve por finalidade convencer Hofmann a aceitar o movimento circular do sangue. O médico alemão prometeu dar sua opinião a Harvey imediatamente após a demonstração. Assim, no dia seguinte enviou-lhe uma carta onde apresentava as razões de seu não convencimento. Hofmann concentrava seu ataque essencialmente em duas objeções: uma de natureza anatômica, "por quais vias e por meio de que faculdade o sangue passa das artérias às veias?"; outra, de natureza filosófica, "qual é o propósito da circulação do sangue?". Por estar inserido no paradigma fisiológico galênico, Hofmann não podia compreender e aceitar a doutrina de Harvey, cujas asserções fundamentais negavam tal paradigma apontando suas incongruências e contradições. Harvey respondeu imediatamente a Hofmann, mostrando pacientemente que as objeções feitas não correspondiam a uma leitura fiel de sua doutrina, pois os principais argumentos em favor da circulação do sangue, a saber, o "argumento quantitativo" e as demonstrações anatômicas, foram desprezados por Hofmann, que exigiu como prova da verdade a apresentação do propósito ou da causa final da circulação, exigência que o próprio Harvey afirmava não poder atender. O presente artigo visa discutir as principais objeções de Hofmann e a resposta fornecida por Harvey através da correspondência citada, na medida em que nelas é possível delinear, para além do debate meramente médico e anatômico, a filosofia natural do século XVII a ele subjacente. Para que a discussão das cartas possa ser compreendida, farei, na primeira parte deste artigo, a apresentação da concepção da circulação do sangue segundo a fisiologia da época; em seguida, apresentarei as mudanças introduzidas por Harvey; finalmente, na terceira parte, apresentarei o debate entre Hofmann e Harvey.

As concepções do aparato cardiovascular segundo a fisiologia galênica2 2 Utilizei as seguintes edições do Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus: José Joaquim Izquierdo (a partir da primeira edição latina de 1628), Del movimiento del corazón y de la sangre en los animales, introdução de Bruno Estañol Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México, 1994 (1 a ed., 1936, 2 a ed., 1965 e 3 a ed., 1994); o texto latino da edição Glascow de 1751: Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus; a tradução francesa (a partir da edição latina de Glascow de 1751) de Charles Laubry, Étude anatomique du mouvement du coeur et du sang chez les animaux. Aperçu historique et traduction française par Charles Laubry, Paris, G. Doin et Cie., 1950; e o texto inglês (a partir da primeira edição inglesa de 1653) de Robert Willis publicado em 1848 pela Sydenham Society, The Circulation of the blood and other writings. Introdução de E. A. Parkyn, Temple Press, 1952. A paginação das citações deste artigo provém da edição Great Books of the Western World, vol. 26: An anatomical disquisition on the motion of the heart and blood in animals, trad. Robert Willis, 1990 (1 a ed., 1889).

Apesar das novas descobertas e do farto levantamento empírico, no século XVII ainda imperava a maior parte dos conceitos fisiológicos e anatômicos de Galeno. Através dos manuais de Caspar Bauhin, Theatrum Anatomicum (1605) e André du Laurens (Laurentius), Historia anatomica humani corporis (1600) tais conceitos foram propagados por toda Europa.

A fisiologia explicava as funções corporais a partir de processos distintos sediados nas três principais cavidades ou "ventres" do corpo: o abdome, o tórax e a cabeça. Cada "ventre" tinha uma função vital e um órgão dominante principal. Os órgãos exerciam as suas funções através de um sistema de vasos que continham um fluido apropriado: a função de nutrição, sediada no fígado, origem do sistema venoso; a função de vitalização, sediada no coração, origem do sistema arterial; e a função da sensação e do movimento, sediada no cérebro, origem do sistema nervoso.

O abdome servia às funções naturais da nutrição, da excreção e da procriação. Seu órgão principal era o fígado, sede da faculdade natural e origem do sistema de veias. O funcionamento do sistema era concebido da seguinte forma: os alimentos, após a "cocção" no estômago, seguiam para o intestino onde a sua parte nutritiva, o quilo, era atraída pelas veias mesentéricas; estas veias convergiam para formar a veia porta, que se dirigia à substância do fígado; no fígado, o quilo, parcialmente alterado, completava a sua transformação em sangue venoso; este sangue aperfeiçoado era atraído pela veia cava por meio do seu tronco original (hoje a veia hepática). A veia cava, principal órgão de distribuição do sangue venoso, dividia-se em duas, a veia cava superior e a veia cava inferior, as quais forneciam sangue venoso (nutritivo) para todo o corpo; o sangue da veia cava inferior servia para a nutrição dos membros; o da veia cava superior, para a nutrição da cabeça; uma boa parte, ainda, seguia para a aurícula direita, exclusivamente para nutrir a artéria pulmonar, e a outra parte atravessava o septo, para chegar ao ventrículo esquerdo. A aurícula direita era concebida como um receptáculo passivo, mero prolongamento da veia cava. Sua função era pensada como sendo a da recepção e o envio do sangue venoso, que por meio do movimento de diástole deveria chegar ao ventrículo direito. O ventrículo direito, concebido como a cavidade sangüínea venosa, tinha três funções: o refinamento final do sangue venoso; o envio do sangue à artéria pulmonar; e o envio do sangue ao ventrículo esquerdo através do septo interventricular, concebido como sendo poroso. A artéria pulmonar (chamada de vena arteriosa) nascia no ventrículo direito, e possuía túnicas grossas para enviar sangue venoso refinado ao pulmão. Sua função era exclusivamente a de nutrir o pulmão e o seu movimento era pensado como sincrônico ao movimento do coração. As válvulas tricúspides, que possuíam três peles, tinham por função o impedimento do refluxo do sangue no ventrículo direito.

As veias tinham duas funções principais: além de distribuir alimento para o corpo, recolhiam os excrementos dele resultante. Os dois movimentos, de coleta e distribuição, eram executados através de uma "força de atração" exercida essencialmente pelo 'horror ao vazio'. Tanto o sangue venoso quanto o sangue arterial saíam do coração e para lá não retornavam, jamais. O movimento do sangue era pensado como o fluxo e o refluxo das marés, executado segundo a necessidade das partes, e originado essencialmente pelo horror ao vazio. Para boa parte dos galenistas do XVII, apenas na periferia do corpo existiam anastomoses entre as veias e as artérias, onde deveria ocorrer a troca de ar e sangue.

O segundo ventre, o tórax, servia às funções vitais de manutenção e distribuição do calor e da vida através do corpo. Seu principal órgão era o coração, origem do sistema arterial, apoiado pelo pulmão. O coração era concebido como a parte mais quente do corpo, sede do calor inato distribuído ao corpo por meio das artérias e moderado pelo ar fresco dos pulmões. Esse calor era produzido pelos espíritos vitais gerados no ventrículo esquerdo do coração a partir do ar, do sangue e do próprio calor. A diástole cardíaca e a respiratória eram concomitantes e serviam para atrair e reunir o sangue venoso e o ar, enquanto que as sístoles cardíaca e respiratória (também concomitantes) serviam para expelir o sangue vitalizado e aquecido (sangue arterial) para a aorta e por meio das artérias, para todo o corpo.

Segundo a fisiologia da época, as artérias se originavam no coração e pulsavam ao mesmo tempo que ele. Sua principal função, por conter sangue rico em espíritos vitais, era aquecer e vivificar todas as partes do corpo. Além de vivificar e aquecer as partes, as artérias, assim como as veias, também "aspiravam" e "ventilavam" os excrementos expelidos pelo corpo.

O funcionamento do sistema se dava da seguinte forma: o sangue venoso, aperfeiçoado no ventrículo direito, atravessava o septo poroso para chegar ao ventrículo esquerdo. Ali encontrava o ar vindo dos pulmões e dessa forma eram formados os espíritos vitais. Uma vez formados tais espíritos vitais, ou pneumas, eram distribuídos pela aorta e pelo sistema arterial para a vivificação do corpo. O sangue arterial saía do coração e a ele não retornava. As veias pulmonares (arteria venosa) nasciam no ventrículo esquerdo, e possuíam túnicas grossas para que os pneumas não escapassem. Sua função era a captação e a transmissão de pneuma, sangue espirituoso e vapores fuliginosos. Seu movimento era concebido como sincrônico ao movimento do coração. Quando o ar era aspirado pela traquéia e pelos brônquios, seguia diretamente para as veias pulmonares, por elas atraído. Esse ar descia até o ventrículo esquerdo onde encontrava o sangue venoso vindo do septo; ali, no ventrículo esquerdo, eram manufaturados os espíritos vitais ou pneumas. Quando o ar era expirado, junto com ele eram expulsos os vapores e as perdas fuliginosas produzidas no ventrículo esquerdo pela combustão e manufatura do pneuma. A aorta nascia no ventrículo esquerdo e sua função era concebida como a de levar sangue espiritualizado ao corpo. Pulsava simultaneamente ao coração.

A válvula bicúspide ou mitral, com duas peles, tinha a função de impedir o refluxo do sangue no ventrículo esquerdo, embora não impedisse o do ar. As válvulas semilunares, que possuíam duas peles, tinham por função impedir o refluxo do sangue na artéria pulmonar e na aorta. As válvulas venosas eram concebidas como pares de peles-comportas localizadas no interior das veias e sua função, segundo ensinara Fabrício de Acquapendente, era a de impedir a descida total do sangue aos membros inferiores.

As duas fases do movimento cardíaco, a sístole e a diástole, eram igualmente ativas: na diástole, o coração dilatava os ventrículos (por causa da ebulição do sangue), que eram, conseqüentemente, preenchidos pelo sangue; na sístole, cada ventrículo era comprimido pela vis pulsativa e dessa forma expulsava seu conteúdo, o sangue. As artérias eram anatomicamente contínuas ao coração; dessa forma, seu movimento era concebido como sendo sincrônico com o movimento do coração; quando o coração se dilatava, as artérias se dilatavam; quando o coração se contraía, as artérias se contraíam.

Esse duplo movimento do coração servia a duas funções principais: transferir o sangue da veia cava para o ventrículo direito e daí para os pulmões (para a sua nutrição) e carregar o ar aspirado pelos pulmões para dentro do ventrículo esquerdo, onde os espíritos vitais poderiam ser gerados. Além disso, a contração do ventrículo esquerdo fazia expelir o vapor fuliginoso do coração para ser expirado pelos pulmões, ao mesmo tempo fornecendo aos pulmões sangue arterial necessário para a vida e para o seu movimento. O movimento do coração era responsável também pelo envio do sangue vital à aorta e daí para todas as partes do corpo.

O movimento e a função do pulmão serviam exclusivamente ao coração: por meio da artéria pulmonar, o coração fornecia sangue venoso ao pulmão para nutri-lo e por meio da veia pulmonar, sangue arterial para vivificá-lo. Em troca, o pulmão fornecia o ar que era transformado no ventrículo esquerdo do coração em espíritos vitais; esfriava e ventilava o coração impedindo o seu sufocamento; e, através da expiração, eliminava as suas perdas e vapores fuliginosos. O pulmão, através da inspiração, captava o ar necessário; quando o tórax se dilatava ativamente, para evitar o vazio a que a natureza tem horror, o ar penetrava e preenchia os pulmões, a traquéia e todos os seus ramos. No final de cada um de tais ramos, uma pequena abertura ou anastomose se abria para as finas terminações das veias pulmonares que subiam para o ventrículo esquerdo do coração. Dessa forma, no momento em que se dilatava, o ar podia entrar e se alojar no ventrículo esquerdo. Ali, encontrava sangue e espíritos vitais que já residiam na cavidade cardíaca e a pequena porção de sangue venoso que tinha atravessado o septo poroso. O calor inato residente no ventrículo esquerdo e o movimento contínuo do coração serviam para transformar a mistura de sangue e ar nos espíritos vitais.

O mesmo calor que ajudava a criar os espíritos vitais fornecia ao pulmão a sua segunda função. Assim como "o fogo queima melhor quando é abanado e ventilado pelo ar", o calor do coração era alimentado pelo ar dos pulmões. Num certo sentido, portanto, a respiração servia para resfriar e moderar o calor inato do coração, concebido como a parte mais quente do corpo e seu reservatório de calor natural. A terceira função da respiração era livrar o coração, particularmente o ventrículo esquerdo, dos vapores e perdas fuliginosas criados pela geração dos espíritos vitais. Estas perdas eram enviadas ao pulmão por meio das veias pulmonares e expelidas por meio de anastomoses com os brônquios, onde então poderiam ser eliminadas na expiração. A respiração também era efetivada pelas artérias periféricas, que respiravam e transpiravam: no momento da dilatação, as artérias recolhiam o ar através dos poros da pele, usando-os para moderar e ventilar o calor natural das partes. Ao se contrair, elas expeliam, através de suas túnicas, os espíritos vitais necessários para vivificar a região do parênquima, além de ventilar ou dispersar as perdas ou os excrementos produzidos pela ação das partes.

Por fim, o terceiro ventre era a cabeça, cuja parte principal era o cérebro. O cérebro era a fonte das funções animais tais como o movimento, a sensação e a razão, conduzidos pelos nervos. Os nervos serviam como condutos para os espíritos animais, elaborados no cérebro a partir dos espíritos vitais das artérias. Os espíritos animais eram os instrumentos através dos quais o cérebro recebia as impressões exteriores pelas quais iniciava e controlava os movimentos dos músculos.3 3 Harvey (1952-90, p. 270) descreve o experimento: "Ao se fazer um corte longitudinal numa artéria e introduzir-se um tubo entre as partes separadas pelo corte, observa-se que a artéria pulsa. Se a artéria é amarrada na altura do corte com uma atadura acima do tubo, não pulsará mais."

As concepções do aparato cardiovascular segundo a fisiologia de Harvey

Na Introdução do Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (Frankfurt, 1628),4 De Re Anatomica 4 Matteo Realdo Colombo (?-1559) nascido em Cremona, na Itália. Sob a orientação do sofista Johannes Gravii, estudou artes e medicina na Universidade de Pádua. Entre os anos de 1538 e 1539, foi assistente de anatomia de Vesálio na Universidade de Pádua, ensinou cirurgia e anatomia na Universidade de Pisa e foi professor do Collegio della Sapienza. Em 1559, foi publicado o , um comentário crítico do De humani corporis fabricæ de Vesálio, assim como este tinha sido um tratado crítico sobre a obra anatômica de Galeno. A principal afirmação do livro é a passagem do sangue pelos pulmões por meio da artéria pulmonar, isto é, o sangue que sai do ventrículo direito do coração segue para os pulmões não apenas para nutri-lo, mas para lá ser aperfeiçoado e retornar ao coração. Harvey mostra as dificuldades em que se encontrava o conhecimento sobre o aparato cardiovascular e passo a passo demole cada uma das afirmações "contraditórias, incongruentes e absurdas à razão". Segundo Harvey, a causa do erro estava na crença de que a pulsação e a respiração serviam ao mesmo propósito, isto é, à refrigeração do corpo.5 Quaestionen medicarum libri II 5 Andrea Cesalpino (1525-1603) foi um eminente botânico, médico e filósofo. Em 1551, formou-se em medicina na Universidade de Pisa, onde provavelmente foi aluno de Realdo Colombo. Em 1555, Cesalpino foi indicado professor de medicina e botânica da Universidade de Pisa, permanecendo no posto até 1592, quando foi chamado para trabalhar em Roma no Collegio della Sapienza, para ocupar o cargo de médico do papa Clemente VIII, função que exerceu de 1592 a 1603, quando faleceu. Nas obras (Veneza, 1593) e Quaestionen peripateticarum (Veneza, 1571, 1593) Cesalpino postula a circulação pulmonar do sangue. Nesse sentido, sua primeira objeção será à idéia de que as artérias, como afirma o seu nome, possam conter ar para refrigerar o corpo e não sangue. Harvey procurava mostrar as incongruências entre a forma (historia) e a função (usus) do coração e do pulmão, baseando-se quase que exclusivamente nas próprias observações, dissecações humanas e vivissecções animais.

Através de vários argumentos refutou a concepção da relação ou conexão necessária entre a pulsação e a respiração, a qual afirmava que as duas possuíam movimentos e funções idênticos. Tal concepção implicava a afirmação de que os movimentos da sístole e da diástole cardíaca, arterial e pulmonar eram simultâneos e concorrentes e sua função essencial era a refrigeração do calor cardíaco. Isto é, na diástole cardíaca, arterial e pulmonar, o ar é captado e distribuído para o corpo pelas artérias; na sístole cardíaca, arterial e pulmonar, os vapores fuliginosos são expulsos.

Galeno afirmara que as artérias continham apenas sangue, fato que Harvey (1952-90, p. 269) comprova através de diversos experimentos, mostrando que

se a função da pulsação e da respiração é a refrigeração do corpo, como afirmam os anatomistas partidários de tal tese, na diástole, o ar deveria ser aspirado através dos poros da carne e da pele e na sístole, o vapor fuliginoso deveria ser emitido pelos mesmos poros; conseqüentemente, as artérias, tanto na sístole quanto na diástole, deveriam possuir somente ar ou vapor fuliginoso, ou mesmo espíritos.

Mas Harvey constatara apenas a presença do sangue no interior das artérias.

Além de provar que as artérias contêm sangue, Harvey queria mostrar que o sangue nelas contido é o mesmo sangue que existe nas veias (se não fosse assim, como seria possível a circulação do sangue?). Partindo da arteriotomia feita por Galeno para comprovar a existência de sangue nas artérias, "quando se colocam duas ligaduras numa artéria e o trecho entre as ligaduras é cortado com um pequeno corte longitudinal, observa-se apenas escapar o sangue que nela estava contido", concluiu que "cortando-se veias e artérias, da mesma forma que Galeno fez, e procedendo a um raciocínio idêntico, pode-se concluir que veias e artérias contêm o mesmo sangue". Para Harvey (op. cit., p. 270), "mesmo concedendo que o sangue contido nas artérias é espirituoso, não deixa de ser sangue, isto é, um só corpo (sangue mais espíritos)".

Pode ter sido na verificação de que as artérias continham sangue, e não ar, que Harvey percebeu que as artérias se dilatavam quando o coração se contraía e que nesse momento eram preenchidas pelo sangue expulso do coração. Para sustentar tal tese, Harvey negou a vis pulsativa de Galeno como a causa da dilatação das artérias. Este será o segundo ponto que Harvey discutirá na Introdução do De motu cordis. Galeno, através de uma arteriotomia, tinha provado que "uma vis pulsativa partia do coração e provocava a dilatação das paredes arteriais, exatamente como foles" (Quod sanguis continetur in arteriis).3 3 Harvey (1952-90, p. 270) descreve o experimento: "Ao se fazer um corte longitudinal numa artéria e introduzir-se um tubo entre as partes separadas pelo corte, observa-se que a artéria pulsa. Se a artéria é amarrada na altura do corte com uma atadura acima do tubo, não pulsará mais." Harvey observou que o sangue jorrava com força maior na diástole arterial e não na sístole arterial. Concluiu que as artérias se distendiam pela força propulsora do coração.

Harvey (op. cit., pp. 271-2) objetou, ainda, a concepção tradicional que, apoiada na constatação de que os animais sem pulmões não possuíam o ventrículo direito (como os peixes), afirmava que, apesar de o coração ser a fonte e a usina dos espíritos vitais, o ventrículo direito dos animais não os fabricava, servindo somente para fornecer alimento aos pulmões. Citando Realdo Colombo,4 De Re Anatomica 4 Matteo Realdo Colombo (?-1559) nascido em Cremona, na Itália. Sob a orientação do sofista Johannes Gravii, estudou artes e medicina na Universidade de Pádua. Entre os anos de 1538 e 1539, foi assistente de anatomia de Vesálio na Universidade de Pádua, ensinou cirurgia e anatomia na Universidade de Pisa e foi professor do Collegio della Sapienza. Em 1559, foi publicado o , um comentário crítico do De humani corporis fabricæ de Vesálio, assim como este tinha sido um tratado crítico sobre a obra anatômica de Galeno. A principal afirmação do livro é a passagem do sangue pelos pulmões por meio da artéria pulmonar, isto é, o sangue que sai do ventrículo direito do coração segue para os pulmões não apenas para nutri-lo, mas para lá ser aperfeiçoado e retornar ao coração. lembrou que, se a abertura dos vasos da vena arteriosa (artéria pulmonar) possui o mesmo tamanho que a abertura dos vasos da arteria venosa (veia pulmonar), "por que supor que a função da primeira é particular e da segunda geral?". Mostrando o absurdo da tese, Harvey pergunta:

como pode ser concebido que tamanha quantidade de sangue seja necessária para a nutrição dos pulmões e a vena arteriosa, vaso que leva sangue para os pulmões, tenha uma capacidade maior do que as duas veias ilíacas; por que o ventrículo direito pulsa, se os pulmões estão tão perto do coração e o movimento das artérias e vasos ali é contínuo? Por que a natureza teria criado o ventrículo direito apenas para nutrir o pulmão?

O trânsito concomitante do sangue, de espíritos e de fuliginosidades nas veias pulmonares (arteria venosa), sustentado pela fisiologia da época, também se mostrou confuso para Harvey, que argumentou:

se o ventrículo esquerdo extrai do pulmão e do coração direito matéria para preparar os espíritos (ar e sangue); se o ventrículo esquerdo distribui sangue espirituoso para a aorta e ao mesmo tempo retira dela fuliginosidades que retornam da arteria venosa aos pulmões, como e por que a válvula bicúspide, que não impede a saída do ar, impediria a saída dos vapores fuliginosos para os pulmões? O que impediria a separação entre os espíritos e as fuliginosidades?

Além disso, Harvey não consegue conceber de que modo as válvulas semilunares poderiam impedir que, após a diástole, os espíritos regressassem da aorta, pois, argumenta,

se o ventrículo esquerdo distribui sangue espirituoso aos pulmões por meio da arteria venosa sem que seja impedido pela valva mitral, como é possível que ao mesmo tempo por esse mesmo vaso saia o ar dos pulmões que penetra no ventrículo esquerdo, uma vez que a valva mitral é vista como impedimento para o seu regresso; de que modo a valva mitral poderia impedir a saída do ar e não a do sangue?

Da mesma forma que Colombo no De Re Anatomica, Harvey pergunta por que a vena arteriosa (artéria pulmonar), que possui estrutura de artéria, tem apenas uma função, a de nutrir os pulmões, e a arteria venosa (veias pulmonares), que possui estrutura de uma veia, tem três ou mais funções, a saber, passar o ar dos pulmões ao ventrículo esquerdo, fazer escapar os vapores fuliginosos do coração para os pulmões, e fazer com que o sangue espirituoso seja distribuído do coração para os pulmões para a sua refrigeração? Como a natureza, para Harvey e os filósofos naturais do XVII, "não faz nada em vão", não iria criar um mesmo conduto para funções e movimentos contrários. Harvey indaga: "se o ar e o vapor fuliginoso passam, vão e vêm pela arteria venosa, por que nas dissecações não são encontrados no seu interior? Nos pulmões, pode-se encontrar o ar, mas nas artérias, somente sangue." Além disso, continua, "se a arteria venosa é destinada a levar o ar para o coração por que tem a estrutura de uma veia?"

Harvey (op. cit., pp. 272-3, cap. II, p. 274) negava a existência do septo poroso por onde o sangue do ventrículo direito seguiria para o ventrículo esquerdo. Assim como Colombo e Cesalpino,5 Quaestionen medicarum libri II 5 Andrea Cesalpino (1525-1603) foi um eminente botânico, médico e filósofo. Em 1551, formou-se em medicina na Universidade de Pisa, onde provavelmente foi aluno de Realdo Colombo. Em 1555, Cesalpino foi indicado professor de medicina e botânica da Universidade de Pisa, permanecendo no posto até 1592, quando foi chamado para trabalhar em Roma no Collegio della Sapienza, para ocupar o cargo de médico do papa Clemente VIII, função que exerceu de 1592 a 1603, quando faleceu. Nas obras (Veneza, 1593) e Quaestionen peripateticarum (Veneza, 1571, 1593) Cesalpino postula a circulação pulmonar do sangue. refutava a possibilidade da passagem do sangue do ventrículo direito ao ventrículo esquerdo através de tais porosidades, argumentando que, na dissecação do coração, observava-se que a carne do septo cardíaco é quase tão dura quanto a dos ossos e dos tendões. Segundo Harvey, era incongruente conceber a passagem do sangue através do septo poroso, que é grosso, duro e denso, ao invés de concebê-lo passando pelos vasos venosos amplamente abertos ou através da "substância rara, frouxa e macia dos pulmões" e, além disso, "se o sangue pode atravessar o septo e embeber os ventrículos, para que servem as ramificações venosas e arteriais, as ramificações da coronária que se estendem até o septo para nutri-los?"

Demolindo as concepções tradicionais sobre a sístole e a diástole, Harvey apresentou o motus proprius do coração. O movimento da sístole é o movimento dinâmico do coração, ou seja, a expulsão do sangue se dá no momento exato de sua contração. Como vimos na primeira parte deste artigo, tal afirmação contradizia a concepção tradicional dos anatomistas da época, que acreditavam que o coração expulsava o sangue quando se dilatava, no momento da diástole cardíaca. Segundo tal concepção, quando o coração batia no peito, dava-se o momento exato de sua dilatação e os ventrículos se enchiam de sangue. Se, para a tradição, o coração se dilatava sob o efeito natural de uma vis pulsativa, captando o sangue, para Harvey, o coração se contrai e dilata simplesmente porque é um músculo e na sua contração expulsa o sangue que está contido nele. O motus proprius do coração é apresentado em quatro momentos:

ao se abrir o peito dos animais de sangue frio, pode-se observar o coração fazer dois movimentos: um movimento e um repouso, alternadamente; no repouso, o coração é macio, flácido e inerte, como na morte; em movimento, quatro circunstâncias podem ser verificadas: 1) o coração endurece, cresce afinando e tocando o peito; sua batida cardíaca pode ser externamente percebida; 2) o coração se contrai por inteiro, com maior intensidade nos lados, parecendo com isso menor, um pouco mais alongado e mais estreito; 3) o coração enrijece quando se movimenta e sua rigidez é como aquela dos músculos do antebraço, quando se move os dedos e os tendões ficam mais renitentes; 4) nos peixes e nos animais de sangue frio, quando o coração se move, empalidece, quando está em repouso, avermelha com a cor púrpura do sangue.

Para Harvey estava claro: o coração se contrai da mesma forma que um músculo; no momento de sua contração (sístole cardíaca) estreita as paredes e diminui os ventrículos, projetando o sangue contido para fora.

Harvey (op. cit., cap. XVII, p. 300) não sabia qual era a causa do movimento cardíaco, acreditando que tal movimento dependia exclusivamente da ação muscular de suas "fibras circulares":

existem no coração pequenos músculos, os quais Aristóteles chamou de nervos (De Respirat. e De Part. Anim., liv. III). Alguns se estendem de maneira incerta entre as paredes; outros são parte integrante das paredes e do septo. Insinuam-se como sulcos formando pequenos músculos próprios à contração. Tornam o impulso dado ao sangue pela contração do coração mais forte e mais eficaz; são, para o coração, uma reserva de força suplementar, auxiliares para a expulsão posterior de sangue.

Galeno e os anatomistas afirmavam que a massa do coração era constituída por fibras retas, transversais e oblíquas que se cruzavam em diferentes direções. No De Humani Corporis Fabricæ (1543), Vesálio tinha afirmado que o coração se contraía no sentido de suas fibras retas e, como resultado, a diástole era um movimento no qual a base do coração era atraída para a sua ponta esticando as paredes dos ventrículos para fora e assim aumentando o volume do coração. Harvey (op. cit., cap. XVII, p. 302) mostrou que a contração do coração ocorre em todas as suas fibras, e não apenas nas fibras retas:

todas as fibras das paredes e do septo são circulares, como aquelas dos esfíncteres, mas as que se encontram nas tiras do coração são direcionadas longitudinal e obliquamente. Assim, quando todas se contraem simultaneamente, como de fato acontece, o vértice do cone é levado até a base pelas tiras e as paredes se retraem em seu contorno, o que, no final das contas, faz com que o coração por inteiro se contraia e os ventrículos se estreitem. Portanto, sendo a ação deste órgão a de se contrair, é impossível deixar de admitir que a sua função é a de lançar sangue para as artérias.

Harvey verificou que quando o coração se contrai, as artérias se dilatam; quando o ventrículo esquerdo se contrai, a aorta se dilata; quando ele pára, a dilatação e a pulsação das artérias cessam; se ele fica fraco, a pulsação das artérias é imperceptível. Ao perfurar uma artéria, Harvey notou que o sangue jorra mais intensamente no momento da sístole do coração; que nos peixes, quando o vaso que conduz o sangue às brânquias é cortado, pode-se observar que o sangue sai do seu interior no momento da contração cardíaca, e que nas arteriotomias o sangue jorra mais forte no momento da diástole arterial, que é concomitante com a sístole cardíaca. Com tais informações, Harvey pôde estabelecer a relação de dependência entre o movimento do coração e o movimento das artérias: as artérias se dilatam como resultado da entrada do sangue, uma vez que a cada sístole cardíaca corresponderá uma diástole arterial. Assim, rejeitou a explicação de Galeno de que as artérias se dilatam naturalmente em função de uma vis pulsativa propagada pelo coração, criando, dessa forma, o vazio que atrai o sangue.

Ao observar cuidadosamente o movimento do coração, Harvey pôde distinguir o movimento das aurículas do movimento dos ventrículos, mostrando que a expulsão do sangue se dá pela explosão sangüínea iniciada pela contração das aurículas seguida à dos átrios. Dessa forma, apresenta a função das aurículas, que até então não tinha sido claramente estabelecida, pois estas eram apenas consideradas como "receptáculo do sangue". Segundo Harvey, "Bauhin e Riolan tinham afirmado que os movimentos do coração eram quatro no tempo e no espaço: dois, próprios das aurículas6 6 O que hoje chamamos de átrio era no século XVII denominado "aurícula"; assim como o que hoje chamamos de aurícula era chamado de "auriculeta". Agradeço ao prof. dr. Eduardo Cunha Farias, prof. associado do Departamento de Histologia e Embriologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, pelo esclarecimento de parte dos termos anatômicos da época. e dois, próprios dos ventrículos". Harvey constatou que são quatro movimentos no espaço (dois das aurículas e dois dos ventrículos), mas apenas dois movimentos no tempo; primeiro as aurículas se movem concomitantemente, em seguida, movem-se os ventrículos, também ao mesmo tempo. Harvey demonstrou que as aurículas dão início ao movimento do coração enviando o sangue para os ventrículos. Para Harvey, o coração tem uma ação sincronizada que se inicia primeiro pela ação da aurícula direita. Harvey identificou a contração do coração com a pulsação cardíaca e afirmou: "quando a aurícula se contrai, as extremidades e as bordas do coração empalidecem, mostrando que se dá a expulsão do sangue; o sangue, por sua vez, chega às aurículas por um movimento espontâneo de pressão das veias para o centro". Dessa forma, Harvey mostrou que o sangue penetra nos ventrículos como resultado da atividade de contração das aurículas e não por atração ou dilatação causada por uma virtude pulsativa.

Com tantas evidências, Harvey pôde demonstrar que o coração, por meio de sua pulsação, transporta o sangue das veias através de seus ventrículos, levando-o às artérias e distribuindo-o para o corpo todo. O movimento do coração se dá da seguinte forma:

primeiro a aurícula contrai e como estuário das veias, receptáculo e cisterna sangüínea, introduz no ventrículo o sangue contido; com isso o coração fica repleto de sangue; levanta e tensiona seus nervos; contrai os ventrículos e bate, lançando para as artérias o sangue que contém e que acabou de receber da aurícula; o ventrículo direito envia o sangue aos pulmões pelo vaso que, embora denominado vena arteriosa, é, na realidade, por sua constituição e função, uma artéria; o ventrículo esquerdo envia o sangue à aorta e às artérias do corpo todo. Cada vez que o coração transporta o sangue das veias para as artérias, se produz uma pulsação que pode ser ouvida no peito. O movimento dos ventrículos segue o movimento das aurículas conservando entre si tal harmonia e ritmo que parece acontecer simultaneamente como se fosse um só movimento, especialmente nos animais mais quentes, nos quais o movimento se dá com uma rapidez maior. A função do movimento do coração é a de transportar o sangue por meio das artérias até as extremidades. Por isso, a pulsação arterial nada mais é do que o resultado do impulso procedente do coração, que leva o sangue até elas.

Partindo de um conjunto de observações de anatomia comparada, Harvey percebeu que na maioria dos animais o sangue é transmitido das veias para as artérias através do coração. Constatou que, nos animais que não possuem pulmões, existe uma via de acesso direta do coração para as artérias; que nos animais que têm pulmão e voz, embora desprovidos de um ventrículo ou que possuem apenas um, também se observa uma via de acesso entre o coração e a artéria. Além disso, partindo de observações da circulação sangüínea fetal, concluiu que existe uma primeira união fetal entre a veia cava e a arteria venosa (uma anastomose lateral no ventrículo direito), o forame oval e uma segunda união fetal entre a vena arteriosa e a aorta, o ducto arterioso; a primeira união mostra que o sangue flui direto da veia cava para a arteria venosa e daí para a aurícula do coração esquerdo, seguindo para o ventrículo esquerdo; a segunda união mostra que o sangue passa livremente da vena arteriosa para a aorta, aquela enviando o sangue diretamente do ventrículo direito para esta. Nos dois casos, Harvey fez lembrar o papel fundamental das válvulas "sigmóideas" (as semilunares) como mecanismo impeditivo do refluxo sangüíneo. Munido de tais informações, Harvey explica a circulação pulmonar, isto é, o trânsito do sangue através dos pulmões descrevendo o seu exato percurso: o sangue venoso que chega da veia cava ao coração é expulso pela aurícula direita para o ventrículo direito seguindo diretamente para os pulmões por meio da artéria pulmonar; dos pulmões o sangue retorna à aurícula esquerda do coração por meio da veia pulmonar, seguindo para o ventrículo esquerdo de onde é finalmente distribuído pela aorta às artérias do corpo.

O "argumento quantitativo" de Harvey

No oitavo capítulo do An anatomical de motu cordis on the motion of the heart and blood in animals (p. 285), Harvey indaga:

mas qual seria a quantidade de sangue transmitido (pelo coração) e qual o intervalo de tempo gasto para isso?" ... Ao praticar alguns experimentos em animais vivos, dissecando e abrindo as suas artérias, venho fazendo múltiplas indagações sobre qual poderia ser a quantidade de sangue existente. Ao observar o tamanho e a simetria dos ventrículos do coração e dos vasos que chegam ou saem dele, refleti que a natureza, que não faz nada em vão, não teria dado a esses vasos um tamanho tão grande inutilmente. Por fim, considerei repetida e seriamente, repassei várias vezes em minha mente a construção harmoniosa e perfeita das válvulas, das fibras musculares e do resto da fábrica do coração, assim como muitas outras coisas. Não podia admitir nem que a quantidade de sangue pudesse proceder do suco dos alimentos nem tampouco que pudesse se originar deles no curto espaço de tempo em que é transmitido. Pensei, ainda, que deixando passar tal quantidade de sangue as veias ficariam vazias e completamente exaustas; e que as artérias, ao recebê-lo, se romperiam devido à excessiva entrada do sangue. Tudo isso somente poderia acontecer dessa forma, se fosse o mesmo sangue que regressasse das artérias para as veias e em seguida fosse devolvido ao ventrículo direito do coração. ... Assim foi como comecei a pensar que se poderia verificar uma espécie de movimento como num CÍRCULO cuja verdade logo pude comprovar...

A questão será respondida no nono capítulo (p. 286), onde Harvey dará inicio à demonstração da circulação do sangue a partir de três proposições. As duas primeiras proposições referem-se à quantidade e à velocidade do sangue que atravessa o coração numa unidade de tempo, enquanto que a terceira se refere ao retorno perpétuo do sangue das veias para o coração:

Primeira proposição: "contínua e incessantemente o sangue da veia cava é transmitido para as artérias através da pulsação do coração em tal quantidade que não pode ser derivado dos alimentos ingeridos, nem a totalidade de sua massa poderia ser originada desta forma num espaço tão curto de tempo". A demonstração desta proposição encerra o argumento que ficou historicamente conhecido como "argumento quantitativo" ou "prova quantitativa" da circulação do sangue. Harvey não é o primeiro a fazer uso de cálculos matemáticos na experimentação médica e anatômica, embora tenha sido o primeiro a inserir o cálculo para demonstrar a função de um órgão, no caso o coração.

Segunda proposição: "através do ímpeto da pulsação arterial, o sangue penetra contínua e uniformemente em cada um dos membros e partes do corpo, numa quantidade muito maior do que aquela apenas requerida para nutri-lo e da quantidade de todos os líquidos que pudessem ser derivados dos alimentos". Por causa desta proposição, como veremos, Hofmann acusou Harvey de negar que "a natureza nunca é deficiente naquelas coisas que são necessárias nem redundante naquelas que são supérfluas" (Whitteridge, 1971, p. 241), pois por que aperfeiçoar novamente um sangue já aperfeiçoado? Ou por que o corpo necessitaria de uma quantidade muito maior do que aquela apenas requerida para nutri-lo? Como veremos adiante, foi justamente a demonstração deste ponto que Hofmann, bem como outros anatomistas, não aceitaram como prova da verdade da circulação do sangue.

Terceira proposição: "de modo análogo, as veias de cada um dos membros devolvem continuamente o sangue ao coração".

Para demonstrar o primeiro ponto, Harvey levou em consideração a quantidade aproximada de sangue do ventrículo: "primeiro é preciso admitir que a quantidade de sangue no ventrículo esquerdo, quando cheio, é de duas onças, ou de três onças ou finalmente de uma onça e meia". Esta constatação foi feita a partir da dissecação do ventrículo esquerdo em cadáveres: "o ventrículo esquerdo cheio pode conter 1,5 onça, duas, ou até três onças"; da observação da quantidade de sangue enviada pelo coração em pequenos animais: "o coração ao se contrair expulsa 1/5, 1/6 ou 1/8 de sua capacidade, o que equivale a 1/2 onça, uma dracma ou três dracmas de sangue enviado para a aorta, que por causa do impedimento das válvulas que existem na raiz do vaso, já não podem refluir ao coração"; do cálculo da quantidade de sangue expelido numa unidade de tempo: "se o coração em trinta minutos pode bater mil vezes, três mil ou quatro mil vezes, multiplicando-se o número de dracmas por batimentos cardíacos em trinta minutos teríamos 2.500 dracmas ou três mildracmas"; concluindo que: "Ora, isto equivale ao que o coração envia para as artérias em trinta minutos. Mas essa quantidade é muito maior do que aquela que existe em todo o corpo."7 7 Uma libra equivale a 12 onças que são iguais a 373,2 gramas. Uma onça equivale a 8 dracmas que são iguais a 31,1 gramas e um dracma equivale a 3,8 gramas.

O experimento é repetido no cão e no carneiro: "se admitirmos do mesmo modo, que a cada contração do coração, tanto no carneiro quanto no cão, passa um escrópulo8 8 Escrópulo: unidade de medida de peso para pedras preciosas que possuem seis quilates. Vale um grama e 125 miligramas (1,125 gramas). de sangue, em trinta minutos resultarão mil escrópulos, ou seja, cerca de três libras e meia de sangue (mas a questão é que o corpo do carneiro, segundo pude determinar, contém, quando muito, quatro libras de sangue)" (op. cit., cap. IX, p. 287). Apoiado em tais argumentos, Harvey postulou a circulação do sangue: "da massa de sangue que resulta dos cálculos razoáveis que fizemos, baseados na quantidade lançada em cada pulsação e no número de pulsações contadas, resulta impossível fazer outra interpretação que não seja aquela de que a totalidade de tal massa sangüínea deve passar das veias para as artérias atravessando o coração e igualmente os pulmões". A demonstração é também inferida a partir de um conjunto de experimentos de vivissecções: "o corte da aorta, ou de qualquer artéria, faz com que o sangue em 30' escape até se esgotar".

Os experimentos com ligaduras

A segunda proposição é demonstrada no 11o capítulo do An anatomical disquisition on the motion of the heart and blood in animals (pp. 290, 291). Utilizando-se de experimentos com ligaduras, Harvey demonstrou que o sangue penetra pelas artérias e retorna pelas veias e que as artérias são vasos que carregam o sangue do coração para o corpo e que as veias são vasos através dos quais o sangue a ele regressa; que nos membros e nas extremidades, "diretamente por anastomoses ou por intermédio de porosidades da carne, ou das duas formas", o sangue passa das artérias às veias da mesma maneira que passa das veias às artérias no coração. Para Harvey, com tais experimentos fica claro que o sangue se move em círculo, do centro para as extremidades e das extremidades novamente para o centro.

O experimento de Harvey consistiu na colocação de uma "ligadura suficientemente apertada no ponto máximo que se possa tolerá-la". Segundo Harvey,

a primeira coisa que se observa é que mais além da ligadura (na parte distal, isto é, mais distante do coração), quer dizer, até a mão, nenhuma artéria pulsa, nem nos dedos, nem em qualquer outra parte. Ao mesmo tempo, observa-se que logo acima da ligadura (na parte proximal, isto é, mais próxima do coração) a artéria vai ficando mais e mais inchada a cada diástole arterial, que pulsa com maior força e que incha contra a ligadura como se tentasse fazer passar, através da violência, o fluxo de sangue interceptado e restabelecer o trânsito impedido.

Quando a atadura era afrouxada para ser convertida numa ligadura mediana, como as utilizadas para as sangrias, Harvey observa

que a mão inteira se colore e se distende pouco a pouco; que as veias se tornam tumefactas e varicosas; que no espaço entre a décima e 12a pulsação da artéria a mão fica repleta pelo efeito do grande impulso e do choque do sangue; que através dessa ligadura mediana uma abundante quantidade de sangue é atraída não por causa do calor, tampouco por causa do horror ao vazio e nem pelas causas usualmente aludidas; que no mesmo instante do afrouxamento, se alguém colocar firmemente o dedo sobre o pedaço da artéria subjacente à atadura, perceberá que ela volta a pulsar e sentirá o sangue correr sob o dedo...

Além disso, acrescenta, "a pessoa em cujo braço se pratica o experimento, ao se afrouxar a ligadura para torná-la mediana, sente claramente o calor e o pulso do sangue que penetra na artéria e sente a mão inchar instantaneamente".

Harvey notou que se, nas ligaduras apertadas, as artérias se distendem e pulsam acima da ligadura e não abaixo, nas ligaduras afrouxadas ou medianas ocorre o contrário: as veias incham abaixo da ligadura, mas nunca acima, e enquanto isto ocorre com as veias, as artérias se retraem. Conclui que "qualquer observador atento facilmente reconhecerá que o sangue penetra nos membros pelas artérias". Da mesma forma, "enquanto as veias estão comprimidas, tampouco pode fluir algo por elas; disso é sinal certo que, não acima da ligadura, mas abaixo, fiquem muito mais inchadas do que costumam ficar quando estão livres da ligadura". Se as veias compri-midas não deixam passar nada para as veias superiores, é evidente que o que a ligadura faz é impedir que o sangue retorne das veias inferiores para as superiores e que por isso mantêm inchadas as que se encontram abaixo da ligadura. Logo, o sentido do fluxo sangüíneo nas veias é das extremidades para o centro, no caso o coração.

Da mesma forma, quando se afrouxa uma ligadura apertada para convertê-la em mediana, devido ao fato de que as artérias continuam introduzindo sangue, observa-se que são as veias que progressivamente incham, e não as artérias. Indicação de que "o sangue passa das artérias às veias e não o contrário, seja porque existam anastomoses entre os vasos ou porque a carne e as partes sólidas têm porosidades permeáveis ao sangue". A última frase desta citação mostra que Harvey não tinha claro o mecanismo da passagem do sangue das artérias às veias. Como veremos a seguir, esta dúvida será cobrada por Hofmann, que pergunta: "por quais vias o sangue passa das artérias às veias?" (Whitteridge, 1971, p. 245).

Após confirmar a primeira e a segunda proposições, Harvey se ocupará da terceira proposição, a saber, a explicação do modo como o sangue das extremidades regressa ao coração e por que as veias levam unicamente sangue das extremidades ao centro. A explicação tem dois momentos: no primeiro, através de dois experimentos com ligaduras, Harvey demonstrou a existência das válvulas venosas, mostrando a sua competência; no segundo, mostrou como tais válvulas condicionam o movimento do sangue apenas num único sentido, o de volta ao coração.

Segundo Harvey (op. cit., cap. XIII, p. 293), uma vez confirmada a terceira proposição, a circulação do sangue fica estabelecida. A demonstração partirá da observação das válvulas venosas e da descrição e função destas:

as válvulas são pedaços finos e delicados de forma sigmóide ou semilunar salientes no interior das veias; localizam-se de modo variável e com distâncias diferentes segundo os indivíduos; desprendem-se das veias no sentido dos troncos ou das veias mais grossas e nas veias medianas formam pares cujos dois componentes ficam um diante do outro, de modo que ao se tocarem e unirem as suas bordas, impedem de modo completo a passagem do sangue das veias maiores às menores.

Harvey negou que a função das válvulas, como tinha afirmado seu professor de anatomia Fabrício de Acquapendente (1533-1619),9 9 No De venarum ostioles, publicado em Pádua, em 1603. era a de impedir que a totalidade do sangue se precipitasse para baixo, por causa do seu próprio peso, ou que existiam nas jugulares para impedir a apoplexia,

pois o sangue que flui para a cabeça para produzir o sono chega ali por meio das artérias soporíferas; tampouco serviriam para manter o sangue confinado nas divisões e ramificações menores e impedir que se derramasse totalmente pelas veias mais abertas e amplas, uma vez que se encontravam onde não existia uma bifurcação, embora onde confluem as uniões existissem em maior abundância; nem poderiam ter como único objetivo retardar a circulação procedente do centro do corpo, pois para isto bastaria que o sangue passasse das ramificações maiores para as menores, ou que fosse separado de sua massa e fonte dos lugares mais quentes aos mais frios.

Segundo Harvey, as válvulas foram feitas para "que o sangue não se movimente das grandes veias para as menores e com isso as dilacere e as torne varicosas; e também, para que não se movimente do centro do corpo para os extremos, mas, ao contrário, caminhe das extremidades ao centro, uma vez que tal movimento abre facilmente as válvulas mais fracas e o contrário as fecha". Para demonstrar tal afirmação, Harvey procedeu ao experimento de dissecação de uma veia e a introdução de um estilete a partir da sua raiz, na direção das ramificações. Observou, com isso, a impossibilidade de penetração do estilete, justamente causada por tais válvulas; contrariamente, a introdução do estilete de fora para dentro, ou seja das ramificações para a raiz, permite a sua passagem. Com este simples e elegante experimento, Harvey concluiu que a função das válvulas é impedir o movimento do sangue a partir do coração ou da veia cava. Ao contrário, as válvulas cedem livremente e deixam o caminho livre e desimpedido quando o movimento do sangue é propagado das veias mais delicadas para as maiores.

A carta de Caspar Hofmann a William Harvey: as objeções à circulação do sangue

Caspar Hofmann (1594-1648) foi um dos maiores oponentes de Harvey. Nascido em Nuremberg, estudou medicina em Leipzig e Estrasburgo, seguindo como bolsista para Pádua, onde foi aluno de Fabrício de Acquapendente alguns anos antes de Harvey lá chegar. De Pádua, Hofmann seguiu para a cidade de Basiléia, onde estudou com Felix Plater e Caspar Bauhin, obtendo, com a tese De Lumbricis, o grau de doutor em 1605. Em 1608, foi indicado professor de medicina da Universidade de Altdorf (Suíça), cargo que ocupou por quarenta anos.

Segundo Franklin (1958, p. 5), Hofmann foi descrito de várias formas por seus contemporâneos. Conring afirmou que ele conhecia profundamente a língua grega e era visto como um homem muito sábio e um grande conhecedor de fisiologia; Thomas Bartholin não parecia compartilhar as idéias de Conring e chamava Hofmann de "o cão de Altdorf mordaz e sarcástico".

O médico alemão, declaradamente aristotélico, era visto como um homem de idéias conservadoras e, por isso, bastante criticado. Franklin afirma que, "segundo Haller, Hofmann falava de anatomia sem nunca ter usado um escalpelo e de prática clínica sem nunca ter visto um paciente". Embora adepto das idéias de Andrea Cesalpino e Realdo Colombo (sobretudo no que diz respeito à circulação pulmonar), de uma maneira geral, Hofmann seguia fielmente as idéias de Galeno.10 10 Hofmann escreveu, entre outras obras, o De Thorace (Frankfurt, 1627), o Apologia pro Galeno e o Commentarii in Galeni de usu partium corporis humani (1625). Contrariando a fisiologia da época, negou a existência de porosidades no septo interventricular, o que o levou à aceitação da circulação do sangue através do pulmão, embora explicasse tal fenômeno à luz da fisiologia galênica, isto é, a circulação pulmonar serviria para levar o sangue do ventrículo direito ao esquerdo assegurando a refrigeração do pulmão e a nutrição do coração.

Hofmann compartilhava com Aristóteles e Harvey a idéia do coração como arché dos vasos e do sangue, embora sustentasse a idéia galênica de que o coração era responsável pela cocção e pelo aperfeiçoamento do sangue que deveria ser distribuído para nutrir e vivificar o corpo através das faculdades de atração e retenção. Além disso, o coração, para Hofmann, não era concebido como um músculo e sua atividade ou movimento (sístole e diástole) não dependeria de suas fibras e sim de seus nervos, como tinha afirmado Aristóteles em De Partibus Animalium (liv. III, cap. 4).

Em maio de 1636, acompanhando o conde de Arundel em suas atividades diplomáticas, Harvey visitou a cidade de Nuremberg e conheceu Caspar Hofmann. No dia 18 do mesmo mês, o médico inglês promoveu uma demonstração pública da circulação do sangue no Teatro Anatômico de Altdorf com a finalidade de convencer Hofmann e outros anatomistas. Este prometeu fornecer a Harvey a sua opinião imediatamente após a demonstração. No dia seguinte, enviou-lhe uma carta11 11 Parcialmente publicada como Caspari Hofmanni Digressio in circulationem sanguinis, nuper im Anglia natam. Caput 48 Manuscripti Physiologici, incluída por Jean Riolan nas suas Responsio ad duas exercitationes Anatomicas postremas G. Harvei etc. De circulatione sanguinis, Paris, 1652, pp. 357-64. Utilizei a tradução de Whitteridge (1971, pp. 238-47). onde apresentava as razões de seu não convencimento. Hofmann concentrou seu ataque em duas objeções: a primeira, de natureza essencialmente filosófica: "mas se a circulação existe, qual é o seu propósito?"; a segunda, de natureza anatômica: "se a circulação existe, por quais vias e por meio de que faculdade o sangue passa das artérias às veias?".

Hofmann iniciou o ataque pela tese central de Harvey: "ele (Harvey) quer provar que o sangue é transferido do coração para as artérias e que por meio delas é distribuído para o corpo; no corpo, o sangue é recolhido pelas veias e nelas viaja novamente percorrendo o mesmo caminho de volta ao coração, onde será novamente cozido (coquatur) e levado às artérias para o corpo, para novamente ser recebido pelas veias" (Whitteridge, 1971, p. 239). Como veremos, a afirmação "onde será novamente cozido", jamais afirmada ou sugerida por Harvey, mostra a dificuldade de Hofmann em se desvencilhar do paradigma galênico. A maior parte das objeções resulta da dificuldade de Hofmann em compreender a nova fisiologia de Harvey, pois, para compreender essa fisiologia, era preciso redefinir as partes anatômicas e sua função, bem como os princípios que explicavam o seu funcionamento próprio. A aceitação da circulação do sangue era o corolário das novas observações anatômicas e das novas explicações da fisiologia cardiovascular. É por isso que os primeiros cinco capítulos do De motu cordis se constituem num relato descritivo da anatomia das partes e de sua função. Assim, de uma maneira geral, a discussão será conduzida no sentido de que a circulação do sangue é uma "falsam hypothesim", nas palavras de Hofmann.

Para Hofmann, a falsa hipótese em que Harvey se apoiava é aquela afirmada no nono capítulo do An anatomical disquisition on the motion of the heart and blood in animals, "a quantidade de sangue que é enviada pelo coração para as artérias, por meio da pulsação, é maior do que aquela que pode ser produzida pela ingestão de alimentos ou absorvida pelas partes" (idem, ibidem, p. 239).12 12 Na verdade, esta é a segunda proposição que Harvey apresenta no nono capítulo do De Motu Cordis para demonstrar a circulação do sangue. Para refutar tal afirmação, Hofmann separou a proposição em duas partes: "a quantidade de sangue que é enviada pelo coração para as artérias, por meio da pulsação, é maior do que aquela que pode ser produzida pela ingestão de alimentos"; e "a quantidade de sangue que é enviada pelo coração para as artérias, por meio da pulsação, é maior do que aquela que pode ser absorvida pelas partes".

Para objetar a primeira parte da proposição, Hofmann faz a seguinte pergunta: "como isso pode ser provado?", e é nesse momento que ele se recusa a aceitar os cálculos matemáticos do chamado "argumento quantitativo", bem como a possibilidade de quantificação desse sangue, objeção anteriormente feita por seu colega Primerose,13 13 O médico inglês James Primerose publicou, em 1630, o primeiro ataque à doutrina da circulação do sangue, o Exercitationes et animadversiones in librum de motu cordis et circulatione sanguinis. Galenista dos mais convictos, Primerose não aceitava as novas concepções fisiológicas de Harvey. o maior oponente de Harvey em solo inglês.

A segunda parte da proposição é objetada em três pontos: Hofmann acusou Harvey de afirmar que "a natureza trabalha em vão", por causa da superfluidade do sangue no corpo e porque a faculdade atrativa jamais atrairia mais sangue do que aquele necessário, pois, dessa forma, as partes ficaram inflamadas. Por fim, pergunta-se por quais vias este sangue que circula passaria das artérias às veias?

Vamos às objeções:

Antes de expor as objeções propriamente ditas, Hofmann procurou desqualificar a nova teoria da circulação no seu conjunto, acusando Harvey de negar aquilo que ele mesmo pregava na sua filosofia natural. Como ele acrescentou a idéia de cocção do sangue, a circulação lhe pareceu um desperdício inaceitável sem nenhum propósito: "Você (Harvey) parece atribuir à natureza o caráter do mais rude e inútil artífice, uma vez que destrói o próprio trabalho já feito e aperfeiçoado ... negando a máxima, por você mesmo enaltecida, de que a natureza nunca é deficiente naquelas coisas que são necessárias, nem redundante naquelas que são supérfluas..." (Whitteridge, 1971, p. 241). Como vimos, para a fisiologia da época, o sangue chegava ao coração para ser aperfeiçoado e distribuído ao corpo: o sangue que chegava ao ventrículo direito transformava-se em sangue venoso e era distribuído pelas veias para nutrir o corpo; o sangue que chegava ao ventrículo esquerdo transformava-se em sangue arterial e era distribuído pelas artérias para vivificar o corpo. Se esse sangue circulasse perpetuamente, como Harvey havia demonstrado, Hofmann entendia que o processo de cocção seria infinitamente repetido até a morte, o que lhe parecia absurdo, uma vez que "a natureza não faz nada em vão, e, tudo aquilo que faz, executa de modo suficiente".

Hofmann não aceita "a prova da hipótese", o argumento quantitativo da segunda proposição de Harvey, apresentado no décimo capítulo do De motu cordis, porque ele não segue o modelo de demonstração anatômica exigido pelos anatomistas, isto é, "de acordo com a maneira antiga, por meio de demonstrações diretas: o que é, observe; o que pode ser, considere (hoc est, hoc videte; hoc ita sit, conside/rate)" (idem, ibidem). Como Hofmann não considerou as fartas evidências apresentadas por Harvey nas suas diversas demonstrações anatômicas, o acusou de utilizar a razão e os cálculos para demonstrar a circulação do sangue, fato inadmissível para um anatomista da época. Argumentos ou raciocínios quantitativos desse tipo ou até mesmo mais precisos já tinham sido utilizados por Galeno no Das Faculdades Naturais, quando o autor demonstra que "a quantidade de urina produzida é quase idêntica à quantidade de líquidos ingeridos", fornecendo um valor numérico extremamente aproximado; no século XVI, Leonardo Botallo utilizou no De curatione per sanguinis missionen (1577) cálculos para investigar a quantidade de sangue produzida pelo fígado a cada dia, chegando ao número de oito a dez onças (31,1 gramas); Santorio Santorio (1561-1636), sob a influência de Galileu, foi o primeiro médico a utilizar instrumentos precisos para o controle observacional em fisiologia e medicina. Em 1612, Santorio apresentou o termômetro para medir a temperatura do corpo e, em 1620, descreveu um "pulsologium" para medir a pulsação arterial. Em 1614, 14 anos antes da publicação do De motu cordis de Harvey, Santorio publicou no De statica medicina suas famosas medições da transpiração corporal feitas com o uso de balanças; Giovanni Alphonso Borelli (1609-79) no De motu animalium (1680-81), ao analisar a dinâmica do coração, computou a quantidade de sangue que chegaria a três onças; diversos experimentos foram também planejados e executados por Cesare Cremonini, no Apologia dictorum Aristoteles de origine, et principatu membrorum adversus Galenum (1627); por Emelio Parigiano, no Nobilium exercitationum libri duodecem de subtilitate (1621), e pelo próprio Caspar Hofmann, no Commentarii in Galeni de usu partium corporis humani (1625) (Jevons, 1962; Kilgour, 1954; Shryock, 1961; Bayon, 1941; French, 1994).

A grande diferença é que Harvey utilizou seus resultados como prova ou demonstração de um fenômeno de natureza anatômica, fato inusitado para os seus contemporâneos, pois a matemática não possuía estatuto de prova ou demonstração em anatomia. Para Harvey e os anatomistas dos séculos XVI e XVII, a medicina fazia parte da filosofia natural. Nesse sentido, deveria seguir os mesmos princípios epistemológicos e metodológicos exigidos para a constituição de um saber demonstrado, a verdadeira scientia. Demonstrar, como tinha ensinado Aristóteles nos Primeiros e Segundos Analíticos, era apresentar as causas ou os princípios de uma coisa ou de um fenômeno. No caso específico da anatomia, responder às questões "por que uma coisa é o que ela é" e "por que exerce tal função"? Os anatomistas procuravam alcançar tal objetivo aplicando na investigação médico-anatômica a fórmula historia-actio-usus-utilitas das partes (French, 1994, 1985, 1979; Cunningham, 1985). Primeiramente, deveriam descrever a forma física e material das partes, isto é, a estrutura das partes (historia) para, em seguida, estabelecer a função e a utilidade de cada uma delas. Esse método de investigação anatômica seguia três orientações: o programa de pesquisa aristotélico do Historia Animalium e do De Partibus Animalium; o método anatômico de Galeno onde historia, actio e usus de cada parte dissecada revelavam a sua utilidade; e o projeto de pesquisa em anatomia animal de Fabrício de Acquapendente. Tais orientações geraram um modelo de leitura anatômica composto por uma historia descritiva e narrativa; pela descrição da ação ou atividade (actio) das partes e pela apresentação da sua função (usus) e de seu propósito final. A descrição e a narração correspondem à historia do Historia Animalium de Aristóteles, isto é, uma descrição detalhada da estrutura das partes e dos órgãos nos animais e no homem, sem a qual não é possível iniciar uma explicação geral da causa final ou do propósito das partes, objetivo maior da investigação médica e anatômica. No Historia Animalium, Aristóteles descreve a anatomia dos tecidos e dos órgãos nas diferentes espécies animais, sem contudo explicar o encadeamento racional das causas de cada parte ou órgão, tarefa que desenvolverá no De Partibus Animalium. Uma vez as estruturas apresentadas no relato da historia, é preciso descobrir a sua ação ou atividade (actio) e a sua função (usus), para se chegar ao seu propósito (utilitates propter quid), exatamente o que fizerem Aristóteles e Galeno, o primeiro no De Partibus Animalium e o segundo no De Usu Partium. A função deve mostrar para que a parte ou o órgão existe e como a sua forma é apta a executar a função exigida; a ação ou atividade deve descrever o movimento ativo da parte ou do órgão para cumprir a sua função; o propósito é concebido como a finalidade alcançada pela parte, ou melhor, a causa final da parte ou do órgão. Se a anatomia limita-se a uma mera descrição da estrutura das partes, sem apresentar sua causa final ou sua utilidade, não poderá reivindicar o estatuto de ciência. Hofmann não é o único a recusar o "argumento quantitativo" de Harvey. Na verdade, a maior parte dos anatomistas da época, como era de se esperar, não aceitou tal argumento como prova da circulação, simplesmente porque a matemática, para eles, não tinha força enquanto prova ou demonstração em ciência no sentido aristotélico, isto é, demonstrar em anatomia é fundamentalmente apresentar a causa ou o propósito final.

Além disso, a hipótese apresentada ("a quantidade de sangue que é enviada pelo coração para as artérias, por meio da pulsação, é maior do que aquela que pode ser produzida pela ingestão de alimentos ou absorvida pelas partes") não era aceitável não apenas pelo fato de ser uma "prova matemática", mas também e sobretudo porque ela se baseava, segundo Hofmann, num fenômeno que não podia ser totalmente observado, pois, por causa da ebulição, a quantidade de sangue que sai do coração não pode ser computada. Para Hofmann e a fisiologia da época, o sangue que chegava ao coração, sede do calor natural, fervia e evaporava, escapando pela artéria pulmonar e pela aorta. Tanto Hofmann quanto James Prime-rose julgavam impossível medir a quantidade desse sangue expulso.

Ao comentar a segunda parte da hipótese ("uma quantidade maior de sangue do que aquela que pode ser absorvida pelas partes é enviada pelo coração para as artérias, por meio da pulsação"), Hofmann argumenta acerca da superfluidade ou do excesso de sangue nas partes: "como flui mais sangue nas partes do que aquele necessário, estas possuem uma superfluidade além da sua necessidade" (Whitteridge, 1971, p. 243). Novamente, Hofmann apóia-se nas afirmações de Primerose de "que a natureza não atrai mais daquilo que é necessário senão as partes ficariam inflamadas", logo, a circulação do sangue parece não possuir uma razão ou um propósito claro e, portanto, não pode ser aceita.

Por fim, Hofmann indaga por quais vias e qual poderia ser a faculdade que permitiria, caso a circulação do sangue fosse uma verdade, o retorno do sangue das artérias às veias e em seguida ao coração?

No primeiro ponto, Hofmann baseia-se na dúvida de Harvey afirmada no nono capítulo do An anatomical de motu cordis on the motion of the heart and blood in animals (p. 289, grifo da autora):

o sangue penetra pelas artérias e retorna pelas veias em todos os membros; as artérias são vasos que carregam o sangue do coração para o corpo e as veias são vasos por meio dos quais o sangue a ele regressa; que nos membros e nas extremidades, diretamente por anastomoses ou por intermédio de porosidades da carne, ou das duas formas, o sangue passa das artérias às veias de maneira semelhante àquela anteriormente apontada no tórax, quando passa das veias às artérias. Com isso, ficará claro que o sangue se move em círculo daqui para lá e de lá para cá, quer dizer, do centro para as extremidades e das extremidades novamente para o centro.

Galeno (De usu partium corporis humani, liv. VI, cap. 10, 17) tinha afirmado que "em todo o corpo as artérias se abrem para as veias e trocam entre si sangue e pneuma através de aberturas invisíveis e extremamente finas"; tais anastomoses foram também mencionadas por Erasístrato. Para Cesalpino, que mantém as idéias de Aristóteles, a função principal do sistema cardiovascular é a nutrição das partes e o fornecimento de sangue e espírito, ambos carregados pelo calor do coração. Uma parte da nutrição do corpo é feita pelo sangue que atravessou o pulmão; a outra, através de anastomoses entre veias e artérias, os capillamenta anteriormente sustentados por Aristóteles. Os capillamenta de Cesalpino foram concebidos como microcondutos ocos responsáveis pela continuidade da passagem do sangue das artérias para as veias sem interrupção na periferia do corpo. Desse modo, o calor do coração poderia atingir as extremidades do corpo. Na verdade, Harvey não chegou à compreensão da verdadeira natureza dos capilares, isto é, da troca sangüínea entre vasos e artérias, demonstração que será feita por M. Malpighi no De pulmonis observationes anatomicæ (1661). Ao perceber tal dúvida, Hofmann exigiu uma explicação mais precisa, exigência esta que Harvey não pôde atender.

No segundo ponto, Hofmann indagou qual poderia ser a faculdade que permite o retorno do sangue das artérias às veias e em seguida ao coração, uma vez que, segundo a fisiologia galênica, as faculdades de atração e retenção não permitiriam tal fenômeno. Como vimos, para a fisiologia da época, o sangue se movimentava segundo as necessidades das partes "como o fluxo e o refluxo das marés". Ignorando a capacidade de propulsão cardíaca e até mesmo a idéia do coração como um músculo potente e capaz, Hofmann não pôde compreender como o sangue poderia ser impulsionado das artérias às veias simplesmente pela força do coração.

A resposta de Harvey

A aceitação da circulação do sangue por Hofmann era de extrema importância para Harvey, pois o médico alemão, além de ter sido um dos principais representantes da filosofia natural aristotélica em Altdorf (da mesma forma que Harvey em Londres), possuía autoridade e poder para influenciar a comunidade médica da Europa. De uma maneira geral, a resposta de Harvey a Hofmann reflete o desânimo e a paciência daquele que frente a uma posição extremamente dogmática pouco tem a dizer, apenas solicitando que o seu pequeno livro seja novamente lido com mais atenção e que os mesmos experimentos ali descritos sejam executados e verificados.

À afirmação de Hofmann de que Harvey acusa a natureza de erro e estupidez, uma vez que "parece atribuir à natureza o caráter do mais rude e inútil artífice, uma vez que destrói o próprio trabalho já feito e aperfeiçoado..." (Whitteridge, 1971, pp. 241, 248), Harvey apenas responde: "leia novamente os meus oitavo e nono capítulos. Eu nada falei sobre a cocção do sangue e a causa final da sua circulação." Como mostrei no primeiro argumento de Hofmann contra a circulação do sangue, porque Hofmann acrescenta a idéia de cocção a cada passagem do sangue pelo coração, a circulação do sangue parece um processo desnecessário e até mesmo absurdo.

À acusação de pobre anatomista e pobre filósofo analítico "que tenta investigar o fenômeno por si mesmo (to hóti) sem estabelecer a sua explicação ou a sua causa final (dióti)" (idem, ibidem, p. 249), Harvey responde: "leia com atenção o resumo do meu 14o capítulo. Você descobrirá que eu não acrescento (propositadamente) nada ao fenômeno (to hóti), apenas a sua explicação geral, não acrescento nenhuma explicação filosófica, nenhuma causa acima ou além, nem especulo por qual razão a natureza deu tal movimento ao sangue por meio das batidas do coração." Harvey reconhece que no oitavo capítulo, "a título de ilustração", algumas causas da circulação do sangue são apresentadas e que nas descrições anatômicas do 17o capítulo, a circulação do sangue é inferida, embora afirme não tentar prová-la: "das minhas anotações anatômicas e suas conseqüências, eu afirmo que a circulação do sangue provavelmente ocorre, mas em nenhum momento eu tento estabelecer a sua causa..."14 14 No 15 o capítulo do De motu cordis (p. 296), Harvey apresenta cinco razões plausíveis: "uma vez que todas as coisas viventes são quentes e ao morrer se esfriam (como tinha afirmado Aristóteles), é necessário que exista uma fonte de calor, o coração"; "é preciso que o sangue se movimente e que ao fazê-lo regresse ao coração, pois se permanecesse imóvel nas partes externas do corpo, se coagularia, porque o movimento gera e conserva o calor e os espíritos, e a quietude os extingue"; "como o frio das extremidades e do ambiente torna o sanue espesso, congelando-o e privando-o de seus espíritos, é necessário que o sangue regresse novamente para a sua fonte ou origem para repor o calor e os espíritos"; "pois de que modo as partes poderiam atrair o sangue, estando quase esgotadas de calor e de vida ou de que maneira os seus poros repletos de sangue espesso e congelado poderiam dar entrada ao alimento para o sangue, sem ter antes se livrado do seu conteúdo e sem que isso fosse unicamente causado pelo coração?". O coração, como tinha afirmado Aristóteles, "é aquele que devolve a vida e o calor às partes esfriadas; é aquele que, por meio das artérias, volta a enviar-lhes sangue embebido de calor e de espíritos; que arrasta as partículas frias e consumidas; e repara todas as partículas de calor languidecente e o fogo da vida quase extinto".

Quando Hofmann exige demonstrações anatômicas diretas (deitikos), isto é, demonstrações públicas, oculares e repetidas, recusando o argumento quantitativo de Harvey, este responde: "eu vi com os meus próprios olhos, assim como demonstrei pública e repetidamente a muitos sábios, perspicazes anatomistas e filósofos naturais". Além disso, Harvey indaga ao seu interlocutor como ele pode aceitar o raciocínio quantitativo de Primerose contra o seu, se nega a validade da razão matemática e dos cálculos quantitativos.

Hofmann ignora as diversas demonstrações anatômicas de Harvey, sobretudo e principalmente a demonstração feita em Altdorf exclusivamente para convencê-lo, tomando apenas como "prova" da circulação sangüínea os cálculos sobre a quantidade de sangue expulsa do coração no momento da sístole cardíaca. A crítica de Hofmann baseia-se nos cálculos de Primerose em oposição aos cálculos de Harvey: "ele (Primerose) nega que exista tanto sangue e sustenta que na verdade a quantidade é muito menor, mas parece maior porque o coração incha, ou como eu diria, por causa da ebulição do sangue. Considerando a logística de seu adversário (Harvey), no lugar de onças e dracmas ele encontra grãos" (Whitteridge, op. cit., pp. 243, 250). Harvey responde que não importa a quantidade de sangue considerada ("onças, dracmas ou grãos"). O sangue expulso do coração no momento da sístole é indiscutivel-mente maior do que aquele produzido pela ingestão de alimentos, "sendo um fenômeno necessário, determinado pela textura do coração, pela estrutura de suas válvulas e outras características físicas do coração", lembrando que são evidências que podem ser constatadas por meio da inspeção anatômica, e que Hofmann ignora.

À duvida de Hofmann sobre a passagem do sangue das artérias às veias Harvey responde: "eu tenho certeza que o sangue é distribuído ao corpo por meio das artérias ... e que destas segue para as veias menores ... das menores segue para as veias maiores subindo até a base do coração...". Harvey não descreve, embora pudesse, o extraordinário e elegante experimento da introdução de um estilete nas veias para a constatação das válvulas venosas e para a demonstração da direção dada por elas ao sangue. Em tal experimento, fica claro como o sangue, considerando a força propulsora do coração, segue das artérias ás veias.

O movimento do sangue nas artérias era concebido à maneira do fluxo e refluxo das marés, onde a absorção da umidade pelas margens servia de analogia para a absorção do sangue pelas partes. Nesse sentido, o sangue não retornava ao coração. Ao postular a circulação do sangue, Harvey rompe com tal concepção, gerando dúvidas e objeções. Quando Hofmann pergunta qual é o sentido, ou o propósito da circulação do sangue, Harvey indaga: "se o sangue não retorna ao coração sendo totalmente absorvido pelas partes, me explique como ocorre tal processo" (idem, ibidem, pp. 250, 251), isto é, como ocorre a absorção, levando-se em conta a quantidade de sangue expulso pelo coração.

Segundo Harvey, boa parte das dúvidas de Hofmann repousa no fato de que ele não aceita a presença de "porosidades e passagens invisíveis na carne". Ao postular a necessidade de uma faculdade atrativa e retentora responsável pela atração do sangue nas partes e sua absorção nos tecidos, coisa que Harvey não afirma e não sustenta, Hofmann cria para si mesmo um problema, pois à luz de tal concepção a circulação parece desnecessária. Harvey responde a Hofmann: "você afirma que o coração atrai (sangue) do fígado. Por que, nesse caso, as faculdades atrativa e retentora do fígado não apresentam obstáculos? Como o sangue das veias mesentéricas chega à veia cava, por meio de quais vias e aberturas, através de anastomoses ou das inúmeras aberturas (porosidades) do parênquima do fígado? Você nunca afirmou nada, mas não tem dúvidas que assim pode ser." Harvey indaga a Hofmann "se este aceita que os alimentos são trazidos do intestino para o fígado através de finas ramificações como fios de cabelo, tais como as ramificações da veia porta, e que ao mesmo tempo o sangue é aí distribuído sem qualquer impedimento", por que não quer aceitar a sua afirmação de que "o sangue passa das artérias às veias e não o contrário, seja porque existam anastomoses entre os vasos ou porque a carne e as partes sólidas têm porosidades permeáveis ao sangue"? (Harvey, 1952-90, liv. XI, p. 291).

Conclusão

A idéia inicial deste artigo foi discutir as principais objeções de Hofmann à nova teoria da circulação do sangue e a resposta fornecida por Harvey, veiculadas na correspondência trocada entre os dois em maio de 1636.

O teor das cartas não deve ser visto como um debate meramente médico e anatômico, mas essencialmente um diálogo entre duas filosofias médicas e científicas distintas.

De um lado, temos Harvey, um aristotélico que segue à risca os preceitos da filosofia natural de seu mestre, embora com independência suficiente para se desvencilhar dessa filosofia quando ela não se ajusta às suas próprias observações anatômicas. Do outro, Hofmann, um aristotélico mergulhado no registro médico galênico, tão comprometido com este registro que é incapaz de entender a nova teoria de Harvey.

Ao introduzir a idéia de cocção permanente do sangue; ao indagar acerca da faculdade atrativa e retentora responsável pela absorção do sangue nas partes; ao recusar o raciocínio quantitativo de Harvey exigindo demonstrações deitikos (que ele mesmo despreza quando são apresentadas publicamente por Harvey), Hofmann demonstra uma verdadeira incomunicabilidade entre a sua filosofia natural e a de seu colega Harvey. Hofmann introduz os novos conceitos e as novas explicações de Harvey no interior de um sistema de fisiologia de tradição livresca que lhes é estranho. A incomunicabilidade é tão estarrecedora para Harvey que na sua resposta ele educadamente pede para que o médico alemão leia novamente e com atenção maior as suas proposições, e que repita as suas observações anatômicas, pois, segundo Harvey, a verdade lá se encontrava.

Era sabido por seus contemporâneos que Hofmann não praticava inspeções anatômicas. Embora tenha exigido de Harvey uma "prova anatômica", ele próprio se movimentava no interior da fisiologia galênica ensinada através de manuais. Como Harvey poderia convencê-lo da circulação do sangue? Hofmann desprezou as suas duas principais provas: o argumento quantitativo e as demonstrações anatômicas. As últimas palavras da carta resposta de Harvey sintetizam os seus sentimentos em relação à posição dogmática de Hofmann. No penúltimo parágrafo, Harvey ironicamente convida Hofmann a aproveitar a propícia ocasião e se tornar um verdadeiro anatomista, procedendo a uma demonstração anatômica e vendo com seus próprios olhos aquilo que tinha sido afirmado acerca da circulação. Enquanto isso não ocorresse, Harvey pedia a Hofmann que não negasse nem ridicularizasse a sua pessoa e as suas afirmações sem conhecimento suficiente.

de Harvey exigindo demonstrações deitikos (que ele mesmo despreza quando são apresentadas publicamente por Harvey), Hofmann demonstra uma verdadeira incomunicabilidade entre a sua filosofia natural e a de seu colega Harvey. Hofmann introduz os novos conceitos e as novas explicações de Harvey no interior de um sistema de fisiologia de tradição livresca que lhes é estranho. A incomunicabilidade é tão estarrecedora para Harvey que na sua resposta ele educadamente pede para que o médico alemão leia novamente e com atenção maior as suas proposições, e que repita as suas observações anatômicas, pois, segundo Harvey, a verdade lá se encontrava.

Era sabido por seus contemporâneos que Hofmann não praticava inspeções anatômicas. Embora tenha exigido de Harvey uma "prova anatômica", ele próprio se movimentava no interior da fisiologia galênica ensinada através de manuais. Como Harvey poderia convencê-lo da circulação do sangue? Hofmann desprezou as suas duas principais provas: o argumento quantitativo e as demonstrações anatômicas. As últimas palavras da carta resposta de Harvey sintetizam os seus sentimentos em relação à posição dogmática de Hofmann. No penúltimo parágrafo, Harvey ironicamente convida Hofmann a aproveitar a propícia ocasião e se tornar um verdadeiro anatomista, procedendo a uma demonstração anatômica e vendo com seus próprios olhos aquilo que tinha sido afirmado acerca da circulação. Enquanto isso não ocorresse, Harvey pedia a Hofmann que não negasse nem ridicularizasse a sua pessoa e as suas afirmações sem conhecimento suficiente.

NOTAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Primárias

FONTES SECUNDÁRIAS

Recebido para publicação em outubro de 2001.

Aprovado para publicação em abril de 2002.

  • Aristóteles 1984 The complete works of Aristotle. Jonathan Barnes (org.), Princeton, Princeton University Press, 2 vols.
  • Bauhim, Caspar 1605-21 Theatrum anatomicum. Frankfurt.
  • Cesalpino, Andrea 1593 Quaestionen medicarum libri II. Veneza.
  • Cesalpino, Andrea 1571-1593 Quaestionen peripateticarum Veneza.
  • Colombo, Realdo 1559 De Re Anatomica Veneza.
  • Cremonini, C. 1627 Apologia dictorum Aristoteles. Apologia dictorum Aristoteles de origine et principatu membrorum adversus Galenus Veneza.
  • Fabricius d'Acquapendente 1738 Opera Omnia Anatomia et physiologica. Leipzig.
  • Galeno 1994 Galien: oeuvres médicales choisies. De l'utilité des parties du corps humain. Trad. De C. Daremberg. Notas e comentários de André Pichot. Paris, Gallimard.
  • Galeno 1968 On the usefulness of the parts of the body. Trad. Margaret T. May, Ithaca, Cornell University Press, 2 vols.
  • Galeno 1962 Galen on anatomical procedures: the later books. Trad. W. L. H. Duckworth, Cambridge, Cambridge University Press.
  • Harvey William 1999 Estudo anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais de William Harvey. Trad., introdução e comentários Regina André Rebollo. Cadernos de Tradução, no 5, São Paulo, Departamento de Filosofia da USP.
  • Harvey William 1994 Del movimiento del corazón y de la sangre en los animales. Trad. José Joaquín Izquierdo e introdução de Bruno Estañol Vidal. México, Universidad Nacional Autónoma de México.
  • Harvey William 1976 An anatomical disputation concerning the movement of the heart and blood in living creatures. Gweneth Whitteridge, Londres, Blackwell Scientific Publications.
  • Harvey William 1971 William Harvey and the circulation of the blood. Gweneth Whitteridge. Macdonald, Londres/Nova York, American Elsevier Publishing Company INC.
  • Harvey William 1961 Lectures on the whole of anatomy Prælectiones Anatomiæ Universalis Trad. C. D. O'Malley, F. N. L. Poynter, K. F. Russel. Berkeley, University of California Press.
  • Harvey William 1959 De motu locali animalium, 1627. Trad. Gweneth Whitteridge, Cambridge, Royal College of Physicians, University Press.
  • Harvey William 1958 The circulation of the blood: two anatomical essays by William Harvey together with nine letters written by him. Trad. Kenneth J. Franklin. Oxford, Blak Well Scientific Publications.
  • Harvey William 1952-90 An anatomical disquisition on the motion of the heart and blood in animals; Trad. Robert Willis. Chicago, University of Chicago, The Great Books of the Western World, vol. 26.
  • Harvey William 1952 The circulation of the blood and other writings Trad. Robert Willis. Introdução de E. A. Parkyn. Londres, Temple Press.
  • Harvey William 1950 Étude anatomique du mouvement du coeur et du sang chez les animaux. introdução histórica e tradução francesa de Charles Laubry. Paris, G. Doin et Cie.
  • Laurentius, Andrea 1600 Historia Anatomica humani corporis et singularum eins partium multis controversys et observationibus novis illustrada. Frankfurt.
  • Primerose, J. 1630 Exercitationes et animadversiones in librum, De Motu Cordis, et Circulatione sanguines Londres.
  • Serveto, Michel 1553 Christianisme restitutio
  • Vesalius, Andre 1543 De Corporis Humani Fabrica
  • Alessio, Franco1983 'Motivi Harveyani'. Em Luigi Olivieri (org.), Aristotelismo Veneto e scienza moderna. Padova, Antenore.
  • Bates, Don G. 1992 'Harvey's account of his discovery'. Medical History, 36: 361-78.
  • Bayon, H. D. 1941 'The significance of the demonstrations of the Harveyan circulation by experimental texts'. Isis, vol. 33.
  • Bayon, H. D. 1938-39 'William Harvey, physician and biologist: his precursors, opponents and successors'. Annals of Science, vol. 3, 4.
  • Berti-Bock, G.; Premuda, L.; Vial, F. e Rulliere, R. 1980 'Le séjour de William Harvey à Padoue'. Histoire de Science Médicale, 14:317-24.
  • Bono, James J. 1990 'Reform and the languages renaissance theoretical medicine: Harvey versus Fernel'. Journal of the History of Biology, vol. 23, no 3, pp. 341-87.
  • Brown, Theodore 1977 'Physiology and the mechanical philosophy in mid-seventeenth century England'. Bulletin of the History of Medicine, 51, pp. 25-54.
  • Burchell, H. B. July 1981 'Mechanical and hydraulic analogies in Harvey's discoveries of the circulation". Journal of History of Medicine, no 3.
  • Bylebyl, Jerome J. 1985 'Disputation and description in the renaissance pulse controversy'. Em A. Wear; R. K. French e I. M. Lonie (orgs.), The medical Renaissance of the sixteenth century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Bylebyl, Jerome J. 1982 'Boyle and Harvey on the valves in the veins'. Bulletin of the History of Medicine, vol. 56, no 3, pp. 351-67.
  • Bylebyl, Jerome J. 1979 'The School of Padua: humanistic medicine in the sixteenth century'. Em C. Webster (org.), Health, medicine and mortality in 16th century Cambridge, Cambridge University Press.
  • Bylebyl, Jerome J. 1977 'Nutrition, quantification and circulation'. Bulletin of the History of Medicine, vol. 51, pp. 369-85.
  • Capecci, Ângelo 1983 'Finalismo e meccanicismo nelle richerche biologiche di Cesalpino ad Harvey'. Em Luigi Olivieri (org.), Aristotelismo Veneto e scienza moderna Padova, Antenore.
  • Chavois, Louis 1957 William Harvey: his life and times, his discoveries, his methods. Londres, Hutchinson Medical Publications.
  • Chavois, Louis 16.11.1957 'Un grand humanist: William Harvey (1578-1657) et la decouvert de la circulation du sang'. Palestra proferida no Palais de la Découverte.
  • Cohen, Bernard 1994 'Harrington and Harvey: a theory of the state based on the new physiology'. Journal of the History of Ideas, vol. 55, pp. 187-210.
  • Cook, Harold Jr. 1990 'The new philosophy and medicine in seventeenth-century England'. Em D. C. Lindberg e R. S. Westman (orgs.), Reappraisals of the scientific revolution. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Cunningham, Andrew 1985 'Fabricius and the Aristote projet in anatomical teaching and research at Padua'. Em A. Wear; R. K. French e I. M. Lonie (orgs.), The medical Renaissance of the sixteenth-century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Debru, Armelle 1996 Le corps respirant: la pensée physiologique chez Galien. Leiden, E. J. Brill. Studies in Ancient Medicine, vol. 13.
  • Debus, Allen G. 1990 Man and nature in the Renaissance. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Debus, Allen G. 1970 'Harvey and Fludd: the irrational factor in the rational science of the seventeenth century'. Journal of History of Biology, vol. 3, no 1.
  • Doby, T. 1963 Discoverers of blood circulation: from Aristotle to the times of Da Vinci and Harvey Londres, Library Abelard Schuman.
  • Edwards, W. F. 1983 'Paduan Aristotelianism and the origins of modern theories of method'. Em Luigi Olivieri (org.), Aristotelismo Veneto e scienza moderna. Padova, Antenore.
  • Elkana, Yehuda e Goodfield, June 1968 'Harvey and the problems of the capillaries'. Isis, vol. 59, 1, pp. 61-73.
  • Fleming, Donald 1955 'William Harvey and the pulmonary circulation'. Isis, vol. 46.
  • Frank Jr., Robert G. 1980 Harvey and the Oxford physiologists Berkeley, University of California Press.
  • Frank Jr., Robert G. 1973 'Science, medicine and the universities of early modern England: background and sources'. Parte I e Parte II, History of Science, xi, pp. 194-216.
  • Franklin, Kenneth J. 1961 William Harvey Englishman: 1578-1657. Londres, Macgibbon and Kee.
  • French, Roger K. 1994 William Harvey's natural philosophy Cambridge, Cambridge University Press.
  • French, Roger K. e Wear, Andrew 1989 The medical revolution of the seventeenth-century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • French, Roger K. 1985 'Berengario da Carpi and the use of commentary in anatomical teaching'. Em A. Wear; R. K. French e I. M. Lonie (orgs.), The medical Renaissance of the sixteenth century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • French, Roger K. 1979 'A note on the anatomical accessus of the middle ages'. Medical History, 23: 461-68.
  • Ghiselin, M. T. 1967 'Harvey's methodology in the Motu Cordis from the standpoint of comparative anatomy'. Bulletin of the History of Medicine, vol. 49.
  • Gilbert, Neal W. 1960 Renaissance concepts of method Nova York, Columbia University Press.
  • Grene, Marjorie 1993 'The heart and blood: Descartes, Plemp and Harvey'. Em Stephen Voss (org.), Essays on the philosophy and science of René Descartes. Nova York, Oxford University Press.
  • Grmek, Mirko D. 1990 La première revolution biologique: réflexions sur la physiologie et la médecine du XVII ème siècle Paris, Payot.
  • Ingegno, Alfonso 1988 'The new philosophy of nature'. Em C. B. Schmitt; Q. Skinner e E. Kessler (orgs.), The Cambridge of Renaissance philosophy history Cambridge, Cambridge University Press.
  • Jevons, F. R. 1962 'Harvey's quantitative method'. Bulletin of the History of Medicine, vol. 36.
  • Keele, Kenneth D. 1962 'William Harvey as morbid anatomist'. Proceedings of the Royal Society of Medicine, vol. 55.
  • Keynes, Geoffrey 1989 A bibliografy of the writings of dr. William Harvey, 1578-1657. 2a ed., Cambridge, 1953. 3a ed., revisada por G. Whitteridge e Christine English. Winchester/Londres, St. Paul's Bibliographies.
  • Keynes, Geoffrey 1966 The life of William Harvey. Oxford, Oxford University Press.
  • Kilgour, F. J. 1954 'William Harvey's use of the quantitative method'. Yale Journal of Biology and Medicine, vol. 26.
  • Miller, Geneviève 1981 'Early concepts of the microvascular system: William Harvey to Marchal Hall, 1628-1831'. Em Harry Woolf (org.), The analytic spirit: essays in the history of science in honor of Henry Guerlac. Londres, Cornell University Press.
  • Pagel, Walter 1969-70 'William Harvey revisited'. History of Science, 8, pp. 1-31; History of Science, 9, pp. 1-41.
  • Pagel, Walter 1967 William Harvey's biological ideas Nova York, S. Karger.
  • Pagel, Walter 'William Harvey and the purpose of circulation'. 1951 Isis, vol. 42.
  • Passmore, J. A. 1963 'William Harvey and the philosophy of science'. The Australasian Journal of Philosophy, vol. 10.
  • Plochmann, George K. 1963 'William Harvey and his methods'. Studies in the Renaissance, vol. 10.
  • Porter, Roy 1992 'La rivoluzione scientifica há prodotto una rivoluzione medica?'. Intersezione, 12, no 1, pp. 87-104.
  • Porter, Roy 1989 'The early Royal Society and the spread of medical knowledge'. Em Roger French e Andrew Wear (orgs.), The medical revolution of the seventeenth-century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Randal Jr., John Herman 1940 'The development of scientific method in the School of Padua'. Journal of History of Ideas, no 1, pp. 177-206.
  • Rebollo, Regina André mar. 2002 'William Harvey: explicações mecânicas e finalismo'.Cadernos Espinosanos, no VIII, São Paulo, Departamento de Filosofia da USP, pp. 98-115.
  • Roger, Jacques 1976 'Platon et Aristote dans le mouvement scientifique de la renaissance: la situation d'Aristote chez les anatomistes padouans'. XVIème Coloque Internationale de Tours, Paris, J. Vrin.
  • Rossi, Paolo 1975 'Hermeticism, rationality and the scientific revolution'. Em M. L. Righini Borelli e W. R Shea (orgs.), Reason, experiment and mysticism in the scientific revolution. Michigan, Science History Publications, Macmillan Press Ltd.
  • Schmitt, Charles B. 1985 'Aristotle among the physicians'. Em A. Wear; R. K. French e I. M. Lonie (orgs.), The medical Renaissance of the sixteenth century. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Schmitt, Charles B. 1984 'William Harvey and Renaissance Aristotelianism: a consideration of the Praefatio to De generatione animalium (1651)'. Em Rudolf Schmitz e Gundolf Keil (orgs.), Humanismus und Medizim. Weinheim, Acta Humaniora.
  • Schmitt, Charles B. 1973 'Towards a reassesment of renaissance aristotelianism'. History of Science, 11, pp. 159-93.
  • Schmitt, Charles B. 1971 'Harvey and M. A. Severino: a negleted medical relationship'. Bulletin of the History of Medicine, 45, pp. 49-75.
  • Shapiro, Barbara J. 1983 Probability and certainty in seventeenth century England: a study of the relationship between natural science, religion, history, law and literature Nova Jersey, Princeton University Press.
  • Shryock, Richard H. 1961 'The history of quantification in medical science'. Isis, vol. 52, no 168, pp. 215-37.
  • Siegel, R. E. 1976 'Principles and contradictions in the evolution of Hippocrates: Aristotle's and Galen's doctrines of respirations and blood flow'. Episteme, 3, 4.
  • Siraise, Nancy G. 1990 Medieval and early renaissance medicine: an introduction to knowledge and practise. Londres, University of Chicago Press.
  • Wallace, W. 1988 'Traditional natural philosophy'. Em The Cambridge History of Renaissance Philosophy C. B. Schmitt, Q. Skinner e E. Kessler (orgs.), Cambridge, University Press.
  • Wear, A., French, R. K. e Lonie, I. M. (orgs.) 1985 The medical Renaissance of the sixteenth century Cambridge, Cambridge University Press.
  • Wear, A. 1983 'William Harvey and the way of the anatomists'. History of Science, 21, pp. 223-49.
  • Webster, Charles 1965 'William Harvey's conception of the heart as a pump' Bulletin of the History of Medicine, vol. 39.
  • Whitteridge, G. 1980 'The Piltdown Hippocrates'. History of Science, 18.
  • Whitteridge, G. 1977 'De Motu Cordis: written in two stages? Comment by Whitteridge; response by J. Bylebyl'. Bulletin of the History of Medicine, 51, no 1, pp. 130-50.
  • Whitteridge, G. 1971 William Harvey and the circulation of the blood. Macdonald, Londres/Nova York, American Elsevier Publishing Company INC.
  • Whitteridge, G. 1959 William Harvey: De Motu Locali Animalium 1627 Ed., trad. e introd. de G. Whitteridge. Londres, Cambridge University Press.
  • Wilkie, J. S. 1965 'Harvey's immediate debt to Aristotle and to Galen". History of Science, IV, pp. 103-24.
  • Zanier, Gian Carlo July-Sept. 1987 'Platonic trends in Renaissance medicine'. Journal of the History of Ideas, vol. 48, no 3.
  • 1
    Este artigo é uma versão ampliada da minha participação no III Colóquio Internacional de Estudos do Século XVII, cujo tema foi 'Cartas Filosóficas, Científicas e Literárias: o Papel da Correspondência', realizado no Centro Universitário Maria Antonia em São Paulo, de 16 a 20 de agosto de 1999. Ele é fruto de quatro anos de estudos sobre William Harvey desenvolvidos ao longo do meu doutorado (defendido em 1998) no Departamento de Filosofia da USP e na Universidade de Paris VII — Dennis Diderot junto à equipe REHSEIS (UPR 318, CNRS) — DEA d'Epistemologie et d'Histoire des Sciences — Formation doctorale en Epistémologie et Histoire des Sciences.
  • 2
    Utilizei as seguintes edições do
    Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus: José Joaquim Izquierdo (a partir da primeira edição latina de 1628),
    Del movimiento del corazón y de la sangre en los animales, introdução de Bruno Estañol Vidal, Universidad Nacional Autónoma de México, 1994 (1
    a ed., 1936, 2
    a ed., 1965 e 3
    a ed., 1994); o texto latino da edição Glascow de 1751:
    Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus; a tradução francesa (a partir da edição latina de Glascow de 1751) de Charles Laubry,
    Étude anatomique du mouvement du coeur et du sang chez les animaux.
    Aperçu historique et traduction française par Charles Laubry, Paris, G. Doin et Cie., 1950; e o texto inglês (a partir da primeira edição inglesa de 1653) de Robert Willis publicado em 1848 pela Sydenham Society,
    The Circulation of the blood and other writings. Introdução de E. A. Parkyn, Temple Press, 1952. A paginação das citações deste artigo provém da edição Great Books of the Western World, vol. 26:
    An anatomical disquisition on the motion of the heart and blood in animals, trad. Robert Willis, 1990 (1
    a ed., 1889).
  • 3
    Harvey (1952-90, p. 270) descreve o experimento: "Ao se fazer um corte longitudinal numa artéria e introduzir-se um tubo entre as partes separadas pelo corte, observa-se que a artéria pulsa. Se a artéria é amarrada na altura do corte com uma atadura acima do tubo, não pulsará mais."
  • De Re Anatomica

    4 Matteo Realdo Colombo (?-1559) nascido em Cremona, na Itália. Sob a orientação do sofista Johannes Gravii, estudou artes e medicina na Universidade de Pádua. Entre os anos de 1538 e 1539, foi assistente de anatomia de Vesálio na Universidade de Pádua, ensinou cirurgia e anatomia na Universidade de Pisa e foi professor do Collegio della Sapienza. Em 1559, foi publicado o , um comentário crítico do
    De humani corporis fabricæ de Vesálio, assim como este tinha sido um tratado crítico sobre a obra anatômica de Galeno. A principal afirmação do livro é a passagem do sangue pelos pulmões por meio da artéria pulmonar, isto é, o sangue que sai do ventrículo direito do coração segue para os pulmões não apenas para nutri-lo, mas para lá ser aperfeiçoado e retornar ao coração.
  • Quaestionen medicarum libri II

    5 Andrea Cesalpino (1525-1603) foi um eminente botânico, médico e filósofo. Em 1551, formou-se em medicina na Universidade de Pisa, onde provavelmente foi aluno de Realdo Colombo. Em 1555, Cesalpino foi indicado professor de medicina e botânica da Universidade de Pisa, permanecendo no posto até 1592, quando foi chamado para trabalhar em Roma no Collegio della Sapienza, para ocupar o cargo de médico do papa Clemente VIII, função que exerceu de 1592 a 1603, quando faleceu. Nas obras (Veneza, 1593) e
    Quaestionen peripateticarum (Veneza, 1571, 1593) Cesalpino postula a circulação pulmonar do sangue.
  • 6
    O que hoje chamamos de átrio era no século XVII denominado "aurícula"; assim como o que hoje chamamos de aurícula era chamado de "auriculeta". Agradeço ao prof. dr. Eduardo Cunha Farias, prof. associado do Departamento de Histologia e Embriologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, pelo esclarecimento de parte dos termos anatômicos da época.
  • 7
    Uma libra equivale a 12 onças que são iguais a 373,2 gramas. Uma onça equivale a 8 dracmas que são iguais a 31,1 gramas e um dracma equivale a 3,8 gramas.
  • 8
    Escrópulo: unidade de medida de peso para pedras preciosas que possuem seis quilates. Vale um grama e 125 miligramas (1,125 gramas).
  • 9
    No
    De venarum ostioles, publicado em Pádua, em 1603.
  • 10
    Hofmann escreveu, entre outras obras, o
    De Thorace (Frankfurt, 1627), o
    Apologia pro Galeno e o
    Commentarii in Galeni de usu partium corporis humani (1625).
  • 11
    Parcialmente publicada como
    Caspari Hofmanni Digressio in circulationem sanguinis, nuper im Anglia natam.
    Caput 48 Manuscripti Physiologici, incluída por Jean Riolan nas suas
    Responsio ad duas exercitationes Anatomicas postremas G. Harvei etc. De circulatione sanguinis, Paris, 1652, pp. 357-64. Utilizei a tradução de Whitteridge (1971, pp. 238-47).
  • 12
    Na verdade, esta é a segunda proposição que Harvey apresenta no nono capítulo do
    De Motu Cordis para demonstrar a circulação do sangue.
  • 13
    O médico inglês James Primerose publicou, em 1630, o primeiro ataque à doutrina da circulação do sangue, o
    Exercitationes et animadversiones in librum de motu cordis et circulatione sanguinis. Galenista dos mais convictos, Primerose não aceitava as novas concepções fisiológicas de Harvey.
  • 14
    No 15
    o capítulo do
    De motu cordis (p. 296), Harvey apresenta cinco razões plausíveis: "uma vez que todas as coisas viventes são quentes e ao morrer se esfriam (como tinha afirmado Aristóteles), é necessário que exista uma fonte de calor, o coração"; "é preciso que o sangue se movimente e que ao fazê-lo regresse ao coração, pois se permanecesse imóvel nas partes externas do corpo, se coagularia, porque o movimento gera e conserva o calor e os espíritos, e a quietude os extingue"; "como o frio das extremidades e do ambiente torna o sanue espesso, congelando-o e privando-o de seus espíritos, é necessário que o sangue regresse novamente para a sua fonte ou origem para repor o calor e os espíritos"; "pois de que modo as partes poderiam atrair o sangue, estando quase esgotadas de calor e de vida ou de que maneira os seus poros repletos de sangue espesso e congelado poderiam dar entrada ao alimento para o sangue, sem ter antes se livrado do seu conteúdo e sem que isso fosse unicamente causado pelo coração?". O coração, como tinha afirmado Aristóteles, "é aquele que devolve a vida e o calor às partes esfriadas; é aquele que, por meio das artérias, volta a enviar-lhes sangue embebido de calor e de espíritos; que arrasta as partículas frias e consumidas; e repara todas as partículas de calor languidecente e o fogo da vida quase extinto".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Recebido
      Out 2001
    • Aceito
      Abr 2002
    Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: hscience@fiocruz.br