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Modos de subjetivação na condição de aprendiz: embates atuais

Forms of subjectivation among learners: current conflicts

Resumos

Este artigo analisa processos de produção de subjetividade desenvolvidos em ações educativas dirigidas a jovens moradores de zonas periféricas da cidade do Rio de Janeiro. Tem como campo de inspiração os trabalhos desenvolvidos por uma importante organização não-governamental, numa experiência profissionalizante voltada para a formação artístico-cultural que conjuga elementos de música, teatro e circo. Busca-se aqui compreender, a partir da articulação dos elementos saúde, trabalho e arte, os diferentes sentidos expressos na condição de aprendiz, tomando por empréstimo a acepção grega de "um aprendiz experimentador de si". Essa acepção lança o jovem para além das significações dominantes, que toma o aprendizado como um leque de possibilidades a serem continuamente inventadas. Nesse percurso, dá-se visibilidade a uma experiência que enfrenta e cria alternativas aos embates vividos por uma juventude periférica frente aos modos de vida vigentes, que tendem a formatar sobremaneira o corpo e a condição de aprendiz. Esses embates e formatações, em nosso estudo, materializam pólos não excludentes da arte: como produto para o mercado e como processo de transformação de modos de vida.

subjetividade; juventude; ações educativas; trabalho; saúde


Taking its inspiration from work conducted by an important nongovernmental organization, the article analyzes the processes by which subjectivity is produced during educational activities. This particular professionalizing experience, offered to youth on Rio de Janeiro's urban periphery, involves artistic-cultural training that conjoins elements from music, theater, and circus. In an endeavor to understand the different meanings expressed in the status of learner, the present study explores health, work, and art, borrowing from the Greek notion of 'leaner of oneself', a notion that takes these youth beyond predominant significances and turns apprenticeship into a broad range of possibilities that are continually being invented. The experience confronts and creates alternatives to the conflicts faced by youth who live on the periphery of the prevailing ways of life, which tend to format the body and the very condition of learner. These conflicts and formatting produce two non-mutually exclusive poles: Art as a marketable product and Art as a process for transforming ways of living.

subjectivity; youth; educational activities; work; health


ANÁLISE

Modos de subjetivação na condição de aprendiz: embates atuais

Forms of subjectivation among learners: current conflicts

Silvana Mendes LimaI; Carlos Minayo-GomezII

IDoutora em saúde pública, Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Rua Barão do Rio Branco, 33 Pontal 45654-510 Ilhéus — BA Brasil mendes-lima@uol.com.br

IIPesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Praia do Flamengo, 194/601 2210-030 Rio de Janeiro — RJ Brasil minayogo@ensp.fiocruz.br

RESUMO

Este artigo analisa processos de produção de subjetividade desenvolvidos em ações educativas dirigidas a jovens moradores de zonas periféricas da cidade do Rio de Janeiro. Tem como campo de inspiração os trabalhos desenvolvidos por uma importante organização não-governamental, numa experiência profissionalizante voltada para a formação artístico-cultural que conjuga elementos de música, teatro e circo. Busca-se aqui compreender, a partir da articulação dos elementos saúde, trabalho e arte, os diferentes sentidos expressos na condição de aprendiz, tomando por empréstimo a acepção grega de "um aprendiz experimentador de si". Essa acepção lança o jovem para além das significações dominantes, que toma o aprendizado como um leque de possibilidades a serem continuamente inventadas.

Nesse percurso, dá-se visibilidade a uma experiência que enfrenta e cria alternativas aos embates vividos por uma juventude periférica frente aos modos de vida vigentes, que tendem a formatar sobremaneira o corpo e a condição de aprendiz. Esses embates e formatações, em nosso estudo, materializam pólos não excludentes da arte: como produto para o mercado e como processo de transformação de modos de vida.

Palavras-chave: subjetividade, juventude, ações educativas, trabalho, saúde.

ABSTRACT

Taking its inspiration from work conducted by an important nongovernmental organization, the article analyzes the processes by which subjectivity is produced during educational activities. This particular professionalizing experience, offered to youth on Rio de Janeiro's urban periphery, involves artistic-cultural training that conjoins elements from music, theater, and circus. In an endeavor to understand the different meanings expressed in the status of learner, the present study explores health, work, and art, borrowing from the Greek notion of 'leaner of oneself', a notion that takes these youth beyond predominant significances and turns apprenticeship into a broad range of possibilities that are continually being invented. The experience confronts and creates alternatives to the conflicts faced by youth who live on the periphery of the prevailing ways of life, which tend to format the body and the very condition of learner. These conflicts and formatting produce two non-mutually exclusive poles: Art as a marketable product and Art as a process for transforming ways of living.

Keywords: subjectivity, youth, educational activities, work, health.

O sentido da experiência aprendiz

Os estudos que evidenciam o lugar e a condição de aprendiz na Antiguidade aludem a um período dedicado ao aprendizado de boas maneiras, transmitido de uma geração a outra, a partir da participação familiar das crianças e jovens na vida dos adultos. Tal aprendizado se daria por meio do exercício do serviço doméstico, da inserção nos ofícios, do conhecimento das letras e das línguas. Após a idade de sete ou nove anos, as crianças eram enviadas para conviver com outras famílias, sendo esse convívio a forma de aprendizado que as iniciava na vida (Ariès, 1981).

Essa prática que confundia serviço doméstico e aprendizagem era comum a todas as condições sociais e sobreviveu — apesar dos moralistas e reformistas ligados à Igreja ou ao Estado — até o século XVII. Com o surgimento da escola, foi paulatinamente substituída por uma aprendizagem mais especializada e teórica.

Na Antiguidade, o sentido dado ao serviço doméstico era alheio à noção de subalternidade ou degradação — que a ele viria a ser associado mais tarde, sobretudo no século XIX, quando o intenso processo de polarização da vida social atingiria de modo marcante a família e a profissão, fazendo desaparecer as antigas formas de sociabilidade.

Foi no século XI, em instituições que na Idade Média eram conhecidas como corporações de ofício, que já se encontrava bem estabelecida a figura do aprendiz. Aprender significava a experiência do principiante, e sua formação não se restringia ao ensino das artes e ofícios, mas voltava-se também para o fortalecimento físico e o sentimento corporativo que privilegiava a transmissão da experiência de uma pessoa para outra.

A constituição dessas corporações ou agremiações teve sua origem no mundo greco-romano. Especialmente entre os gregos encontravam-se formas de conceber a experiência de aprendiz a partir das relações estabelecidas com a política, com a pedagogia e as inúmeras funções daí decorrentes: de crítica, de luta, curativas, terapêuticas, entre outras.

Esse modo múltiplo de conceber a condição de aprendiz, fundada nas práticas que os gregos chamaram de "ocupar-se de si", tem a força de pensá-la para além de significações ou representações prévias. Nessa acepção, o aprendiz é visto como ser precário, à medida que não possui respostas ou atitudes já formadas para reagir diante de determinadas situações. É um ser lançado em meio a experimentações e que abre mão de fórmulas prontas, fazendo valer um aprendizado vivo — no qual as soluções seriam efeitos, e jamais causas desse aprendizado.

Tomando o aprendiz, neste estudo, em seu sentido inacabado, provisório e indeterminado, situamos sua condição com lentes que buscam como campo de problematização a composição de dois aspectos: saúde e trabalho. Tal composição é entendida como um exercício problemático com o qual o aprendiz irá se defrontar, posto que é na ordem do encontro que o aprendizado se inicia, que são os confrontos que fazem dele um experimentador de si.

É a partir desse legado, portanto, que tratamos o tema do aprendiz, a saber: como um experimentador de si mesmo que busca, fundamentalmente, produzir sentidos, uma vez que, em sua postura própria, não há mundo naturalmente objetivado. Aprender é a arte fundamental, é ignorar os sentidos comuns dados pela civilização. E essa arte deriva sempre de uma experimentação.

O aprendiz e sua composição com o campo do trabalho

Sabemos que o trabalho, na Antiguidade, não comungava do mesmo sentido que lhe atribuímos há pouco mais de um século, não assumindo um valor especial naquele modo de vida. Vemos que sua conformação passou por transformações as mais diversas, em diferentes períodos e lugares, e deve ser compreendida à luz das múltiplas forças que compuseram a fabricação histórica e social da subjetividade.

As corporações de ofício, com os limites e as leis que as instituíram, sobreviveram na Europa até o século XVIII, momento em que se tornam entraves às novas condições econômicas e sociais geradas pelo industrialismo — que cria crescentes necessidades de consumo e de ampliação dos mercados.

Esse processo de ampliação dos mercados e as conseqüentes exigências demandadas pelas transformações de natureza social e econômica, em curso desde a Idade Média, instauravam relações de trabalho referendadas na liberdade de empreender, circular, produzir e trocar. Tais relações se confrontavam com as maneiras tradicionais de organização do trabalho, caracterizadas por duas modalidades: o trabalho regulado e o trabalho forçado (Castel, 1998).

O caráter coercitivo estava presente no trabalho desempenhado por aqueles que exerciam as artes mecânicas, os ofícios, o trabalho manual e o trabalho da terra. Embora o aspecto de coerção contrariasse em certa medida o estabelecimento de uma mão-de-obra livre, ele promovia, concomitantemente, um ordenamento social que abrangia e transitava tanto entre os que se incluíam no sistema de ofícios como os que estavam fora dele.

Quando articulado à experiência aprendiz e ao sentido formativo a ela inerente — ao deixar de se configurar como uma das dimensões da vida —, o trabalho é subtraído de suas múltiplas facetas, ou seja: de aprendizagem, formação, partilha, do sentimento associativo, fortalecimento físico, da convivência social e comunitária, entre outros aspectos.

Com o sentido dominante de trabalho pautado na coerção, o aprendiz terá, como modo de enfrentamento, que escapar às formas degradadas de existência, geradas no encontro de seu corpo com a instituição trabalho que historicamente tende a vigorar.

No Brasil, o processo estabelecido entre trabalho e corpo do aprendiz toma feições específicas, norteadas de um modo geral por intervenções tutelares e excludentes — que aqui pretendemos traçar, na sua conjugação com a saúde.

A experiência aprendiz no Brasil Colônia, Império e República: linhas contínuas e descontínuas

Ao contrário do que ocorreu com a experiência do sentido aprendiz herdada da Idade Média e tecida pela história européia, instituir a aprendizagem de artes e ofícios entre os índios da Terra Brasilis1 1 A expressão Terra Brasilis é usada pelas primeiras expedições que atracaram suas caravelas no Brasil. Ela servia para descrever e reconhecer a disposição geográfica, os povos e seus costumes, o clima, a região, a extensão territorial das áreas recém-descobertas. Optamos por usá-la no texto, dada a extensão que a expressão encerra. consistiu, entre outras ações, na destituição de suas formas sociais de produção. Era tarefa complexa para "rapazes que tinham presente na imaginação a vida da selva, onde, com a pequena agricultura, o trabalho necessário para o sustento da vida era apenas o da caça e pesca" (Iglésias, 1965).

No Brasil Colônia, os primeiros aprendizes de um ofício foram os índios e os escravos. Nos asilos, escolas e orfanatos conformaram-se práticas de aprendizagem 'profissional' que paulatinamente seriam utilizadas como instrumentos para proteger e corrigir meninos identificados como "infelizes e deserdados". O processo de inserção no modo de produção escravista era marcado por ritos de iniciação que se pautavam no ingresso de crianças e jovens negros no trabalho escravo.

No Império e na República, desvalidos e enjeitados — adjetivações utilizadas em função de origem, cor e nascimento, e não propriamente por serem crianças ou jovens — eram enviados aos patronatos agrícolas, às instituições filantrópicas e particulares, que lhes ministravam o ensino de ofícios. Todo trabalho manual trazia consigo um certo valor de desprestígio social, posto que envolvia a marca da servidão (Arantes, 1995).

Aos jovens pobres foi destinada, quase de forma dominante, uma perspectiva de saúde que se ancorava numa terapêutica do trabalho. Sendo assim, de que modo é possível, a partir dessa perspectiva, derivar linhas descontínuas pelas quais a junção entre saúde e trabalho pudesse evocar alterações efetivas nas formas de olhar e tratar o processo pelo qual o jovem se tornava um aprendiz no Brasil?

Linhas descontínuas na tríade saúde, trabalho e juventude

A partir da década de 1970, é possível visualizar certas linhas que apontam descontinuidades na história das políticas e das iniciativas voltadas para a temática da juventude e do trabalho no Brasil.

Nesse período, surgiram no país programas alternativos para meninos e meninas de rua. As justificativas desses programas voltavam-se para os seguintes fatores: a constatação de um grande contingente de crianças de rua; o aumento de delitos e do uso de substâncias tóxicas envolvendo crianças e adolescentes; a compreensão de que havia falhas na socialização de um segmento específico da população juvenil por parte da família, da escola e da comunidade; a ineficiência da política oficial de ressocialização pautada na 'institucionalização-repressiva' (Santos, 1997).

A tônica da política oficial baseava-se na profissionalização dos internos, segundo uma perspectiva chamada socioterapêutica. As alegadas ações 'terapêuticas' objetivavam a ressocialização de crianças e jovens, isolando-os do convívio social e oferecendo-lhes uma educação profissional em espaços institucionais reclusos.

Um traço contínuo característico dessas intervenções desde o Império e do início da República era a prática de internamento. Somente a justificativa diferia, ora com ênfase na correção de comportamentos, ora na educação para a integração social (Passeti, 1999).

O caráter alternativo dos programas de orientação para o trabalho que surgiram na década de 1970 — quando compreendidos em relação aos preceitos da histórica política oficial para a infância e juventude daquele período — traziam algo de inusitado: a tentativa de compatibilizar atividades geradoras de renda e desenvolvimento de um processo educativo fora de um espaço de reclusão.

Embora ainda frágeis, essas alternativas confrontaram-se com a política de controle social vigente e sua orientação profissionalizante. Os debates mantinham a tônica de que às crianças e aos jovens abandonados/internados deviam ser oferecidas oportunidades de trabalho — oferecimento entendido como dispositivo de prevenção dos desvios. Mesmo assim, observa-se que, até a década de 1980, dentro da perspectiva da doutrina de segurança nacional,2 2 Estávamos em plena ditadura militar, e, no mesmo ano em que os militares tomaram o poder, criava-se a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), em dezembro de 1964. O sistema de bem-estar tinha como princípio destituir o pátrio poder, sentenciando crianças e jovens como abandonadas e colocando-as sob a responsabilidade do Estado. Nesse período configurou-se uma "estratégia repressiva/assistencialista" orientada pela doutrina de segurança nacional, caracterizada como um instrumento de controle social. Com relação à problemática da assistência às crianças e jovens, se destacou a adoção da doutrina da situação irregular, que culminou com a reformulação do Código de Menores de 1927 (Faleiros, 1995). que a política oficial não lidava com o menor trabalhador e sim com o infrator e o carente.

Percebe-se que em muitos projetos desenvolvidos por instituições fechadas e destinadas fundamentalmente aos jovens infratores, as atividades laborais e profissionalizantes ofertadas acabavam sendo usadas inclusive como medidas de punição.

A cisão presente na política de atenção ao menor trabalhador, por um lado, e ao infrator ou carente, por outro, é nítida quando se analisa sobre que modelo foi implementada a obrigatoriedade do ensino profissional no Brasil. Este, de fato, ao se constituir como um aprendizado de caráter técnico, buscava livrar-se da marca de um ensino profissional voltado para os "desprovidos ou desgraçados" (Bochetti, 1997).

Foi no governo de Getúlio Vargas que o ensino profissional — com a Lei Orgânica do Ensino Industrial em 1942 — ganhou o estatuto de ensino secundário. No mesmo ano da lei foi criado o Serviço Nacional da Aprendizagem Industrial (Senai), cuja atribuição era ministrar um aprendizado para os jovens da indústria, mas que já se encontravam trabalhando em oficinas e fábricas. Paulatinamente o Senai foi-se firmando como um estabelecimento de capacitação que compunha o sistema de formação profissional, nomeado sistema "S", integrado por Senai/Sesi, Senac/Sesc, Senar e Senat/Sest (idem).

No entanto, o sistema de capacitação que passou a ser desenvolvido pelo sistema "S" não abarcava aqueles jovens que se encontravam, em sua maioria, excluídos do ensino fundamental. Era exatamente por isso que eles não respondiam aos requisitos mínimos de escolaridade exigidos, o que acabava alijando-os desse sistema.

Sobre esse aspecto, atualizava-se a cisão que discriminava e diferenciava aqueles a quem se destinava uma aprendizagem voltada ao ensino de ocupações laborais precárias daqueles que iriam receber uma formação técnico-profissional.

A partir da década de 1980, época em que o país atravessava uma intensa crise social, política e econômica, as experiências alternativas de orientação para o trabalho com crianças e jovens — apesar de refletir ações de confronto com as práticas de internação e repressão — passaram a ser alvo de críticas. Nelas apontava-se a fragilidade dos projetos, em função da falta de apoios institucionais, e o descolamento com relação a metas sociais mais amplas. Isso produziria práticas muitas vezes caracterizadas como voluntárias, de denúncia e emergenciais. Abandonavam-se desse modo outras esferas de significação social, como a casa, a família e a escola (Ribeiro et al., 1987).

Abordar outras esferas de significação social consistia em ultrapassar as utopias da família, da casa e do trabalho, superando a visão emergencial que resultou na continuidade da idéia de se privilegiar unicamente o trabalho como caminho para a socialização de crianças e jovens. Tratava-se de um primeiro e tênue traço de descontinuidade na forma de abordar a instituição trabalho e sua relação com o aprendiz.

Tornava-se então fundamental reinventar o espaço da infância e da adolescência a partir de novos valores capazes de criar rupturas com as práticas especializadas das instituições, denunciando suas políticas de isolamento, reclusão, internamento — ações que traduziam a perspectiva de saúde normativa dominante em suas linhas contínuas e duras. Por outro lado, através de alianças sociais e políticas, formava-se uma intensa mobilização da sociedade para a construção de uma mentalidade mais coletiva (idem).

Ao longo de toda a década de 1980 verificam-se as descontinuidades em torno de uma orientação voltada eminentemente para o encaminhamento de jovens ao trabalho. O período foi marcado por fortes pressões sociais no redimensionamento do papel do Estado, ao mesmo tempo que crianças e jovens passaram a serem vistos como sujeitos de direitos. Na década de 1990 ganharam força na cena política as organizações não-governamentais (ONGs), com projetos e programas dirigidos a essa população específica (Passetti, op. cit.).

Hoje essas organizações fazem parte do que vem sendo denominado terceiro setor, cujos trabalhos encontram-se articulados com as ações governamentais. Porém, a redução da presença do Estado na esfera de atendimento da área social facilitou o aparecimento em larga escala das ONGs. Diferentemente daquelas que surgiram nas décadas de 1970 e 1980, nascidas da interlocução política com os movimentos sociais, essas novas organizações têm perfil mais empresarial, compondo um cenário de intervenções diversificadas em termos de atuação nos trabalhos realizados junto a crianças e jovens. Essa diversificação, especialmente na década de 1990, deve-se a alguns fatores:

...um alargamento de sua especificação; novas relações com o Estado; crise nas fontes tradicionais de financiamento oriundos da cooperação internacional; novos parâmetros de relação com os movimentos sociais. De outra forma, cada vez mais, vão se apresentar como espaço de trabalho para muitas pessoas, algumas migrando dos movimentos sociais. No caso de algumas temáticas, este movimento foi relevante para o seu fortalecimento estimulador, como contrapartida de uma certa desmobilização dos movimentos sociais (Fraga, 2002, p. 30).

Nota-se, nesse período, uma fragmentação e conseqüente especialização no que concerne à forma de lidar com problemas de natureza social. Proliferam agentes, entidades, ativistas, muitos dos quais extraídos dos movimentos ambientalistas, sindicais, feministas, étnicos etc. Motivados em parte pelas "idéias de autonomia, flexibilidade organizativa e profissionalização que a fórmula ONG evoca", as organizações não-governamentais passaram paulatinamente por um processo de institucionalização crescente, quando foram absorvidas por organismos formais de representação.

Apesar da heterogeneidade3 3 Avaliando os trajetos que fazem das ONGs um espaço típico de atuação, Leilah Landim (1996) encontra: "grupos de cristãos que por motivos diversos desejam autonomizar-se com relação à estrutura eclesiástica; técnicos que trabalham em organizações governamentais e reclamam de suas limitações burocráticas ou políticas para realizar determinado projeto; grupos de ativistas de um dado movimento que buscam um espaço para criar assessorias especializadas em assuntos específicos". desse campo, os trabalhos realizados pelas organizações — sobretudo aquelas que primam em centrar suas intervenções com instrumentos vindos do campo da arte e da cultura — ganham legitimidade porque suas ações produzem experimentações singulares, ao se conectarem com a vida e os problemas de jovens que se encontram em situação de pobreza.

Linhas descontínuas e a produção de saúde

Para além das linhas contínuas geradoras de uma terapêutica enredada com a busca da normalidade, foram observadas com maior ênfase, a partir da década de 1970, linhas de fuga,4 4 Trata-se de uma categoria construída por Deleuze et al. (1995). Esses autores afirmam que, do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por linhas que são moleculares. Elas seriam aquilo que sempre foge ou vaza dos instrumentos de codificação (leis, Estado, instituições). Suas condições são imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica. Portanto, linhas de fuga são fluxos. Um fluxo é sempre tecido de crença e desejo. Mas é importante ressaltar que a linha de fuga não é boa ou má, necessariamente, por sua natureza; e que embora ela implique mutação e criação, tais mudanças podem estar comprometidas com a destruição ou com formas e forças reacionárias, retrógradas. ou seja, linhas descontínuas, produtoras de algumas rupturas com relação aos processos de subjetivação dominantes. São linhas esboçadas por meio de ações que buscam direções alternativas de orientação para o trabalho; portadoras de uma grande sedução ética-estética e que se confrontavam com outras linhas, cuja natureza contínua atualiza permanentemente a história de nossa política oficial de internamento, correção de conduta, isolamento, tutela, encarceramento, entre outras.

Em nosso estudo, associamos essas linhas, que nomeamos de flexíveis ou descontínuas, a uma nova forma de inventar e produzir saúde. A invenção acolhe todo esse campo de vulnerabilidades — ou seja, jovens tornados pobres, analfabetos, que estão à margem —, não mais como se eles fossem os portadores de uma espécie de doença social. Tal doença seria uma conseqüência de uma situação política, econômica, social e subjetiva que lhes retira um tempo próprio, destinado a outros jovens, de construção de projetos de vida a partir de outros parâmetros e valores. Nesses parâmetros devem caber tempo e espaço para lazer, estudos, formação, cuidado de si, ou mesmo a possibilidade de problematizarem esse destino inexorável a qualquer forma de labor.

Nessas linhas flexíveis percebe-se uma perspectiva de saúde inscrita no terreno ético-estético que, ao forjar mudanças na maneira de perceber o mundo, inventa novas relações com o corpo, o tempo, com os processos técnicos, com a coletividade. Ela tece práticas vizinhas e paralelas, cujos sentidos são condutores de uma estética "que não seja a do banal e de uma ética que não seja a da rentabilidade", traçando caminhos inéditos e, por isso, alternativos Caiafa (2000).

Traçar caminhos alternativos, engendrados a partir da relação saúde e trabalho, requer eleger, nas experiências realizadas junto aos jovens, práticas em que a saúde possa ser produzida dentro de um quadro menos normativo e mais dinâmico, criando rupturas com uma suposta busca de normalidade. Produzir saúde significa, então, um exercício constante de criação de novas normas que produzam alterações, quando nos defrontamos com as "infidelidades do meio" (Canguilhem, 1990).

Se analisarmos a trajetória de jovens em situação de pobreza, deparamos com um meio que historicamente tem se apresentado bastante adverso a suas vidas. As adversidades aparecem em geral associadas às profundas rupturas dos vínculos primários, que possuem uma relação estreita com a vulnerabilidade nas famílias, de ordem econômico-ocupacional e de rendimentos. Os programas e projetos que objetivam atender a tamanha ordem de vulnerabilidade têm como desafio escapar a uma visão patologizante, que tende a individualizar e a responsabilizar a própria população por seus tropeços e descaminhos.

O contrário dessa visão seria fundar uma perspectiva de saúde cujas linhas possam ser delineadas a partir de projetos orientados e valorados em função de "quantas forças sociais ativam, quantos intercâmbios úteis dinamizam". E também questionar se, no âmbito de suas práticas, elas "ensinam o possível, reviram de ponta a ponta a cultura do nada suportada, fornecem meios, mediações, pedagogia concreta para se viver aqui e agora de maneira diferente" (Rotelli, 1992).

Atualmente, muitas das iniciativas voltadas para o trabalho com jovens têm se apossado de meios e ferramentas próprios ao campo da arte e da cultura. Essas experimentações parecem favorecer a deflagração e criação de práticas sociais inovadoras, muito em função da força crítica e desestabilizadora da arte em romper com os valores dominantes, tornando-se uma espécie de laboratório social privilegiado de caminhos alternativos. As alternativas nascidas, experimentadas e produzidas nisso que intitulamos laboratório social devem servir como fontes de inspiração capazes de provocar uma nova dinâmica nas políticas públicas dirigidas a esse segmento populacional.

Portanto, se o vínculo e o exercício com a arte colocam em análise esse cenário de vulnerabilidade social infligido aos jovens — não os aceitando como estados de fato, mas encarando-os como processos que demandam intervenção — cabe avaliar quais seriam atualmente os desafios a serem enfrentados.

Pretendemos, por meio de uma experiência de natureza profissionalizante com jovens, expor tais desafios, trazendo à baila o conjunto de relações que sustentou — e ainda sustenta — os sentidos e valores relativos às noções de trabalho e de saúde. Ao traçarmos as linhas do que se pode chamar de um 'modo trabalho' e de um 'modo saúde' predominantes no Brasil, colocamos em análise algumas das interferências presentes na combinação desses dois modos e seus efeitos sobre a conformação do corpo do jovem aprendiz — especialmente, daqueles cujas condições de existência foram pautadas pela miséria material e subjetiva.

Mostramos, ainda, embora não de maneira conclusiva, que essa experiência implica, pela tríade saúde, trabalho e arte, os embates necessários à criação de territórios existenciais que repercutem na vida dos jovens, produzindo alguns deslocamentos expressos em novas formas de convivência, performances artísticas e parcerias. O desenho dessas linhas singulares desafia o lugar da invisibilidade, da precariedade, da desfiliação que a sociedade tem reservado para eles.

Outra linha descontínua: trabalho, educação e cidadania nos anos 1990

Como abordamos anteriormente na história das iniciativas — e mais tardiamente na das políticas endereçadas à infância e à juventude —, a questão do trabalho nas suas diferentes conjunturas adquiriu nuanças, marcas e discursos diversos, assumindo formas que se apresentam ora dicotômicas, ora complementares, em confronto ou mesmo criando novas configurações.

Assim, transitamos nas idéias e concepções do trabalho em contraposição à vadiagem, que, embora anteriores aos anos 1930, são especialmente intensificadas nesta década. Em seguida, o trabalho é problematizado em oposição à educação. Mais recentemente, forma-se a trilogia educação, trabalho e cidadania, contrapondo-se ao trabalho infantil5 5 Mais recentemente essas iniciativas vêm sendo desenvolvidas pelo governo brasileiro, organizações de cooperação internacional, como o Unicef, e as organizações não-governamentais (sindicatos, fundações privadas). A partir de 1997, o programa Brasil Criança Cidadã, do Ministério da Previdência e Assistência Social, passou a conceder uma bolsa de R$50,00 por criança retirada do trabalho e encaminhada para a escola. O programa foi implantado em vários municípios e beneficiou inúmeras crianças. No entanto, apesar do modelo inovar em termos de ações integradas entre os governos federal, estadual e municipal, ele peca quando institucionaliza ações de natureza emergencial, tornando-as soluções definitivas de problemas que demandam políticas de longo prazo. Hoje, muitos dos adolescentes que participaram do programa tiveram que retornar ao trabalho, dado o índice de desemprego no país. Sobre essas iniciativas e uma análise crítica, ver Rizzini,(1999). e incentivando uma política de proteção e profissionalização.

A trilogia, que veio a incluir mais recentemente a questão da cidadania — até então ausente nas ações governamentais —, parece arejar as práticas dirigidas aos jovens aprendizes, abrindo portas para novos atores. Entre esses destacam-se as organizações não-governamentais, entidades sem fins lucrativos que prestam serviços à população e que passam a assumir um papel público. Sobretudo por meio dos trabalhos desenvolvidos pelas ONGs inaugura-se um precioso postulado ético, expresso no seguinte pressuposto: "Não podemos, e nem devemos desistir dos meninos aparentemente desgarrados de nossas ruas" (Milito et al., 1995).

Diz-se ético pela capacidade que esses trabalhos têm de gestar intervenções, distraindo para elas mesmas a forma como essas crianças e jovens são comumente tratados; ou seja, como portadores da expressão emblemática da miséria, da vulnerabilidade e da violência. Para tanto, a pedagogia das calçadas distanciou-se de referenciais que as concebem unicamente sob o ponto de vista da carência e da falta.

Essas crianças são vistas por aquilo que elas podem ser, mais do que pela sua história pregressa, ou, ainda, pelas possíveis causas que as levam a abandonar o convívio com os seus familiares. Não desqualificando a importância de questões desse âmbito, aquelas intervenções puderam ter acesso ao que estava se processando naqueles modos circulantes de vida, ampliando inclusive o sentido de estar nas ruas.

O postulado ético foi intensificado e experimentado, principalmente por um novo ator: o educador de rua.6 6 Em Milito et al. (1995), esse novo personagem urbano é caracterizado como "o sócio do menino, em sua plena expressão, tradutor de seus silêncios, instaurador de sua voz, articulador de seus itinerários tumultuosos, não tanto os da superfície da cidade, mas, sobretudo, os das profundezas de suas subjetividades errantes, presente claro e falante". Ele é o portador, em suas ações/intervenções junto às crianças e jovens, da pedagogia das calçadas, num autêntico combate à política de negligência e reclusão ainda em vigor. Assim, dá visibilidade a quem são esses meninos, às famílias a que pertencem, o que fazem e por que estão nas ruas.

Os debates que incluíam a questão do trabalho tinham como base de reflexão a necessidade de uma composição entre ação educacional e resgate da cidadania, na qual a profissionalização assume forte expressão. Essa questão passa a ser abordada sob outros termos, de vez que o trabalho será compreendido como aquele aspecto que deve intermediar a ação pedagógica, conferindo à formação, por meio do processo de escolarização, um papel fundamental.

Apesar de a profissionalização rondar os horizontes dessas iniciativas, um traço importante marca uma diferenciação na forma como costumava ser tratada historicamente a relação entre juventude pobre e trabalho. Este último perde a proeminência, dando lugar a intervenções mais centradas em outros aspectos e níveis da vida de crianças e jovens, avançando na direção da construção da identidade pessoal, social e cultural do grupo em questão.

Mesmo considerando todas as adversidades e dificuldades de sistematização dessas experiências, identificamos, no período, que a discussão sobre o trabalho aparece de forma mais fluida nesses projetos, priorizando a situação de aprendizes e as condições que os tornam vulneráveis.

Nesse sentido, passa-se a privilegiar a vida como processo, mais ligada às ações corporais, às dimensões do tempo, de modo a favorecer o senso de pertencimento, a presença e o desejo desses aprendizes, fazendo derivar linhas singulares que, neste estudo, entendemos serem produtoras de saúde. Tais linhas, ao modificar suas formas de conceber o trabalho, alteram e inventam respectivamente no jovem e na sua condição de aprendiz novos valores e sentidos de viver e sentir a saúde, e vice-versa, porque alimentam uma crítica constante aos modos de subjetivar contemporâneos.

Modos de subjetivação e a condição de aprendiz

Rastrear o campo da saúde e do trabalho no afã de enfatizar os processos de produção de subjetividade que irromperam modos de ser, sentir e viver a juventude em suas múltiplas condições de aprendizes significa traçá-los recorrendo a um desvio histórico. Para tanto, necessitamos operar uma inversão de natureza temporal na forma de conceber o ato de historiar e compreender que "não é o passado que engendra o presente, senão que o passado está composto de uma série de potencialidades que o presente ativa, que o presente ilumina, que o presente deflagra" (Baremblitt, 1996, pp. 41-3).

Uma história do presente, tal como faz Foucault, que implica também uma outra inversão no caminho trilhado pela filosofia tradicional ou pela psicologia daquilo que é chamado de a questão do sujeito e da intersubjetividade. Aqui, a subjetividade é concebida como produção, sendo composta de diversos aspectos de natureza interna e externa (afetivos, familiares, do corpo, da mídia, da linguagem, do desejo, entre outros). Essa heterogeneidade de componentes em constante processo faz da subjetividade uma instância múltipla, indissociável de práticas sociais concretas (Caiafa, op. cit.).

Entendemos que a condição de aprendiz, na sociedade industrial, traz como um dos seus aspectos e sentidos dominantes a idéia de que a juventude é uma etapa de preparação para o mercado produtivo. Podemos afirmar, em decorrência disso, que, no sistema capitalista, o sujeito possui uma natureza industrial fabricada e modelada no social.

Essa modelagem está a serviço de um certo tipo de engrenagem e é composta por sistemas de coerção sutis que atuam na percepção, na linguagem, nas relações interpessoais, e que tendem a capturar tudo aquilo que escapa a sua política de codificação (Guattari, 1992).

Nesta linha de pensamento, afirma-se que o capitalismo, como modo de produção dominante, tem-se ancorado cada vez mais em sua função subjetiva como estratégia para propagar-se e eternizar-se, dada a sua pretensão ao universal. No entanto, a aposta na possibilidade de escapar a essa ordem niveladora, modelar e totalizante envolve mobilizar forças desejantes (crenças, convicções, representações, vontades) próprias do psiquismo dos homens — forças que são imanentes à produção e tendem a criar o imprevisível, o novo. É como se "a esperteza micropolítica do capitalismo pudesse ser utilizada contra ele em alguns momentos", atualizando processos de subjetivação distintos, originais, singulares, constituindo-se em linhas de fuga. (Caiafa, op. cit., p. 61).

No caso do presente estudo, a que jovens nos referimos e quais as condições para sustentar componentes de subjetivação, com sentidos e valores diferentes dos que foram — e ainda são — modelados pelo par saúde e trabalho? Pretendemos trazer essas questões à tona evidenciando as linhas, sejam elas contínuas ou descontínuas, que delineiam a tríade saúde, trabalho e juventude no Brasil.

Desafios, rupturas e novos sentidos na relação saúde e trabalho

São inúmeros os desafios que se apresentam, sobretudo para os empreendimentos sociais que têm como laboratório social privilegiado as experiências profissionalizantes na formação de jovens, a começar pelas transformações ocorridas nos últimos trinta anos, em escala mundial, em que o trabalho perde o caráter de centralidade. O efeito mais visível disso é a precarização nas relações de trabalho, experiência tão naturalizada para esses jovens e intensificada a partir de alguns aspectos: desestabilização dos estáveis, instalação na precariedade, déficit de lugares ocupáveis (Castel, op. cit.).

Mas esses aspectos, compreendidos à luz da sociedade brasileira e de nossa histórica fragilização das relações de trabalho, mantêm-se atuais. Os jovens, em situação de vulnerabilidade social, continuam filiados a setores informais e não modernizados da economia, produzindo trabalhos subalternos em condições de aviltamento da mão-de-obra juvenil. Somos herdeiros de um regime escravocrata, de uma institucionalização tardia, com um sistema econômico injusto na distribuição de riqueza. Entre nós, as intervenções de caráter social dirigidas às crianças e jovens, no que concerne ao trabalho, repousaram na eficácia e na rentabilidade que o uso dessa mão-de-obra significou em termos de contenção dos custos da produção — como ocorreu nas primeiras décadas da República —, ou na sua utilidade no trabalho das lavouras (Del Priore, op. cit.).

A esse quadro histórico de suscetibilidade econômico-ocupacional, que produz um cenário sombrio de desemprego estrutural, soma-se a falência do processo de escolarização junto às camadas empobrecidas da população. Verifica-se também o crescimento assustador de um mercado de trabalho paralelo e ilícito, que encontra nos jovens empobrecidos mão-de-obra privilegiada para comercializar suas mercadorias, acirrando o fenômeno da segregação e violência para esse grupo específico.

Quanto aos jovens que derivam para esses "microterritórios da delinqüência",7 7 A esse respeito, Adorno (1991, p. 195), ao analisar trajetórias de crianças que passaram precocemente pela experiência da punição, observa que não há uma biografia típica que aponte para o caminho da delinqüência. O autor aborda a operação de um duplo mecanismo caracterizado, de um lado, pelo "abandono progressivo de espaços institucionais da ordem moral e familiar dominante, de outro, a inscrição dos sujeitos em microterritórios, solo no qual constroem o essencial de suas existências". produz-se uma situação de vulnerabilidade com proporções drásticas. Sob o ponto de vista físico, resta-lhes a morte, que se instaura por meio do confronto com a polícia e entre grupos rivais. Juridicamente, em contraposição aos pressupostos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da condição de infratores passam a ser considerados delinqüentes e submetidos à política do encarceramento. Do ponto de vista do convívio social, além de constituírem mão-de-obra desqualificada e descartável, são premidos pelo isolamento inerente a esse tipo de atividade ilícita, com o conseqüente rompimento dos laços de amizade, parentesco, escolares, assim como da possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Configura-se desse modo uma socialização na delinqüência, atualizando processos de segregação, exclusão e extermínio para esse grupo específico.

No entanto, esses processos que normatizam a vida do jovem aprendiz, fundamentalmente dos que vivem em situação de pobreza, além de heterogêneos, não são lineares e podem entrar em contato com outras maneiras de pensar e recompor as relações entre juventude, saúde e trabalho. De acordo com essa acepção, consideramos que os programas endereçados a esses jovens podem servir como uma espécie de laboratório social, cujo campo de experimentação se esboça a partir da construção de territórios existenciais aptos a produzir diferentes formas de engajamento à vida.

A idéia de laboratório social vincula-se à necessidade premente de que os embates afetivos, laborais, existenciais ou sociofamiliares desses jovens possam se transformar em agenciamentos concretos, multiplicados pela criação de espaços-tempo de convivência que dêem vazão a novas formas de inclusão. Essa idéia refere-se a toda e qualquer tentativa de propagar experimentações que assumam os riscos de alçar vôos inusitados e portanto alternativos, configurando novos modos de existência, sejam eles grupais, individuais, comunitários e artísticos. São espaços plurais com referenciais próprios e projetos a serem ensaiados, descartados, inaugurados, revistos, inventados, nos quais o aprendiz possa experimentar o que se pode ser, distanciando-se daquilo que ele tenderia a ser.

Tal necessidade se exacerba quando, atualmente, estamos imersos em um modo dominante de subjetivar, cuja principal característica — além de originar-se da má distribuição de renda, do desemprego e/ou subemprego, do processo de degradação de grande parte das políticas sociais — reside numa espécie de crença na fatalidade. Ou seja, a sociedade torna-se cada vez mais inerte, conservadora e consumista de muitas ilusões, veiculadas principalmente pela mídia, que fabrica condutas, gestos e afetos.

Ao elegermos uma experiência no campo da arte e da cultura, acreditamos que, dada a sua natureza dissidente, tanto uma como outra trazem a potência de inventar novas configurações que resistam às formas padronizadas de subjetivação vigentes. Especialmente quando se trata de uma juventude que vive um processo histórico de opressão e guetificação.

Sobre esse aspecto, conjetura-se que "há uma experimentação subjetiva que acontece nos grupos marginalizados ou oprimidos que, por manterem uma distância, ao mesmo tempo desejada e forçada em relação aos focos de poder, se deslocam mais facilmente da subjetividade normalizada" (Caiafa, op. cit., p. 68).

Na tentativa de aproximação daquilo que nomeamos como laboratório social, iniciamos um trabalho de pesquisa que apostava no fortalecimento de formas de cooperação entre a academia e uma importante experiência realizada junto a jovens da periferia da cidade do Rio de Janeiro e voltada para uma formação profissionalizante na área artística e cultural.

Todo o trabalho da organização que se responsabiliza pelo projeto é baseado no desenvolvimento de atividades e habilidades socioculturais, incluindo o acompanhamento escolar, social e familiar. O envolvimento dos jovens é de tal ordem, que estão em sua grande maioria à frente de um conjunto de atividades: oficinas, coordenação de projetos, administração e até mesmo gerência executiva da instituição. Eles são responsáveis por setores da estrutura institucional e organizacional, coordenam diversos programas, ministram palestras, workshops, promovem e participam de eventos sociais e culturais.

Investigamos, assim, os componentes éticos e estéticos presentes nas propostas desse programa. Colocamos sob análise — a partir do embate entre as linhas contínuas e descontínuas que condicionaram e ainda condicionam a relação saúde e trabalho — aqueles que funcionam como processos criadores e de transformação — que, neste trabalho, entendemos como produtores de saúde.

A ONG e seus aprendizes

Trabalhamos com uma ONG que tem sete anos de existência e comporta uma experiência de grande vulto, com repercussão nacional e internacional. Atua em duas áreas geográficas diferenciadas do Rio de Janeiro — zonas Norte e Sul — e tem como preocupações essenciais retirar jovens do tráfico de drogas, do subemprego e da prostituição, a partir de um investimento na formação artística e cultural de seus aprendizes.

As atividades que ela realiza são desenvolvidas numa variedade de oficinas de música, teatro, grafite, dança, circo e capoeira. Além disso, outros serviços são oferecidos diretamente ou em convênio com outras instituições, entre eles: bolsas de estudos para aperfeiçoamento artístico/profissional; acompanhamento do desempenho escolar; formação de empreendedores sociais; atividades recreativas com crianças em idade pré-escolar.

Dessas oficinas destacam-se: as bandas de música, que integram uma variedade de ritmos e sons (reggae, funk, samba) e, ainda, performances que abrangem dança, capoeira, circo; a trupe de arte/saúde, que, por meio de esquetes teatrais conjugando circo, dança e música, promove espetáculos informativos sobre temas relacionados à saúde;por último, a trupe de circo, trazendo como eixo central elementos da arte circense, acompanhados de outras atividades formativas.

Atualmente a instituição comporta também em sua estrutura organizacional uma produtora de eventos artísticos e culturais em favelas e áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro e uma cooperativa para a comercialização de produtos de sua grife. Parte de seus instrumentos musicais de percussão vem sendo produzida artesanalmente, em uma pequena oficina que congrega, ainda de forma incipiente, jovens interessados nesse ofício.

Tanto na zona Sul como na Norte, os aprendizes são majoritariamente negros, de baixa renda, com lacunas na seqüência de escolaridade, inúmeras reprovações, alto índice de evasão escolar e inserção em trabalhos de baixa remuneração. Com relação às famílias, estas apresentam-se fragilizadas no que diz respeito à falta total ou parcial de apoio material e de solidariedade, que têm uma relação estreita com vulnerabilidades de ordem econômico-ocupacional e de rendimentos.

Em uma das áreas em que a ONG se situa, a zona Norte, deparamo-nos com a total ausência de instituições públicas de natureza sociocultural e de lazer. Como agravante dessa ausência de serviços públicos, constata-se a presença massiva do tráfico de drogas e, conseqüentemente, do aparato repressor policial, alterando os níveis de sociabilidade e acirrando o fenômeno da segregação e da violência, especialmente com relação aos jovens.

Apesar da precariedade desse solo, fértil em vulnerabilidades de todas as ordens, é extraordinária a capacidade que os aprendizes têm de extrair matérias expressivas das mazelas socioeconômicas e culturais. Essas matérias são metamorfoseadas em performances de uma estética rara, deixando nos lugares por onde passam trupes e bandas os traços singulares de um trabalho arduamente constituído e que comporta afazeres diferenciados.

Assim, a trupe de arte/saúde transmite com muita descontração e alegria temas que buscam sensibilizar jovens e adultos a estabelecer diálogos com a saúde e a cultura. Nesses esquetes cabem discussões em relação aos cuidados com o corpo, priorizando-se o aspecto preventivo, mas dentro de uma perspectiva que problematiza o encontro entre a cultura referenciada na tradição afro-brasileira e as questões relativas à saúde. Ao confrontar-se com as concepções dominantes de saúde, esses esquetes dão visibilidade a preconceitos e diferenças relacionados ao tema.

As bandas musicais primam pelas performances rítmicas, sonoras e especialmente as corporais. Nessa mescla — em que cabem samba, reggae, rap, pontos de religiões afro-brasileiras, capoeira e circo —, espetáculos e canções trazem as marcas de uma juventude guetificada e excluída, compondo um trabalho artístico de extrema originalidade. Quanto à trupe de circo, ao brilho da arte circense alia-se um sentido eminentemente formativo, de mudança de atitude entre os participantes, fomentando vínculos de solidariedade no desenvolvimento de suas atividades diárias.

No trabalho realizado pelas bandas e trupes, os aprendizes insistem em pontuar suas origens sociais, de modo a denunciar a indiferença de que são comumente objetos. Tal pontuação indica combate e resistência à terrível política de invisibilidade, que busca, por todos os meios, relegar à obscuridade suas existências.

Jovens aprendizes e a tríade saúde, trabalho e arte

O contato com uma experiência de natureza profissionalizante, centrada num investimento de formação artística e cultural, se apresenta como um importante dispositivo8 8 A noção de dispositivo refere-se a "uma montagem ou artifício produtor de inovações que geram acontecimentos, atualiza virtualidades", conjugando "elementos e forças (multiplicidades, singularidades, intensidades) heterogêneos que ignoram os limites formalmente constituídos das entidades molares", produzindo "realidades alternativas e revolucionária que transformam o horizonte do considerado Real" (Baremblitt, 1996). de análise do funcionamento dos diferentes modos de subjetivar que, ao entrelaçarem saúde e trabalho, moldam o corpo do jovem aprendiz. Com relação ao projeto que é foco de nosso estudo, as atividades culturais e artísticas parecem proporcionar uma considerável expansão de horizontes no que se refere à chamada capacitação ou profissionalização dos jovens, produzindo práticas singulares em relação à tríade saúde, trabalho e arte.

A expressão mais marcante disso é o prazer, traduzido pela possibilidade de os jovens trabalharem com dança, música, ritmo, expressão corporal, comunicação e mídia, numa espécie de pedagogia do prazer vinculada ao exercício da arte.

Nesse vínculo — em que arte e cultura revelam contornos diferenciados em termos de alternativas de trabalho — ativam-se valores como responsabilidade e liderança, possibilitando ao aprendiz tornar-se de fato protagonista de ações que modificam sua vida e a do grupo. Afirma um dos jovens, atualmente coordenador do centro cultural:

Aqui nós queremos formar empreendedores sociais, vamos dizer assim. No caso eu sou um educador, um empreendedor, além de eu ter meu lado artístico, eu tenho o meu lado social, uma história social muito forte e eu invisto tanto, como nas coisas que eu gosto e amo na vida... A liderança você conquista através dos exemplos que você dá, já o lance do empreendedor é estar buscando informação e estar sempre repassando, sempre ajudando, sempre participando de tudo. Então a gente tem que englobar tudo isso numa só pessoa pra poder formar essa pessoa como educador, empreendedor e liderança.

Esse exercício fortalece o desenvolvimento de um perfil 'artístico-empresarial' eficiente e compatível com o mercado artístico-cultural. Produz também uma espécie de testemunho da transformação de um menino "excluído" em um jovem empreendedor, confirmando aptidões — artísticas, pedagógicas, profissionalizantes e de liderança — que redundam em incentivo para a conquista e adesão de outros jovens.

Todavia, um dos enfrentamentos inscritos no campo da arte e da cultura é seu atrelamento ao mercado artístico e cultural padronizado e descartável, que arquiva os modelos que não atendem ao perfil do "mais recente e o mais encaixado", procurando outros mais eficazes e lucrativos, já que se pauta na lógica do efêmero, do fugaz. Assim, a invenção desse tipo de empreendimento requer sempre sua 'desinvenção' diante das possíveis desilusões inerentes ao mercado artístico empresarial.

Problematizar essa lógica do mercado sob o ponto de vista da tríade saúde, trabalho e arte, entendida como processo de transformação de vida, significa ser capaz de refletir e questionar com os jovens as condições ou situações produtoras de uma linha tênue. Esta é a fronteira que separa, por um lado, a arte e a cultura — como produtos a serem industrializados e empresariados — e, por outro, a arte como potência de interferir nos valores dominantes pautados no mercado.

Tal questionamento é extremamente complexo, ainda mais quando se trabalha com jovens. Primeiro, porque o modo de subjetivar dominante, baseado em perspectivas individualistas e pautado por fórmulas totalizantes, aposta na idéia de que sucesso, competência e capacidade de consumo são formas de estar saudável; segundo, porque veicula a crença de que tal modelo é o único e válido para todos.

Como vimos anteriormente, a busca desse padrão ideal — e sua promessa de felicidade — pode significar uma diminuição da capacidade de criticá-lo. Por conseguinte, serve para enfraquecer os laços de solidariedade e a construção de maneiras de conviver e de repensar coletivamente os sentidos e valores individualistas que tal perspectiva propaga. Esse embate se faz presente no convívio com os jovens desse projeto, sobretudo quando o tema é criar condições de consumo. É o que afirmam quando comparam, atualmente, sua condição de existência a partir da inserção no projeto com aquela oferecida pelo tráfico local:

Hoje é "páreo a páreo", porque hoje eu ando bem arrumado como eles, tá entendendo? Uns têm carro, outros têm moto, eu tô com plano de comprar também, ou seja, a gente tá tendo quase que a mesma condição social.

Hoje eu tenho uma camisa que é cara, hoje eu tenho um tênis que nem ele que tem muito dinheiro tem. Por quê? Porque eu viajo pro exterior e lá tem um tênis que aqui não tem, eu tenho o respeito que não precisa estar com a arma na mão pra ter, eu tô com uma menina que eu não preciso ser bandido, porque ela não está comigo por interesse, às vezes até tá por interesse, mas eu não preciso estar com uma arma na mão pra ela estar comigo.

Essa urgência em "salvar o instante de consumo"—9 9 Essa expressão refere-se a uma atitude instaurada pelo capitalismo, na qual, além do consumo se instituir como a única relação possível, toda a experiência passa a ser orientada por uma "recentidade cega e surda...Vale o último — ao mesmo tempo o mais recente e mais encaixado". 'Salvar o instante de consumo é o título de um dos capítulos do livro de Caiafa (2000). própria desse modo de subjetivação dominante —, que articula melhoria de condição social com possibilidade de consumir, é uma questão central na qual jovens de diferentes estratos sociais encontram-se enredados e que necessitamos submeter à análise.

No caso desses jovens, o acesso aos bens valorizados e divulgados pela mídia será enfrentado com as ferramentas de que dispõem. E, para muitos deles, a urgência e antecipação desse presente têm significado a deterioração ou mesmo a 'detonação' de suas existências.

Os aprendizes relatam um dos aspectos que contribuem especialmente para a inserção do jovem no tráfico: seu modo de funcionamento, que viabiliza e responde, entre outras coisas, a essa urgência de consumir mercadorias. Possuir tais bens atualiza valores próprios da sociedade capitalista, como: ter poder, ter mulheres, ter influência na comunidade e ter comando. Essa lógica não está desatrelada de visões, sentidos e práticas tais como: a dominação de poucos sobre muitos, da aquisição de bens materiais como sinal de auto-estima, do sucesso como promessa de um mundo melhor.

Nesse sentido, verifica-se o esforço que muitos desses jovens fazem para fugir das malhas do narcotráfico e mais precisamente daquilo que ele pode proporcionar em termos de rendimentos em curtíssimo prazo; daquilo que supra suas necessidades materiais (pessoais, familiares, entre outras). Eles afirmam até mesmo que a possibilidade de participar, na condição de aprendizes, de um projeto que comporta como campo de profissionalização a arte e a cultura significa, para muitos deles, escapar ao assédio dos traficantes nos lugares em que residem, assim como adia a inserção em formas precárias de trabalho.

Outros ganhos figuram no elenco de comparação de suas existências com as vidas dos demais jovens que abraçam o narcotráfico. Eles ganham longevidade, visibilidade (sem capuz, sem tarjas) e livre trânsito em qualquer parte. Para além das comparações com o modo de vida ilícito, asseguram que a inclusão no programa adquire por vezes o caráter de um perpétuo combate às atribuições, aprovadas pela sociedade, que os colocam na condição genérica de vadios pobres e ociosos:

Eu não preciso estar no tráfico, eu não preciso perder noite de sono, eu posso até perder noite, mas é assistindo a um show, porque eu sei que no outro dia eu vou poder sair para onde eu quiser, tranqüilo, que eu vou poder andar na comunidade tranqüilo. Quando tiver polícia na comunidade eu vou poder passar tranqüilo, eu vou ter uma tranqüilidade dentro de mim. Porque depois que o jovem está dentro do tráfico, já era, é difícil sair. Ele sabe de muita coisa, vê muita coisa, é responsável por muitas coisas, é responsável por vidas ali dentro, e pessoas são responsáveis por sua vida.

Percebemos, então, que esses empreendimentos sociais acabam gerando um espaço de convivência diferenciado, no qual toda e qualquer ação desenvolvida, seja de auto-sustento, de lazer, pedagógica, entre outras, são maneiras de viabilizar e fortalecer uma prática educativa. Sob tal aspecto, essa experiência específica mostrou que muitos dos jovens não vêem a profissionalização como finalidade última. Ao contrário, apropriam-se do projeto e de suas atividades como investimento educativo e de socialização que efetivamente cria alternativas:

Se você pesquisar, se você tiver um olhar diferente para um jovem daquele ali que está segurando uma arma na mão, você vê que aquele cara tem um potencial. Tira a arma da mão dele, vamos ver o que ele pode fazer. Acho que, de alguma maneira, a gente pode contribuir com isso, com a mudança, né, com a mudança dessa cultura, não que a gente vá resolver todos os problemas, a gente sabe que a gente não é solução pra isso, mas a gente tá querendo contribuir de alguma maneira pra mudança deste cenário.

Para alguns desses jovens, mais do que exercer uma atividade ocupacional ou ganhar uma profissão, o valor da experiência presente na condição de aprendizes consiste em extrair dessa aprendizagem seu caráter formativo. Isto é, sua capacidade de gerar outros meios de viver a grupalidade, possibilitando a construção, mesmo que provisória, do sentimento de pertencimento a diferentes formas de convivência e sociabilidade.

Assim, o desafio é imenso, dada a necessidade de tentar recompor as práticas sociais em todos os níveis (urbanismo, vida cotidiana, relações interindividuais). Isso significa um programa de ação estatal e das regiões e a construção de políticas mais incisivas de inserção desses jovens em novas formas de trabalho e de sociabilidade que se tornem alternativas a essa lógica do mercado e da rentabilidade.

Em paralelo, cumpre atentar para os níveis microssociais, microinstitucionais, familiares e existenciais, de forma a incitar um desejo de luta. Um dos dispositivos dessa luta, na tríade saúde, trabalho e arte, é a produção de um corpo e de uma condição de aprendiz que possa ativar valores culturais e artísticos, dando visibilidade a grupos, a pessoas, a circuitos até então excluídos dos trabalhos sociais.

Quando se pensa na produção de saúde junto aos jovens aprendizes, o que interessa é o confronto com trajetórias que são sempre singulares. O efeito dessas trajetórias, quando privilegiamos uma orientação voltada para o trabalho, deve poder acrescentar valor social e mediações, tendo como desafio outros modos de apreensão do real —, entendido como produtor e criador de mundos em que a articulação entre saúde, trabalho e arte represente uma efetiva reapropriação da vida social e subjetiva.

Conclusão

A pretensão em compreender os modos de subjetivação presentes na produção do corpo e da condição de aprendiz, por meio da inserção de jovens nos programas voltados para uma orientação profissionalizante artística e cultural implica em uma tarefa complexa. Contudo, ela é de extrema relevância, se consideramos que, nessa esfera de atendimento, nos anos 1990, o locus de execução traz uma forte atuação das ONGs cujas ações passaram a ser paulatinamente articuladas com o Estado.

Atualmente essa parceria vem sendo redimensionada, muito em função das exigências próprias do processo de globalização, que, em nome de uma "maior liberdade do mercado", diminui a participação do Estado nos investimentos sociais e traz, subjacente, a ampliação do que vem sendo designado como uma nova filantropia:

É tempo de uma nova administração restrita a um patamar mínimo de atendimento estatal, norteada por uma nova política de tributações, facilitadora do investimento de impostos de empresas em organizações não-governamentais que se responsabilizam pelo atendimento a carentes, abandonados e vítimas de violências em geral. (Passetti, op. cit., pp. 366-7)

A redução drástica de investimentos governamentais na área social coloca em risco a qualidade dessas intervenções. Ainda mais quando se consideram a problemática juvenil e os aspectos conjunturais, como ausência de empregos, as raras e frágeis políticas de geração de renda e o acirramento da precariedade das relações de trabalho.

O quadro se agrava quando visualizamos as parcas iniciativas em termos de políticas sociais de inclusão que herdam nossos jovens.10 10 Um exemplo que ilustra a fragilidade desses projetos é o Serviço Civil Voluntário, que se encontra referendado a partir de uma orientação solidária, sendo destinado a jovens de ambos os sexos de maiores de 18 anos; ele busca preparar uma camada da juventude para o trabalho social, atuando em organizações, hospitais, nas comunidades; para isso, concede uma bolsa-auxílio de R$ 50,00. Um dos efeitos perceptíveis de projetos dessa natureza é o processo por meio do qual a idéia de cidadania e direitos se metamorfoseia em participação comunitária; no lugar de sujeitos de direitos, pleno de significações de caráter político, entra em cena a figura do usuário de serviços, culminando num "reordenamento comunitário das políticas sociais" (Telles, 1998). Os frágeis mecanismos de inserção dos jovens no mercado de trabalho não respondem ao novo tipo de produção intensificado na década de 1990, em que os trabalhos e atividades exigem melhores níveis de escolarização e permanente qualificação.

A valorização da educação — elevando os níveis de escolaridade, de modo a garantir para esses jovens uma inserção no mercado de trabalho — deve estar articulada a um projeto educacional cujos fins não se apresentam redutíveis à possibilidade ou não de conseguirem um emprego. Isso inclusive exige uma análise do que consiste estar incluído hoje no mercado de trabalho.

Sob um outro prisma, coube-nos, neste estudo, examinar os impasses e efeitos das formas que essa contínua apropriação da subjetividade aprendiz assume. Foi analisado também o que ela produz nos diferentes modos postos em funcionamento — considerando as frentes que compõem os trabalhos desenvolvidos por jovens envolvidos em uma formação de natureza artística e cultural.

Encontrar esse embate nos comoveu imensamente. Sobretudo em um território constituído por uma população que vive predo-minantemente abaixo da linha da pobreza, alijada de serviços básicos como saúde e educação; especialmente com jovens na sua grande maioria excluídos dos bancos escolares, condenados à escassez de bens culturais e de lazer e que, além disso, não logram inserção no mercado de trabalho.

Parte desta comoção deve-se à constatação de que, apesar de tantos obstáculos e disparidades, os embates têm a força de não sucumbir de vez à tentação crescente diante dos valores individualistas, competitivos e de consumo apregoados nos modos de vida dominantes. Essa força resiste, altera e resgata, nas formas de trabalho por eles implementados, sua potência criadora.

Nesse embate ficava estampado o dilema travado entre uma perspectiva artística que comporta uma forma de trabalho pautada em valores coletivos e de ajuda mútua, e uma outra, que busca subordinar toda a produção criativa à finalidade exclusiva de tornar os processos de criação meras mercadorias a serviço da reprodução do capital.

Porém, toda potência criadora tornou-se, na contemporaneidade, não apenas alvo, mas requisito básico que alimenta os processos produtivos operados no trabalho, fazendo com que cada vez mais trabalho e criação se aproximem. Essa aproximação tem constituído o exercício diário dos jovens empreendedores pesquisados. A natureza de suas atividades exige uma capacidade criativa constante. Eles respondem igualmente com a forma autônoma e ativa com que desenvolvem não apenas suas performances artísticas, mas principalmente a infinidade de ações em que encontram circunscritos os trabalhos da instituição.

Por meio da análise das atividades, foi possível pinçar as variações peculiares que eles estabelecem num trabalho que sofre a interseção da arte. Encontramos, felizmente, uma multiplicidade de vínculos, muitos dos quais ultrapassam aqueles que lhes são comumente destinados e que se encarregam, cotidianamente, de torná-los servis na esfera do trabalho.

Embora parte dos jovens aprendizes se sinta por vezes engolidos pelo trabalho, eles preservam a dimensão do aprendiz, exercitada como uma variação de suas formas de vida. Nesse aspecto, essa condição torna-se um leque de possibilidades, uma fonte de valorização de suas existências.

Mesmo considerando todas as adversidades presentes na produção da condição e do corpo de aprendiz, talvez um dos argumentos convincentes seja de que os programas e projetos voltados para os jovens possam exercitar, a partir da composição saúde e trabalho, práticas mais próximas a um paradigma ético-estético. Éticas porque referendada na criação de uma rede de sustentação baseada em alianças (políticas, institucionais, familiares, entre outras) capazes de abrigarem os jovens que sofrem um contínuo processo de ruptura com o vínculo social. Estéticas porque tomam essa produção histórica de suscetibilidades das mais diferentes — ordens, econômica, ocupacional, social, familiar e subjetiva — como matéria a ser transformada em atitudes e movimentos que intervenham nesse processo contemporâneo de subjetivação dominante, dando passagem ao novo, ao que vem.

Trabalhar os campos da arte e da cultura a partir de uma sensibilidade estética é a aposta desta experiência que vem conseguindo instrumentalizar jovens que dela participam, ampliando formas de vinculação que ultrapassam o aspecto meramente profissionalizante. A aposta traz consigo a esfera da criação como companheira de viagem. Por isso, dá ao aprendiz a possibilidade de pensar nos mundos por vir. O que se apresenta a eles em seus afazeres diários é a invenção de um tempo que abarca sentidos próprios a rituais de passagem de um aprendiz experimentador de si. São sentidos tecidos às avessas daqueles que os sentenciam diariamente, tornando-os quase sempre suspeitos para a polícia — eles, que aparecem na mídia apenas como cifras de violência, ou mera força de trabalho precário.

Embora atualmente tenhamos uma diversidade de programas e projetos endereçados aos jovens em situação de vulnerabilidade social, é importante dar visibilidade a determinadas experiências: aquelas que atuam no sentido da formação de novos valores, por meio de uma sensibilidade e da responsabilidade coletiva em torno das questões sociais em diferentes níveis (local, nacional e planetário). Nos trabalhos desenvolvidos pelas ONGs, é preciso mostrar em que medida se configuram experiências relevantes, cujas metodologias mereçam ser reproduzidas, valorizadas, apropriadas, investigadas. Assim é possível subsidiar políticas públicas voltadas para os jovens empobrecidos desse país.

Recebido para publicação em dezembro de 2001.

Aprovado para publicação em março de 2003.

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  • Passetti, Edson 1999 'Crianças carentes e políticas públicas'. Em Mary Del Priore (org.), História das crianças no Brasil São Paulo, Contexto.
  • Ribeiro, Ivete et al 1987 'Menor e a sociedade brasileira'. Em Ivete Ribeiro (org.), Sociedade e família no Brasil contemporâneo: de que menor falamos? São Paulo, Loyola.
  • Rizzini, Irma 1999 'Pequenos trabalhadores do Brasil'. Em Mary Del Priore (org.), História das crianças no Brasil São Paulo, Contexto.
  • Rotelli, Franco 1992 'Onde está o senhor?'. Em Antonio Lancetti (org.), Saúde Loucura 3. São Paulo, Hucitec.
  • Santos, Benedito R. ago. 1997 'A regulamentação do trabalho educativo'. Por uma agenda de compromissos. Cadernos Abong, no 18.
  • Santos, Marco Antonio, C. 1999 'Criança e criminalidade no início do século'. Em Mary Del Priore (org.), História das crianças no Brasil São Paulo, Contexto.
  • Telles, Vera 1998 'A nova questão social brasileira'. Estudos Marxistas, no 6, pp. 92-134.
  • 1
    A expressão
    Terra Brasilis é usada pelas primeiras expedições que atracaram suas caravelas no Brasil. Ela servia para descrever e reconhecer a disposição geográfica, os povos e seus costumes, o clima, a região, a extensão territorial das áreas recém-descobertas. Optamos por usá-la no texto, dada a extensão que a expressão encerra.
  • 2
    Estávamos em plena ditadura militar, e, no mesmo ano em que os militares tomaram o poder, criava-se a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), em dezembro de 1964. O sistema de bem-estar tinha como princípio destituir o pátrio poder, sentenciando crianças e jovens como abandonadas e colocando-as sob a responsabilidade do Estado. Nesse período configurou-se uma "estratégia repressiva/assistencialista" orientada pela doutrina de segurança nacional, caracterizada como um instrumento de controle social. Com relação à problemática da assistência às crianças e jovens, se destacou a adoção da doutrina da situação irregular, que culminou com a reformulação do Código de Menores de 1927 (Faleiros, 1995).
  • 3
    Avaliando os trajetos que fazem das ONGs um espaço típico de atuação, Leilah Landim (1996) encontra: "grupos de cristãos que por motivos diversos desejam autonomizar-se com relação à estrutura eclesiástica; técnicos que trabalham em organizações governamentais e reclamam de suas limitações burocráticas ou políticas para realizar determinado projeto; grupos de ativistas de um dado movimento que buscam um espaço para criar assessorias especializadas em assuntos específicos".
  • 4
    Trata-se de uma categoria construída por Deleuze
    et al. (1995). Esses autores afirmam que, do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por linhas que são moleculares. Elas seriam aquilo que sempre foge ou vaza dos instrumentos de codificação (leis, Estado, instituições). Suas condições são imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica. Portanto, linhas de fuga são fluxos. Um fluxo é sempre tecido de crença e desejo. Mas é importante ressaltar que a linha de fuga não é boa ou má, necessariamente, por sua natureza; e que embora ela implique mutação e criação, tais mudanças podem estar comprometidas com a destruição ou com formas e forças reacionárias, retrógradas.
  • 5
    Mais recentemente essas iniciativas vêm sendo desenvolvidas pelo governo brasileiro, organizações de cooperação internacional, como o Unicef, e as organizações não-governamentais (sindicatos, fundações privadas). A partir de 1997, o programa Brasil Criança Cidadã, do Ministério da Previdência e Assistência Social, passou a conceder uma bolsa de R$50,00 por criança retirada do trabalho e encaminhada para a escola. O programa foi implantado em vários municípios e beneficiou inúmeras crianças. No entanto, apesar do modelo inovar em termos de ações integradas entre os governos federal, estadual e municipal, ele peca quando institucionaliza ações de natureza emergencial, tornando-as soluções definitivas de problemas que demandam políticas de longo prazo. Hoje, muitos dos adolescentes que participaram do programa tiveram que retornar ao trabalho, dado o índice de desemprego no país. Sobre essas iniciativas e uma análise crítica, ver Rizzini,(1999).
  • 6
    Em Milito
    et al. (1995), esse novo personagem urbano é caracterizado como "o sócio do menino, em sua plena expressão, tradutor de seus silêncios, instaurador de sua voz, articulador de seus itinerários tumultuosos, não tanto os da superfície da cidade, mas, sobretudo, os das profundezas de suas subjetividades errantes, presente claro e falante".
  • 7
    A esse respeito, Adorno (1991, p. 195), ao analisar trajetórias de crianças que passaram precocemente pela experiência da punição, observa que não há uma biografia típica que aponte para o caminho da delinqüência. O autor aborda a operação de um duplo mecanismo caracterizado, de um lado, pelo "abandono progressivo de espaços institucionais da ordem moral e familiar dominante, de outro, a inscrição dos sujeitos em microterritórios, solo no qual constroem o essencial de suas existências".
  • 8
    A noção de dispositivo refere-se a "uma montagem ou artifício produtor de inovações que geram acontecimentos, atualiza virtualidades", conjugando "elementos e forças (multiplicidades, singularidades, intensidades) heterogêneos que ignoram os limites formalmente constituídos das entidades molares", produzindo "realidades alternativas e revolucionária que transformam o horizonte do considerado Real" (Baremblitt, 1996).
  • 9
    Essa expressão refere-se a uma atitude instaurada pelo capitalismo, na qual, além do consumo se instituir como a única relação possível, toda a experiência passa a ser orientada por uma "recentidade cega e surda...Vale o último — ao mesmo tempo o mais recente e mais encaixado". 'Salvar o instante de consumo é o título de um dos capítulos do livro de Caiafa (2000).
  • 10
    Um exemplo que ilustra a fragilidade desses projetos é o Serviço Civil Voluntário, que se encontra referendado a partir de uma orientação solidária, sendo destinado a jovens de ambos os sexos de maiores de 18 anos; ele busca preparar uma camada da juventude para o trabalho social, atuando em organizações, hospitais, nas comunidades; para isso, concede uma bolsa-auxílio de R$ 50,00. Um dos efeitos perceptíveis de projetos dessa natureza é o processo por meio do qual a idéia de cidadania e direitos se metamorfoseia em participação comunitária; no lugar de sujeitos de direitos, pleno de significações de caráter político, entra em cena a figura do usuário de serviços, culminando num "reordenamento comunitário das políticas sociais" (Telles, 1998).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2001
    • Aceito
      Mar 2003
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